Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2004/08.6TVLSB.L2-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
SENTENÇA ARBITRAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (da exclusiva responsabilidade da relatora – art. 663, nº 7, do C.P.C.)

I- Tendo sido requerida a revisão de sentença arbitral estrangeira proferida em Estado que subscreveu a Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 1958, e aplicando-se tal Convenção, pode ser recusado o reconhecimento e execução dessa sentença arbitral se o tribunal português de reconhecimento constatar, oficiosamente, que o resultado a que se chegou naquela decisão arbitral contraria a ordem pública internacional do Estado Português;

II- Está vedado ao tribunal de reconhecimento proceder a qualquer apreciação de mérito sobre a referida sentença revidenda, cumprindo-lhe apenas verificar se nada obsta ao seu reconhecimento e execução na ordem interna;

III- Não contraria as normas e princípios fundamentais da nossa ordem jurídica a aplicação, na sentença arbitral, de uma cláusula penal a que foi atribuída uma dupla função, ressarcidora e coercitiva, à parte considerada incumpridora no contrato em discussão, se o contraente cumpridor não tiver alegado e provado os danos por si sofridos com o incumprimento da contraparte;

IV- Não é de considerar excessivo, no contexto de um negócio da aquisição do capital social de uma sociedade, o valor da cláusula penal fixado em cerca de 15% do preço global acordado, para o caso de não vir a concretizar-se o contrato definitivo por incumprimento de qualquer das partes;
Ainda que a própria convenção de arbitragem proíba o recurso à moderação segundo a equidade, e tal contrarie uma norma imperativa da nossa ordem jurídica, tal não constituirá motivo de recusa ao reconhecimento da sentença arbitral se o valor da cláusula penal não for de considerar excessivo e o condenado ao respetivo pagamento não tiver discutido a possibilidade dessa redução no processo arbitral, antes requerendo a condenação da contraparte no pagamento do valor que nela fora fixado.
Decisão Texto Parcial:Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório:
A., intentou junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em 10.7.2008, contra B., processo especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, proferida em 10.12.2007, pelo Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara do Comércio Brasil Canadá, pedindo lhe seja conferida força executiva nos termos da Convenção de Nova Iorque, sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, de 10 de Junho de 1958. Refere que na referida sentença foi o requerido condenado a pagar à requerente as quantias indicadas no artigo 1º da petição inicial e que a mesma sentença foi proferida ao abrigo do convencionado entre as partes. Diz que a decisão de reconhecimento da sentença não conduz a resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português, preenchendo os requisitos do artigo I da Convenção de Nova Iorque a que Portugal aderiu em 18.10.1994.
O requerido deduziu oposição, invocando a incompetência relativa do tribunal, que a referida sentença arbitral não transitou em julgado, encontrando-se pendente ação judicial em que foi pedida a respetiva anulação (em São Paulo, no Brasil), e que a mesma sentença é contrária à ordem pública internacional do Estado Português. Pede que seja negada a confirmação pretendida.
A requerente respondeu à matéria de exceção, pugnando pela sua improcedência e pela confirmação da sentença arbitral estrangeira.
Remetido o processo aos Juízos Cíveis de Lisboa, foi observado o art. 1099 do C.P.C. de 1961, tendo cada uma das partes apresentado alegações em que a requerente conclui como no requerimento inicial e o requerido reitera os argumentos por si já aduzidos no sentido da recusa do pedido de revisão.
O requerido juntou quatro pareceres da autoria dos Professores Catedráticos João Calvão da Silva (fls. 218 e ss.), António Menezes Cordeiro (fls. 257 e ss.), José de Oliveira Ascensão e Dário Moura Vicente (fls. 318 e ss.) e António Pinto Monteiro (fls. 343 e ss.).
A requerente juntou dois pareceres da autoria dos Professores Catedráticos Carlos Ferreira de Almeida (fls. 477 e ss.) e Luís de Lima Pinheiro (fls. 526 e ss.).
Por seu turno, o Ministério Público entendeu não existir obstáculo legal à revisão e confirmação, uma vez comprovado o trânsito em julgado da sentença arbitral.
Veio ainda a requerente pedir, a propósito da junção dos quatro pareceres pelo requerido, a condenação deste como litigante de má-fé, referindo que foi o requerido quem iniciou a arbitragem no Brasil, invocando a seu favor e contra a ora requerente a cláusula penal que agora reputa violadora do princípio da proporcionalidade, pelo que adota uma conduta contraditória e ofensiva da boa-fé.
O requerido respondeu.
Por decisão de 21.7.2010 (a fls. 628 a 643), foi ordenada a suspensão da instância até se mostrar definitivamente julgada a ação anulatória de sentença arbitral pendente no Juízo da 29ª Vara Cível de São Paulo.
Interposto recurso, foi tal decisão confirmada por acórdão desta Relação proferido em 30.6.2011 (fls. 731 a 751).
A referida suspensão cessou por despacho de 7.7.2017 (fls. 836 e ss.), em virtude do requerido ter informado nos autos que aquela ação de anulação fora julgada improcedente, mediante decisão com trânsito em julgado.
Em 21.7.2017, foi proferida sentença que, conferindo a validade formal da instância e fixando à causa o valor de € 16.027.029,30, decidiu nos seguintes termos: “(...) o Tribunal julga improcedente a matéria deduzida em sede de contestação (por referência ao disposto no artigo V, n.º 1, al. e), e n.º 2, al. b), da Convenção de Nova Iorque) e totalmente procedente esta ação, por provada; e, em consequência, confirma a sentença proferida pelo Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá de 10 de dezembro de 2007 (cfr. documento de fls. 8 a 55), conferindo-lhe força executiva nos termos da Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, de 10 de junho de 1958.
Mais decide absolver o Requerido B. do pedido de condenação deduzido por litigância de má fé, por ausência de fundamentos legal e factual.
As custas judiciais ficam a cargo do Requerido, na sua totalidade, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil.”
Inconformado, recorreu o requerido, B., da sentença proferida, culminando as alegações por si apresentadas com as seguintes conclusões que se transcrevem:

1- A SENTENÇA ignorou totalmente os fundamentos invocados pelo Recorrente nas suas alegações;
2- A condenação operada pela SENTENÇA ARBITRAL não deve ser confirmada pelo Tribunal Português, devendo, por isso, a SENTENÇA ser revogada e substituída por outra que obste a esse reconhecimento. Efetivamente:
3- A SENTENÇA ARBITRAL corresponde a uma condenação num montante exorbitante – 25 milhões de dólares – que não corresponde ao ressarcimento de danos causados pelo Recorrente à Recorrida.
