Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1384/08.8TVLSB.L1-7
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: ACTO MÉDICO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS MORAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Por força do contrato de prestação de serviços, o médico obriga-se a prestar ao doente a assistência médica necessária, empregando os conhecimentos e técnicas disponíveis, respeitando as leges artis, tendo em vista tratar (curar) o doente e diminuir-lhe o sofrimento.
Além disso, o médico, está ainda obrigado a vigiar/acompanhar o doente, no pós-operatório, prestando-lhe todos os cuidados que o seu estado exija, bem como todas as informações sobre o seu estado de saúde.
2. Ainda que se entenda que a obrigação a que o médico está adstrito é uma obrigação de meios, tendo presente a especial dignidade dos interesses afectados pelo (in)cumprimento, o desequilíbrio (estrutural) da relação estabelecida entre o médico e o doente, a particular dificuldade na efectivação da tutela de tais interesses, à luz das preocupações crescentes do legislador de favorecimento dos lesados, enquanto parte contratual mais débil, impende sobre o prestador de serviços médicos uma presunção de culpa, que lhe cumpre elidir, se pretender furtar-se à obrigação de indemnizar, por falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso (nos termos gerias da responsabilidade contratual, como decorre do art. 799º, nº 1, do CC).
3. Consequentemente, o ónus da prova da diligência recairá sobre o médico, cabendo ao lesado fazer a prova da existência do vínculo contratual e dos factos demonstrativos do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

1. A instaurou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra B, devidamente identificados nos autos, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe, a título de indemnização:

- € 70.000,00, sendo € 2.500.00, a título de danos patrimoniais, e € 67.500.00, a título de danos morais;

- A quantia que se apurar, em liquidação de sentença, a título de indemnização por danos futuros.

Para tanto alegou, em síntese, que:

Na sequência de uma intervenção cirúrgica a que foi sujeita, em 28/4/2005, praticada pelo réu, este cortou-lhe o nervo mentoneano, não o ligando de imediato, tendo, em consequência a autora passado a sofrer diversas dores, dificuldade em falar e comer, insensibilidade do lábio inferior, situação que se mantém.

Em face disso, a autora faltou ao trabalho, por vários períodos, e sofreu grande desgosto e abalo psicológico, por não poder falar e comer «normalmente», o que a leva a isolar-se em casa e a não querer conviver com outras pessoas.

2. A acção foi contestada, tendo o réu, em síntese, alegado ter observado todos os procedimentos adequados à intervenção a que a autora foi submetida, negando que as sequelas de que a mesma se queixa sejam consequência da intervenção. Mais alega que a autora tinha conhecimento da possibilidade de laceração do nervo mentoneano e, apesar disso, deu consentimento para a realização da intervenção.

3. Foi citado o “Instituto da Segurança Social” que deduziu pedido de reembolso no montante de € 1.323,08, acrescido de juros de mora, desde a notificação da reclamação, até integral pagamento, correspondente aos pagamentos efectuados à autora, a título de compensação pela perda de remuneração, enquanto esteve doente.

4. O réu contestou o pedido deduzido pelo ISS.

5. A final, realizado o julgamento foi proferida sentença que condenou o réu:

- A pagar à autora a quantia de € 30.000,00, a título de danos morais;

- A pagar ao ISS a quantia de € 1.323,08, acrescidos de juros de mora, à taxa de 4%, ao ano, vencidos desde a notificação do pedido de reembolso e vincendos até integral pagamento.

6. Inconformado, apela o réu, o qual, em conclusão, diz:

Não existem provas conclusivas de que o réu tenha efectuado o corte no nervo da autora;

Mas mesmo que se tenha verificado esse corte, esse acto médico foi previamente consentido e constituiu um «mal menor» face à patologia da autora;

O réu respeitou todas as regras médicas para este tipo de intervenções, acompanhou a doente, inclusive no post-operatório, receitou-lhe medicamentos e ofereceu fisioterapia, para a perda de sensibilidade sentida pela autora, na face;

A sentença erra ao estabelecer a condenação do recorrente em indemnização para ressarcimento de danos não patrimoniais, no montante de EUR 30.000,00.

