Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9822/22.0T8LSB.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: CITAÇÃO
NULIDADE
ARGUIÇÃO NA APELAÇÃO
CONVOLAÇÃO
DEVOLUÇÃO AO JUIZ DO PROCESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Embora a nulidade por falta de citação possa ser invocada a todo o tempo (Art.º 198º, nº 2 do CPC), quando o Réu tome conhecimento dos factos que a sustentam, deve suscitar tal vício mediante a dedução de incidente de arguição de nulidades perante o tribunal de 1ª instância.
2. Se, ao invés, o Réu invoca a nulidade em via recurso de apelação interposto da sentença, ocorre erro no meio processual (Art.º 193º, nº 3 do CPC).
3. Tal erro pode e deve ser sanado pelo Tribunal da Relação, determinando-se a convolação do recurso de apelação em incidente de arguição de nulidades e a baixa do processo à 1ª instância, para que tal incidente seja ali apreciado e decidido (Art.º 193º, nº 3 do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
A… – Administração e Comércio Unipessoal, Lda., intentou a presente ação de condenação, em processo declarativo comum, contra B, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe €102.500,00, por falta de pagamento de rendas, e €23.372,81, a título de juros de mora, vencidos à taxa legal de 7% e vincendos, até integral pagamento.
Alegou, para tanto, ter celebrado com a R., em 13 de Julho de 2018, um contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais, com início em 1 de Agosto de 2018, pelo prazo de 10 anos, renovável automaticamente no seu termo por iguais e sucessivos períodos, salvo oposição à renovação por uma das partes, relativo ao imóvel, sito na Avenida …, cave direita, com entrada pelo nº … Lisboa.
Ficou acordado o pagamento de uma renda mensal inicial no valor de €2.500,00, em contrapartida do espaço cedido, valor sujeito a atualizações anuais por um período máximo de três anos, findo o qual a renda se manteria inalterada pelo valor de €2.900,00.
Na data da assinatura do contrato a R. pagou à A. a quantia de €7.500,00 referente a caução (€2.500,00) e a dois meses de renda – Setembro e Outubro de 2018 (€5.000,00).
Estabeleceu-se ainda, no ponto 6. da cláusula quarta do referido contrato, que a R. ficava isenta do pagamento das rendas relativas à segunda quinzena de Julho (€1.250,00) e mês de Agosto (€2.500,00) de 2018, mediante realização de obras/benfeitorias necessárias no locado (período de carência).
Contudo, a R. não realizou obras, limitou-se a manter o espaço fechado, e sem pagar as rendas a partir de Outubro de 2018, tendo a A. tentado contactar diversas vezes a R. e interpelá-la para pagar as rendas, sem qualquer resultado.
Mais alega que a representante da A. apenas recebeu as chaves do imóvel em Dezembro de 2018.
Conclui, assim, pela resolução do contrato de arrendamento pelo arrendatário, com a entrega das chaves, mas sem respeito pelo decorrer de um terço do prazo de duração inicial do contrato, nos termos do Art.º 1098.º n.º 3 ex vi Art.º 1110.º n.º 1, ambos do C.C., e sem respeito pelo aviso prévio de 120 dias, ao abrigo do Art.º 1098.º n.º 3 a) do C.C., razão pela qual lhe são devidos os montantes peticionados.
Foi indicado pela A., na sua petição inicial, que a R. teria domicílio profissional na “R….M…”, sita na Rua …, nº 19 B, …, Odivelas. Tendo sido para essa morada que foi remetida carta registada com aviso de receção, com vista à sua citação, tendo o respetivo aviso de receção sido assinado por “MS” a 26/4/2022 (cfr. “Aviso de Receção” de 28-04-2022 – Ref.ª n.º 32398599 – p.e.) e nessa sequência sido cumprida pela Secção o disposto no Art.º 233.º do C.P.C. (cfr. “Not artº 233º CPC c/fotocópia A/R.” de 29-04-2022 – Ref.ª n.º 415322919 – p.e.).
Em face da falta de apresentação de contestação pela R., veio a ser proferida sentença a 24 de junho de 2022 (cfr. “Sentença” de 24-06-2022 – Ref.ª n.º 416657833 – p.e.), nos termos da qual a ação foi julgada procedente e, em consequência, a R. foi condenada a pagar à A. a quantia global de €102.500,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa de 7% ao ano, contados desde a data em que era devida cada uma das rendas, até efetivo pagamento.
Essa sentença foi notificada à R., de novo para a mesma morada tida como seu domicílio profissional, cita em “R…M… - Rua …, Nº 19 B … Odivelas” (cfr. “Not da sentença” de 27-06-2022 – Ref.ª n.º 417075516 – p.e.).
Entretanto, veio a dar entrada em juízo, a 13 de julho de 2022, um requerimento da “O… – Unipessoal, Lda.” Nos termos do qual se dizia: «Rebemos a carta que se remete juntamente com esta carta, dirigida a AR – Dom Profissional R…M…. Como se trata duma agência com cerca de 100 consultores, a coordenadora aceitou a mesma. Só que, não existe nenhum elemento do staff ou consultores com tal nome. Pelo que se envia a mesma». (cfr. “Requerimento” de 13-07-2022 – Ref.ª n.º 33116959 – p.e.).
Por despacho de 23 de setembro de 2022 (Ref.ª n.º 418983865 – p.e.) determinou-se que se procedesse à pesquisa nas bases de dados com vista a obter informação sobre a morada da R..
Na informação da base de dados de 26/9/2022 (Ref.ª n.º 419076407 – p.e.) consta como morada a Rua … n.º 27, Pinheiro de Loures]
Na informação da base de dados de 26/9/2022 (Ref.ª 419076407 – p.e.), consta como morada a Rua … n.º 22, … Odivelas).
Logo de seguida, veio a R. apresentar recurso de apelação da sentença (cfr. “Alegações” de 25-10-2022 – Ref.ª n.º 33967236 – p.e.), apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
1. Por sentença datada de 24 de Junho de 2022, foi a Recorrente condenada ao pagamento da quantia de €102.500,00 (cento e dois mil e quinhentos euros) acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa de 7% ao ano, contados desde a data em que era devida cada uma das rendas, até efetivo pagamento.
2. A Recorrente não concorda com a condenação aplicada, pois considera, com o devido respeito, que o Tribunal que proferiu a referida sentença, não considerou todas as condições a que a lei manda atender no caso da falta de citação.
3. A Recorrente considera que a condenação não deveria ter sido proferida, dado que a ora Recorrente nunca teve conhecimento que os presentes autos estavam a correr termos.
4. A referida situação deveria ter sido considerada pelo tribunal a quo.
5. A condenação aplicada pelo Tribunal de 1ª instância foi demasiadamente severa, pois a Recorrente nem sequer teve a oportunidade de apresentar defesa e a respetiva prova.
6. De acordo com o artigo 188.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil “1- Há falta de citação: …. e) quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável”.
7. Ora, conforme mencionado supra, a Recorrente nunca teve conhecimento dos presentes autos, pois não foi citada da Petição Inicial, nem recebeu qualquer outra notificação acerca do presente processo. Pelo que, não fazia a menor ideia que este estava a correr termos.
8. Desde o dia 15 de Janeiro de 2020 que a Recorrente tem domicílio profissional no mesmo local, a saber: RUA … N.º 22, … ODIVELAS – domicílio profissional visível em qualquer pesquisa na Ordem dos Advogados desde tal altura!
9. O que é sabido por parte da Mandatária, representante da Autora e bem assim, do seu Legal Representante, também ele Advogado!
10. NUNCA A RECORRENTE RECEBEU QUALQUER CITAÇÃO, NOTIFICAÇÃO OU INTERPELAÇÃO PARA TAL MORADA!
11. O mesmo se diga em relação ao domicílio fiscal da Recorrente – pois também aqui nunca foi interpelada, notificada ou citada!
12. Ora, como poderão V. Exas. verificar a Ré, ora Recorrente, apenas recebeu no seu domicílio profissional a SENTENÇA CONDENATÓRIA! O que aconteceu ao demais processado? Para onde foi remetido?
13. Conforme se escreveu no Sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10-07-2018, referente ao processo n.º 4353/17.3T8BRG-A.G1: “I – São requisitos cumulativos do justo impedimento a não imputabilidade do evento à parte ou aos seus representantes ou mandatários e a consequente impossibilidade de praticar o ato em tempo.”, “III – A falta de citação a que alude a alínea e) do n.º 1 do artigo 188.º do Código de Processo Civil é necessário que se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato e que essa falta de conhecimento não lhe é imputável, permitindo-se ao citando demonstrar que não chegou a ter conhecimento da citação antes do termo do prazo da defesa”.
14. Diversos Tribunais da Relação Portugueses, demonstram que a falta de citação deve ser arguida assim que o citando tenha a 1.ª intervenção no processo.
15. O presente Recurso é a 1.ª intervenção da Ré/Recorrente no processo, dado que, nunca teve conhecimento que o mesmo corria termos.
16. A Ré disponibiliza-se à prestação de uma caução no valor de €1.000,00 (mil euros), não conseguindo disponibilizar um valor superior, dado que o seu agregado familiar é monoparental.
17. A Ré tem efetivamente diversas dificuldades financeiras, pois tem três filhos a seu cargo, 365 dias por ano, não podendo, muitas vezes, trabalhar fora do horário de expediente, pois tem de cuidar dos menores e não tem quem a auxilie neste sentido.
18. Por esse motivo, para Recorrer da Sentença proferida, requereu Proteção Jurídica.
19. Assim, não tem possibilidade de prestar uma caução superior.
20. Todavia, a Ré disponibiliza-se para recorrer a um crédito bancário, caso V. Exa. entenda que o valor da Caução é reduzido.
21. Contudo, ressalva que, valores superiores verificar-se-iam INJUSTOS, dado que, a Recorrente considera que os valores peticionados pela Autora não são devidos.
22. Todavia, todas essas questões serão abordadas e provadas pela Ré/Recorrente, assim que V. Exas. decidirem pela descida dos presentes autos, para que a Ré apresente a devida defesa e prova, visto que não o pode fazer em sede de Recurso.
23. Pelo exposto, face ao supra referido, entendemos que a decisão recorrida Decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância, merece a devida apreciação e reconhecimento por Vossas Excelências e bem assim, se dignem declarar, procedente o presente recurso e determinem a descida dos autos, para que a Ré possa apresentar defesa e a devida prova.
Pede assim que seja determinada a suspensão do processo, com a devida prestação de caução e a descida dos autos, para a apresentação de defesa e prova, pela R..
Notificado destas alegações de recurso, a A. entendeu não apresentar contra-alegações, mas sim responder à pretensão nos seguintes termos:
«1. Salvo melhor opinião, a forma adequada da Ré reagir e defender a sua pretensão seria através de reclamação ao abrigo do artigo 196º, 2ª p. do Código de Processo Civil, pelo que o recurso interposto pela Ré não deverá ser admitido.
«2. Consequentemente, a Autora não vem contra-alegar mas requerer a V. Exa. O seguinte:
«3. A Ré vem juntar aos presentes autos alegações de recurso em 25.10.2022, alegando, em síntese, que não foi regularmente citada da petição inicial interposta pela Autora.
«4. Ora, citação pessoal efetuada por carta registada com aviso de receção, nos termos do disposto no nº 1 do art. 230º do Código de Processo Civil (doravante designado por CPC), considera-se feita no dia em que se mostre assinado o aviso de receção e tem-se por efetuada na própria pessoa do citando, mesmo quando o aviso de receção haja sido assinado por terceiro, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário, ou seja, que o destinatário teve oportuno conhecimento dos elementos que lhe foram deixados.
«5. Cabia então à Ré ilidir a presunção de que a petição inicial lhe foi entregue oportunamente.
«6. No caso em apreço, porém, a Ré não alegou nem requereu a prova de quaisquer factos que demonstrem que não recebeu a carta em questão por motivo que não lhe é imputável, não tendo juntado qualquer documento ou arrolado qualquer testemunha.
«7. A Ré limitou-se a alegar factos sem apresentar qualquer prova para fundamentar a sua alegação, logo não tendo a Ré ilidido a presunção do artigo 230º, nº 1, in fine do CPC, é de considerar que a citação se teve por efetuada na própria pessoa da Ré, ainda que o aviso de receção haja sido assinado por terceiro, de acordo com os artigos 225º, nº 4, 228º, nºs 2, 3 e 4, 230º, nº 1 ex vi artigo 246º, nº 1, todos do CPC.
«8. Pelo exposto, deve a citação considerar-se regularmente efetuada» (cfr. “Requerimento” de 30-11-2022 – Ref.ª n.º 34345935 -p.e.).
Nessa sequência, após chegar aos autos informação da Segurança Social sobre o indeferimento do benefício de apoio judiciário requerido pela R. e de terem sido cumpridas as obrigações tributárias em falta, vem a ser proferido despacho que admite o recurso interposto, mas condicionou a fixação do efeito suspensivo à dedução do incidente de prestação de caução (cfr. “Despacho” de 17-02-2023 – Ref.ª n.º 423277434 – p.e.).
Como o incidente de prestação de caução foi indeferido, por despacho de 21 de abril de 2023 (Ref.ª n.º 425216571 – p.e.), foi indeferido à requerida fixação do efeito suspensivo ao recurso e ordenada a subida dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa.
Por despacho do Relator de 5/6/2023 (Ref.ª n.º 20128547 - p.e.), foi determinado, ao abrigo do Art. 3.º n.º 3 do C.P.C. e atento o disposto no Art.º 652.º n.º 1 al. d) do C.P.C., conceder às partes o prazo de 10 dias para discutirem a possibilidade de, eventualmente, se proceder à convolação das alegações de recurso em incidente de reclamação de nulidade de citação, não tendo qualquer das partes tomado qualquer posição sobre essa questão.
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art.º 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir serão a de saber se houve falta e nulidade de citação, o que determinaria, em consequência, a nulidade da sentença recorrida, ou a configurar-se a possibilidade de conversão das alegações de recurso em incidente de reclamação de nulidade por falta de citação.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso, por razões que se evidenciam do relatório, não se debruçou sobre a questão da nulidade da citação, sendo que os factos dados por provados nessa sentença irrelevam para o concreto objeto da presente apelação.
Em todo o caso, para a questão da nulidade da citação, que concretamente é suscitada, releva a sequência de atos que se mostram sumariados no relatório do presente acórdão, que se mostram documentados nos autos, sendo com base neles que importará decidir a presente apelação.
Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Conforme decorre do relatório, a A. intentou a presente ação de condenação indicando que a R. teria domicílio profissional na “R…M…”, sita na Rua …, nº 19 B, …, Odivelas.
Foi para essa morada que foi remetida a carta para citação da R., tendo o respetivo aviso de receção sido assinado a 26/4/2022, por terceira pessoa, que assinou com o nome “MS” (cfr. “Aviso de Receção” de 28-04-2022 – Ref.ª n.º 32398599 – p.e.).
Evidentemente que, tendo a citação sido rececionada por pessoa diversa do citando, a secretaria procedeu ao cumprimento do disposto no Art.º 233.º do C.P.C., remetendo carta registada para a mesma morada, dando-lhe conta da data e modo por que o ato se considera realizado, do prazo para oferecer a defesa e as cominações aplicáveis à falta desta, o destino dado ao duplicado e a identidade da pessoa em quem a citação foi realizada (cfr. “Not art.º 233º CPC c/fotocópia A/R.” de 29-04-2022 – Ref.ª n.º 415322919 – p.e.).
A citação assim operada seria, em princípio, perfeitamente válida, apesar de a carta ter sido entregue a terceira pessoa, que se encontraria no identificado domicílio profissional da R., na medida em que essa pessoa terá declarado que se encontrava em condições de a entregar prontamente à citanda (cfr. Art.º 228.º n.º 2 do C.P.C.).
Em consequência, nada nos autos, até aí, indiciava que a citação não tivesse sido realizada de forma válida e eficaz, sendo de aplicar apenas a dilação prevista no Art.º 245.º n.º 1 al. a) do C.P.C., por força da circunstância de a citação ter sido realizada em pessoa diversa da R..
Por isso, em face da falta de contestação, veio a ser proferida sentença aqui recorrida, que julgou a ação procedente.
Essa sentença foi notificada à R., na mesma morada, tida nos autos como sendo o seu domicílio profissional (cfr. “Not da sentença” de 27-06-2022 – Ref.ª n.º 417075516 – p.e.).
A conclusão sobre a eventual ineficácia da citação só veio a ser posta em causa no dia 13 de julho de 2022, quando alguém, em nome da pessoa que assinou o aviso de receção, vem informar os autos que a R. não seria uma das 100 colaboradoras da agência que funcionava nessa morada, devolvendo por isso a carta (cfr. “Requerimento” de 13-07-2022 – Ref.ª n.º 33116959 – p.e.).
Entretanto, por iniciativa do Tribunal a quo (cfr. “Despacho” de 23-09-2023 - Ref.ª n.º 418983865 - p.e.), com recurso às bases de dados, apuraram-se duas moradas diferentes da indicada na petição inicial, mais propriamente a Rua … n.º 27, em Pinheiro de Loures, e a Rua … n.º 22, … Odivelas.
Sucede que, a R., na primeira intervenção que faz no processo, decide recorrer de imediato da sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa, com fundamento na nulidade por falta de citação, sem reclamar previamente dessa nulidade perante o Tribunal onde o alegado vício ocorreu.
A falta de citação invocada alegadamente decorreu da circunstância de a R. não ter tido conhecimento do ato, nos termos do Art.º 188.º n.º 1 al. e) do C.P.C., porque nunca teve domicílio profissional na morada indicada na petição inicial e a pessoa que terá recebido a carta de citação não lhe transmitiu essa ocorrência, não sendo por isso imputável à R. essa falha.
A A., que, como vimos, optou por não contra-alegar, mas sim responder à “questão incidental” da falta de citação, veio chamar a atenção para o facto do meio processual adequado para vir a reconhecer esse vício seria a reclamação da nulidade e não o recurso. Sem prejuízo, exerceu o seu direito de defesa à alegada nulidade, pugnando pelo julgamento da sua improcedência.
Efetivamente, a falta de citação por alegada violação do Art.º 188.º n.º 1 al. e) do C.P.C. traduz a invocação duma questão incidental que implica prévia reclamação perante o tribunal a quo (Art.º 196.º, 2.ª parte do C.P.C.). Reclamação essa que pode implicar, a produção de prova em 1.ª instância, nomeadamente sobre o alegado facto da ausência de comunicação do ato judicial à citanda por parte da pessoa que recebeu a citação, o que impunha ao arguente o ónus a apresentação de prova, fosse de natureza documental, fosse testemunhal, ou outra, para prova desse facto (Art.º 293.º n.º 1 o C.P.C.).
Na verdade, já existem nos autos alguns elementos documentais que poderiam levar à conclusão de que a R. pode muito bem nunca ter sido informada de que contra si foi instaurada a presente ação e para exercer o direito de defesa, que é a finalidade típica do ato formal de citação (cfr. Art.º 219.º n.º 1 do C.P.C.).
Em todo o caso, estamos claramente perante vícios na tramitação do processo, por omissão de formalidade essencial que, alegadamente, não permitiu que a R., sem culpa, chegasse ao conhecimento do ato de citação.
Esse vício não é de conhecimento oficioso (cfr. Art.º 196.º 2.ª parte, do C.P.C.), desde logo, porque seria impossível ao tribunal adivinhar, ou sequer admitir, a possibilidade de que a pessoa que recebeu a citação, declarando que a faria chegar com brevidade à citanda, afinal não pôde cumprir essa obrigação.
Consequentemente, esse vício teria de ser expressamente invocado pela pessoa interessada no cumprimento da formalidade omitida ou na repetição ou eliminação do ato (cfr. Art.º 197.º n.º 1 do C.P.C.).
Acresce que, nos termos do Art.º 195º n.º 1 do C.P.C., a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidades quando a lei o declare ou quanto a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Como referia Alberto dos Reis, a propósito do Art.º 201º, correspondente ao atual Art.º 195º do C.P.C.: «A nulidade só aparece quando se verifica um destes casos: a) quando a lei expressamente a decreta; b) quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa». No segundo caso — continua o mesmo Autor — «é ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entende que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou decisão da causa» (in “Comentário ao Código de Processo Civil”, 2º Vol., pág. 484).
Sendo certo que a falta de citação, inevitavelmente, afetará sempre o exame da causa, porque põe em causa um dos princípios basilares do processo civil relativo à observância efetiva do contraditório ao longo de todo o processo (cfr. Art.º 3.º n.º 3 do C.P.C.).
Sem prejuízo, como já referido, a nulidade tem de ser arguida pela parte através de reclamação (cfr. Art.º 196º do C.P.C.). Logo no momento em que ocorrer o vício, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário. Não estando presente, como era o caso, aplica-se o prazo geral de arguição de dez dias, o qual conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que só então tomou conhecimento da nulidade ou dela pode conhecer, agindo com a devida diligência (n.º 1 do Art.º 199º e Art.º 149º n.º 1 do C.P.C.).
Na verdade, mantém-se a atualidade e pertinência do brocardo segundo o qual “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”.
Conforme explicava Alberto dos Reis (in Ob. Loc. Cit., pág. 507): «a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.»
Explicitando melhor esta situação, Luís Mendonça e Henrique Antunes (in “Dos Recursos”, Quid Juris, pág. 52) escrevem: «A reclamação por nulidade e o recurso articulam-se (…) de harmonia com o princípio da subsidiariedade: a admissibilidade do recurso está na dependência da dedução prévia da reclamação.
Assim, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade – e não a nulidade ela mesma. A perda do direito à impugnação por via da reclamação – caducidade, renúncia, etc. – importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário.
Isto só não será assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades – exceções – que sejam oficiosamente cognoscíveis.»
Também Teixeira de Sousa (in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, pág. 372) afirma que «(…) quando a reclamação for admissível, não o pode ser o recurso ordinário, ou seja, esses meios de impugnação não podem ser concorrentes; - se a reclamação for admissível e a parte não impugnar a decisão através dela, em regra está precludida a possibilidade de recorrer dessa mesma decisão.» (No mesmo sentido: Acórdão do T.R.L. de 4/6/2009 – Proc. n.º 67/00 – Relatora: Ondina Alves, disponível em www.dgsi.pt).
Também Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, pág. 162), entende que: «As nulidades que não se reconduzam a alguma das situações previstas no Art.º 615º, al.s b) a e), estão sujeitas a um regime de arguição que é incompatível com a sua invocação apenas no recurso a interpor da decisão final. A impugnação que neste recurso eventualmente se possa enxertar deve restringir-se às decisões que tenham sido proferidas sobre arguições oportunamente deduzidas com base na omissão de certo ato, na prática de outro que a lei não admitia ou na prática irregular de ato que a lei previa».
Em suma, a decisão proferida sobre a arguição de nulidade é que é suscetível de recurso.
Daqui resulta que cabia à Recorrente, no momento próprio, arguir a nulidade de citação ou a falta de citação perante o Tribunal titular do processo em que o vício ocorreu, o que objetivamente não fez.
Ainda assim, pode defender-se ainda que o vício não se sanou.
Conforme acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, desta Secção, de 14 de julho de 2020 (Proc. n.º 574/19.2T8LRS.L1 – Relator: Diogo Ravara, disponível para consulta em www.dgsi.pt), decidiu-se o seguinte, conforme sumário: «I- Embora a nulidade decorrente da falta de citação possa ser invocada a todo o tempo (Art.º 198º, nº 2 do CPC), quando o réu tome conhecimento dos factos que a sustentam antes de ocorrer o trânsito em julgado da sentença, deve suscitar tal vício mediante a dedução de incidente de arguição de nulidades perante o Tribunal de 1ª instância. II- Se, ao invés de proceder nos termos referidos em I-, o réu invocar a nulidade ali mencionada em recurso de apelação interposto da sentença, ocorre erro no meio processual (Art.º 193º, nº 3 do CPC). III- Tal erro pode e deve ser sanado pelo Tribunal da Relação, determinando-se a convolação do recurso de apelação em incidente de arguição de nulidades, e determinando-se a baixa do processo à 1ª instância, para que tal incidente seja ali apreciado e decidido (Art.º 193º, nº 3 do CPC)».
Esta solução afigura-se-nos particularmente adequada ao caso, porquanto existem indícios nos autos de que pode haver nulidade por falta de citação, nos termos do Art.º 188.º n.º 1 al. e) do C.P.C..
Acresce que, esse vício até poderia ser fundamento de recurso extraordinário de revisão (cfr. Art.º 696.º al. e) do C.P.C.), pondo-se em causa a eficácia do caso julgado “a posteriori”.
Não se diga que o poder jurisdicional se mostra esgotado com a prolação da sentença (cfr. Art.º 613.º n.º 1 do C.P.C.), porque em causa está uma nulidade pretérita, não apreciada, que inquina necessariamente o ato decisório subsequente, permitindo ao tribunal suprir esse vício, mesmo que depois de proferida a sentença (cfr. Art.º 613.º n.º 2 do C.P.C.) - (vide: Alberto dos Reis in “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 2.º, págs. 513 a 514).
Considerando que as alegações de recurso assentam na invocação de factos, que de algum modo já se mostram indiciados nos autos, nos quais se sustentam uma invocada nulidade por falta de citação, o que é feito pela R. na primeira intervenção que faz no processo, já depois de prolatada a sentença, verifica-se uma situação que pode ser configurada como erro no meio processual utilizado (cfr. Art.º 193.º n.º 3 do C.P.C.), podendo aproveitar-se o ato assim praticado, convolando o recurso de apelação em incidente de arguição de nulidade, que deverá baixar à 1.ª instância para ser apreciado em conformidade (cfr. Ac. do STJ de 14/12/2005 (Proc. n.º 04S4452 – Relator: Pinto Hespanhol); Ac. do TRP de 1/3/2010 (Proc. n.º 151/09.6TTGMD.P1 – Relatora: Paula Leal de Carvalho); e Ac. do TRE de 18/10/2012 (Proc. n.º 1027/11.2TTSTB.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
É neste sentido que, com fundamentação substancialmente diversa e chegando a uma solução que julgamos ser compaginável com a pretensão da Recorrente, procede a apelação, mas só de forma meramente indireta.
As custas serão pela Apelante, na estrita medida em que não há parte vencida, mas é aquela quem tira proveito do recurso (Art.º 527.º n.º 1 “in fine” do C.P.C.).
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, mediante a declaração de que existe erro na qualificação do meio processual, convolando o recurso de apelação em incidente de arguição de nulidade por falta de citação da R., determinando a remessa dos autos para o Tribunal Recorrido para que aí se aprecie o incidente.
- Custas pela Apelante (Art.º 527º n.º 1 “in fine” do C.P.C.).
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Lisboa, 4 de julho de 2023
Carlos Oliveira
Luís Pires de Sousa
Diogo Ravara