4- Com efeito tais danos não foram apurados, porque nem sequer foram alegados pela Recorrida.
5- A SENTENÇA ARBITRAL, confirmada pela SENTENÇA, analisa-se numa condenação na qual o dano não é pressuposto da indemnização, ao contrário do que obrigatoriamente se determina na lei nacional portuguesa;
6- A SENTENÇA ARBITRAL, confirmada pela SENTENÇA, consagra, deste modo, uma indemnização do tipo “punitive damages”, que a nossa ordem jurídica não permite;
7- A SENTENÇA ARBITRAL, confirmada pela SENTENÇA, viola a Ordem Pública internacional do Estado Português e, por isso, não pode ser confirmada pelos nossos tribunais, nos termos do disposto no artigo 980, alínea f) do CPC, que corresponde ao anterior artigo 1096 alínea f) e do artigo V, nº 2, alínea b) da CONVENÇÃO;
8- A SENTENÇA ARBITRAL, confirmada pela SENTENÇA, viola, igualmente, o disposto no artigo 56, alínea b), ii) da Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei 63/2011 de 14 de dezembro;
9- A SENTENÇA ARBITRAL, confirmada pela SENTENÇA, viola a Ordem Pública internacional do Estado Português, colidindo, de forma irremediável, com os princípios que estruturam a responsabilidade civil e a obrigação de indemnizar;
10- Violando, também, os princípios da proporcionalidade e da justiça, que estruturam o ordenamento jurídico Português;
11- Estas conclusões são consensuais nos Ilustres Professores de Direito que emitiram os Pareceres juntos aos autos e alicerçam-se na fundamentação deles constantes;
12- A SENTENÇA ARBITRAL, confirmada pela SENTENÇA, condena o Recorrente ao pagamento de uma quantia exorbitante, capaz de o arruinar completamente, sendo que nenhum dano está na base desta punição pecuniária;
13- A SENTENÇA comete um erro de direito (e de facto) quando associa o valor da (ficcionada) indemnização ao valor do negócio;
14- Esta indexação não tem qualquer fundamento, dado que: (i) não há prova de qualquer dano sofrido pela Recorrida; (ii) não há alegação desse dano; (iii) não há qualquer elemento do processo que ligue o valor do negócio à existência de qualquer prejuízo;
15- Ao decidir como decidiu, a SENTENÇA violou o disposto nos artigos 22, nº. 1, 562 a 564, 566, n.ºs 1 e 2, 793, n.º 1, 802, 811 e 812, n.º 1, todos do Código Civil.
16- Como se detalhou nas alegações, para as quais agora se remete, estes normativos expressam, de forma clara, os princípios vigentes na Ordem Pública Internacional do Estado Português, assim a caracterizando e delimitando, nomeadamente:
17- Ao adequar a indemnização ao dano sofrido;
18- Ao reduzir as cláusulas penais à cobertura do dano;
19- Ao proibir os chamados punitive damages;
20- Tudo isto colide com a SENTENÇA ARBITRAL, confirmada pela SENTENÇA.
Aí:
21- O pagamento no qual o Recorrente foi condenado, não tem natureza de indemnização, como não é contrapartida de danos sofridos pela Recorrida;
22- Recorrida que, aliás, reclamou esses danos em separado, confessando, por essa via, o caráter puramente punitivo da multa de 25 milhões de dólares;
23- Nada relevando ter sido o Recorrente a acionar a arbitragem, pois não é o Recorrente quem delimita a Ordem Pública Internacional do Estado Português;
24- Nem vale invocar a sua alegada experiência em negócios internacionais, pois salta à vista que, se tivesse experiência nesse tipo de contratos, jamais envolveria neles o seu património pessoal, utilizando, como é comum (dir-se-ia universal), uma entidade veículo;
25- A SENTENÇA, ao confirmar a SENTENÇA ARBITRAL, violou ainda os princípios da equidade, que afloram, nomeadamente, nos artigos 339, n.º 2, 437, n.º 1, 489, 494, 508, 1146, n.º 3, e 1594, n.º 3, todos do Código Civil.
26- Equidade que é uma das traves mestras do ordenamento jurídico português;
27- Recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça, mantendo acórdão já proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, não confirmou uma sentença arbitral espanhola, que condenara um advogado português ao pagamento de 4,5 milhões de euros, precisamente pela colisão frontal entre tal condenação e a Ordem Pública Internacional do Estado Português;
28- Nas alegações e sobretudo a partir dos PARECERES juntos pelo Recorrente e totalmente ignorados pela SENTENÇA, são listados vários exemplos de rejeições de confirmação em vários países da Europa (e não só);
29- Sendo o exemplo nacional referido no n.º 27 bastante relevante, por se referir a uma matéria de índole patrimonial, onde também está presente uma indemnização absurda, conquanto nem atinja 20%, daquela que a pródiga e generosa SENTENÇA ARBITRAL desferiu contra o Recorrente;
30- Sendo, além do mais, incompreensível que se diga, que foi o Recorrente quem violou deveres essenciais do contrato celebrado com a Recorrida, ao mesmo tempo que se diz, na mesma SENTENÇA, que não cabe analisar o mérito da decisão. Na verdade:
31- Como é pacífico na doutrina e na jurisprudência, o que está em causa é o efeito da confirmação e o grau de repugnância do teor da decisão arbitral (no caso), face à Ordem Pública Internacional do Estado Português;
32- No caso essa repugnância é manifesta;
33- Ao decidir como decidiu, afastando-se do princípio da proporcionalidade, a SENTENÇA interpretou e aplicou o disposto no artigo 980, al. f) do CPC e no artigo V, n.º 2, al. b) da CONVENÇÃO em violação do disposto nos artigos 18, nº 2, 62, n.º 1 e 266, nº 2 da Constituição.
34- A SENTENÇA ignorou e violou o disposto no artigo 812, n.º 1, do Código Civil, ao não reduzir a cláusula penal nos termos aí previstos.
35- Pese embora inexista qualquer dano da Recorrida, o Recorrente invoca esta norma legal, para os devidos efeitos, que deveria ter imposto ao tribunal recorrido, que indagasse sobre o prejuízo da Recorrida, reduzindo a cláusula penal em conformidade;
36- Todas estas razões impõem que a SENTENÇA não deva ser confirmada.”
