Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3845/19.4T8OER.L1-8
Relator: AMÉLIA PUNA LOUPO
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO
INEXISTÊNCIA DE TÍTULO EXEQUÍVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A sentença proferida no âmbito de acção pauliana, cujo objecto é apenas a reconstituição da garantia patrimonial do crédito do impugnante, e que concretamente decidiu pelo direito dos credores à restituição do imóvel na medida do necessário à satisfação do seu crédito podendo o bem ser executado no património da adquirente, nada decidiu acerca do crédito, nem condenou ninguém, concretamente a executada, no cumprimento do mesmo: ela não contém uma ordem de prestação ou condenação quanto ao crédito exequendo.
II - Ainda que na acção pauliana o apuramento da existência do crédito do impugnante (cuja prova lhe cabe) seja pressuposto da sua procedência (cfr. artºs 610º al. a) e 611º do CCivil), a sentença não condena, sequer implicitamente, o devedor no pagamento de qualquer valor. A referência ao crédito destina-se apenas a delimitar a extensão da ineficácia da alienação do imóvel realizada pelo devedor ao adquirente e, inerentemente, a delimitação da garantia real e limite até ao qual pode ser atingido o bem do adquirente.
III - Não é confundível o documento comprovativo de um crédito com o título executivo para a cobrança judicial desse mesmo crédito, pois embora o título executivo também comprove tal crédito, só adquire executoriedade se possuir os requisitos legalmente previstos para tal efeito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A presente execução foi promovida em 11/10/2019 por MV - Propriedades Lda”, RSGC, JCCS e MCSGC contra MTSBS, dando à execução a sentença proferida na acção de impugnação pauliana em que foram Réus a dita MTSBS, RIMD, MMMD e AJCT, e que foi intentada por MV - Propriedades Lda” e RC, referindo-se no requerimento executivo, no sentido de justificar a legitimidade dos exequentes, que este último faleceu na pendência da acção pauliana e na sua posição habilitados os ora exequentes RSGC, JCCS e MCSGC, e ainda PMCS e a viúva ASC, entretanto falecida e a quem sucederam os identificados RSGC, JCCS, MCSGC e PMCS, este  entretanto também falecido.
A sentença proferida na acção pauliana [após recursos e face ao Acórdão que veio a ser prolatado pelo STJ] e que constitui o título executivo julgou a acção parcialmente procedente condenando “(…) as 1ª e 2ª rés [MTSBS e RIMD, respectivamente] a reconhecerem o direito dos autores à restituição do imóvel acima identificado [fracção “D” do prédio descrito na 2ª CRPredial de … sob o nº …] na medida do necessário para a satisfação dos créditos indicados, podendo o bem ser executado no património da 2ª ré, absolvendo-se as rés do restante pedido, absolvição que é total em relação aos restantes.”
Em vista desse título executivo, o Tribunal a quo decidiu que “O título executivo supra não permite a instauração de execução para pagamento de quantia certa (153.322,74€), pois não houve condenação em tal pagamento (nem foi esse o pedido formulado na p.i.) – sendo certo que os 3º (…) e 4ª (…) exequentes não foram parte (AA.) na acção que originou o título apresentado.
Motivos por que, ao abrigo da regra dos artigos 734º/1 e 726º/2a) do CPC, se julga extinta a execução.
Custas pelos exequentes. Registe e notifique.”.
É desta decisão que vêm os exequentes interpor o presente recurso de apelação, extraindo das suas alegações as seguintes
CONCLUSÕES
«a) Ao presente recurso deverá ser fixado efeito suspensivo, nos termos da aplicação conjugada da al.) e) do nº3 do artº647º e al) f) do nº2 do artº644º, ambos do Código do Processo Civil.
b) Isto porquanto, a decisão de extinguir os presentes autos de acção executiva implicará, necessariamente, o cancelamento de uma penhora registada em 22/04/2023 (Ap. 136 de 2023/04/22), pela Senhora Agente de Execução, sobre o prédio urbano descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o número …/…da freguesia do …, penhora essa que a ser levantada, conflituará com o direito dos credores-autores, aqui Extes., à restituição do bem na medida dos seus interesses, nos termos do disposto nos artº. 616, nº1 e 818º, ambos do CC.
c) O título executivo dado aos presentes autos de execução é uma decisão judicial condenatória, transitada em julgado, exarada no âmbito do processo nº …, que correu termos, em primeira instância, no extinto 2º Juízo Cível do Tribunal de ….
d) E, não existem dúvidas que a sentença proferida em sede daquela acção de impugnação pauliana pode ser executada e serve, plenamente, de título executivo.
e) Entre as sentenças susceptíveis de declarar ou constituir uma obrigação encontram-se, entre outras, os créditos reconhecidos nas acções de impugnação pauliana julgadas procedentes.
f) Pelo que, como in casu, quando da sentença proferida em sede de acção de impugnação pauliana resulte não só o reconhecimento do crédito do exequente sobre o executado (devedor), mas também que esse crédito consta de cheques, os quais constituem, por sua vez, títulos executivos, essa sentença contem, então, os requisitos de exequibilidade necessários à determinação dos limites objectivos e subjectivos da pretensão executiva a deduzir, quer contra o executado (devedor), quer, inclusivamente, contra o terceiro adquirente do bem a penhorar, nos termos conjugados dos artigos 616º, nº1 e 818º, 2ª parte do Código Civil e dos artigos 10º, nº5 e 735º, nº2, do Código do Processo Civil.
g) Nesta execução é suficiente, como título executivo, a sentença transitada em julgado e proferida no âmbito da acção da impugnação pauliana, uma vez que pela referida sentença consta a condenação da 1º Ré (…) e da 2º Ré (…) a reconhecerem (i) o direito dos credores/autores, aqui Extes., à restituição do imóvel identificado nos autos (fracção autónoma D da ficha nº … da 2º CRP de …) e a (ii) conferir o direito aos credores/autores, aqui Extes., de executarem a referida fração autónoma D no património da 2º Ré, por ter sido a adquirente da referida fracção, podendo, além do mais, os credores-autores praticarem actos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, sobre terceiros adquirentes.