O réu não pode ser responsabilizado pela quantia que o ISS pagou à autora, dois anos depois da intervenção cirúrgica, realizada pelo réu. Além disso, a segunda intervenção ocorreu por conta e risco da autora e era cientificamente desaconselhada.

Não havendo prova de negligência, deve o réu ser absolvido.

7. Nas contra-alegações, a autora pede a rejeição do recurso de facto, uma vez que o apelante não terá dado cumprimento ao disposto no art. 685º-B, nº 1, do CPC; no mais, pugna pela manutenção da sentença recorrida, por se considerar que a omissão praticada pelo apelante (ao não ter procedido à cirurgia de reparação do corte do nervo mentoneano) causou danos não patrimoniais à apelada, traduzidos em dores e falta de sensibilidade do rosto que, pela sua gravidade, merecem ser compensados.

Também o ISS contra-alegou pedindo a rejeição do recurso de facto.

8. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

9. Está provado que:

No dia 28.04.05 o réu submeteu a autora a uma intervenção cirúrgica.

Foi pago pelo “ISS, IP”, subsídio de doença à autora no período de 20.12.06 a 19.02.07, no valor de EUR 1.323,08.

No ano de 2005, a autora efectuou na clínica “C” desvitalização do dente n° 4.6. no maxilar inferior.

Passado algum tempo esse dente rachou.

Em consequência de tal facto, a autora voltou à clínica “C”, onde lhe foi sugerida a extracção do dente e colocação de um implante.

Para tanto, começou o réu por fazer um RX panorâmico aos maxilares da autora.

Após observação de RX, o réu detectou uma imagem suspeita no dente 4.5. da autora, do que a informou, dizendo-lhe também que a mesma teria que ser retirada, para o que ficou marcado o dia 28.04.05.

A autora compareceu na data designada na clínica tendo o réu intervencionado cirurgicamente a autora.

O acto cirúrgico demorou cerca de 2 horas e a autora foi anestesiada por duas/três vezes.

Na sequência da intervenção cirúrgica na data mencionada, a autora ficou com a sensação de lábio descaído e de boca ao lado e nos dias imediatamente seguintes com uma parte da face negra.

A autora perdeu a sensibilidade numa pequena área do mentoneano direito, cerca de l cm2, ao nível do lábio, o que lhe provocou dificuldade em falar e em comer, caindo-lhe a comida pelo canto direito da boca.

Pelo menos na clínica “C” a autora sujeitou-se a tratamentos relacionados com a perda de sensibilidade na região acima mencionada.

A autora passou, imediatamente, após tal intervenção efectuada pelo réu a sentir muitas dores.

A autora regressou à clínica “C” e o réu designou as dores sentidas pela mesma como sendo «dores fantasma».

Passaram-se meses e até anos e a autora teria padecido de dores de que se queixou ao réu e que foram variando de intensidade ao longo do tempo.

A autora frequentou a Clínica da Dor do Instituto Português de Oncologia.

A autora não chegou a fazer o implante que o réu havia sugerido para o dente 4.6..

Em face da insensibilidade e dores de que a autora se continuava a queixar, o réu receitou-lhe sessões de fisioterapia baseada em massagens e ultra-sons feitas na própria clínica “C”.

O tratamento indicado pelo réu e seguido pela autora não teve quaisquer efeitos positivos.

A autora continuou a ter dor e insensibilidade.

O réu falou à autora em consultar um médico do Hospital ….

A autora marcou e compareceu no Hospital …., numa consulta de especialidade maxilo-facial com o Dr. D.

Essa consulta realizou-se em 15.11.06, tendo, na ocasião, o Dr. D, após observação da doente, concluído que teria que efectuar uma intervenção cirúrgica para melhor ver e analisar a razão de ser das queixas da autora.

Nessa mesma consulta, o Dr. D, face à grande dor que nessa altura a autora sentia, imediatamente lhe aplicou uma injecção de corticóides.

A autora foi consultada, ainda que modo informal, pelo Dr. E médico de especialidade maxilo-facial do Hospital….

No dia 20.12.06 a autora, sob anestesia geral, foi operada pelo Dr. D e sua equipa.

O Dr. D, no pós-operatório, informou os familiares que durante a operação verificou que o nervo mentoneano tinha sido lacerado.

O réu cortou o nervo mentoneano, mas não o ligou de imediato.