Tendo a requerente pedido a reforma da sentença quanto a custas, decidiu-se, a fls. 920 a 925, “dispensar o pagamento de 60% do remanescente da taxa de justiça, correspondente ao valor da causa, na parcela excedente a € 275.000,00.”
Em contra-alegações, defendeu a recorrida o acerto do julgado, salientando, no essencial, que está vedado ao tribunal fazer qualquer revisão de mérito da sentença revidenda e que não foi demonstrado qualquer obstáculo ao reconhecimento da sentença arbitral, como a violação da ordem pública internacional do Estado Português, sendo a sentença arbitral compatível com os princípios da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar na ordem interna.
Tendo o recorrente solicitado a fixação do efeito suspensivo ao recurso, propondo-se prestar caução, foi este admitido como de apelação, a subir nos próprios autos (fls. 973 e ss.) e com efeito meramente devolutivo por insuficiência da caução oferecida (fls. 994 a 1002).
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***
II- Fundamentos de Facto:
A decisão da 1ª instância fixou como provada a seguinte factualidade:

1) Por sentença de 10 de dezembro de 2007, proferida pelo Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (número 5/2007), transitada em julgado, foi o ora Requerido condenado a:
a) Pagar à ora Requerente a quantia de USD 25 000 000 (vinte e cinco milhões de dólares norte americanos), equivalente a € 15 908 367,80 (quinze milhões, novecentos e oito mil, trezentos e sessenta e sete euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa de 1 % ao mês, contados após trinta dias da notificação da sentença arbitral e até efetivo pagamento;
b) Pagar à ora Requerente, no mesmo prazo referido na alínea anterior, quantia equivalente a 20 % de todas as despesas e custos com a arbitragem, a informar pelo Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá, incluindo os honorários dos árbitros, de modo a que o ora Requerido suporte no total 70 % dos custos e despesas totais e a ora Requerente 30 %;
c) Pagar à ora Requerente a quantia de R$ 300 000 (trezentos mil reais), equivalente a € 118 661,50 (cento e dezoito mil, seiscentos e sessenta e um euros e cinquenta cêntimos), a título de honorários de advogado, no prazo de trinta dias contados da notificação da sentença arbitral, sob pena de incorrer em juros de mora de 1 % ao mês até à data do efetivo pagamento (cfr. documento de fls. 8 a 55);
2) A sentença arbitral acima referida foi proferida ao abrigo do convencionado entre as partes, as quais firmaram termo e compromisso arbitral em 31 de maio de 2007, na sequência da sentença proferida pela 34.ª Vara Cível da Capital Brasileira, que remeteu o objeto do litígio para a arbitragem (cfr. documento de fls. 56 a 63);
3) Nos termos daquela decisão, as partes acordaram submeter a arbitragem o julgamento do seguinte litígio:
O objeto da arbitragem será [é] o seguinte: a1) se a A. cumpriu as obrigações previstas no pré-contrato celebrado entre as partes dentro do prazo, lá pactuado; a2) se B. cumpriu com suas obrigações lá pactuadas; a3) especificar quem, dentre as partes constantes do pré-contrato, descumpriu as obrigações lá assumidas; se houve o cumprimento das obrigações constantes no item a, b e c da cláusula 4.1 e do exposto na cláusula 3.b no pré-contrato em questão; c) se, por conta do descumprimento das obrigações pela A., não mais existe vínculo jurídico entre B. e A., nos termos do pré-contrato em questão; d) se cabível a multa prevista no item 5 do pré-contrato em apreço (multa de vinte e cinco milhões de dólares)” (cfr. documento de fls. 56 a 63);
4) A referida cláusula de penalidade (do item 5 do pré-contrato) está redigida nos termos seguintes:
“Caso qualquer uma das partes deixe de cumprir a sua obrigação de consumar a Aquisição, salvo as Exceções, tal parte infratora se obriga desde já a indenizar imediatamente a outra parte (inocente) no valor equivalente a US$ 25,000,000 (vinte e cinco milhões de dólares dos Estados Unidos” (cfr. documento de fls. 8 a 55, em concreto, a fls. 51); 
5) O Requerido propôs ação anulatória da sentença arbitral acima referida, ação que estava pendente à data da propositura da presente lide e que corria os seus termos no Juízo da 29.ª Vara Cível de São Paulo, no Brasil, com o número de processo 583.00.2008, distribuída em 2 de junho de 2008 (cfr. documento de fls. 120 a 125);
6) Através da ação referida no ponto anterior, o Requerido peticionou que fosse anulada a sentença arbitral sub judice, determinando-se a prolação de outra, em seu lugar, pela Câmara de Comércio Brasil-Canadá e sendo aí demandada a ora Requerente (cfr. documento de fls. 120 a 125);
7) O ora Requerido também requereu, no Brasil, providência cautelar (pedido de antecipação de tutela) com a finalidade de impedir a execução da sentença arbitral visada, a qual foi indeferida pelo Tribunal Judicial, que decidiu nos termos seguintes: 
“1. (…) 2. Mesmo no caso de ajuizamento das ações rescisórias ou anulatórias, não há impedimento ao cumprimento da sentença ou do acórdão rescindendo, ressalvada a concessão, caso imprescindíveis e sob os pressupostos previstos em lei, de medidas de natureza cautelar ou antecipatória de tutela.
Não considero, na hipótese, imprescindível a concessão da antecipação da tutela pretendida, considerando que caso venha a ser executada a sentença arbitral, é cabível impugnação a que se poderá outorgar efeito suspensivo. 
