Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
324/17.8PASNT.L1-9
Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA
Descritores: PROVA PERICIAL
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I. A prova pericial representa em processo penal um desvio ao princípio da livre apreciação da prova plasmado no art. 127º do C.P.P. Essa prova de apreciação vinculada, como é a prova pericial, “tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” - art. 151º do C.P.P.
II. Tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico e nunca pela análise das testemunhas, ou pelas declarações dos arguidos.
III. Também, a fase da Instrução Penal não é o lugar, nem o meio adequado a fazer a prova para ilidir a presunção do registo da propriedade dos veículos.
IV. Existe  erro notório na apreciação da prova, quando não existindo fundamentos válidos que permitam divergir da prova pericial, se decide pela aplicação do princípio da livre apreciação do artigo 127º do C.P.P.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes da 9ª. Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO.

No processo comum supra identificado, do Juízo de Instrução Criminal de Cascais-J2 do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, foi proferido despacho de acusação contra os arguidos AA, melhor identificado a fls. 184, e BB, melhor identificada a fls. 184, pela prática em co-autoria, de dois crimes de burla simples, p.p. pelos artigos 217 e 77 do Código penal e de dois crimes de falsificação de documentos, p.p. pelos artigos 256 nº. 1 b) e 77 do Código Penal.
Inconformados os arguidos requereram a abertura da instrução.
Realizadas as diligências e, após debate instrutório, foi proferida a Decisão Instrutória na qual se decidiu não pronunciar os arguidos pela prática dos crimes que lhes eram imputados na acusação pública ou quaisquer outros.
Discordando daquela decisão de não pronúncia, a assistente CC, veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 389 a 403 dos autos, onde escreveu as seguintes conclusões:
(transcreve-se)
1ª.
O presente recurso decorre da absoluta discordância do despacho de não pronúncia. Ou seja da parte final da sentença que se transcreve: “ Pelo exposto, porquanto inexistem nos autos indícios suficientes da prática pelos arguidos AA e BB ambos melhor identificados nos autos, dos factos descritos na acusação de fls. 184 e ss, não os pronuncio pela prática em co-autoria e em concurso efectivo de dois crimes de burla simples, previsto e punido nos termos dos artigos 217º. e 77º. Do Código Penal e de dois crimes de falsificação de documentos, previstos e punidos nos termos dos artigos 256º. Nº.1 al. b) e 77º. do Código Penal, ou qualquer outro, a fim de serem submetidos a julgamento em processo comum com intervenção do tribunal singular.”
2ª.
Relativamente à prova pericial não pode ser desvalorizada como foi neste caso. Das testemunhas do arguido nenhuma assistiu à pretensa assinatura das declarações de venda por parte da ofendida CC. Porque nunca existiram. Nem faria qualquer sentido enquanto casal, gerando grave motivo de desconfiança relativamente à ofendida, que lhe havia feito o “ favor” de deixar ficar os dois veículos em seu nome.
3ª.
O que se passou efectivamente, foi que, segundo a denúncia da ofendida, os arguidos preencheram a assinatura da ofendida, NO CAMPO 8, conforme prova pericial levada a cabo pela PJ, que não deveria ter sido desvalorada.
Quanto aos restantes campos do registo, qualquer cidadão os pode preencher e não essa situação que está em causa.
A fls.96, consta a conclusão do relatório de exame pericial da PJ com o seguinte teor:
Com base nas evidências observadas na comparação das amostras problema e de referência, e face aos resultados obtidos:
 Conclui-se como muitíssimo provável que as escritas suspeitas dos dizeres e das assinaturas dos Grupos I a III não sejam da autoria de CC
Conclui-se como muito provável que a escrita suspeita do Grupo II seja da autoria de AA e não de BB, nem de DD.
Conclui-se como provável que a escrita suspeita do Grupo III seja da autoria de BB e não de AA.
Dada a eventual forma de obtenção da escrita suspeita da assinatura do Grupo I, o seu confronto e as dos autógrafos de BB e de AA, conforme mencionado em Nota, não permite alcançar resultados conclusivos quanto à sua autoria.
Requer-se caso V. Exªs entendam, a renovação da prova pericial.
4ª.
O motociclo de marca Suzuki de matrícula …… foi adquirida pela denunciante em Junho de 2014. A viatura de marca Fiat Punto com a matrícula …. foi adquirida pela denunciante em Janeiro de 2015. E a prova é que ficaram registados em seu nome.

A ofendida era, sem dúvida a sua proprietária, o que se prova pelo registo automóvel, não se podendo desvalorizar a prova documental que prova que CC, era, sem dúvida, a proprietária dos dois veículos em questão. Esta prova documental foi desvalorizada, considerando-se haver erro notório na apreciação da prova.
6ª.
Estranho é que tantos documentos foram juntos pelos Arguidos no RAI, escritura de compra e venda, sentença do processo de regulação das responsabilidades parentais, outras declarações assinadas pela ofendida e não se juntou um único documento comprovativo da situação em que o arguido se viu envolvido num problema com uma penhora, uma execução ou uma carta de interpelação de pagamento de uma dívida, como fiador. Vieram as testemunhas dizer que foi fiador, de alguém e não podia ter bens em seu nome. E o tribunal ad quo aceitou como verdadeiro, algo que deveria ter sido provado por prova documental.
7ª.
Este facto não foi minimamente provado e poderia ter sido por prova documental. Não foi junta a prova porque essa situação não se verificou.
8ª.
Tudo isto porque os veículos eram efectivamente da ofendida CC, ainda que não tivesse carta ou licença para a condução de mota.
9º.
A separação do casal acontece no verão de 2015, não se conseguindo precisar a data concreta.
10ª.
Ofendida e arguido viviam em união de facto na altura em que os veículos foram adquiridos. Tendo um filho em comum dessa relação de união de facto. Pelo que, vivendo em economia comum, não faz qualquer sentido dizer agora que foram comprados com o dinheiro do arguido. A ofendida também trabalhava, para além de trabalhar em casa, cuidando do companheiro e filho de ambos. Os veículos ficaram registados em nome da ofendida. Apesar de o arguido vir agora tentar ludibriar o tribunal, trazendo uma versão de que tinha uma penhora ou crédito mal parado e por isso é que os veículos ficaram em nome da ofendida não faz qualquer sentido. O arguido não logrou apresentar qualquer prova relativamente a essa situação de penhora.
11ª.
Os veículos ficaram registados em nome da ofendida porque o casal vivia em economia comum. Não fazendo qualquer sentido que logo no momento da aquisição dos veículos, assinasse ao mesmo tempo as declarações de venda. Arguido e Ofendida viviam como se de marido e mulher se tratasse. A ofendida conduzia o Fiat Punto, sendo que o tal Clio é da sua mãe. O arguido sempre conduziu o referido BMW.
12ª.
Da prova testemunhal trazida aos autos, nenhuma das testemunhas viu a ofendida a assinar os dois documentos em causa. Nenhuma, repete-se! Todas viram as declarações já preenchidas mas não sabem nem podem saber por que terão sido assinadas. Todas as testemunhas referem que já viram as declarações assinadas. Como é óbvio, se forma os arguidos a reproduzir estas assinaturas nunca o fariam na frente das testemunhas. Daí, não ter qualquer consistência a versão apresentada posteriormente pelo arguido AA de que, quando a CC assinou as declarações de compra dos veículos, terá logo assinado as declarações de venda para que o Arguido os pudesse vender. Isto não faz sentido numa relação entre um casal que depois de separado se reconciliou recentemente, ainda para mais tendo um filho em comum. Não eram namorados, viviam em união de facto, em família, como se de marido e mulher se tratasse.
13ª.
A testemunha JJ cujo depoimento se encontra gravado digitalmente e registado entre as 10:49:51 até às 11:02:16, disse ter acompanhado a negociação de compra do veículo automóvel e do motociclo.