Nas extremidades resultantes do corte feito pelo réu surgiram granulomas de que foi feita biopsia excicional.

O Dr. D teve que cortar um pouco mais, devido ao estado agravado do nervo pelo ano e meio que entretanto decorrera, a fim de o poder ligar: a chamada neurorrafia do nervo mentoneano.

O Dr. D concluiu que seria muito difícil a regeneração do nervo.

Desde a operação de 20.12.06 a autora tem sentido um quadro irregular de dor.

O resultado anátomo-patológico da mencionada biópsia aos granulomas das extremidades do nervo cortado foi de neuroma traumático.

O corte do nervo mentoneano fez com que os topos do nervo não se encontrassem um ao outro, levando ao crescimento de granulomas e tornando-se uma situação inflamatória.

Após o corte do nervo mentoneano, a autora passou a sentir dor e falta de sensibilidade, tendo a sensação de lábio descaído e dificuldade em comer e falar.

As dores, a insensibilidade sentida, a dificuldade em falar e em comer têm provocado desgosto e abalo psicológico na autora, tendo até vergonha em conviver.

O que a tem levado cada vez mais a isolar-se em casa e deixar de conviver com outras pessoas.

A situação perdura desde a intervenção cirúrgica de 28.04.0.5.

Em 07.04.05, o réu, ao visualizar o RX panorâmico requisitado anteriormente para estudo prévio implantológico, detectou uma imagem suspeita, tendo realizado um RX periapical ao dente n.º 4.5..

Com o RX panorâmico, que abrange uma área muito maior, foi possível ao réu identificar uma imagem suspeita na área anexa ao apex (ponta da raiz) do dente 4.5. contiguamente ao dente 4.6..

O réu pediu uma segunda opinião e pesquisa bibliográfica à médica dentista, Drª F, colaboradora na clínica “C”, Master in Science Oral Medicine.

A neo-formação surgida na autora foi confirmada por resultado anátomo patológico da peça operatória que, pela raridade, foi revisto.

O réu explicou à autora, em momento anterior à cirurgia, que o nervo mentoneano podia ser atingido e,  no próprio dia da cirurgia, que podia haver perda de sensibilidade numa pequena região da cara.

A possível lesão da estrutura nervosa, o nervo mentoneano direito que é derivação terminal do nervo mandibular direito, ramo inferior do 5° par craniano nervo trigémeo, não origina alterações motoras da musculatura peribucal e jugal.

A lesão do nervo mentoneano não provoca lesões no centro neurológico da fala, localizado no hemisfério cerebral esquerdo.

A intervenção não afectou a coordenação neuromuscular do lado esquerdo nem do lado direito, circunscrevendo-se a perda de sensibilidade a cerca de 1 cm2.

As pequenas úlceras e aftas nunca foram verificadas clinicamente ou visualmente constatadas apesar de queixas da autora e cientificamente só poderão ser qualificadas de paraquinesias que levariam a autora a mordiscar o lábio.

Os tratamentos feitos na clínica, nomeadamente os de fisioterapia, foram aconselhados pelo réu que previamente consultou a fisioterapeuta, G, sobre os eventuais benefícios desde tipo de tratamento, que se pronunciou favoravelmente, apesar de a autora nesse tempo estar já a ser medicada com um neurotrópico, o Neurobion.

A seguir à cirurgia de 28.04.05 a autora deslocou-se à clínica para outros tratamentos.

O réu explicou à autora, aquando dos tratamentos com a fisioterapeuta G, a possibilidade da existência de dores fantasma.

A neurorrafia é uma cirurgia de difícil sucesso, sendo que as possibilidades de sucesso aumentam ou diminuem consoante o tempo que decorre desde a laceração do nervo, sendo tanto mais as hipóteses de sucesso quanto menor for o tempo que decorre entre a laceração e a neurrorafia.

As dores fantasma são a denominação vulgar do quadro clínico de dores após amputação de membros com a inerente descontinuidade dos nervos.

A autora foi submetida a consulta “dor grupo”, em que estão presentes em grupo de trabalho vários especialistas, nomeadamente anestesiologista, neurologista e psicólogo.

A autora foi tratada por sintomas de neuropatia, classificada como nevralgia atípica do mentoneano e de componente psicossomático, por eventual somatização.

A fisioterapia receitada deveu-se à circunscrita insensibilidade constatada e às dores referidas pela autora, e não à deformação da cara.

A autora foi submetida a uma intervenção cirúrgica para retirar uma neoformação que, para excisão total, é alargada e, nessa intervenção, foi lacerado o nervo mentoneano, dando origem a que nas pontas do nervo se desenvolvessem granulomas, que, após análise, se concluiu tratar-se de neuroma traumático.

A autora tinha conhecimento, por ter sido informada pelo réu, do risco de corte do nervo mentoneano e deu a sua concordância à intervenção cirúrgica, que se tornou necessária.

Após a intervenção cirúrgica de Dezembro  2006 a autora, durante algum tempo, deixou de referir dores.

O nervo mentoneano não é um nervo motor, mas sensitivo e a falta de sensibilidade em determinada região pode originar a sensação de descaimento do lábio e assim originar dificuldade em comer e em falar.

O réu realizou o estudo de diagnóstico diferencial e pediu uma segunda opinião de colega com master in oral medicine.

O réu avaliou o tipo, dimensão, localização da neoformação, ponderou riscos e benefícios da sua decisão, mas entendeu não ser necessário encaminhar a autora para a especialidade maxilo-facial.

A autora foi esclarecida de que a sua patologia correspondia a um tumor de origem benigna, mas que ainda assim poderia crescer.

A autora ficou ciente da patologia descrita no artigo 71° e consentiu na remoção do tumor mencionado.

Foi em consequência do acto médico-cirúrgico, praticado no dia 20.12.06, por motivo de baixa motivada por internamento, que o ISS pagou à autora as prestações pecuniárias referidas em B), dos factos assentes.


10. São as seguintes as questões de que cumpre conhecer:

- Da rejeição do recurso de facto;
- Da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil;
- Da responsabilidade do réu pelo pagamento ao ISS da quantia peticionada, por este organismo.

11. Da rejeição do recurso de facto

O réu/apelante, nas conclusões das alegações, limita-se a afirmar que «não existem provas conclusivas de que o réu tenha efectuado o corte no nervo da autora».

Ora, estabelece o art. 685º-B, do CPC que “quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida (e, caso a prova tenha sido gravada e seja possível a identificação precisa dos depoimentos, deve indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda).

No caso em apreço é manifesto que a matéria de facto não foi impugnada nos termos legalmente prescritos, pelo que se impõe – sem mais – a rejeição do recurso de facto.

12. Da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil

12.1. O réu pretende a revogação da sentença e a sua absolvição do pedido, alegando que respeitou todas as regras médicas para a intervenção a que a autora foi sujeita, que a acompanhou, inclusive no post-operatório, e lhe receitou medicamentos e fisioterapia, para a perda de sensibilidade na face, sentida pela autora.

Na sentença, o tribunal a quo considerou que o réu agiu com negligência, por não ter restaurado o nervo mentoneano, cortado durante a intervenção a que autora foi submetida, ou, pelo menos, encaminhado a doente para consulta de outra especialidade, onde pudesse ser feita a ligação daquele nervo (a designada neurorrafia).

Sendo este o objecto do recurso interposto (note-se que a autora não impugna a decisão), apenas desta matéria nos ocuparemos, deixando de lado a questão de saber se o réu respeitou (ou não) todos os procedimentos exigíveis pela boa técnica, ao cortar o nervo mentoneano durante a intervenção a que submeteu a autora.

Vejamos, pois.

12.2. Entre a autora e o réu foi celebrado um contrato de prestação de serviços (médicos)[1] a que se aplicam as disposições relativas ao mandato, com as necessárias adaptações, uma vez que se está perante uma modalidade de prestação de serviços que a lei não regula especialmente (arts 1154º e 1156º, do CC).[2]

Por força desse contrato, o réu obrigou-se a prestar à autora a assistência médica necessária, empregando os conhecimentos e técnicas disponíveis, respeitando as leges artis, tendo em vista tratar (curar) a doente e diminuir-lhe o sofrimento.

Além disso, o réu, enquanto médico, estava ainda obrigado a vigiar/acompanhar a autora, sua doente, no pós-operatório, prestando-lhe todos os cuidados que o seu estado exigisse, bem como todas as informações sobre o seu estado de saúde.[3]

Por sua vez, para que nasça a obrigação de indemnizar é necessário que o médico pratique um acto ilícito, culposo e adequado a causar danos ao doente.