Ademais, a matéria que fundamenta a pretensão do autor envolve aspectos de validade da decisão arbitral que de pronto, sem o crivo do contraditório, não têm como ser examinados; nesse sentido, não verifico a verossimilhança das alegações do requerente, que possa justificar o impedimento a eventual execução” (decisão de 24 de junho de 2008) – cfr. documentos de fls. 109, 110 e 120 a 125;
8) Em 21 de fevereiro de 2011 foi proferida sentença no âmbito da referida ação de anulação, registada no dia seguinte, nos termos da qual foi julgada extinta a ação, sem solução de mérito, contra a Câmara de Comércio Brasil-Canadá, com fundamento no artigo 267.º, IV, do Código de Processo Civil brasileiro, e julgado improcedente o pedido formulado contra a ora Requerente, com fundamento no artigo 269.º, I, do mesmo código, sendo o Requerido condenado como litigante de má fé (cfr. documento de fls. 765 a 767);
9) Em 20 de abril de 2011 foi recebido o recurso de apelação daquela sentença e, a 12 de julho de 2011, os autos foram remetidos à Superior Instância (Tribunal de Justiça) para apreciação do recurso de apelação interposto (cfr. documento de fls. 765 a 767);
10) Em 3 de outubro de 2012 foi concedido parcial provimento ao aludido recurso, por terem sido afastadas as multas aplicadas em decorrência do afastamento do ora Requerido como litigante de má fé (cfr. documento de fls. 812 a 814);
11) No respetivo Acórdão (com o trânsito em julgado reconhecido pelo Requerido, a fls. 833) foi mantida a improcedência do pedido formulado contra a ora Requerente, de anulação da sentença arbitral já identificada (cfr. documento de fls. 812 a 814);
12) Foi o ora Requerido quem desencadeou contra a Requerente o acionamento da cláusula penal ínsita na decisão arbitral, em seu benefício (cfr. documento de fls. 8 a 55);
13) O Requerido é um homem de negócios e empresário reconhecido em Portugal, também com experiência internacional;
14) O Requerido é um cidadão de nacionalidade portuguesa (cfr. documento de fls. 150 a 152 do apenso A).
                                                                        ***
III- Fundamentos de Direito:

Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
Compulsadas as conclusões supra transcritas, cumpre apreciar se a sentença arbitral, confirmada pela sentença recorrida, viola a ordem pública internacional do Estado Português, colidindo, de forma irremediável, com os princípios que estruturam a responsabilidade civil e a obrigação de indemnizar na ordem interna, e violando, igualmente, os princípios da proporcionalidade e da justiça, que estruturam o ordenamento jurídico Português.
A revisão e confirmação de sentença estrangeira assentam, em geral, na verificação do preenchimento dos requisitos previstos nas alíneas do art. 980 do C.P.C. (art. 1096 do C.P.C. de 1961), não implicando o reexame do mérito da causa respetiva.
Dispõe o art. 984 do mesmo C.P.C. que: “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito ”.
No que respeita à revisão de decisões arbitrais estrangeiras, a Lei nº 63/2011, de 14.12, que aprovou a nova Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), revogou a anterior Lei nº 31/86, de 29.8, que dispunha sobre a matéria.
Contudo, a dita Lei nº 63/2011 entrou em vigor em Março de 2012 e o novo regime é, em princípio, apenas aplicável aos processos arbitrais iniciados após a sua entrada em vigor, só se aplicando aos anteriores mediante acordo das partes, expresso ou tácito (cfr. art. 4 da referida Lei preambular).
No caso, a presente ação especial foi instaurada em 10.7.2008 e a instância esteve suspensa durante vários anos (desde 21.7.2010 a 7.7.2017), pelo que, tendo a sentença recorrida sido proferida em 21.7.2017, o recorrente só alude à dita Lei nº 63/2011 (referindo-se à violação do art. 56, al. b), ii) da mesma Lei) no presente recurso.
Por sua vez, na sentença recorrida julgou-se a referida LAV inaplicável, precisamente porque não lhe fora feita referência pela requerente, que somente aludiu à Convenção de Nova Iorque, e entendendo, ainda, citando Luís Lima Pinheiro, que o novo regime não seria mais favorável ao reconhecimento da decisão.
Embora sem partilharmos este juízo último, cremos que, surgindo a única referência à Lei nº 63/2011 nas alegações de recurso, forçoso será concluir que deve funcionar aqui a regra geral, não sendo, por isso, de aplicar ao caso a referida LAV([1]).
Em todo o caso, conforme se analisou em 1ª instância, a referida Convenção de Nova Iorque, sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, de 10 de Junho de 1958, entrou em vigor em Portugal em 16.1.1995 (Aviso nº 142/95, DR nº 141, I Série-A, de 21.6.1995) (cfr. art. 8, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), com a reserva de que “No âmbito do princípio da reciprocidade, Portugal só aplicará a Convenção no caso de as sentenças arbitrais estrangeiras terem sido proferidas no território de Estados a ele vinculados.”
Nenhuma dúvida se coloca sobre a aplicação ao caso da referida Convenção, tanto mais que que no Brasil esta foi inserida no ordenamento jurídico através do Decreto nº 4.311, de 23.7.2002.
Deste modo, as normas da Convenção de Nova Iorque prevalecem aqui sobre as gerais previstas no Código de Processo Civil – arts. 1094 a 1102 do C.P.C. de 1961 e arts. 978 a 985 do C.P.C. de 2013 – sendo a requerente que expressamente invocou a Convenção.
De acordo com a primeira parte do artigo III da Convenção de Nova Iorque, os Estados contratantes estão obrigados a conhecer e executar uma sentença arbitral estrangeira, a não ser que o artigo V da Convenção excecionalmente lhe permita o contrário([2]).
Com efeito, no artigo V da Convenção de Nova Iorque são taxativamente fixadas as condições em que o Estado contratante pode recusar o reconhecimento e a execução da sentença arbitral.
No que ao presente processo diz respeito, e porque nisso assentou também a contestação do ora requerido, estabelece a al. e) do nº 1 do referido artigo V que constitui motivo de recusa a circunstância da parte nisso interessada fornecer prova “De que a sentença ainda não se tornou obrigatória para as Partes, foi anulada ou suspensa por uma autoridade competente do país em que, ou segundo a lei do qual, a sentença foi proferida.”
Este motivo de recusa, como os demais previstos no nº 1 do artigo V, carecem de alegação e prova da parte contra quem, no processo de reconhecimento, é invocada a sentença.
Já os motivos constantes do nº 2 do mesmo artigo V são de conhecimento oficioso, não carecendo de alegação e prova.
Assim, pode ser recusado o reconhecimento e a execução de uma sentença arbitral estrangeira se a autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução foram pedidos constatar que, de acordo com a lei desse país, o objeto de litígio não é suscetível de ser resolvido por via arbitral (al. a) do nº 2 do artigo V) ou que o reconhecimento ou a execução da sentença são contrários à ordem pública desse país (al. b) do nº 2 do artigo V).
Na situação em análise, o óbice suscitado pelo requerido quanto à pendência da ação de anulação que impedia a obrigatoriedade da sentença arbitral para as partes foi claramente ultrapassado, uma vez que não só era ao requerido que incumbia a prova desse motivo de recusa como, após a suspensão da instância (até se mostrar definitivamente julgada aquela ação anulatória da sentença arbitral), veio o próprio requerido reconhecer, a fls. 833/834, que aquela sua pretensão fora julgada improcedente por decisão transitada em julgado (ponto 11 supra).