À pergunta da Mandatária dos Arguidos sobre a declaração de venda “ alguma vez viu a declaração de venda? “ “ viu que estava assinada?”, respondeu que “sim”. À pergunta sobre se viu a senhora a fazê-la”? (referindo-se à declaração de venda ) respondeu “ não vi”.
Relativamente à situação da mota disse “ acompanhei do princípio ... na outra banda...”
14º.
A testemunha KK, cujo depoimento se encontra gravado digitalmente e registado entre as 11:03 e 11:21. À pergunta que foi feita sobre se o arguido AA tinha os documentos diz que “ não sei”. Referiu que “ quem adquiriu os veículos foi o AA”
À pergunta sobre se “ sabe se logo a seguir a CC assinou declaração de venda? Respondeu:” eu não vi ... mas vi as declarações assinadas”. À pergunta se viu a CC a assinar, disse que “ não”.
15º.
A testemunha LL, cujo depoimento se encontra gravado digitalmente e registado entre as 11:21 e 11:30, quando lhe foi perguntado se “ tem ideia de quando se separou da última vez”? Respondeu ” eu acho que a última vez foi há 2 anos ou 3”. Viu a mota. Quando lhe foi perguntado se a mota tinha os documentos respondeu “ Estavam lá as declarações de venda “, o que denota a sua manifesta preocupação em referir que as declarações de venda estavam lá!!!!
16º.
A Testemunha RR, cujo depoimento se encontra gravado digitalmente e registado entre as 11.32 e 11:43, Disse que quando questionou o filho / arguido, ele lhe terá respondido “ Não há problemas que eu tenho uma declaração assinada por ela.”
À pergunta da mandatária dos Arguidos se “ alguma vez viu essa declaração”? Respondeu: “ Vi, sim senhora ... sei perfeitamente quem a assinou ... a CC”. Quando a mandatária dos Arguidos perguntou: “ pareceu-lhe igual” ? respondeu “ especificadamente não verifiquei...”
Quando a patrona da ofendida perguntou como sabes se a declaração estava assinada pela CC, respondeu: “ pela letra ... eu não acredito que o meu filho fizesse isso”.
17ª.
Foram assim violados os artigos 217º. e 77º., bem como os artigos 256º. nº.1 al b) e 77º. do Código Penal, conjugado com o artigo 308º. do Código de Processo Penal, porquanto os arguidos deveriam ser pronunciados, entendendo a Recorrente existirem indícios da prática pelos arguidos dos crimes pelos quais vinham acusados.
18ª.
Sendo que existindo indícios da prática dos factos constantes da acusação, deverá ser proferido despacho de pronúncia, sendo que em julgamento, depois de analisadas todas as provas dos Arguidos e da Assistente, os Arguidos serão absolvido, se não se derem como provados os factos ou se houver sérias dúvidas, tendo aplicação o “princípio in dúbio pro reo”.
19º.
Por todo o exposto, o presente recurso tem como fundamento o vício do artigo 410º. nº. 2 al c). Houve erro notório na apreciação da prova. O Tribunal de Instrução deveria ter dado como indiciados da prática dos crimes os factos que constavam da acusação e que em nada foram alterados, devendo ter sido proferido despacho de pronúncia relativamente aos dois arguidos.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exªs doutamente suprirão, deve conceder-se provimento ao recurso, revogar a douta decisão por verificados os vícios, os erros, e ser proferido despacho de pronúncia dos Arguidos, pela prática em co-autoria dos crimes de burla simples e falsificação.
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Em resposta, os arguidos responderam como consta de fls.427 a 433 dos autos, ali concluindo como se transcreve:
A- A recorrente ao alegar que os veículos em questão nos autos foram adquiridos quando o arguido e a assistente viviam como se marido e mulher se tratasse, assume que os bens adquiridos seriam bens comuns e como tal reconhece ao arguido a qualidade de proprietário.
B- A prova pericial quanto à prática dos crimes de falsificação de documento, ou seja, de quem teria sido o autor das assinaturas constantes dos requerimentos de registo automóvel, foi inconclusiva;
C- Estão totalmente afastados no caso dos autos os elementos subjectivos da pratica dos crimes de que os arguidos/ Recorridos vinham acusados.
D- A noção de indícios suficientes a que alude o art.º 283.º, n.º 2 do CPP há-de ser apreendida de molde a entender-se que os sinais e vestígios existentes nos autos que num processo logico conduzem a um remate, há-de resultar desses sinais uma possibilidade serias de aos arguidos vir a ser aplicada em julgamento, por força da existência dos mesmos, uma pena ou uma medida de segurança.
E- Dos autos resulta claro que da análise crítica da prova produzida inexistia factualidade que permitisse formular um juízo de suficiência de indiciação.
F- Os artigos alegadamente violados consubstanciam um corpo sistematizado de normas de conduta, que, como foi apurado e devidamente fundamentado, não foram violadas pelos arguidos, aqui Recorridos, consequentemente não pode o douto despacho recorrido ter violado qualquer norma jurídica e muito menos por erro notório na apreciação da prova.
G- Inexistem nos autos indícios suficientes da prática por parte dos arguidos dos crimes de burla e falsificação;
H- Inexiste, pois, qualquer violação de preceitos legais, máxime dos art.ºs 374.º e 379.º do CPP.
I- O Douto despacho recorrido é irrepreensível quer na sua fundamentação, quer na conclusão que concatenada a prova documental e testemunhal produzida tudo conjugado com as regras da experiencia comum e o bom senso teria em boa justiça, de ter chegado à decisão proferida, despacho de não pronuncia. Pelo que se concorda com a decisão proferida devendo manter-se o douto Despacho Recorrido.
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O Mº.Pº a fls. 409 a 412 dos autos respondeu também ao recurso, concluindo:
(transcreve-se)
1- O Ministério Público não está vinculado, em fase de Instrução, à posição assumida em fase de Inquérito, mormente vertida em acusação pública, quando a reavaliação dos indícios e da qualificação jurídica ou das diligências instrutórias realizadas imponham a reponderação e a sustentação de posição diversa ou mesmo contrária, em consequência dos ditames de objectividade e legalidade estrita a que está vinculado pelo seu estatuto constitucional, ainda que no exclusivo interesse da defesa;
2- Erro notório é aquele que resulta até dos próprios factos provados, em contradição ou conflito interno entre si ou com as regras da lógica ou da experiencia, o que não resulta minimamente apurado nem sequer das doutas alegações de recurso;
3- Não se verifica erro na apreciação da prova, seja notório ou não notório, designadamente no que respeita aos pontos de facto suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados;
4- Ainda que o recorrente possa dela discordar ou até ter outra convicção pessoal, a motivação assenta na convicção do julgador – aquela que é a relevante – e necessariamente, também, na credibilidade que lhe mereceram certos depoimentos em detrimento de outros;
5- Acresce que, ao contrário do que pretende, a prova pericial não foi conclusiva;
6- Não merece reparo, devendo ser confirmada a douta decisão recorrida, na ponderação dos indícios suficientes, que decidiu não pronunciar os arguidos;
7- Em consequência deve o recurso ser julgado totalmente improcedente.

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Neste Tribunal a Ex.m.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer nas folhas 458 a 468, alegando como vai transcrito:

(…) A M.ma JIC entendeu que os indícios recolhidos se mostram insuficientes para a Pronúncia dos arguidos Luís Semedo Marques e Tânia Semedo Marques pelos crimes de falsificação e burla.
Lida, ouvida e analisada a prova indiciária produzida parece-nos haver lugar a Despacho de Pronúncia dos arguidos, por se evidenciar que existe uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição.
Na verdade, a base da discordância com o Despacho recorrido assenta, essencialmente, na desvalorização das conclusões do relatório Pericial no confronto com a presunção de propriedade resultante do registo automóvel, com subsequente violação das regras de competência para conhecimento da alegada falsidade do registo e com a consequente violação do disposto no art.308° n°1 1ª parte do CPP e dos art.256° e 217° do CP.