Aplicando à responsabilidade civil por acto médico o regime geral da responsabilidade contratual, dir-se-ia, como decorre do art. 799º, nº 1, do CC, que impende sobre o prestador de serviços médicos uma presunção de culpa, que lhe cumpre elidir, se pretender furtar-se à obrigação de indemnizar, por falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso.

Porém,
no direito português[4], uma parte da doutrina[5] e da jurisprudência[6], adoptando a clássica distinção entre obrigação de meios e de resultado[7], considera que a presunção de culpa do devedor não tem – em regra – cabimento no âmbito da responsabilidade civil por acto médico, com o argumento de que a obrigação a que este se encontra vinculado é uma obrigação de meios, pois o médico estará (apenas) adstrito a prestar ao doente os melhores cuidados, em conformidade com as leges artis e os conhecimentos científicos actualizados e comprovados à data da intervenção, mas não a cura.

Assim, por força desta especificidade, tal como na responsabilidade extra-contratual, seria o credor que teria de provar em juízo a desconformidade entre a conduta do devedor e aquela que, em abstracto, proporcionaria o resultado pretendido.

Conscientes das dificuldades que esta posição representa para os lesados, as mais das vezes impossibilitados de fazer a prova cabal dos pressupostos da responsabilidade civil, alguns autores defendem que, muito embora caiba ao demandante o ónus da prova da violação da lex artis (ilicitude), no tocante à culpa, deve a mesma presumir-se, nos termos do art. 799º, do CC, cabendo ao médico o ónus da prova da falta de culpa, ou seja a prova de que, naquelas circunstâncias, não podia e não devia ter agido de maneira diferente (cf. André Dias Pereira, in O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente, Coimbra, 2004, 422 e ss.; Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, Responsabilidade Médica em Portugal, BMJ 332, 46 e Carlos Ferreira de Almeida – Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico, Direito da Saúde e Biomédica – 1996, AAFDL, pág.111).

Também Álvaro Gomes Rodrigues, Reflexões em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos, Revista Direito e Justiça, 2000, XIV, 182 e ss. e 209 admite a aplicação da presunção de culpa do devedor nos seguintes termos:

"Sendo o contrato médico um contrato de prestação de serviços, como a doutrina e a jurisprudência afirmam, o «resultado» a que alude a art. 1154º, do nosso diploma substantivo fundamental, parece dever considerar-se não a cura em si, mas os cuidados de saúde, já que o objecto do contrato de saúde não é a cura, mas a prestação de tais cuidados ou tratamentos.

Sendo assim, será de pensar se verdadeiramente se está ante uma obrigação de meios ou de resultado, tudo dependendo da deslocação do centro de gravidade da questão, ou seja, do próprio conceito de resultado no contrato de prestação de serviços que se estabelece entre o médico e o doente.

A outra nota a extrair é que, consagrando o art. 799º, nº 1, do C. Civil, uma presunção de culpa do devedor, caso se considere que a obrigação do mé­dico é uma obrigação de meios, sobre este recai o ónus de prova de que agiu com a diligência e perícia devidas, se se quiser eximir à sua responsabilidade, pois o resultado do seu trabalho intelectual e manual é o próprio tratamento e não a cura.”

(...)

"Cremos que no domínio da responsabilidade contratual não militam quaisquer razões de peso específicas, da responsabilidade médica, que abram uma brecha na presunção de culpa do devedor consagrada no nº1, do art. 799º, do C. Civil, quer se entenda que a obrigação contratual do médico é uma obrigação de meios, quer se considere que a mesma é uma obrigação de resultado.

O ónus da prova da diligência recairá sobre o médico, caso o lesado faça prova da existência do vínculo contratual e dos factos demonstrativos do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso.

Com isto em nada se está a agravar a posição processual do médico, que disporá de excelentes meios de prova no seu arquivo, na ficha clínica, no pro­cesso individual do doente, além do seu acervo de conhecimentos técnicos.