Isto posto, o que apenas se discute neste recurso é saber se o reconhecimento ou a execução da sentença arbitral é contrária à ordem pública nacional.
O apelante defende que sim, argumentando que a sentença colide com os princípios que estruturam a responsabilidade civil e a obrigação de indemnizar na nossa ordem jurídica, e viola, igualmente, os princípios da proporcionalidade e da justiça, que estruturam o ordenamento jurídico Português.
Diz que a sentença condenatória assenta na aplicação da cláusula 5ª do contrato celebrado entre as partes (“Oferta Vinculativa de Aquisição”) em 24.1.2007 (contrato em que acordavam a aquisição pela A., da totalidade do capital social da sociedade Cervejarias Cintra Indústria e Comércio, Lda, mediante certas condições), e que tal cláusula tem um teor punitivo, do tipo “punitive damages”, sem qualquer correspondência com os danos causados e que não os pressupõe, ao contrário do que determina a lei portuguesa.
Mais refere que a sentença arbitral, ao aplicar a dita cláusula, condena o recorrente no pagamento de uma quantia exorbitante, contrária aos princípios estruturantes da proporcionalidade e da justiça.
Em contra-alegações, salientou a recorrida que o tribunal não pode fazer qualquer revisão de mérito da sentença revidenda e que não foi demonstrado qualquer obstáculo ao reconhecimento da sentença arbitral, como a violação da ordem pública internacional do Estado Português, sendo a sentença arbitral compatível com os princípios da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar na ordem interna.
Na sentença fez-se demorada análise da natureza da cláusula penal inserta no contrato, afirmando-se, designadamente, que: “(…) Há uma diferença fundamental entre a atuação de uma cláusula penal e os “danos punitivos”, uma vez que estes não são reconduzíveis à autonomia das partes do contrato, designadamente, a uma cláusula do contrato.
Acresce que a cláusula penal inserta no contrato é referida, na própria decisão arbitral, como “pré-fixação da indemnização por descumprimento”; ou seja, trata-se de uma liquidação antecipada dos danos exigíveis ou, se quisermos, uma convenção antecipada de liquidação dos danos, mas com uma dúplice função indemnizatória e compulsória.
Em consequência, a mera circunstância de não ter sido provado qualquer dano, mas apenas o incumprimento das obrigações, nem sequer é contrário à ordem pública internacional de Portugal, porquanto o direito material português também admite esta desnecessidade perante uma cláusula de liquidação antecipada dos danos. (…).”
E, mais adiante: “(…) A ordem pública do Estado português só é fundamento de recusa quando o reconhecimento da decisão arbitral revidenda conduza a um resultado manifestamente incompatível com aquele ordenamento jurídico, ou contrário ao mesmo. Os princípios e regras cujo afastamento ou divergência fundam a recusa de revisão, sendo limite ao reconhecimento, têm de ser graves e essenciais, não bastando que os mesmos se revistam de imperatividade na ordem jurídica interna. (…):”
Depois de analisar os vários critérios restritivos para o funcionamento da reserva de ordem pública do Estado português, conclui-se na sentença: “(…) A nosso ver, à luz dos ditos critérios e salvo o respeito devido por entendimento diferente ou contrário, parece-nos assente que a sentença arbitral brasileira não ofende nenhum dos mencionados princípios e, por isso mesmo, não é incompatível com a ordem pública internacional portuguesa. Dos elementos existentes nos presentes autos não pode o Tribunal deixar de constatar que a confirmação da sentença arbitral em causa não contraria, manifesta e clamorosamente, a ordem pública internacional portuguesa. 
No caso em apreço, a condenação no pagamento de uma indemnização pela parte que incumpriu um negócio sinalagmático, mesmo sendo esse contrato de uma relevância considerável (a venda de uma unidade fabril no Brasil, conforme deflui do conteúdo da sentença arbitral revidenda), prevista em cláusula penal convencionada entre ambos os outorgantes, em nada contende com o ordenamento público internacional do nosso País. (…).”
Vejamos.
A sentença arbitral entendeu ter o aqui recorrente, B., incumprido o contrato celebrado entre as partes e condenou, nomeadamente, o mesmo a pagar à aqui recorrida A., a quantia de USD 25.000.000, equivalente a € 15.908.367,80, acrescida de juros de mora à taxa de 1% ao mês, contados após trinta dias da notificação da sentença arbitral e até efetivo pagamento.
Discorreu-se no final da sentença arbitral (ponto 69): “(…) conclui-se que Petrópolis cumpriu com as obrigações previstas na Oferta ou foi impedido de implementá-las por conduta antijurídica de Cintra. Dada a prática de atos tendentes a obstar o implemento de certas obrigações por parte de Cintra, resta terminado o vínculo jurídico antes existente entre Petrópolis e Cintra e oriundo do Acordo, por força do arrependimento de Cintra, e não por justa causa, como sustenta Cintra, sendo, consequentemente, cabível a aplicação da penalidade prevista no item 5 da Oferta, em desfavor de Cintra. Essa conclusão alinha-se com o fato de que a rescisão do Acordo por notificação de Cintra, de 1º de março de 2007, adotou equivocamente, a data de 28 de fevereiro de 2007 como o termo final para a concretização do negócio entabulado na Oferta. (…).”
O indicado item 5, ou cláusula 5ª do contrato celebrado entre as partes, tem o seguinte teor: “Caso qualquer uma das partes deixe de cumprir a sua obrigação de consumar a Aquisição, salvo as Exceções, tal parte infratora se obriga desde já a indenizar imediatamente a outra parte (inocente) no valor equivalente a US$ 25,000,000 (vinte e cinco milhões de dólares dos Estados Unidos.”
Sendo indiscutível que não é possível, pelo tribunal de reconhecimento e nesta sede, levar a cabo qualquer apreciação de mérito sobre a referida sentença revidenda, tudo está em saber se é possível recusar a sua confirmação dado o reconhecimento ou execução da mesma serem contrários à ordem pública nacional, devendo entender-se esta como a denominada ordem pública internacional, dos princípios fundamentais estruturantes da presença de Portugal no concerto das nações([3]).