Para além disso,
h) A quantia exequenda de € 153.322,74 (Cento e Cinquenta e Três Mil, Trezentos e Vinte e Dois Euros e Setenta e Quatro Cêntimos), corresponde ao crédito detido sobre a Executada e reconhecido na acção de impugnação pauliana (€ 86.042,64) acrescido dos juros de mora, tal qual se liquidou no requerimento executivo.
i) Se é verdade que os Exequentes não foram partes originais da acção de impugnação pauliana que correu termos no extinto 2º Juízo Cível do Tribunal de… sob o nº …, a verdade também é que, por decesso de RC, ocorrido em 26 de Outubro de 2010, os Exequentes JCCS e MCSGC, foram habilitados, naqueles autos, por sentença proferida em 29 de Abril de 2011.
j) Pelo que, sendo a sentença proferida, em primeira instância, em 8 de Maio de 2013, e, estando já nessa altura, devidamente habilitados os sucessores de RC, que, em sua substituição passaram a ser os Autores daquela acção de impugnação pauliana, dúvidas não restam que os Exequentes JCCS e MCSGC são partes (Autores) “… na acção que originou o título apresentado…” e titulares do direito de crédito sobre a fração autónoma que é objecto de restituição.
k) Entendem, destarte, os Exequentes, que mal andou o Tribunal a quo ao decidir-se pela falta de título executivo.
l) Mal andou também, o Tribunal a quo na parte em que decidiu que os Exequentes JCCS e MCSGC não tinham sido partes naquela acção de impugnação pauliana, quando se mostram habilitados judicialmente, padecendo a douta decisão do vício de excesso de pronúncia, previsto na alínea d)-, segunda parte, do nº 1 do artº 615º do CPC, devendo, nesta parte, ser declarada nula.
m) Devendo, portanto, a decisão a quo ser revogada e substituída por outra que decida pela existência de título executivo bastante, exequível, inclusivamente, contra o terceiro adquirente da fracção autónoma D da ficha nº … da 2º CRP de …, que se mostra penhorada, nos termos conjugados dos artigos 616º, nº1 e 818º, 2ª parte do Código Civil e dos artigos 10º, nº5 e 735º, nº2, do Código do Processo Civil.
n) Mais se decidindo pela legitimidade dos Exequentes.
Nestes termos,
E, nos melhores de Direito que VªS. Exas. mui doutamente suprirão, requer-se que seja a presente Apelação provida, revogando-se a decisão a quo, e, substituindo-se a mesma por outra que decida pela legitimidade dos Exequentes e que decida pela existência de título executivo bastante, exequível, inclusivamente, contra terceiro adquirente do bem a penhorar, nos termos conjugados dos artigos 616º, nº1 e 818º, 2ª parte do Código Civil e dos artigos 10º, nº5 e 735º, nº2, do Código do Processo Civil, assim se fazendo, JUSTIÇA!!!»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, importa apreciar e decidir.
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Questão Prévia
As conclusões a) e b) do presente recurso versam sobre o efeito que os Recorrentes entendem dever ser fixado ao mesmo.
Contudo, as alegações de recurso e as respectivas conclusões destinam‑se a apresentar as razões de divergência relativamente à decisão recorrida, ou seja, as motivações pelas quais o Recorrente entende que a decisão proferida deveria ser outra e deve ser substituída. É quanto decorre do artº 639º nº 1 CPC, de onde se vê que a alegação e a sua síntese conclusiva importam à indicação dos fundamentos por que o Recorrente pede a alteração ou anulação da decisão.
Já os aspectos relativos à espécie, ao efeito e ao modo de subida do recurso têm o seu domínio próprio no requerimento pelo qual o recurso é interposto e que é dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida (cfr. artº 637º nº 1 CPC) e por este em primeira linha apreciado (cfr. artº 641º CPC).
Portanto, o efeito do recurso é aspecto espúrio ao respectivo objecto e tem a sua sede própria de apreciação, num primeiro momento, no despacho pelo qual o juiz do Tribunal que proferiu a decisão recorrida aprecia os requerimentos recursivos e ordena a subida do recurso se a tal nada obstar, e num segundo momento no despacho pelo qual o relator no Tribunal de 2ª instância faz a verificação dos requisitos a que alude o artº 652º nº 1, designadamente als. a) e b) CPC.
Essa verificação foi feita no momento e pela forma processualmente adequados, nada havendo a decidir a esse respeito neste acórdão.
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Dito isto: é sabido que nos termos dos artºs 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil são as conclusões que definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam, exercendo as mesmas função equivalente à do pedido (neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil” 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117), certo que esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica quanto à qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC),
Por outro lado, dentre as questões que lhe caiba conhecer, nomeadamente ex officio, o Tribunal apenas apreciará aquelas cujo conhecimento não fique prejudicado por outras precedentemente conhecidas, o que importa o conhecimento por ordem de precedência lógica.
Assim, as questões a decidir consistem em saber se (a) a sentença enferma de nulidade da decisão por excesso de pronúncia, e se (b) os exequentes/Recorrentes têm título executivo bastante para a execução que promoveram.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Os factos que relevam, todos respigados da tramitação processual, são os seguintes :
1 - MV - Propriedades Lda” e RC intentaram acção de impugnação pauliana, que correu termos sob o nº …no extinto 2º Juízo Cível do Tribunal de …, contra MTSBS (à qual haviam concedido diversos empréstimos não pagos, e que procedeu á venda do único imóvel de que era proprietária: fracção “D” do prédio descrito na 2ª CRPredial de … sob o nº …), RIMD (amiga da primeira e que lhe adquiriu o imóvel), MMMD (fiadora da adquirente RIMD) e AJCT (que interveio no acto como procurador da compradora e da fiadora) [cfr. petição inicial constante da certidão junta aos autos em 17/11/2023].