A Assistente denunciou os factos imputados aos arguidos por não ter sido ela a manuscrever a sua própria assinatura nas declarações de venda de qualquer dos veículos em causa nos autos. Em depoimento prestado no Inquérito manteve a denúncia apresentada.
Essa sua afirmação mostra-se corroborada pelas conclusões do Relatório Pericial.
Porém, a M.ma JIC afirma que a "Perícia não é conclusiva".
Parece-nos que à M.ma JIC não assiste qualquer razão.
Efectivamente e ao invés do consignado no Despacho recorrido, o Exame Pericial que é substancialmente elucidativo quando conclui, com um grau de "muitíssimo provável que as escritas suspeitas dos dizeres e das assinaturas dos grupos I a III não sejam da autoria de CC"
Por outro lado, o mesmo exame afirma que, no que respeita "à escrita suspeita do grupo II" é "muito provável' que "seja da autoria de AA".
E, a tudo acresce que dessa mesma Perícia ainda resulta que quanto "à escrita suspeita do grupo III é provável que seja da autoria de BB"
A M.ma JIC afastou o juízo contido na Perícia e os factos dela resultantes referindo que os depoimentos das testemunhas inquiridas na Instrução, bem como os depoimentos dos arguidos, permitem concluir no sentido de haver dúvidas de que não tenha sido a Assistente a assinar aqueles documentos e no sentido de haver sérias dúvidas de que tenham sido os arguidos a imitar a assinatura da Assistente. Assim, pode-se ler a fls.369:
"No que aos factos que se deram por não suficientemente indiciados diz respeito, atentou-se nas declarações prestadas pelos Arguidos nesta sede, que se mostram corroboradas pela demais prova testemunhal e documental igualmente produzida nesta fase, sendo ainda concordantes com as regras da experiência."
O Tribunal considerou ainda que "A versão apresentada pelo Arguido, mereceu-nos inteira credibilidade por consentânea com as regras da experiência comum, mostrando-se ainda inteiramente corroboradas pelas testemunhas inquiridas ..."
Com todo o respeito, nem o presente processo (criminal em fase de Instrução) é o próprio para avaliar da falsidade do registo e derrogar a inerente presunção da propriedade registada, nem os documentos apresentados pelo arguido permitem ou sequer têm a virtualidade de permitir concluir nesse mesmo sentido, para além de o documento 'registo de propriedade' e o 'relatório pericial' fazerem presumir o inverso do decidido, não nos parecendo que, neste âmbito, as regras da experiência permitam concluir nos moldes em que o fez o Tribunal recorrido.
Com todo o respeito, parece-nos que o Despacho recorrido padece de vários erros. Por um lado, não teve conta a presunção (ainda que ilidível) inerente ao registo da propriedade dos veículos em causa.
Depois derrogou o conteúdo probatório da Perícia, sem fundamentação qualificada para o efeito.
Depois, não teve em conta que não é competente, em razão da matéria, para apreciar a falsidade do registo.
Por tudo, valorou incorrectamente os indícios, fazendo raciocínios alheios às regras da experiência e do senso comuns. Confundiu-se e deixou-se arrastar pela argumentação dos arguidos, validando-a, incorrectamente, sustentada em pressupostos errados e num raciocínio não sustentado na lei.
Na verdade, louvamo-nos no entendimento do decidido no Ac do TRG, de 04.3.2015, no âmbito do P. n°59/12.8GAMCD.G1, pelo que nos permitimo-nos, apenas, transcrever o que ali melhor se expendeu:
"O juiz pode divergir da perícia mas para isso, deve esgrimir argumentário qualificado no correspectivo domínio científico ou artístico e estar munido de elementos sólidos e consistentes que a contrariem."
"Sobre o "valor da prova pericial", estatui o arte 163° do CPP:
1- O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.
Conforme resulta do nº2 da mesma norma, é claro que o juiz pode divergir da perícia mas para isso, deve esgrimir argumentário qualificado no correspectivo domínio técnico, científico ou artístico e estar munido de elementos sólidos e consistentes que a contrariem.,"
"Estabelecido pericialmente (com o grau máximo de verosimilhança possível) que a dita assinatura não foi elaborada pela Assistente, tendo em conta que foi o Arguido quem se deslocou à Conservatória de Macedo de Cavaleiros, onde apresentou o respectivo requerimento. Como o próprio declarou, em audiência., e demonstrado que ele era o único e exclusivo interessado na transferência do registo do "P..." para o seu nome."
"Diversamente do que sucede com o Arguido (cujo estatuto processual lhe confere o direito de dizer o que entender em prol da sua defesa), a Assistente (apesar de parte interessada na sorte do processo) está sujeita ao dever de verdade e a responsabilidade penal pela sua violação (artºs 145º, n°2, do CPP, e 359º, nº2, do CP)."
"…não vemos qualquer razão para que as declarações da Assistente não devam merecer credibilidade; até porque são "corroboradas" pela lei e pelo relatório de exame grafológico elaborado pelo LPC."
Acresce que, além do mais, ouvidas as gravações dos depoimentos prestados na Instrução e lidos os que foram prestados em Inquérito, é possível afirmar que, à excepção do arguido AA, mais ninguém refere ter visto a Assistente a assinar as referidas Declarações de Venda. As testemunhas arroladas pelo arguido limitaram-se a presumir que tivesse sido a Assistente a assinar os documentos e no pressuposto de que os veículos estavam registados a favor daquela, embora sendo do arguido.
Aliás, nem a própria arguida BB afirma ter visto a assistente a assinar a Declaração de Venda do motociclo.
E o arguido AA, quando instado a pronunciar-se sobre as conclusões da Perícia, por evidenciarem a negação do que o mesmo referira, limita-se a responder algo do género: "Deve haver aí algum problema...”
O Tribunal a quo não teve em conta que para contrariar as conclusões de uma Perícia não bastam raciocínios de credibilidade de meros testemunhos sem especial qualificação para o conhecimento dos factos vertidos na perícia, mormente quando estes não podem, nem põem em causa a autoria dos factos. Bastará atentar nas profissões pelos mesmos declaradas de 'recepcionista', `técnico administrativo' e 'operador de descargas hospitalares', as quais não apresentam qualificações para os efeitos pretendidos.
Ademais, o teor de cada um daqueles depoimentos tinha em vista, manifestamente, tentar provar que os veículos eram propriedade do arguido AA e que, por isso, aqueles registos de propriedade continham, intrinsecamente, uma falsidade.
Ora, estes autos de Instrução não constituem acção declarativa da nulidade do registo por falsidade, nem qualquer acção de reivindicação da propriedade, ou qualquer outra acção de natureza cível.
Como consabido, o art.5° n°1 a) do DL n°54/75 de 12.02 - Registo Automóvel - dispõe que "Estão sujeitos a registo: a) O direito de propriedade e de usufruto; "
Ditando o seu n°2 que: "2 - É obrigatório o registo dos factos previstos nas alíneas a), b), d), e), j) e i) e o registo da mudança de nome ou denominação e da residência habitual ou sede dos proprietários, usufrutuários e locatários dos veículos. "
E, por seu turno, dispõe o art.1° n°1 do mesmo diploma legal que "1 - O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico." (sublinhado nosso)
E o art.17° n°1 do CRP define que:
"1 - A nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão
judicial com trânsito em julgado."
E o art.29.° do Código do Registo Automóvel - DL n°54/75, de 12.02 dispõe que:
"São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, mas apenas na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas neste diploma e no respectivo regulamento."
E dispõe o art.347° do CC que:
“A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei."
Ora, mesmo no foro competente, que não é o criminal, e como, de entre outros, recentemente decidido pelo acórdão proferido a 07.02.2019 pelo STJ, no recurso de Revista no ãmbito do P. n°2916/13.5TBTVD.L1.S2:
"VIII. O preceituado no artigo 17.°, n.º 1, do Código de Registo Predial veda a invocação dessa nulidade, antes de ser declarada judicialmente com trânsito em julgado, para obstar ao funcionamento da presunção estabelecida no artigo 7.P do mesmo Código, mas não impede a própria arguição da mesma nulidade com vista à respetiva declaração judicial,..."