Numa outra definição “a ordem pública constitui um complexo normativo de conteúdo ético-sócio-económico formado por certas normas de direito positivo e por princípios e valores fundamentais de uma comunidade juridicamente organizada, aplicável no espaço respetivo com prevalência sobre outras normas, princípios ou valores de uma ordem jurídica estrangeira estranhos ou conflituantes com ela.”([4])
A propósito da revisão de uma sentença arbitral proferida em Estado subscritor da Convenção de Nova Iorque, e analisando, através de vários contributos, doutrinários e jurisprudenciais, o sentido da expressão “ordem pública internacional” adotada na alínea b) do nº 2 do artigo V da Convenção, concluiu-se, de forma lapidar, no Ac. do STJ de 23.10.2014([5]): “(…) Sintetizando o que podemos colher da análise destes contributos, sem quaisquer preocupações dogmáticas e com fito meramente operacional, cremos estar em condições de considerar que a ordem pública internacional do Estado Português é integrada por uma amálgama de valores basilares e conceitos dominantes de índole social, ética, política e económica expressos em princípios e regras que o aplicador deve, em cada momento histórico, interpretar e reconhecer a fim de apreciar se os mesmos se podem ter como afrontados pelo resultado a que se chegou na sentença arbitral revidenda. (…).”
Importará ter, assim, em conta o caráter verdadeiramente excecional deste motivo de recusa e a aplicação restritiva e cautelosa que do mesmo deve ser feita. Como se afirma também no Ac. do STJ de 14.3.2017([6]): “(…) a cláusula só intervém como limite ao reconhecimento da decisão estrangeira quando a solução nela dada ao caso for, não apenas divergente da que resultaria da aplicação do direito português, mas manifestamente incompatível com normas e princípios fundamentais da nossa ordem jurídica. (…).”
De resto, no âmbito das convenções de arbitragem, impõe-se aos Estados que as subscrevam o reconhecimento e a execução das sentenças arbitrais estrangeiras. Assinala Manuel Pereira Barrocas, de forma pertinente, que: “Num mundo globalizado, a negação de eficácia a uma sentença arbitral no exterior dos limites territoriais do estado em que foi proferida ou em que a arbitragem teve lugar significaria tornar largamente inoperante o sistema internacional de resolução de litígios com grave prejuízo para o comércio e as relações privadas internacionais em geral.(…).”([7])
O recurso ao tribunal arbitral foi, na situação em análise, desencadeado pelo recorrente, tendo cada uma das partes imputado à outra o incumprimento do contrato.
Assim, como vimos, as partes acordaram submeter a arbitragem o julgamento do seguinte litígio: O objeto da arbitragem será [é] o seguinte: a1) se a A. cumpriu as obrigações previstas no pré-contrato celebrado entre as partes dentro do prazo, lá pactuado; a2) se B. cumpriu com suas obrigações lá pactuadas; a3) especificar quem, dentre as partes constantes do pré-contrato, descumpriu as obrigações lá assumidas; se houve o cumprimento das obrigações constantes no item a, b e c da cláusula 4.1 e do exposto na cláusula 3.b no pré-contrato em questão; c) se, por conta do descumprimento das obrigações pela A., não mais existe vínculo jurídico entre B. e A., nos termos do pré-contrato em questão; d) se cabível a multa prevista no item 5 do pré-contrato em apreço (multa de vinte e cinco milhões de dólares)” (ponto 3 supra).
Cada uma das partes reclamou, no litígio, a condenação da outra no pagamento da quantia USD 25.000.000 por incumprimento do contrato, tendo-o a A., pedido para o caso de não ser possível a execução específica do mesmo.
Estamos, sem dúvida, perante a aplicação de uma cláusula penal, a dita cláusula 5ª do contrato, em que as partes anteciparam o quantum indemnizatório.
A cláusula penal destina-se, em regra, na ordem jurídica nacional, a reforçar o direito do credor ao cumprimento da obrigação e, portanto, a tornar a indemnização exigível pelo incumprimento mais gravosa do que em princípio seria, podendo ser fixada apenas para o atraso da prestação (arts. 810 e 811 do C.C.).
O conceito amplo de cláusula penal engloba cláusulas penais indemnizatórias e cláusulas penais compulsórias. Nas primeiras, o acordo das partes tem por fim liquidar a indemnização devida em caso de incumprimento definitivo, mora ou cumprimento defeituoso, enquanto nas segundas, o acordo das partes propõe-se compelir o devedor ao cumprimento e/ou sancionar o não cumprimento([8]).
Diz-nos Calvão da Silva sobre o tema: “Podemos definir a cláusula penal como a estipulação negocial segundo a qual o devedor, se não cumprir a obrigação ou não cumprir exactamente nos termos devidos, maxime no tempo fixado, será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento ao credor de uma quantia pecuniária.(…)
Dada a sua simplicidade e comodidade, a cláusula penal é instrumento de fixação antecipada, em princípio ne varietur, da indemnização a prestar pelo devedor no caso de não cumprimento ou mora, e pode ser eficaz meio de pressão ao próprio cumprimento da obrigação. Queremos com isto dizer que, na prática, a cláusula penal desempenha uma dupla função: a função ressarcidora e a função coercitiva.
No que concerne à primeira destas funções, a cláusula penal prevê antecipadamente um forfait que ressarcirá o dano resultante de eventual não cumprimento ou cumprimento inexacto. (…). O que significa que o devedor, vinculado à clausula penal, não será obrigado ao ressarcimento do dano que efectivamente cause ao credor com o seu incumprimento ou cumprimento não pontual, mas ao ressarcimento do dano fixado antecipadamente e negocialmente através daquela, sempre que não tenha sido pactuada a ressarcibilidade do dano excedente (art. 811.º-2). (…).
Por conseguinte, mesmo que o devedor prove não ter resultado nenhum dano do seu incumprimento ou retardado cumprimento a pena negocial é devida. (…).”(sublinhado nosso)([9]).
Esta posição não é, no entanto, unânime, defendendo outros autores posição diversa: “(…) Expurgada a cláusula penal indemnizatória de funções coercitivas ou compulsórias, o pagamento da pena quando não haja danos ou prejuízos revela-se porém incompatível com o «desenvolvimento do regulamento negocial, de acordo com o seu sentido e a sua justiça interna.»
Face ao exposto, a cláusula penal indemnizatória tem como consequência a alteração dos critérios de distribuição do ónus da prova da existência de um dano e da existência de uma conexão causal entre o dano e o incumprimento: nada menos, mas também nada mais.