2 - Nessa acção pauliana foi em 08/05/2013 proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente condenando “(…) as 1ª e 2ª rés [MTSBS e RIMD, respectivamente] a reconhecerem o direito dos autores à restituição do imóvel acima identificado [fracção “D” do prédio descrito na 2ª CRPredial de … sob o nº …] na medida do necessário para a satisfação dos créditos indicados, podendo o bem ser executado no património da 2ª ré, absolvendo-se as rés do restante pedido, absolvição que é total em relação aos restantes.” [cfr. sentença de 1ª instância constante da certidão junta aos autos em 30/09/2020].
3 - Interposto recurso dessa sentença pela Ré MTSBS, foi a mesma revogada por acórdão de 16/09/2014 desta Relação absolvendo também as rés MTSBS e RIMD dos pedidos contra si formulados [cfr. Acórdão desta Relação constante da certidão junta aos autos em 17/11/2023].
4 - Interposto pelos AA. recurso de revista desse acórdão, o STJ, por acórdão de 14/04/2015, revogou o acórdão do Tribunal da Relação repristinando a sentença de 1ª instância de 08/05/2013 referida no facto 2 [cfr. Acórdão do STJ constante da certidão junta aos autos em 17/11/2023].
5 - Na acção pauliana, após as instâncias de recurso, ficou definida a seguinte matéria de facto:
«1. Por instrumento notarial lavrado no dia 21 de Julho de 2000, a 1ª ré constituiu como procurador o 1º autor, a quem conferiu, além do mais, poderes para vender a fracção autónoma designada pela letra “D”, que corresponde ao … piso  - …andar esquerdo, com estacionamento na cave -, do prédio sito na Rua…, lote …, em …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …da referida freguesia, mais constando que a procuração era emitida também no interesse do mandatário, nos termos do artigo 1175º do CC, podendo ser celebrado negócio consigo mesmo.
2. A 1ª ré era dona do imóvel antes identificado, inscrito em seu nome no registo predial desde o dia 11.06.1996.
3. No dia 12 de Dezembro de 2003, foi celebrada escritura de compra e venda do mesmo imóvel, com mútuo e hipoteca, através da qual a 1ª ré vendeu esse imóvel à segunda ré, que o comprou, pelo preço de 104.747,00, valor também emprestado pelo BII.
O 4º réu teve intervenção nessa escritura como representante das 2ª e 3ª rés, sendo que esta última assumiu obrigações de fiadora da 2ª ré perante o mesmo Banco
4. Essa fracção autónoma correspondia à residência permanente da 1ª ré.
5. Os autores, a pedido da 1ª ré, que se encontrava em dificuldades financeiras, emprestaram-lhe diversas quantias, que a mesma se comprometeu a devolver.
6. Assim, os autores entregaram à 1ª ré as quantias a que se referem os cheques por eles emitidos e juntos com a petição inicial.
7. A mesma ré emitiu e entregou aos autores cheques nos montantes recebidos, para permitir o posterior reembolso dessas quantias.
8. A 1ª ré não chegou a reembolsar os autores de qualquer das quantias recebidas.
9. Informando o autor que se apresentassem os cheques a pagamento os mesmos não teriam provisão.
10. Nessa sequência, o autor contactou pessoalmente a 1ª ré, solicitando-lhe o pagamento das quantias que lhe emprestara e comunicou-lhe que se não o fizesse, usaria a procuração de que era beneficiário para dispor da fracção.
11. Chegou a haver contactos, em data concretamente não apurada, entre o autor e o advogado 4º réu, sobre a dívida da 1ª ré.
12. Face à demora nesse pagamento, o autor, em Dezembro de 2004, veio a inteirar-se, junto da conservatória do registo predial, da celebração da escritura mencionada na alínea c).
13. Com a venda desse imóvel, a 1ª ré sabia que os autores ficavam impossibilitados de cobrar o seu crédito.
14. Bem sabendo que desse modo obstava a que o autor recorresse à procuração para obter o reembolso das quantias que havia emprestado.
15. A 1ª ré, continuou a residir na fracção, mesmo depois da celebração da escritura.
16. Depois da celebração da escritura, a 1ª ré não entregou qualquer quantia a título de reembolso pelos referidos empréstimos.
17. A ré RIMD sabia que a 1ª ré tinha dívidas e que a venda do imóvel impediria os credores de obter o pagamento das mesmas através do valor desse bem.
18. Com a alienação do imóvel, o autor ficou impossibilitado de obter o reembolso das quantias emprestadas.» [cfr. Acórdão do STJ constante da certidão junta aos autos em 17/11/2023].
6 - Os cheques emitidos pelos autores RC e “MV Propriedades, Lda” à ordem da 1ª R. MTSBS, juntos à petição inicial da acção pauliana [cfr. supra facto provado 6 da respectiva sentença], são os seguintes:
- emitido por RC, datado de 19/12/2000, valor de Esc. 250.000$00 (doc. 4 da p.i),
- emitido por RC, datado de 08/02/2001, no valor de Esc. 350.000$00 (doc. 6 da pi),
- emitido por RC, datado de 07/11/2001, no valor de Esc. 300.000$00 (doc. 9 da pi),
- emitido por “MV Propriedades, Lda”, datado de 02/05/2002, no valor de € 2.992,79 (doc. 12 da p.i),
- emitido por RC, datado de 13/06/2002, no valor de € 2.493,99 (doc. 13 da p.i) [cfr. certidão judicial com que foi instruído o requerimento executivo].
7 - A sentença da impugnação pauliana transitou em julgado em 30/04/2015 [cfr. certidão junta aos autos em 17/11/2023].
8 - Em 11/10/2019 MV - Propriedades Lda”, RSGC, JCCS e MCSGC instauraram a presente execução para pagamento de quantia certa figurando como executada MTSBS, tendo a quantia exequenda sido liquidada em € 153.322,74, correspondendo ao crédito de € 86.042,64 acrescido de juros, apresentando como título executivo a sentença proferida na acção de impugnação pauliana [cfr. formulário da execução].
9 – Referiram os exequentes no requerimento executivo, no sentido de justificar a sua legitimidade, que RC faleceu na pendência da acção pauliana e na sua posição foram habilitados os exequentes RSGC, JCCS e MCSGC, e ainda PMCS e a viúva ASC, entretanto falecida e a quem sucederam os identificados RSGC, JCCS, MCSGC e PMCS, este  entretanto também falecido [cfr. formulário de requerimento executivo].