Por outro lado, tal posição tem o mérito de não dificultar substancialmente a posição do doente que, desde logo, está numa posição processual mais debilitada, pois não sendo, geralmente, técnico de medicina não dispõe de conhecimentos adequados e, doutra banda, não disporá dos registos necessários (e, possivelmente, da colaboração de outros médicos) para cabal demonstração da culpa do médico inadimplente."

Na jurisprudência, esta posição foi acolhida no Ac. do STJ de 17/12/2002, ITIJ, SJ200212170040576, de que foi relator o Juiz Conselheiro Afonso de Melo, nos seguintes termos:

“O médico, e é esta a actividade profissional que importa considerar aqui, põe à disposição do cliente a sua técnica e experiência destinadas a obter um resultado que se afigura provável.

Para isso compromete-se a proceder com a devida diligência.
Esta conduta diligente é assim objecto da obrigação de meios que assume.


Quando o cliente se queixa que o médico procedeu sem a devida diligência, isto é, com culpa, está a imputar-lhe um cumprimento defeituoso.


Não se vê assim qualquer razão para não fazer incidir sobre o médico a presunção de culpa estabelecida no art. 799º, nº1, do C. Civil.


O que é equitativo, pois a facilidade da prova neste domínio está do lado do médico.”


No mesmo sentido, podem ver-se o
Ac. STJ de 22/5/2003, ITIJ, SJ200305220009123, relatado pelo Juiz Conselheiro Neves Ribeiro; o Ac. Rel Porto de 20/7/2006, ITIJ, RP200607200633598, relatado pelo Juiz Desembargador Gonçalo Silvano e o Ac. do STJ de 27/11/2007, in www.dgsi.pt.

Pela nossa parte, tendo presente a especial dignidade dos interesses afectados pelo (in)cumprimento, o desequilíbrio (estrutural) da relação estabelecida entre o médico e o doente,  a particular  dificuldade na efectivação da tutela de tais interesses, à luz das preocupações crescentes do legislador de favorecimento dos lesados, enquanto parte contratual mais débil,  entendemos que nada justifica afastar a regra consagrada no art. 799º, nº1, do CC, que faz recair sobre o devedor uma presunção de culpa.

12.3. In casu:

Em face da factualidade apurada, dúvidas não restam de que o réu violou os deveres de zelo, diligência e vigilância a que estava obrigado.

Na verdade:

Tendo cortado o nervo mentoneano não providenciou pela pronta restauração do nervo lacerado (executando-a, se estivesse dentro da sua esfera de competências, ou encaminhando a autora para médico de outra especialidade), sabendo – como não podia deixar de saber – que, como se provou, na neurorrafia a hipótese de sucesso é tanto maior quanto menor for o tempo que decorre entre a laceração e a intervenção restauradora.

E, assim, por via da sua conduta, a autora apenas foi operada, em Dezembro de 2006, ou seja, cerca de um ano e meio depois da laceração do nervo.

Também não teve o cuidado de dar conhecimento à autora daquela ocorrência (muito embora a tenha avisado antes da realização da intervenção de que tal podia acontecer).

Por outro lado, perante as queixas da autora, as quais correspondiam à sintomatologia descrita para a sua patologia, não podia ter deixado de admitir a possibilidade (real) de ter sido cortado o  nervo mentoneano, e de prescrever os tratamentos adequados, ponderando designadamente – como se impunha – a submissão da autora a uma neurorrafia.

Note-se que os tratamentos (paliativos) que o réu recomendou não surtiram qualquer efeito, pelo que, desde logo nesta fase, a sua conduta não pode deixar de merecer um juízo de reprovação.

Concluindo:

Quer se entenda que o réu está vinculado a uma obrigação de resultado ou a uma obrigação de meios, sempre sobre o réu impende o ónus da prova de que agiu com a diligência exigíveis pelas boas práticas, se quiser eximir-se à responsabilidade.

Note-se que, em qualquer caso, a obrigação do médico compreende o dever de vigilância após a prática do acto médico, tendo em vista reduzir ou eliminar o risco de ocorrências anómalas com efeitos nefastos para a saúde do doente.

Consequentemente, não tendo o réu provado que tomou todas as medidas exigíveis ao caso, conformes à “lex artis”, de modo a, pelo menos, minimizar o resultado danoso, nem tão pouco, no que respeita ao nexo de causalidade, que houve uma situação de caso fortuito, excludente da relação de causalidade entre a conduta censurável e o dano, não pode deixar de se considerar que agiu com culpa.

13. O montante da indemnização

Nos termos do disposto no art. 798º, do CC, «o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor».

Por sua vez, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º, CC), tendo em conta que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria se não fosse a lesão (art. 563º, do CC).

No que respeita aos danos não patrimoniais[8], há que ter em conta o disposto no art. 496º, nºs 1 e 3, do CC, onde se estabelece que, na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo o respectivo montante fixado equitativamente tendo em conta o grau de culpabilidade do responsável, a situação económica do lesante e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

Por seu turno, a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo, que tenha em conta o circunstancialismo de cada caso, e não por padrões subjectivos, resultantes de uma sensibilidade particular, cabendo ao tribunal dizer, em cada caso, se o dano, dada a sua gravidade, merece ou não tutela jurídica – cf. Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", vol. I, 7ª edição, pág. 600 e Almeida Costa, "Direito das obrigações", 5ª edição, pág. 484.

No caso que analisamos, atenta a factualidade provada, designadamente a natureza das lesões sofridas pela autora, as dores sentidas e que provavelmente vai continuar a sentir, o demais sofrimento e o isolamento social, consequentes ao facto danoso, surge como equilibrado o montante fixado na sentença, que, por isso, é de manter.

14. O reembolso ao Instituto de Segurança Social

Os pagamentos feitos pelo Instituto de Segurança Social à autora são relativos ao período em que esteve de baixa médica, na sequência, da intervenção cirúrgica a que foi submetida, em 20.12.06, para «restauração» do nervo mentoneano, cortado pelo réu.

Como decorre do conjunto dos factos provados, esta intervenção cirúrgica teve em vista a reparação dos danos provocados pelo réu, pelo que, não se suscitando dúvidas sobre a necessidade da sua realização, não se vê como desonerar o réu do pagamento das quantias desembolsadas pelo ISS.

10. Nestes termos, negando provimento ao recurso, acorda-se em confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Lisboa, 9 de Março de 2010

Maria do Rosário Morgado
Rosa Ribeiro Coelho
Maria Amélia Ribeiro
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[1] Como refere Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico, 72 e ss., a qualificação do contrato depende, naturalmente, do conteúdo da relação obrigacional, podendo nalgumas situações constituir um contrato de empreitada ou até um contrato misto.
[2] Há determinadas situações em que aos danos produzidos se aplica  regime da responsabilidade extracontratual – sobre a problemática, v. Rute Teixeira Pedro, ob. cit. 62 e ss.
[3] Dada a natureza da obrigação do médico, estes deveres integram o conteúdo da obrigação principal – cf., sobre os deveres acessórios da prestação de serviço médico, Ferreira de Almeida, Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico, Direito da Saúde e Bioética, AAFDL, 1996, 112.
[4] Sobre os entendimentos históricos do enquadramento jurídico da intervenção médica a nível penal e civil v. António Silva Henriques Gaspar – in CJ – Ano III – 1978 – Tomo I, pág. 335 e ss e Álvaro da Cunha Rodrigues – Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos – In Direito e Justiça – Volume XIV, tomo 3-2000.
[5] cf., Miguel Teixeira de Sousa, Sobre o Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica, Direito da Saúde e Bioética, 1996, 137 e Moitinho de  Almeida, Responsabilidade Civil do Médico e o seu Seguro, Scientia Jurídica, Tomo XXI, 1972, 337; a este propósito, pode ainda consultar-se Manuel Rosário Nunes, O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil por Actos Médicos, 48 e ss. e João Álvaro Dias, Procriação Assistida e Responsabilidade Médica, Coimbra Editora, 225.
[6] cf. Ac. Rel Porto de 6/3/2006, CJ, Ano XXXI, II, 153 .
[7] A obrigação de meios existe quando “o devedor apenas se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza”.
Existe obrigação de resultado “quando se conclua da lei ou do negócio jurídico que o devedor está vinculado a conseguir um certo efeito útil”. [cf. Almeida Costa - Direito das Obrigações - 5ª edição, pág. 886].

[8] No sentido da admissibilidade de fixação de indemnização, a este título, em sede de responsabilidade contratual, cf. o Ac. STJ de 22/9/2005, ITIJ, SJ200509220026682.