As regras de distribuição do ónus da prova explícitas no art. 342º colocam a cargo do credor a alegação e a prova da existência de um dano e da conexão causal entre o dano e o incumprimento; as regras de distribuição do ónus da prova implícitas na cláusula penal, essas, colocam a cargo do devedor a alegação e a prova da inexistência de dano ou da inexistência de conexão causal entre o dano e o incumprimento. (…).”(sublinhado nosso)([10]).
De todo o modo, “O principal objectivo da cláusula penal é evitar dúvidas futuras e litígios entre as partes quanto à determinação do montante da indemnização. Muitas vezes, porém, ela é fixada com o carácter de verdadeira penalidade, ou, ao contrário, com o intuito de pôr um limite à responsabilidade, nos casos em que os danos possam atingir proporções exageradas em relação às previsões normais dos contraentes. (…)”([11]).
Trata-se duma “liquidação convencional antecipada dos prejuízos, feita «a forfait», visto não se saber ainda qual o valor real dos prejuízos nem mesmo se eles virão a produzir-se”([12]).
Como facilmente se compreende – e ressalta igualmente da leitura dos seis pareceres juntos aos autos – não é pacífico o entendimento doutrinário quanto ao significado e caracterização da cláusula penal no ordenamento jurídico nacional, não podendo afirmar-se que sejam proibidas, na ordem jurídica interna, as cláusulas penais compulsórias.
Temos seguido o entendimento, que pensamos ser o dominante, de que a cláusula penal encerra a dupla função, ressarcidora e coercitiva, sendo sempre exigível desde que o incumprimento seja imputável ao devedor, não constituindo um simples pacto quanto ao ónus probatório.
Por essa via, uma vez fixada a cláusula penal, ficará o contraente cumpridor dispensado da alegação e prova dos danos sofridos com o incumprimento da contraparte e do valor de tais danos. O que não impede que o devedor demonstre a inexistência de dano, ou a inexistência de conexão causal entre o dano e o incumprimento, por forma a prevalecer-se do disposto nº 3 do art. 811 do C.C. (“O credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal”).
No caso, o Tribunal Arbitral considerou que a estipulação em apreço (item 5 do contrato) correspondia a “uma cláusula penal de natureza penitencial que resulta na pré-fixação de indenização por descumprimento” (fls. 51 dos autos e pág. 43 da dita sentença)
Atribui-lhe, assim, a nosso ver e como se entendeu em 1ª instância, a referida dupla função, ressarcidora e coercitiva, e não um exclusivo significado sancionatório.
E não se diga que assim não pode ser entendido uma vez que não houve alegação nem prova da existência de danos, porque, como é defensável na ordem jurídica nacional, uma vez fixada a cláusula penal, o contraente cumpridor fica dispensado da alegação e prova dos danos sofridos com o incumprimento da contraparte e do valor de tais danos.
Deste modo, cremos que fica afastada a tese do recorrente de que a sentença revidenda se baseia
em cláusula de teor punitivo, do tipo “punitive damages”, sem qualquer correspondência com os danos causados e que não os pressupõe, ao contrário do que determina a lei portuguesa.
De resto, conforme igualmente se observou na sentença recorrida, a cláusula foi livremente convencionada entre as duas partes a favor de qualquer delas, sendo certo que, como referimos, ambas a vieram invocar contra a parte contrária junto do Tribunal Arbitral.
Por seu turno, o valor da referida cláusula (USD 25,000,000) ronda uma percentagem de 15% do valor do preço global acertado (era acordada/prometida a aquisição pela A., da totalidade do capital social da sociedade Cervejarias Cintra Indústria e Comércio, Lda, pelo preço de USD 160.000,000), o que não se revela, em si mesmo, desajustado no contexto do negócio – e é essa a referência a ter em conta – face a uma razoável previsão de perdas em caso de incumprimento do mesmo e estando em causa interesses de natureza puramente comercial, não obstante as partes contratantes serem de um lado uma sociedade comercial e do outro uma pessoa singular. Em todo o caso, cumpre reter que o requerido é um homem de negócios e empresário reconhecido em Portugal, também com experiência internacional (ponto 13 supra).
Aqui chegados, verificamos que, tendo ambas as partes reclamado na instância arbitral a aplicação da referida cláusula, nenhuma delas, mormente o aqui recorrente, terá invocado o desacerto do valor estipulado perante a contraparte e em sua defesa, nem tão pouco pedido a redução equitativa nas concretas circunstâncias do caso, sendo certo que o valor da cláusula penal poderia, em princípio, ser reduzido equitativamente, de acordo com o art. 413 do Código Civil brasileiro. Este dispositivo confere, aliás, ao juiz, o poder de proceder a essa redução oficiosamente.
É certo que as partes convencionaram, no ponto 4.4 do “Termo de Arbitragem” a fls. 56 a 63 dos autos, sob o título “Juízo Arbitral: Local e Regras Especiais de Procedimento”: “O Direito aplicável ao mérito será o brasileiro. O idioma da arbitragem será o português. Os Árbitros não poderão julgar por equidade.” (sublinhado nosso)
Daqui decorre, a nosso ver, que a própria convenção de arbitragem vedaria a moderação, com recurso à equidade, do montante estabelecido na cláusula, o que poderá ter justificado a não aplicação do art. 413 do C.C. brasileiro (que a sentença arbitral não afasta de forma expressa) e a circunstância das partes não terem, por sua vez, requerido, no processo arbitral, essa redução.
Que conclusão poderemos, então, daí extrair?
Embora o art. 812 do C.C. português não o diga expressamente, entende-se que a redução equitativa da cláusula penal aí prevista terá de ser pedida pelo devedor, uma vez que para os negócios usurários em geral se prescreve o regime da anulabilidade e não o da nulidade([13]). Esta norma é, por outro lado, considerada de ordem pública, não podendo ser afastada por convenção das partes([14]), o que, em si mesmo, poderia motivar a recusa do reconhecimento da presente sentença arbitral à luz da al. b) do nº 2 do artigo V da Convenção de Nova Iorque([15]).
Porém, nenhuma das partes terá sequer aventado tal possibilidade de redução no processo arbitral, mormente o aqui recorrente que foi o primeiro a requerer a condenação da contraparte no pagamento previsto na cláusula (ponto 12 supra), sem discutir o valor fixado.
De resto, o que o apelante verdadeiramente salienta na oposição à revisão da sentença arbitral é que a referida cláusula tem um teor punitivo, do tipo “punitive damages”, sem correspondência com os danos causados e que não os pressupõe, ao contrário do que determina a lei portuguesa, salientando que o art. 811, nº 3, do nosso C.C., prevê que o valor da cláusula não pode exceder o do prejuízo decorrente do incumprimento da obrigação principal (cfr. arts. 19º a 37º da contestação). Ou seja, a proporcionalidade e a justiça que o apelante considera preteridas prendem-se com a natureza da cláusula e não exatamente com o valor excessivo da mesma. É com esse fundamento que justifica a ofensa à ordem pública nacional.