10 - Os pontos 3 e 4 do requerimento executivo são do seguinte teor :
«3. Os cheques referidos no ponto 8 dos factos assentes pelo STJ, são os que se encontram reproduzidos na certidão judicial que aqui se junta. Doc. 1-A
4. As quantias emprestadas pelo autor, aqui Exte. à ré Exda., MTSBS, no período compreendido entre 21 de Julho de 2000 e 13 de Junho de 2002, atingiram o valor de 86.042,64 €, tendo sido entregues nas seguintes datas e pelos montantes parciais de :
a) € 24.939,89 (Vinte e Quatro Mil, Novecentos e Trinta e Nove Euros e Oitenta e Nove Cêntimos);
 b) € 9.975,96 (Nove Mil, Novecentos e Setenta e Cinco Euros e Noventa e Seis Euros);
c) € 1.246,99 (Mil, Duzentos e Quarenta e Seis Euros e Noventa e Nove Cêntimos);
d) € 18.704,92 (Dezoito Mil, Setecentos e Quatro Euros e Noventa e Dois Cêntimos);
e) € 1.745,79 (Mil, Setecentos e Quarenta e Cinco Euros e Setenta e Nove Cêntimos);
f) € 7.481,97 (Sete Mil, Quatrocentos e Oitenta e Um Euros e Noventa e Sete Cêntimos);
g)€ 2.493,99 (Dois Mil, Quatrocentos e Noventa e Três Euros e Noventa e Nove Cêntimos);
h) € 1.469,39 (Mil, Quatrocentos e Sessenta e Nove Euros e Trinta e Nove Cêntimos);
i) € 4.987,98 (Quatro Mil, Novecentos e Oitenta e Sete Euros e Noventa e Oito Cêntimos);
j) € 7.481,97 (Sete Mil, Quatrocentos e Oitenta e Um Euros e Noventa e Sete Cêntimos);
k) € 2.992,79 (Dois Mil, Novecentos e Noventa e Dois Euros e Setenta e Nove Cêntimos);
l) € 2.493,99 (Dois Mil, Quatrocentos e Noventa e Três Euros e Noventa e Nove Cêntimos);
Conforme fica demonstrado pelos referidos cheques.» [cfr. formulário de requerimento executivo].
11 - No ponto 6 do requerimento executivo, a propósito da liquidação de juros, são referidos : a) cheque entregue em 21/07/2000; b) cheque entregue em 09/11/2000; c) cheque entregue em 29/12/2000; d) cheque entregue em 01/02/2001; e) cheque entregue em 08/02/2001; f) cheque entregue em 12/09/2001; g) cheque entregue em 07/11/2001; h) cheque entregue em 20/12/2001; i) cheque entregue em 23/01/2002; j) cheque entregue em 02/05/2002; k) cheque entregue em 13/06/2002 [cfr. formulário de requerimento executivo].
12 - Os cheques constantes da certidão judicial apresentada com o requerimento executivo, a qual integra todos os documentos juntos com a petição inicial da acção pauliana, são os emitidos pelos autores RC e “MV Propriedades, Lda” à ordem da 1ª R. MTSBS enunciados supra no facto 6, a saber : emitido por RC, datado de 19/12/2000, valor de Esc. 250.000$00 (doc. 4 da p.i); emitido por RC, datado de 08/02/2001 no valor de Esc. 350.000$00 (doc. 6 da pi); emitido por RC, datado de 07/11/2001, no valor de Esc. 300.000$00 (doc. 9 da pi); emitido por “MV Propriedades, Lda” datado de 02/05/2002 no valor de € 2.992,79 (doc. 12 da p.i); emitido por RC, datado de 13/06/2002 no valor de € 2.493,99 (doc. 13 da p.i);
e ainda os seguintes:
emitidos por MTSBS à ordem de RC, sem data, no valor de Esc. 5.000.000$00 (doc. 1 da p.i); sem data, no valor de Esc. 2.000.000$00 (doc. 3 da pi); datado de 01/02/2001, no valor de Esc. 3.750.000$00 (doc. 5 da pi); sem data, no valor de Esc. 1.500.000$00 (doc. 7 da p.i); datado de 12/09/2001, no valor de Esc. 500.000$00 (doc. 08 da p.i)
bem como os que seguem:
emitido por “BS, Lda” e assinado por MTSBS à ordem de RC, sem data, no valor de Esc. 1.000.000$00 (doc. 10 da p.i); emitido por “BS, Lda” e assinado por MTSBS à ordem de RC, sem data, no valor de Esc. 1.500.000$00 (doc. 11 da p.i) [cfr. certidão judicial com que foi instruído o requerimento executivo].
13 - Os exequentes nomearam à penhora a fracção “D” do prédio descrito na 2ª CRPredial de … sob o nº …, cuja propriedade se encontrava então registada a favor de MMF pela Ap. 2340 de 12/06/2019 [cfr. requerimento de nomeação de bens à penhora e certidão predial junta aos autos em 24/10/2019].
14 – MMF adquiriu a fracção a “S…, SA”, a favor da qual a propriedade estava registada pela Ap. 1063 de 15/02/2019 por compra no processo de execução nº … – Juízo de execução de … [cfr. certidão predial, com histórico, junta aos autos em 24/10/2019].
15 - Na pendência da execução vieram os exequentes a deduzir incidente de intervenção principal provocada da proprietária do imóvel MMF por forma que a mesma passasse a figurar como executada [cfr. requerimento de 04/12/2020].
16 - O incidente foi indeferido com fundamento em não existir título contra MMF, por a sentença dada á execução ter reconhecido o direito a executar o imóvel no património da 2ª R. na acção pauliana, não se tratando da referida MMF [cfr. despacho de 04/10/2022].
17 - MMF vendeu a fracção “D” a EK e mulher CM, mostrando-se a aquisição registada a favor destes pela Ap. … de … [cfr. certidão predial junta em 27/06/2023 pela Sra Agente de Execução].
18 - Em 29/11/2023 foi proferida na execução a seguinte decisão “O título executivo supra não permite a instauração de execução para pagamento de quantia certa (153.322,74€), pois não houve condenação em tal pagamento (nem foi esse o pedido formulado na p.i.) – sendo certo que os 3º (…) e 4ª (…) exequentes não foram parte (AA.) na acção que originou o título apresentado.
Motivos por que, ao abrigo da regra dos artigos 734º/1 e 726º/2a) do CPC, se julga extinta a execução.
Custas pelos exequentes. Registe e notifique.”.
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Da nulidade da decisão por excesso de pronúncia
Os Recorrentes entendem que a decisão enferma de nulidade por excesso de pronúncia porquanto a mesma afirma que os exequentes JCCS e MCSGC não foram parte (AA.) na acção que originou o título executivo apresentado, não obstante os mesmos terem sido habilitados como sucessores do falecido Autor RC em incidente próprio tramitado naquela acção.
Vejamos.
As nulidades da decisão encontram-se taxativamente enumeradas no artº 615º nº 1 do CPC, o qual estabelece que :
“É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Como do preceito se alcança, as nulidades da decisão – revista ela a forma de despacho, sentença ou acórdão – prendem-se com vícios estruturais ou intrínsecos da mesma, decorrem do conteúdo desses actos do Tribunal ocorrendo quando as decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não poderiam ter nos termos do artigo 615º nº 1 CPC [e também dos artºs 666º nº 1 e 685º do CPC, que ao caso não importam].
São erros de actividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito (veja-se, por todos e a título de exemplo, Acórdão do STJ de 11/10/2022, no proc. 602/15.0T8AGH.L1-A.S1 - disponível in www.dgsi.pt); não se prendem com o mérito da decisão ou com erro no julgamento (de facto ou de Direito), mas antes com o cumprimento ou a violação de regras de estrutura, de conteúdo ou dos limites do poder à sombra do qual as decisões são decretadas, tratando-se, como dito, de defeitos de actividade ou de construção da própria sentença, ou seja, de vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido à apreciação do Tribunal.
Segundo Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., Janeiro/2014, pág. 734, são vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”.
A causa de nulidade invocada pelos Recorrentes mostra-se prevista na alínea d) do nº 1 do citado artigo 615º CPC, o qual tem correspondência directa com o artigo 608º nº 2 do mesmo Código, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Assim, verifica-se a omissão de pronúncia quando o juiz deixe de apreciar as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, e ocorre excesso de pronúncia quando o Tribunal conhece de questões que não tendo sido colocadas pelas partes, também não são de conhecimento oficioso.
Ora, no caso os Recorrentes vislumbram o excesso de pronúncia por na decisão sob recurso se afirmar que os exequentes JCCS e MCSGC não foram parte (AA.) na acção que originou o título executivo apresentado, circunstância que se reporta à ilegitimidade activa (pese embora a sentença não a qualifique expressamente).
A ilegitimidade configura-se como excepção dilatória de conhecimento oficioso, tratando-se de aspecto que se impõe ao conhecimento ex officio do Tribunal porque constitui, em si mesma, um pressuposto processual (cfr. artºs 577º al. e) e 578º CPC) e no âmbito executivo diz respeito aos limites subjectivos do título executivo que cabe ao juíz apreciar (cfr. artº 726º nº 2 al. b) e nº 3 CPC).
Portanto, o Tribunal não conheceu de questão cujo conhecimento lhe estivesse vedado, antes tendo conhecido de questão que a lei lhe impõe que conheça.
A circunstância de nela se afirmar erroneamente que os exequentes JCCS e MCSGC não foram parte (AA.) na acção que originou o título executivo apresentado, pode configurar um erro de julgamento, mas não a nulidade da sentença.
Improcede, pois, este fundamento recursivo.
Da (in)existência de título executivo bastante para a execução instaurada
Conforme dispõe o artº 10º nº 5 do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da acção executiva.
No elenco dos títulos executivos previstos no artº 703º do CPC encontram-se, em primeiro lugar, as sentenças condenatórias (al. a) do nº. 1 do citado normativo).
Tendo em conta que a decisão recorrida expressa o entendimento de que a sentença proferida no âmbito de uma acção de impugnação pauliana não constitui título executivo que permita ao credor fundar uma acção executiva para pagamento de quantia certa, verifica-se que à análise da questão em apreço importa a interpretação do sentido e alcance da expressão ou conceito de “sentenças condenatórias” a que alude o acima citado normativo legal.
Para apreender o seu real significado deve ter-se presente que nas sucessivas alterações e revisões ao Código do Processo Civil a expressão “sentenças condenatórias” substituiu a expressão “sentenças de condenação” que era usada no artº 46º nº 1 do CPC de 1939.
Com essa alteração visou-se esclarecer que a exequibilidade das sentenças não se reporta apenas às proferidas em acções de condenação mas a todas a que encerrem um comando condenatório (sobre esta temática cfr., entre outros, Amâncio Ferreira, in “Curso de Processo de Execução”, 8ª Edição, Almedina, págs. 21/23; Lopes Cardoso, in “Manual da Acção Executiva”, págs. 41/43, Alberto do Reis, in “Processo de Execução”, Vol. 1º, 2ª. ed, págs. 126/127, Anselmo de Castro in “Processo Civil Declaratório”, vol. I, págs. 112 e 113, e “Acção Executiva”, pág. 16; Ary Elias da Costa in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág. 391; Prof. Teixeira de Sousa in “Acção Executiva”, pág. 73).
É hoje entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência, ao qual aderimos, que na expressão “sentenças condenatórias” estão incluídas todas aquelas sentenças que de forma explícita ou implícita impõem a alguém determinada responsabilidade ou cumprimento de uma obrigação : para que uma sentença seja exequível ela não tem, necessariamente, que condenar expressamente no cumprimento de uma obrigação, bastando que a obrigação dela inequivocamente emirja (cfr. neste sentido, entre outros, Acórdão do STJ de 18/03/1997 in CJ, Acs. STJ Ano V, T1, págs. 160/161, e Acórdão do STJ de 08/01/2015 - proc. 117‑E/1999.P1.S1, Relator Abrantes Geraldes / disponível em www.dgsipt).
Há, contudo, que analisar se no caso concreto a sentença dada à execução cabe neste significado abrangente de “sentenças condenatórias”, tanto mais que a exequibilidade da sentença proferida na acção pauliana é abordada na jurisprudência sob diversos primas (vejam-se, a propósito das várias abordagens e apenas a título de exemplo, os Acs. da Relação do Porto de 23/02/2012 proc. 9272/07.9TBVNG-A.P1, de 20/02/2020 proc. 3699/18.8T8LOU-A.P1 e de 19/05/2022 proc. 1784/21.8T8LOU-A.P.1; da Relação de Guimarães de 02/06/2011, proc. 321/09.7TBGMR-A.G1 e de 21/02/2019 proc. 5588/15.9T8GMR-A.G2; da Relação de Lisboa de 28/05/2013  proc. 2094/08.1TBCSC-B.L1-7 e de 31/05/2017 proc. 640/10.0TTFUN-A.L1-4; e do STJ de 13/05/2021 proc. 2215/16.0T8OER-A.L1.S3, e de 09/05/2023 proc. 6184/21.7T8VNF-A.G1.S1).
Na análise a realizar há que ter em conta que a acção de impugnação pauliana, cuja disciplina se rege pelos artºs 610º a 618º do CCivil, constitui um meio de conservação da garantia geral das obrigações e por isso destina-se a restabelecer a garantia patrimonial do credor, que resultou diminuída ou suprimida por um acto do seu devedor, tendo como efeito o reconhecimento da ineficácia do acto relativamente ao credor de forma a recuperar a garantia com que o credor poderia contar.
No entanto, a impugnação pauliana pode apresentar vários efeitos face às possíveis consequências da ineficácia do acto impugnado previstas no artº 616º CCivil. Como refere Cura Mariano (in “Impugnação Pauliana”, 2ª ed., Almedina, 2008, pp. 292-293), o pedido formulado na acção pauliana poderá ter conteúdos diversos além da basilar declaração de ineficácia “(…) quando se pretende atingir o bem no património de terceiro, deve ser pedido que o tribunal reconheça a possibilidade do credor impugnante o executar ou praticar sobre ele os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei (art.616º, nº1, do C.C.). Quando se vise a restituição pelo adquirente do valor do bem transmitido ou do enriquecimento obtido com a sua aquisição, quando já não seja possível a execução desse bem, o pedido já será de condenação no pagamento de uma determinada quantia em dinheiro (art.616º, nº2, do C.C.). No primeiro caso, estamos perante uma acção constitutiva, enquanto a segunda hipótese integra uma acção de condenação, atenta a classificação dos diferentes tipos de acções cíveis (…)”, acrescentando o mesmo autor ( ob. cit., pág. 295) que nada impede que, no mesmo processo, se cumule o pedido de condenação do devedor a satisfazer o crédito e o de condenação do terceiro adquirente nos efeitos da impugnação pauliana do acto que lesou a garantia patrimonial desse crédito (cfr., no mesmo sentido, Amâncio Ferreira in “Curso de Processo de Execução”, 2006, 9ª ed., pág.75, nota 129 citando Ribeiro Mendes).
E naturalmente a sentença reflectirá o pedido que tenha sido formulado.
No caso dos autos a sentença proferida na impugnação pauliana condenou as ali 1ª e 2ª rés – a devedora MTSBS e a adquirente RIMD – a reconhecerem o direito dos autores à restituição do imóvel [fracção “D” do prédio descrito na 2ª CRPredial de … sob o nº …] na medida do necessário para a satisfação dos créditos indicados, podendo o bem ser executado no património da 2ª ré, a adquirente RIMD (cfr. factos 2 e 4).
Essa sentença, proferida no âmbito de uma acção cujo objecto típico é a conservação da garantia geral das obrigações – não a determinação de uma responsabilidade ou cumprimento de uma obrigação – confere aos impugnantes credores, como meio de restabelecimento da garantia patrimonial do seu crédito e na medida deste, o direito a praticar sobre o bem transmitido pelo seu devedor actos executórios e de conservação dessa garantia patrimonial, actuando directamente sobre o património da terceira adquirente que viu procedentemente impugnado o acto transmissivo pelo qual adquiriu o bem.
A sentença contém, portanto, um comando condenatório quanto à adquirente, porque implicitamente a condena a suportar a execução do bem no seu património, mas relativamente à devedora apenas a condena a reconhecer o direito dos autores à restituição do imóvel, nada define e nada decide, nem implicitamente, quanto ao crédito porque na acção pauliana não se discute a relação credor/devedor. Somente condena a devedora no reconhecimento da ineficácia relativa do negócio em que interveio, sendo por isso que o devedor tem de ser parte na acção pauliana, além de que a sua intervenção nela é também necessária para que a sentença que declara essa ineficácia e permita a afectação do património do adquirente faça caso julgado quanto ao devedor para que o adquirente possa actuar contra ele para exercer os direitos que lhe faculta o artº 617º CCivil
A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (artº 621º do CPC), sendo que a força executória da sentença radica na força de caso julgado que a ela é associado.
Foi aquela sentença que foi dada à execução para pagamento de quantia certa apenas contra a devedora MTSBS.
O título executivo, no dizer de Amâncio Ferreira (cfr. ob. cit. Pág. 19), é a “peça necessária e suficiente à instauração da acção executiva ou, dito de outra forma, pressuposto ou condição geral de qualquer execução: nulla executio sine título. Podemos defini-lo, na esteira de Manuel de Andrade, como o documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servir de base ao processo executivo (…)”
Como refere Lebre de Freitas (in “A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., pág. 29), “para que possa ter lugar a realização coactiva duma prestação devida (ou do seu equivalente), há que satisfazer dois tipos de condição, dos quais depende a exequibilidade do direito à prestação:
a) O dever de prestar deve constar dum título: o título executivo. Trata-se dum pressuposto de carácter formal, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito (…), na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da acção executiva.
b) A prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida (…). Certeza, exigibilidade e liquidez são pressupostos de carácter material que intrinsecamente condicionam a exequibilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coactiva da pretensão”
.
Dito de outra forma, a inexequibilidade coincide com “a não verificação dos pressupostos dos artºs 703º a 708º do CPC (…). Assim, será inexequível a sentença que:
a. Não contenha uma ordem de prestação ou condenação;
b. Não esteja assinada pelo Juiz;
c. Esteja pendente de recurso com efeito suspensivo (artºs. 704º, nº 1 e 647º, nº2 a 4 do CPC)
d. Tenha sido revogada em recurso, ordinário ou extraordinário;
e. Sendo estrangeira não tenha sido revista e confirmada pela Relação (artºs. 978º, nº1 e 979º do CPC) ou não obedeça aos artºs. 38º e ss. Reg. (CE) 44/2011…”.
(cfr. Rui Pinto in “Manual da acção executiva e do despejo”, págs. 401 e 402 // sublinhado nosso).
Ora, a sentença dada à execução, porque proferida no âmbito de acção pauliana cujo objecto é apenas a reconstituição da garantia patrimonial do crédito do impugnante e concretamente decidiu pelo direito dos credores à restituição do imóvel[1] na medida do necessário à satisfação do seu crédito, podendo o bem ser executado no património da ali 2ª ré, a adquirente, nada decidiu acerca do crédito, nem condenou ninguém, concretamente a ora executada, no cumprimento do mesmo: ela não contém uma ordem de prestação ou condenação quanto ao crédito exequendo.
Ainda que na acção pauliana o apuramento da existência do crédito do impugnante (cuja prova lhe cabe) seja pressuposto da sua procedência (cfr. artºs 610º al. a) e 611º do CCivil), a sentença não condena, sequer implicitamente, o devedor no pagamento de qualquer valor. A referência ao crédito destina-se apenas a delimitar a extensão da ineficácia da alienação do imóvel realizada pelo devedor ao adquirente e, inerentemente, a delimitação da garantia real e limite até ao qual pode ser atingido o bem do adquirente.
E o título executivo não é um documento que sirva apenas para comprovar a existência de um crédito do exequente, apesar de essa ser também uma das suas vertentes, não sendo confundível o documento comprovativo de um crédito com o título executivo para a cobrança judicial desse mesmo crédito, pois embora o título executivo também comprove tal crédito, só adquire executoriedade se possuir os requisitos legalmente previstos para tal efeito, e a decisão proferida no âmbito da acção de impugnação pauliana, pelas razões explanadas, não constitui título executivo que permita fundar a instauração da presente acção executiva para pagamento de quantia certa contra a devedora (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/02/2019 proc. 5588/15.9T8GMR-A.G2; neste sentido veja-se ainda Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa 28/05/2013, proc. 2094/08.1TBCSC-B.L1-7).
Concluímos, assim, que a sentença proferida na impugnação pauliana não constitui título executivo para cobrança do crédito dos exequentes contra a devedora.
Mas ainda que, hipoteticamente, se entendesse existir esse título a execução não poderia, ainda assim, prosseguir contra a executada atentos os moldes em que a execução foi gizada pelos exequentes.
Na verdade, quer o requerimento executivo, quer as alegações de recurso, deixam claro que com a execução os exequentes pretendiam, unicamente, atingir o bem que foi objecto da impugnação pauliana, para o que deveriam ter demandado o respectivo proprietário, como se prevê no artº 54º nº 2 do CPC, mas relativamente ao qual, mercê das sucessivas transmissões, não dispõem de título executivo porquanto, face à sentença/titulo executivo, RIMD, primeira adquirente que foi ré na acção pauliana, seria a única com legitimidade para figurar como executada.
Portanto, na situação vertente, nos moldes em que os exequentes equacionaram a execução, ela nunca poderia prosseguir quanto à executada, a devedora, porque esta carece de legitimidade para ser demandada em execução que visa apenas a penhora de um bem alienado a terceiro e cuja execução foi “autorizada” na acção de impugnação pauliana.
Feito este parêntesis e concluindo, como concluímos, que a sentença proferida na impugnação pauliana não constitui título executivo para cobrança do crédito dos exequentes contra a devedora, a decisão recorrida, a nosso ver, não merece censura, sendo de manter, ficando prejudicada a questão relativa à (i)legitimidade dos exequentes.
Julga-se, pois, improcedente o recurso.

III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a sentença de 1ª instância.
Custas a cargo dos Recorrentes.
Notifique.

Lisboa, 18/04/2024
Amélia Puna Loupo
Rui Pinheiro de Oliveira (conforme declaração de voto junta)
Maria do Céu Silva (voto vencida conforme declaração que junto)
*
Declaração de voto:
Votei favoravelmente o sentido da decisão (improcedência da apelação), por considerar que a execução não podia prosseguir contra a executada/devedora, tendo em conta que os exequentes pretendiam com a execução atingir, unicamente, o bem de terceiro objecto da impugnação pauliana (e não outros bens da devedora), que, por isso, deveria ter sido o único demandado.
Considero, no entanto, que a sentença proferida em acção de impugnação pauliana pode constituir título executivo contra o devedor (porque tem como pressuposto essencial, além de outros, o reconhecimento do crédito do impugnante, sendo certo que a devedora é parte na acção de impugnação, fazendo a sentença caso julgado quanto a ela), desde que contenha os requisitos de exequibilidade necessários à determinação dos limites objectivos e subjetivos da pretensão executiva ou que seja completada, no requerimento executivo, pelos documentos que permitem a execução da dívida, nos termos do art. 703.º do CPC.
Assim, no caso, cumpriria verificar se estão preenchidos tais pressupostos, em face dos cheques emitidos pela devedora, posto que, ainda que não datados e não apresentados a pagamento, estão entre os documentos referidos no art. 703.º, n.º 1, al. c) do CPC.
Rui Pinheiro de Oliveira
**
Voto de vencido:
 “Não questionamos a exequibilidade das sentenças das quais resulte a inequívoca existência de uma obrigação e o correspondente direito de crédito.
É da natureza do título executivo conter o acertamento do direito. Por isso, se perante o acto jurídico - maxime a sentença de onde emerge uma condenação implícita no cumprimento de uma obrigação - for possível concluir que aquela finalidade já se encontra assegurada, é de todo inútil a interposição de nova acção declarativa, sendo a mesma dotada de exequibilidade” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 8 de janeiro de 2015, processo 117-B/1999.P1.S1).
“Em termos gerais, a ação pauliana traduz-se numa ação constitutivo-modificativa, posto que tem por fim operar a ineficácia, duplamente relativa, do negócio impugnado, mais precisamente quanto ao credor impugnante e na medida do que se mostre necessário à satisfação do seu crédito.
Tal espécie de ação tem como pressuposto essencial, além de outros, o reconhecimento desse crédito, cujo ónus de prova incumbe ao credor conforme se preceitua no artigo 611.º do CC.”
“…, o credor impugnante, em especial quando já disponha de um título executivo contra o devedor, limitar-se-á a alegar o seu crédito incorporado nesse título para que, desse modo, seja reconhecido como pressuposto da respetiva pretensão.”
“Todavia, se a sentença proferida em ação pauliana se limitar simplesmente a reconhecer o crédito em causa sem condenar o devedor no cumprimento da respetiva obrigação e sem que o crédito conste sequer de título executivo, poderá então tornar-se pertinente a questão da exequibilidade desse crédito, a menos que se possa então considerar tal reconhecimento como condenação implícita do devedor. (…)
Neste quadro diversificado, a exequibilidade da sentença proferida em ação de impugnação pauliana, …, não deverá ser aferida de forma categorial, genérica ou abstrata, mas sim em função do que ali for dado como provado e concretamente reconhecido relativamente ao crédito em causa e ao modo como o mesmo se encontra titulado” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 13 de maio de 2021, no processo 2215/16.0T8OER-A.L1.S3).
O que foi dado como provado na ação de impugnação pauliana consta do acórdão em que fiquei vencida, sendo de salientar a entrega de cheques pela ora executada e o empréstimo subjacente a essa entrega.
Quanto ao que ficou reconhecido, é de salientar que da fundamentação da sentença proferida na ação de impugnação pauliana consta o seguinte:
“A existência de um crédito dos autores, e anterior ao acto impugnado, não sofre nenhuma dúvida no caso presente - factos n°s 1, 2, 3, 4 e 12.
Esta acção não visa obter a condenação da ré no pagamento das quantias em dívida, pelo que se dispensam as operações tendentes ao seu cálculo, sendo certo que o seu montante resulta sem grande margem para dúvida dos factos provados, pela mera soma dos valores dos cheques indicados sob o n.° 2.”
A exequente juntou com o requerimento executivo certidão judicial da qual constam os cheques que foram juntos à ação de impugnação pauliana.
Entre esses cheques, há cheques emitidos pela ora executada, nenhum deles apresentado a pagamento e alguns deles sem data.
Resulta do art. 703º al. c) do C.P.C. que são títulos executivos “os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.
Os factos dados como provados na ação de impugnação pauliana foram reproduzidos no requerimento executivo.
Assim, não se verifica “a manifesta falta ou insuficiência do título” prevista nos artigos invocados pelo tribunal recorrido como fundamento para a extinção da execução: arts. 734º nº 1 e 726º nº 2 al. a) do C.P.C.
No acórdão em que fiquei vencida, foi defendido que “ainda que, hipoteticamente, se entendesse existir esse título a execução não poderia, ainda assim, prosseguir contra a executada” por esta carecer de «legitimidade para ser demandada em execução que visa apenas a penhora de um bem alienado a terceiro e cuja execução foi “autorizada” na acção de impugnação pauliana».
A questão da ilegitimidade da executada não foi objeto de apreciação na decisão recorrida e nada tem a ver com o fundamento pelo qual o tribunal recorrido rejeitou a execução, pelo que, no meu entender, não deveria ter sido conhecida pela Relação.
A executada tem no título executivo a posição de devedora e o facto de os exequentes pretenderem a execução de bem de terceiro não significa que a devedora não possa ser demandada (cf. arts. 53º nº 1 e 54º nºs 2 e 3 do C.P.C.).
Não poder ser penhorado o bem indicado pelos exequentes por ser bem de terceiro e este não ter sido demandado (arts. 818º do C.C. e 735º nº 2 do C.P.C.) não é fundamento para rejeitar a execução, mas apenas para "rejeitar" essa indicação, podendo a execução prosseguir com as diligências que o agente de execução considere úteis à identificação ou localização de bens da executada (art. 749º do C.P.C.).
Por último, importa referir que, apesar do tribunal recorrido ter afirmado que “os 3º (João Carlos) e 4ª (Maria Carmo) exequentes não foram parte (AA.) na acção que originou o título apresentado”, não é isso que resulta da informação junta a 27 de junho de 2022.
Pelo exposto, julgaria procedente o recurso e revogaria a decisão recorrida.
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Maria do Céu Silva
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[1] Tenhamos presente que a impugnação pauliana não conduz à invalidade do acto transmissivo, ele produz o seu efeito típico, o acto de disposição é em si mesmo válido.
O que se verifica é que a procedência da pauliana acarreta a ineficácia relativa desse acto quanto ao credor impugnante: o bem não reentra no património do devedor alienante, nem mesmo para o limitado efeito de ser aí executado pelo credor que impugnou procedentemente o acto, o que se permite é que o credor impugnante afecte a esfera patrimonial do terceiro de forma a satisfazer o seu crédito ou a praticar os actos conservatórios autorizados por lei aos credores (nomeadamente o arresto).
É este o sentido do direito à restituição a que a lei alude: o terceiro adquirente é obrigado a restituir ao credor, na medida necessária à eliminação do prejuízo deste, aquilo que saiu do património do devedor em virtude do acto impugnado.