Da mesma sorte o decidido pelo acórdão do TRG, de 04.6.2013, em recurso de Apelação no P. n°4154/09.2TBBCL.G1:
"1. O artigo 17 n.° 2 do CRP aplica-se a situações de nulidade do registo, em que esteja em causa a sua nulidade.
2. O artigo 291 do C. Civil abrange as situações de invalidade das relações jurídicas inscritas no registo, podendo a acção impugnativa ser proposta e registada num prazo de três anos após a conclusão do negócio jurídico inválido, para neutralizar a eficácia do respectivo registo.
3 ...... .."
Tudo para concluir que não compete aos presentes autos o conhecimento da eventual falsidade do registo de propriedade, dada a falta de competência material para o efeito do Tribunal a quo. E, em consequência, não pode o Tribunal a quo arrogar-se dessa competência, para fundamentar despacho em que contraria quer a presunção do registo, quer as conclusões da Perícia.
O Despacho recorrido decide, assim, com derrogação de várias regras, de natureza substantiva e adjectiva, de entre as quais, as que visam "segurança do comércio jurídico" (como é o registo obrigatório da propriedade automóvel), posto que, para além de, na ausência de foro próprio, se sustentar em documentos particulares - como são os extractos bancários do arguido e os contratos de seguro para transferência da responsabilidade civil por acidente de viação - e daí retirar que as regras experiência ditam que quem paga o seguro é quem tem a propriedade (o que, com todo o respeito não é tão líquido assim, precisando até de uma maior densificação de prova), vai ainda contra o laudo pericial - que concluiu no sentido de ser muito provável que tenha sido o arguido Semedo a manuscrever o texto das Declarações de Venda. Ora, já no que respeita à autoria da assinatura do nome da proprietária, a Perícia concluiu ser provável ser da autoria da co-arguida BB, a irmã do arguido AA.
Neste contexto, o que as regras da experiência ditam é que, falsifica quem desse acto de falsificação tira proveito. E quem tirou proveito foram os arguidos, em particular o arguido AA.
Assim o decidiu o TRP, confirmando Sentença condenatória da 1ª Instância, no P. n°3/17.6T9FLG.P1, com similitude factual com a dos presentes, de cuja fundamentação resulta "... no que tange ao facto essencial da autoria da assinatura aposta na declaração de venda da viatura automóvel Renault ... de matrícula ... o tribunal assentou a sua convicção nas declarações da ofendida ... , que negou ter sido por si efectuada a assinatura aposta nesse documento como se da assinatura da própria se tratasse, declaração que tem inteira corroboração no exame grafológico (cfr. Relatório de fls...)em que o técnico especialista do LPC da Polícia Judiciária concluiu como «muitíssimo provável» que a escrita suspeita dessa assinatura não seja da ofendida.
Apesar disso o arguido insiste na tese de que «pode ter sido a própria assistente ...»
Cum, se não o arguido, tinha interesse em que a declaração de venda da viatura tivesse a assinatura (mesmo que forjada) da respectiva proprietária ?"
………
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjectivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indirecta."
E, ainda, no mesmo sentido o Ac. do TRE DE 02/20/2018 no âmbito do P. n° 386/09.1TASLV.E2:
"o tribunal recorrido destaca ter o mesmo exame concluído ser muitíssimo provável que a escrita suspeita inserta nos documentos referidos no ponto 7 dos factos provados não seja de JFV, o que assume relevância probatória autónoma, pois o arguido assentou boa parte da defesa na alegação de que não fora ele, mas sim JFV, a assinar os talões de cheque que foram assinados com o nome deste último."
Apesar de o exame à letra não ter concluído ser o arguido o autor das assinaturas apostas nos talões de depósito em causa, ou sequer muito provável que assim seja, não se mostra minimamente infirmada a fundamentação e conclusão do tribunal a relativamente à autoria das assinaturas controvertidas, com base no conjunto da prova relevante sobre factos indiretos ou circunstanciais."
Conquanto já despiciendo face ao que supra se expôs, dir-se-á também e ainda - no que respeita às inferências extraídas pelo Tribunal a quo, fundado em alegadas regras da experiência comum, relativamente aos documentos particulares juntos pelo arguido, no sentido de comprovar a propriedade dos veículos - que há também que referir que nos parece temerário induzir que quem usa é proprietário, que quem paga o seguro é proprietário, etc.
O Tribunal não atentou que a circunstância de alguns prémios de seguro e o IMI poderem ter sido pagos pelo arguido não permite, sem mais, concluir que é daquele a propriedade dos correspondentes bens, mormente porque, nas datas inscritas em tais extractos bancários e contratos de seguro, o arguido e a Assistente viviam em união de facto, tinham, até, um filho comum e já antes haviam vivido em união de facto por longos anos.
Depois, as razões invocadas - de relacionamento difícil, com processo pendente relativo às responsabilidades parentais - tanto funcionam a favor do arguido, como contra ele, o mesmo se podendo dizer no que respeita à Assistente.
Por outro lado, dificilmente se vislumbra porque é que o arguido, ao invés de 'pedir' à irmã (como fez mais recentemente) ou à sua mãe (como diz ter feito quanto ao BMW), que permitissem que os veículos ficassem registados em nome de qualquer daquelas, foi pedir à Assistente ? Para mais tratando-se, como pelo mesmo afirmado, de um relacionamento conjugal difícil e já após a primeira ruptura da vida em comum ? E, ademais, quando, alegadamente, a sua alegada insolvência (ou situação económica difícil) já resultava de dívidas contraídas por uma sua outra ex-companheira (como parece resultar do depoimento de, pelo menos, uma das suas testemunhas ?
A tudo acresce que nos parece que inexistem razões objectivas para atribuir credibilidade especial ao depoimento do arguido AA quando é o próprio que refere (corroborado pelas suas testemunhas) que, ao adquirir oFiat tinha em vista usar a carroçaria e outras peças do mesmo, num outro Fiat que já tinha, com ferrugem na chapa, mas com um motor em bom estado — indiciando-se a possibilidade de o mesmo poder ter pretendido cometer outro crime de falsificação ? É que, para além do mais, resulta desses depoimentos do arguido e algumas das suas testemunhas) que o arguido diz ter comprado o Fiat por 300,00 € e tê-lo vendido por 900,00 €, o que induz que possa ter ocorrido alguma anómala situação...
Diga-se, finalmente, citando o Acórdão n° TRP_0714721 de 05-03-2008, que: "O bem jurídico aqui tutelado é assim o valor probatório dos documentos em geral e particularmente dos enunciados na sua "qualificativa", assegurando a sua genuinidade no desenrolar da vida em sociedade, garantindo assim a estabilidade das relações sociais, pelo que mais recentemente tem se falado na segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório — vide Marques Borges, in "Dos Crimes de Falsificação de Documentos, Moedas, Pesos e Medidas", p. 28; Luís Osório, in "Código Penal Português", Vol. II (1927), p. 340 que no caso dos títulos de crédito alude à protecção da circulação comercial; "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo 11 (1999), p. 680.
Por outro lado, temos ainda de atender que tal ilícito é um crime de perigo abstracto, pois como se alude no citado Comentário Conimbricense (p. 681) «para que o tipo legal esteja preenchido não é necessário que, em concreto, se verifique aquele perigo; basta que se conclua, a nível abstracto, que a falsificação daquele documento é uma conduta passível de lesão do bem jurídico-criminal aqui protegido; basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico — verifica-se, pois, uma antecipação da tutela do bem jurídico, uma punição do âmbito pré-delitual».
Assim, e em suma, podemos dizer que o documento é falso quando não corresponde à realidade, o que tanto pode ocorrer com o fabrico de documentos falsos e a alteração de documentos verdadeiros (falsificações materiais), como com a falsificação do conteúdo de documento verdadeiro (falsificação ideológica)."
Nestes termos, porque da conjugação de tudo o que vem exposto, aliado às regras da experiência comum e normalidade das coisas e procedimentos, não permite concluir, de forma congruente, pela falta de indícios suficientes para a Pronúncia dos arguidos AA e BB, emitimos parecer de procedência do recurso.
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Houve resposta de concordância, da Assistente, ao parecer como documentam os autos. E resposta dos arguidos que mantiveram a posição já antes assumida.
Cumpridos os vistos, procedeu-se a conferência.
Cumpre conhecer e decidir.

II- MOTIVAÇÃO.

É jurisprudência constante e pacífica (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, em www.dgsi.pt) que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Ac. do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série-A, de 28.12.95).

No caso as questões colocadas sob recurso prendem-se essencialmente com a desvalorização que o Tribunal fez da prova pericial e de como valorou a prova testemunhal.
Antes de avançarmos para o conhecimento do recurso, vejamos o teor da decisão instrutória em causa, transcrevendo-se a mesma no que mais releva para a apreciação do recurso:
II. SANEAMENTO
O Tribunal é o competente, o processo o próprio, válido e isento de nulidades.
Da nulidade da acusação
Invocam os Arguidos a nulidade da acusação por, em síntese, não ter sido dado cabal cumprimento ao disposto no art. 283.°, n.°3, al. b), do CPPenal.
Apreciando.
Dispõe o art. 283.°, n.°3, al. b), do CPPenal que:
3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
Toda a acusação haverá de respeitar os requisitos previstos no art. 283.°, n.° 3, do CPPenal, devendo conter, entre outros, "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada". — sublinhado nosso.
Essa exigência constitui clara emanação do princípio acusatório consagrado no n.° 5 do art. 32.° da Constituição da República Portuguesa, no sentido de que só se pode ser julgado pela prática de crime precedendo acusação e formulada por órgão distinto do julgador.
Conforme refere Figueiredo Dias, in "Direito Processual Penal", Coimbra Editora, 1974, pág. 65, a concepção típica de um processo acusatório implica «estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa, tanto na determinação do objecto do processo (thema decidendem), como na extensão da cognição (thema probandum),como nos limites da decisão (ne eat judex ultra vel extra petita partium)», só assim, quanto àquele objecto e suas consequências, estando asseguradas as garantias de defesa, para que o arguido conheça, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles se possa convenientemente defender.
Contém-se na dimensão ampla de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa, nos termos do n.° 1 desse mesmo art. 32°, que se constitui como verdadeiro princípio constitucional, consagrando uma cláusula geral englobadora de todas as garantias que hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido, ou seja, de todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (Gomes Canotilho Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 516).
Segundo estes Autores, ainda, ob. cit., pág. 522, O princípio acusatório (...) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).
Também, Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal", Editorial Verbo, 1994, tomo III, pág. 117, sublinha que O processo acusatório, buscando assegurar a imparcialidade do julgador, atribui a órgãos distintos as funções de investigação e acusação, por um lado, e a função de julgamento dessa acusação, por outro. Deste modo pretende assegurar-se a objectividade do julgamento dos factos que são objecto da acusação; a acusação é condição processual de que depende sujeitar-se alguém a julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento.
Já Figueiredo Dias referia, ob. cit., pág. 145, que o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (...) e a extensão do caso julgado (...). É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal; os princípios, isto é, segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e — mesmo quando o não tenha sido — deve considerar-se irrepetivelmente decidido.
Toda a temática se revela, aliás, como decorrência do direito a um processo equitativo, em sintonia com o art. 6.°, n.° 3, alínea a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
De todo o modo, a importância da acusação está, pois, bem revelada, não podendo o arguido ser surpreendido em julgamento com factos de que, acusação, lhe não tivesse posto diante dos "olhos", como se acentuou expressivamente no acórdão do STJ de 06.122002, in CJ Acs. STJ, ano X, tomo III, pág. 240.
Se assim é, tal não significa, contudo, que a acusação tenha necessariamente de conter todos aqueles aspectos que são indicados na alínea b) do n.° 3 do art. 283.° e com idêntico grau de exigência, uma vez que se admite que exista a possibilidade de os concretizar, sem prejuízo de que, não obstante, a imposta narração de factos traduza acontecimento que possa ser plenamente delimitado nos seus contornos e relevância.
Volvendo aos autos.
Compulsada a Acusação Pública deduzida, verifico que a mesma contém a narração ainda que sintética dos factos imputados aos arguidos, e que preenchem o elemento objectivo e subjectivo do tipo, constando ainda da mesma, a concretização do lugar, do tempo e da motivação da sua prática, bem como ao grau de participação dos Arguidos nos factos que lhe são imputados, em co-autoria.
Acresce que o art. 283 n° 3 al. b) do CPPenal apenas impõe a obrigatoriedade da narração dos factos da acusação conter a indicação do lugar, do tempo e da motivação da sua prática, bem como o grau de participação do Arguidos se tal for possível.
Por outro lado, como resulta até das mais elementares regras da experiência comum, há comportamentos humanos, sancionados penalmente, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização.
Por fim, a acusação em causa nos presentes autos, cujos factos constituem o objecto do processo têm a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poderem defender os arguidos e, consequentemente, serem sujeitos a prova idónea.
A acusação não padece, pois, de vício estrutural determine a sua nulidade.
Pelo exposto, julgo improcedente a invocada nulidade.
Notifique.
***
Não ocorrem quaisquer excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
III. FUNDAMENTAÇÃO
No Código de Processo Penal, a fase de instrução estrutura-se numa dupla finalidade: visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento o(s) arguido(s)(artigo 286°, n° 1, do CPPenal) —não corresponde, portanto, a uma actividade materialmente policial ou de averiguações — não é, em suma, "uma segunda fase investigatória desta feita levada a cabo pelo juiz" (Souto de Moura, Inquérito e instrução, p. 125).
Encerrado o debate instrutório o juiz, no caso de terem sido recolhidos indícios suficientes sobre a verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, profere despacho de pronúncia, sendo que, no caso contrário, haverá de emitir um julgado de não pronúncia (artigos 307° e 308°, do CPPenal).
Uma vez que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286.° do CPPenal), e que esta só poderá ser deduzida se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, entendendo-se por indícios suficientes aqueles que impliquem uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou medida de segurança, cabe averiguar, in casu, da existência, ou não, de indícios suficientes para imputará arguida o crime de que vem acusado.
Dispõe artigo 308.° do CPPenal que, se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronúncia o arguido pelos factos respectivos, sendo que caso tal não se verifique, profere despacho de não pronúncia.
Os indícios suficientes são caracterizados pela nossa jurisprudência como sendo um «conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados», ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE COIMBRA, de 31 de Março de 1993, CJ 1993, Tomo II, p. 65.
Nesta conformidade, «por indícios suficientes entendem-se vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e o arguido é responsável por ele. Porém, para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciados devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado», ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE COIMBRA, de 31 de Março de 1993, CJ 1993, Tomo II, p. 65.
E bem assim, conforme se pode ler no Acórdão da Relação de Évora de 28 de Janeiro de 1997: «1 — Se das diligências efectuadas na instrução resultarem indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos. II — Indícios suficientes são referências factuais, sinais objectivos de suspeita, indicações de vestígios, enfim, elementos de facto trazidos pelos meios legais probatórios ao processo, que
conjugados e relacionados criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir à condenação do arguido pelo crime que lhe é atribuído», ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE Évora, de 28 de Janeiro de 1997, BMJ, 463, p. 661.
No mesmo sentido, refere Figueiredo Dias, ainda que no âmbito da anterior redacção do Código de Processo Penal, mas com plena actualidade, com as devidas adaptações, «.,. os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável que a absolvição». E adianta «Tem pois razão Castanheira Neves que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação», FIGUEIREDO DIAS Direito Processual Penal 1.° Vol., 1974, p. 133.
E como ensina CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, Indícios suficientes: parâmetro de racionalidade e suficiência, in Revista do CEJ, Número 1, "o juízo de indiciação pressupõe o estabelecimento positivo de dois juízos prévios: o da admissibilidade legal do procedimento ou verificação das condições legais, adjectivas e substantivas; e o da realização integral da investigação (entendida esta como a realização das diligências de prova necessárias suficientes — logo, com preterição das inúteis — tendo em vista a decisão de mérito".
E, atento ao facto de, também na fase de instrução o legislador exigir indícios suficientes, tal como na acusação, para que se pronuncie o arguido, o raciocínio do referido autor tem plena aplicação. Nessa medida, seguiremos de perto o referido autor.
No que à suficiência de indícios diz respeito, diz CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA o seguinte:"(...) para se realizar o estádio de pretensão à verdade que legitima uma acusação importa que se estabeleça uma convicção de indiciação suficiente, validamente determinada, cabalmente esclarecida e fundada numa elevada probabilidade de ter como resultado a condenação do arguido.
Por conseguinte, o juizo ou convicção a estabelecer nesta fase há-de ser equivalente ao de julgamento, na sua estrutura fenomenológica, na objectividade da indagação fáctica e apreciação do material probatório, na conformação normativa pelas mesmas proibições de valoração da prova, na racionalidade lógica e metodológica em que assenta a sua livre apreciação dos elementos de prova coligidos, na parametrização (em prognose, na acusação, e actual, do julgamento) própria de condenação e no grau de convicção (que se não compadece, em ambos os casos, com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem "razoável de dúvida.
Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade do arguido ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.
A regra "in dubio pro reo", enquanto manifestação do princípio da presunção da inocência — princípio estruturante do processo penal -, tem como momento mais relevante a apreciação da prova em julgamento, mas também se manifesta no momento do encerramento do inquérito, quando o Ministério Público, valorando as provas recolhidas, tem de tomar posição, arquivando-o ou formulando acusação. E, evidentemente, também se coloca ao juiz de instrução, após o debate instrutório, devendo, portanto, lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra "in dubio pro reo", no caso de se encontrar perante uma situação de dúvida inultrapassável quanto às provas produzidas.
Por fim, cumpre aqui esclarecer que, no caso e na apreciação deste Tribunal, não cuidamos de eventual responsabilidade civilística, mas tão-só de factualidade com a necessária dignidade penal.
Procedamos então à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação através da análise crítica de todos os elementos probatórios constantes dos autos, à luz do direito aplicável e dos argumentos aduzidos pela própria arguida, para efeito de formulação de um juízo indiciário positivo ou negativo.
***
Apreciando os factos em análise e a prova recolhida no inquérito e na instrução, considero estarem suficientemente indiciados os seguintes factos:
1- O arguido, AA, e a ofendida, CC, foram companheiros e residiram durante sete anos, entre Setembro de 2003 e Outubro de 2010, em comunhão de mesa e habitação, na residência sita na Rua Sousa Lopes, n° 4, 3° Esq., em Queluz.
2- Em 2010 o arguido e a ofendida separaram-se, reatando a sua relação em Dezembro de 2013, passando desde essa data a viver em união de facto na residência da ofendida, por esta arrendada, na Praceta ……………., Oeiras.
3- O arguido e a ofendida têm um filho em comum, e separaram-se definitivamente em Setembro de 2015, data em que o arguido saiu da casa descrita no ponto anterior, para ir morar na Rua ……………. em Algueirão-Mem Martins, ficando a ofendida a viver como seu filho na casa da Praceta ……………..m Tercena.
4- O arguido, AA, e a arguida, BB, são meios-irmãos, tendo ambos a mesma mãe.
5- Vendo um anúncio no OLX, anunciando a venda do FIAT PUNTO, de matricula ………, pelo preço de 1.150,00 E, interessando-lhe a compra dessa viatura, DD contactou o n° 9…………. que constava do anúncio, número de telemóvel do arguido AA, e combinou com este arguido um encontro no dia 19-03-2016, junto ao Zoo de Lisboa, para verificar o estado do FIAT PUNTO.
6- No dia 19-03-2016, o arguido AA e DD chegaram a um acordo, e o primeiro vendeu ao segundo o veículo automóvel de matrícula ……….., pelo preço de 900,00 €, valor que DD tunes entregou ao arguido AA, recebendo nesse dia o automóvel e respectivo livrete (documento único automóvel).
Considero não estarem indiciariamente apurados os seguintes factos:
1- Durante o período de vida conjugal, quando moravam na residência sita na Praceta ………….. Tercena, a ofendida comprou, em Junho de 2014, o motociclo de marca SUZUKI, com a matrícula ………., e comprou, em Janeiro de 2015, o automóvel de marca FIAT, modelo PUNTO, com a matricula ………, sendo ambas as viaturas da sua propriedade.
2- Após a separação do casal, uma vez que a ofendida não tinha onde guardar as viaturas, acedeu a que o automóvel e o motociclo descritos ficassem parqueados no estacionamento do prédio onde morava o arguido, na Rua ………….Mem Martins.
3- Apesar de a ofendida ter ficado com os livretes de ambas as viaturas consigo, em meados de Janeiro ou Fevereiro de 2016, numa visita do arguido a sua casa relacionada com o seu filho comum, o arguido AA aproveitou para remexer nas coisas da ofendida e se apoderar dos livretes do FIAT PUNTO de matrícula ………e do motociclo SUZUKI de matrícula …….., levando esses documentos consigo.
4- Aproveitando-se da posse das viaturas e respectivos livretes, ambos pertença da ofendida, o arguido AA e a arguida BB, sua irmã, decidiram vender esses veículos a terceiros, falsificando a assinatura da ofendida, sua proprietária, nos requerimentos de registo automóvel, e realizar dessa forma um proveito económico que não lhes era devido, com a venda de veículos que não eram seus.
5- Assim, de acordo com o plano que engendraram em conjunto, em meados de Fevereiro de 2016 os arguidos, AA e BB, colocaram um anúncio no site de vendas em segunda mão, OLX, anunciando a venda do FIAT PUNTO, de matrícula ……………, pelo preço de 1.150,00 €.
6- No intuito de assegurar a realização do negócio, conferindo-lhe a aparência de legalidade que não tinha, fazendo o comprador crer que a proprietária do veículo de matrícula ………… autorizava a sua venda, o arguido AA preencheu e assinou o requerimento de registo automóvel, cujo original consta a fls. 102 a 103, assinando no local referente ao vendedor o nome da ofendida, CCa, como se tivesse sido a mesma a assinar esse documento.
7- Nesse mesmo dia, 19-03-2016, o arguido AA deslocou-se com o comprador DD á conservatória do registo automóvel, onde entregou o requerimento de registo automóvel, cujo original consta a fls. 102 a 103, com a assinatura da vendedora falsificada, passando o registo da viatura de matrícula …………. para o nome do comprador.
8- Em relação ao motociclo de marca SUZUKI, com a matrícula …………, os arguidos, AA  e BB, decidiram, ao invés de o vender a terceiros, passar o seu registo para o nome de BB.
9- Assim, em cumprimento desse plano, no dia 04-02-2017 a arguida BB preencheu e assinou o requerimento de registo automóvel, referente ao motociclo de marca SUZUKI, com a matricula …………., cujo original consta a fls. 125 a 126, tendo o arguido Luís Marques preenchido somente o campo referente aos algarismos.
10- Com efeito, no local desse requerimento referente ao vendedor do motociclo SUZUKI, BB apôs assinatura da ofendida, CC, como se tivesse sido a ofendida a assinar esse documento, e no local referente ao comprador do motociclo a arguida colocou a sua própria assinatura.
11- De seguida, nesse mesmo dia 04-02-2017 os arguidos, AA  e BB, entregaram na conservatória do registo automóvel o requerimento de registo automóvel, cujo original consta a fls. 125 a 126, com a assinatura da vendedora falsificada, passando o registo do motociclo SUZUKI de matrícula ……… para o nome da arguida BB.
12- O esquema engendrado pelos arguidos, falsificando a assinatura da ofendida nos dois requerimentos de registo automóvel, de fls. 102 a 103 e 125 a 126, fazendo as autoridades da conservatória do registo automóvel crer que era a proprietária registada, CC, quem estava a vender o automóvel FIAT PUNTO de matrícula …………… e o motociclo Suzuki de matrícula ……….., foi apto a enganar não só essas autoridades como também o comprador do FIAT PUNTO, DD, que pensou que estava a comprar esse automóvel à sua legítima proprietária.
13- Através deste esquema enganoso, e através da falsificação da assinatura da ofendida em ambos os requerimentos, os arguidos lograram obter um benefício no valor de 900 € com a venda do FIAT PUNTO, e lograram passar para o nome da arguida, BB, o registo do motociclo SUZUKI, mota com o valor aproximado de 4.000 €, que passou a estar na disponibilidade total de ambos os arguidos, como se fosse sua.
14- Ao agir desta forma, falsificando a assinatura da ofendida nos requerimentos de registo automóvel, vendendo o automóvel a terceiros e fazendo seu o motociclo, registando-o em nome da arguida, BB, os arguidos, agindo em comunhão de esforços e dividindo tarefas de acordo com o que planearam em conjunto, lograram enganar as pessoas que contactaram, tanto os funcionários da conservatória do registo automóvel como o comprador DD, e obter assim para si um benefício económico ilegítimo, correspondente ao produto da venda do automóvel (900 €) e ao valor de mercado do motociclo (4.000 €), no montante global de 4.900 €.
15- Ao actuar da forma descrita, os arguidos agiram com a intenção concretizada de obter um benefício económico nesse montante, a que sabiam não ter direito, causando na ofendida, CC, proprietária desses veículos, o prejuízo correspondente, no montante de 4.900 €.
16- Ao agir da forma descrita, os arguidos agiram em conjugação de esforços, dividindo tarefas de acordo com o que planearam entre si, actuando ambos de modo livre, voluntário e consciente, com o intuito concretizado de obterem para si um enriquecimento ilegítimo.
17- Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei, e, não obstante, não se coibiram de actuar da forma descrita.
Motivação
No que aos factos indiciariamente provados e não provados concerne, atentou o Tribunal na prova carreada para os autos em sede de inquérito e elencada a fls. 190, quando conjugada de forma crítica com as declarações prestadas pelos arguidos em sede instrutória, e concatenadas com os depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas e documentos juntos pelos Arguidos, nesta fase, tudo analisado à luz das regras de experiência comum, racionalidade e lógica.
Os factos que se deram por suficientemente indiciados em 1) a 4) resultam das declarações concordantes prestadas por Arguidos e Assistente.
Nos que aos factos suficientemente indiciados plasmados em 5) e 6) concerne, atentou-se nas declarações conjugadas do Arguido AA e DD com o teor dos documentos da conservatória do registo automóvel juntos aos autos.
No que aos factos que se deram por não suficientemente indiciados diz respeito, atentou-se nas declarações prestadas pelos Arguidos nesta sede, que se mostram corroboradas pela demais prova testemunhal e documental igualmente produzida nesta fase, sendo ainda concordantes com as regras de experiência comum.
O Arguido relatou ao Tribunal de forma encadeada e circunstanciada as vicissitudes do relacionamento que teve com a Assistente, quando, onde e porquê comprou os veículos em causa nos autos, bem como a razão que o levou a registá-los em nome da Assistente e que se prendia com o facto de ter dívidas e, por essa razão, não poder ter bens registados em seu nome.
Mais esclareceu que, atenta a relação atribulada que foi mantendo com a Assistente, e por forma a poder dispor dos veículos em causa quando assim o entendesse, pediu àquela que, aquando da declaração de compra dos veículos, assinasse também uma declaração de venda. Esclareceu ainda que, tal como havia pedido à Assistente para registar os veículos em seu nome por razões relacionadas com dívidas a terceiros, após a separação com esta, pediu à sua irmã, ora Arguida BB, para registar em seu nome o motociclo de marca Suzuki, declarações que foram por esta corroboradas.
A versão apresentada pelo Arguido, mereceu-nos inteira credibilidade por consentânea com as regras de experiência comum, mostrando-se ainda inteiramente corroboradas pelas testemunhas inquiridas nesta sede, as quais, pela sua relação de proximidade com o Arguido mostraram ter conhecimento directo dos factos sobre os quais depuseram, o que fizeram de forma singela, circunstanciada e não empolada, razão pela qual nos mereceram igualmente credibilidade.
Acresce que os vários depoimentos têm ainda respaldo na prova documental junta, donde resulta, nomeadamente, que os seguros obrigatórios emergentes de responsabilidade civil relativos aos veículos em causa estão em nome do Arguido AA, mais resultando que o seu pagamento é ainda assegurado por este.
Não despicienda é ainda a circunstância de a Assistente não ter habilitação legal para conduzir motociclos.
É ainda plausível, tal como afirmado pelo Arguido, que a apresentação da queixa por parte da Assistente se prende com a pendência e decisão do processo respeitante á regulação do exercício das responsabilidades parentais relativo ao filho comum do casal, dada a contemporaneidade deste e do presente processo.
Por fim, a perícia realizada não é conclusiva.
Assim, concatenando as declarações prestadas pelos arguidos com a prova pericial, testemunhal e documental junta, tudo analisado à luz das regras de experiência comum, lógica e racionalidade, é de facto plausível a sua versão quando analisada à luz das regras de experiência comum e do bom senso.
Pelo exposto, deram-se por suficientemente indiciados e por não suficientemente indiciados os factos que como tal supra se consignaram.
***             
Umas breves notas gerais sobre a questão em causa.
A ter em mente, que não compete ao Tribunal da Relação apreciar os factos apurados e substituir-se ao tribunal de 1ª Instância na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas apenas, por força do recurso, com a base indiciária recolhida, corroborada ou não por outros elementos de prova, decidir se, no seu conjunto, são suficientes ou insuficientes para a prolação de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. É isso que resulta do art. 286º do C.P.P.: a instrução tem como fim a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito com vista a submeter ou não os factos a julgamento.
A estrutura processual assente na separação funcional do Mº.Pº. e Juíz de Instrução tem os seus reflexos no que respeita ao direito probatório. Assim, na preparação investigatória da fase do inquérito, o Juiz tem uma acção tipificada, intervindo em regra quando estão em causa actos que interfiram com os direitos fundamentais.
Também na fase da Instrução, devido à estrutura acusatória do processo, “o juiz de instrução está vinculado (…) aos termos da própria acusação ou do requerimento instrutório do assistente”. A prolação de despacho de pronúncia depende - para além da “existência dos necessários pressupostos processuais e demais condições de validade para que o tribunal possa conhecer em julgamento do mérito da acusação”, - da recolha, até ao encerramento da instrução de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
Para efeitos de pronúncia, o conceito de indícios suficientes é o que vem enunciado no nº 2 do art. 283º do C.P.P., aplicável por determinação expressa do nº 2 do art. 308º do mesmo diploma legal: são aqueles dos quais resulta uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança.([1])
Sendo que, o grau de exigência quanto à consistência e verosimilhança dos indícios é menor do que aquele que é imposto ao juiz do julgamento, sem, no entanto, se prescindir de um juízo objectivo e apoiado no acervo probatório recolhido nos autos, mas, é aqui onde se declara a verificação dos pressupostos indispensáveis para a submissão a julgamento dos factos descritos na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.
Dito de outra forma, na pronúncia não se profere decisão sobre a prática ou não dos crimes ou dos seus autores, mas apenas se declara que os autos fornecem indícios materiais da existência dos factos e da sua autoria na forma descrita na acusação ou no requerimento de abertura da instrução, isto é, não se exige que só valham, também como para efeitos de acusação, os indícios que conduzam à certeza da futura condenação, bastando os trazidos ao processo que persuadam de que, a manterem-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do agente.
Dito de outra forma, como refere Germano Marques da Silva em Curso de Processo Penal, III, 196: “…em todos os casos de não pronúncia, o tribunal não conhece do mérito da causa, mas simplesmente da não verificação dos pressupostos necessários para que o processo prossiga com a acusação deduzida e submetida à comprovação na fase de instrução; trata-se sempre, pois, de uma decisão de conteúdo estritamente processual.”
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Cumpre agora verificar se, no caso em apreço, estão ou não reunidos os indícios suficientes para a submissão da causa e dos arguidos a julgamento.
Na fase da Instrução, foram inquiridas 4 testemunhas que não faziam parte do elenco probatório da fase do inquérito; foram juntos documentos bancários e outros relativos ao seguro dos veículos. Donde se pode retirar que foi a prova testemunhal e documental nova em relação ao inquérito, que esteve na génese e fundou a decisão de não pronúncia dos arguidos, infirmando assim a acusação contra os mesmos deduzida pelo Mº.Pº.
Ora, da simples leitura da motivação da matéria fixada na decisão instrutória, salta-nos à vista a expressão “Por fim, a perícia realizada não é conclusiva.” E, nada mais consta relativamente a esta prova pericial, cujos exames e conclusões se encontram a fls. 91 a 97. Ou seja, optou-se por interpretar erradamente os resultados do exame pericial, pois das conclusões exaradas no exame do Laboratório de Polícia Científica consta: “… com um grau de "muitíssimo provável que as escritas suspeitas dos dizeres e das assinaturas dos grupos I a III não sejam da autoria de CC"
Por outro lado, o mesmo exame afirma que, no que respeita "à escrita suspeita do grupo II" é "muito provável' que "seja da autoria de AA".
E, a tudo acresce que dessa mesma Perícia ainda resulta que quanto "à escrita suspeita do grupo III é provável que seja da autoria de BB".
Não se entende a referida menção de inconclusivo, nem se pode perceber das razões do afastamento valorativo da prova pericial que como é sabido, está subtraída à livre apreciação do Tribunal e, por isso só poderá ser afastada com fundamentos nos conhecimentos materiais supostos na perícia.
Ou seja:
Dispõe o artigo 163.º do C.P.P.
Valor da prova pericial
1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.
A prova pericial representa em processo penal um desvio ao princípio da livre apreciação da prova plasmado no art. 127º do C.P.P. É que essa prova de apreciação vinculada como é a prova pericial, “tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” - art. 151º do C.P.P.
Ora não tendo o julgador conhecimentos técnicos iguais aos dos peritos em grafologia (no caso vertente), não poderá, sem mais, desconsiderar o resultado obtido pela perícia, tanto mais daí retirando que não é conclusivo, o que nem corresponde sequer ao resultado a que chegaram os peritos; isto é, tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico e nunca pela análise das testemunhas, ou pelas declarações dos arguidos, o que aparenta ter sucedido no caso vertente.
O Tribunal não só interpretou erradamente o resultado do exame pericial, como não o valorou em conformidade com o disposto na norma aplicável do artigo 163, no seu nº. 2, do C.P.P., violando assim o princípio da prova vinculada.
 Repare-se que a denúncia da Assistente foi-o por ter tido conhecimento de que a propriedade de dois veículos registados em seu nome haviam sido transmitidos a outrem, sem que a mesma tivesse assinado os respectivos documentos. Ora, estes factos são perfeitamente corroborados pelo resultado da perícia do exame de letra que comprova que não foi a assistente quem preencheu ou assinou os documentos que serviram para o averbamento da mudança do titular dos bens. A expressão de muitíssimo provável é praticamente equivalente à certeza.
E, agora, louvando-nos no entendimento da Srª. Procuradora-Geral Adjunta, expresso no seu douto parecer com o qual concordamos integralmente, diremos:
Por seu turno a titularidade do registo não comporta a prova testemunhal indirecta  que foi valorada e  que tinha em vista, manifestamente, tentar provar que os veículos eram propriedade do arguido Luís Semedo Marques, pretendendo por esta via ilidir a presunção registral, mas, a fase da Instrução Penal não é o lugar, nem o meio adequado a fazer a prova para ilidir a presunção do registo da propriedade dos veículos. E, também não seria esta a questão central, objectiva do processo. A questão principal é sim averiguar da existência ou não da falsificação dos documentos e de quem foi o seu autor, no caso dessa verificação.
Ora, quer da prova produzida no inquérito, quer da produzida na instrução, analisada de forma concatenada e crítica e à luz dos critérios objectivos do senso, da lógica e da experiência comum, ao abrigo do princípio da livre apreciação plasmado no artigo 127 do C.P.P. e ainda da prova pericial, subtraída àquele princípio geral e antes submetida ao normativo do artigo 163 do C.P.P., não se pode senão concluir pela forte indiciação da existência do crime de falsificação de documentos e do crime de burla. BB são os agentes dos mesmos. É que, em face da inexistência de argumentação e factualidade válida que infirme as conclusões da prova pericial do exame de escrita, efectuado pelos peritos do Laboratório de Perícia Científica, aqueles factos, de prova vinculada, aliados aos depoimentos das testemunhas, no seu conjunto, são fortemente indiciários da verificação do crime de falsificação de documentos e, quanto aos seus autores, utilizando ainda a prova admissível das presunções judiciais,[2] é possível extrair que a autoria dos factos tem de ser atribuída a quem deles tiraria proveito, económico ou de outra ordem similar: ambos os arguidos.
Resumindo.
Do exposto conclui-se que o Tribunal incorreu em erro notório na apreciação da prova, não existindo fundamentos válidos que permitam divergir da prova pericial. Assim, com base nas provas produzidas- testemunhal, documental e pericial, existem, na nossa perspectiva, os indícios fortes e suficientes que permitem concluir que em fase de julgamento será aplicada uma pena aos arguidos. Devem pois os arguidos serem pronunciados pelos factos e qualificação jurídica da acusação do Mº.Pº.

III -  DECISÃO.

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 9ª.Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em :
-- dar provimento ao recurso interposto pela assistente, e, consequentemente  revogamos o despacho de não pronúncia, o qual deverá ser substituído por outro que pronuncie os arguidos Luís Miguel Semedo Marques e Tânia Sofia Semedo Rosado, nos termos da acusação pública deduzida contra os mesmos.

Lisboa, 4 de Julho de 2019
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pela relatora – artº 94º, nº 2 do C.P.Penal)
Relatora
Maria do Carmo Ferreira
Adjunta
Cristina Branco

[1] Conforme se pode ler no Ac.R.Évora de 1/3/2005-em www.dgsi.pt: “Por indícios suficientes entendem-se suspeitas, vestígios, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido o responsável por ele”. A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo.
[2] E, também, a prova relevante não é apenas a que dimana “em directo” dos depoimentos; para além de outros elementos de prova (periciais, documentos, exames de objectos) há que atentar na prova indirecta, que não é proibida por lei. E, nesta vertente, cabe aqui citar o que foi escrito no acórdão do Supremo Tribunal Ac. do STJ de 11/11/2004, relatado pelo Sr. Conselheiro Simas Santos, in www.gde.mj.pt, processo 04P3182: “ Por isso que, em sede de apreciação, não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte de restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções correcção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência. Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP) e o art. 349.º do C. Civil prescreve que presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º).
Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções. As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 333 e segs.). O que vale por dizer que as presunções naturais não violam o princípio in dubio pro reo. Este princípio é que constitui o limite daquelas.