Veja-se que o ora apelante não afronta sequer, em nenhuma das instâncias, a questão da convenção de arbitragem proibir, ela mesma, antecipadamente, o recurso à equidade, não reagindo contra a impossibilidade concreta da adequação desse valor nos termos previstos no art. 413 do C.C. brasileiro ou no art. 812 do C.C. português.
Ora, como dissemos, na ordem jurídica nacional, a redução da cláusula penal, ainda que excessiva, depende do requerimento do devedor, não podendo o tribunal determiná-la oficiosamente (como sucede na ordem jurídica brasileira). O que significa que ainda que a repute desajustada, não pode o tribunal tomar a iniciativa de a alterar.
Por conseguinte e nestas circunstâncias, não é possível concluir que a solução a que chegou a sentença arbitral (que aplicou o valor previsto na cláusula sem qualquer redução) seria manifestamente incompatível com qualquer princípio estruturante da ordem jurídica portuguesa, precisamente porque poderia chegar-se à mesma solução na ordem jurídica interna.
Acresce que já acima concluímos que o valor da cláusula fixada não se afigura objetivamente excessivo, desfasado do contexto do negócio ou do equilíbrio de interesses, e o aqui apelante também não alegou nem provou factos de que resulte a alegada desproporção. O que o mesmo defende, já o dissemos, é que ao valor fixado não correspondem quaisquer danos (que a requerente não terá alegado, nem provado), mas, por sua vez, não demonstra que esses danos não se produziram efetivamente([16]).
Quer isto significar que, mesmo considerando a impossibilidade do recurso à equidade (estabelecida na convenção de arbitragem) teoricamente contrária à ordem pública interna – e sendo possível apreciar tal fundamento oficiosamente (alínea b) do nº 2 do artigo V da Convenção) – teremos de concluir que o motivo não procede aqui, visto que o ora apelante não discutiu a possibilidade de redução no processo arbitral([17]), antes requerendo a condenação da contraparte no pagamento do valor fixado na cláusula e, por sua vez, esta não se mostra objetivamente excessiva. Ou seja, não está em causa a negação de um direito que o requerido tenha para si reclamado na instância arbitral e que lhe tenha sido negado em afronta aos princípios da ordem jurídica portuguesa. Pelo contrário, na ordem jurídica interna a solução poderia vir a ser precisamente a mesma se o interessado nada tivesse requerido.
Como se referiu em 1ª instância, a exceção de ordem pública internacional, ou a reserva de ordem pública, visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indireta da execução de sentença estrangeira, conduza, no caso concreto, a um resultado intolerável, claramente inaceitável, não comportando um qualquer juízo de desvalor sobre a norma ou o regime jurídico cuja aplicação se rejeita. 
A violação da ordem pública internacional do Estado em que é pedido o reconhecimento avalia-se pelo resultado a que se chegou naquela decisão arbitral, não sendo de considerar os seus fundamentos.
No caso, como demonstrado, tal resultado contrário à ordem pública não ocorre, não se mostrando a sentença arbitral revidenda manifestamente incompatível com normas e princípios fundamentais da nossa ordem jurídica.
Em jeito de remate, não deixará de assinalar-se, ainda, o que a propósito da recusa da homologação de uma sentença arbitral estrangeira afirma Manuel Pereira Barrocas: “(…) Não é, nem pode ser da ordem pública internacional de um estado o monopólio da aplicação da sua lei, impedindo que outras leis, em questões de direito privado, com toda a legitimidade para a sua aplicação, sejam iníquas quando confrontadas com aquela primeira.
Isto leva mesmo à conclusão, patente, aliás, na redação do art. V, número 2 (corpo) da Convenção, ao utilizar o verbo «poderão» (…) e não «deverão», que mesmo que se demonstre a existência de qualquer dos fundamentos de recusa de uma sentença arbitral estrangeira, quer os previstos no número 2., quer no número 1. do art. V, o tribunal nacional de um estado membro pode, ainda assim e segundo a sua discrição, homologar uma sentença arbitral.(…).”([18])
Donde, não pode deixar de confirmar-se aqui, ainda que com motivos não exatamente coincidentes, a sentença proferida em 1ª instância.
***
IV- Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em, julgando improcedente a apelação, manter a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
***
Lisboa, 11.12.2018

Maria da Conceição Saavedra

Cristina Coelho

Luís Filipe Pires de Sousa


[1] Anota-se, somente que a nova LAV estabelece regras detalhadas, e antes não previstas, em matéria de arbitragem internacional e sobre o concreto reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras.
[2] Manuel Pereira Barrocas, “A Ordem Pública na Arbitragem”, pág. 56.
[3] Ac. do STJ de 9.10.2003, Proc. 03B1604, em www.dgsi.pt, citado na sentença recorrida.
[4] Manuel Pereira Barrocas, ob. cit., pág. 38.
[5] Proc. 1036/12.4YRLSB.S1, em www.dgsi.pt., também mencionado na sentença recorrida.
[6] Proc. 103/13.1YRLSB.S1, em www.dgsi.pt, citado pelo apelante.
[7] Ob. cit., pág. 45.
[8] Nuno Pinto de Oliveira, “Cláusulas Acessórias ao Contrato-Cláusulas de Exclusão e de Limitação do Dever de Indemnizar e Cláusulas Penais”, 3ª ed., págs. 73 e seguintes.
[9] João Calvão da Silva, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 4ª ed., págs. 247/248.
[10] Nuno Pinto de Oliveira, ob. cit., págs. 89 e 90.
[11] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, 4ª ed., vol. II, pág.73.
[12] Ac. RL de 20.5.96, CJ 1996, T. 3, pág. 203.
[13] Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 81.
[14] Ainda Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 81/82.
[15] Cfr., a propósito, o já citado Ac. do STJ de 14.3.2017, Proc. 103/13.1YRLSB.S1.
[16] O que, em princípio, lhe caberia fazer, como vimos, se o caso tivesse sido discutido à luz da legislação nacional.
[17] Não sabemos se tal discussão ocorreu na ação de anulação interposta.
[18] Ob. cit., pág. 132.
Decisão Texto Integral: