Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
21057/19.5T8LSB.L1-8
Relator: TERESA PRAZERES PAIS
Descritores: PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
OPOSIÇÃO
APOIO JUDICIÁRIO
PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO NO VALOR DAS RENDAS
DISPENSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O requerido que beneficie de apoio judiciário está, para o efeito de deduzir oposição ao procedimento especial de despejo, dispensado de prestar a caução a que se refere o n° 3 do art. 15°­F do NRAU”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:         Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


A [ Maria .....], requerida no Procedimento Especial de Despejo, instaurado por B [ ...Liu ], veio deduzir oposição a tal procedimento, fundado na falta de pagamento de rendas, não tendo comprovado nos autos o pagamento da caução exigida no artigo 15.°- F, n.° 3, do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n° 6/2006, de 27 de Fevereiro de 2006, na redacção introduzida pela Lei 31/2012 de 14/08, apesar de notificada para o efeito.
A requerida beneficia de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono e isenção de pagamento de taxa de justiça e custas
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Foi, então, proferida, esta decisão:
"Termos em que, não tendo a requerida feito prova do depósito da caução, nos termos do disposto no artigo 15.9 - F, n.9 4, da Lei 31/2012 de 14/08, tem-se a oposição por não deduzida."
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É esta decisão que a requerente impugna, formulando estas conclusões:

I.Vem o Recurso, interposto do douto despacho do Tribunal da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de Lisboa — 12, que decidiu não aceitar a oposição ao PED deduzida pela Recorrente, em virtude de não ter sido feito prova do depósito da caução, nos termos do disposto do artigo 15° F, n° 4, da Lei 31/2012 de 14/08, apesar de a Ré beneficiar de Apoio Judiciário.
II.A Recorrente é beneficiária de Apoio Judiciário na modalidade de nomeação de patrono, dispensa de pagamento de Taxa de Justiça e demais encargos com o processo.
III.a questão a apreciar neste recurso é se Recorrente está dispensada de prestar caução, para que a oposição deduzida seja recebida como fez questão de mencionar na sua oposição.
IV.a lei, pressupõe uma ressalva, constante do n.° 3 do art.° 15.°-F do NRAU.
V.Constata-se, pois, que o n° 3 do artigo 15°-F, da Lei n° 6/2006 isenta o beneficiário de apoio judiciário de efetuar o pagamento da caução normalmente exigida como condição de admissibilidade da oposição, isto apesar da Portaria n.° 9/2013, de 10.01, em cujo art.° 10.°, sob a epígrafe caução, prever que"1 — O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do n.° 3 do artigo 15.°-F da Lei n.° 6/2006, de 27 de fevereiro, é efetuado através dos meios eletrónicos de pagamento previstos no artigo 17.° da Portaria n.° 419-A/2009, de 17 de abril, após a emissão do respetivo documento único de cobrança.
VI.Há um conflito de duas normas de direito infraconstitucional, entre o n.° 3 do art.° 15.°-F do NRAU e o artigo 10° da Portaria n.° 9/2013, de 10.01.
VII.Em caso de conflito de duas normas de direito infraconstitucional, prevalece a norma de superior hierarquia, o mesmo é dizer o n.° 3 do art.° 15.°-F do NRAU.
VIII.Não pode ser dado outro sentido ao texto da lei, senão que a concessão de apoio judiciário liberta o arrendatário/oponente tanto do ónus de pagamento da taxa de justiça como da prestação de caução.
IX.Andou mal o despacho de que agora se Recorre, pois, não pode ser exigido à Recorrente, que comprovadamente não tem condições económicas, que proceda ao depósito de uma caução, sob pena de se estar não só a coarctar o acesso à justiça como também a desvirtuar a intenção do legislador.
X.Destarte, o texto da lei aponta no sentido de que a concessão de apoio judiciário imuniza o oponente tanto do ónus de pagamento da taxa de justiça como da prestação de caução, pelo que,
XI.não se lobrigando outros elementos interpretativos que imponham interpretação diversa (cfr. n.° 1 do art.° 9.° do Código Civil), mantém-se intocada a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.° 3 do art.° 9.° do Código Civil).
XII.Exigir-se à Recorrente prestação de caução, em face da sua débil condição económica, comprovada pelo Apoio Judiciário, constitui um esforço desmesurado que a mesma não deve fazer quer em face da Lei que desse depósito a isenta, quer em face do caso concreto onde excecionou o pagamento de parte das rendas.
XIII.Em suma, não é condição de admissibilidade da oposição de um pedido especial de despejo apresentando no Balcão Nacional de Despejo, o pagamento de qualquer depósito a título de caução, nas situações em que os Requeridos litiguem com apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo como in casu.
A apelada contra-alega, pugnando pela improcedência do recurso
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Os factos
Os que constam do relatório

Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (arts. 635°, n° 4 e 639°, n° l do CPC) a única questão a decidir é se, beneficiando a requerida de apoio judiciário, está dispensada de prestar a caução a que alude o n° 3 do art. 15°-F do NRAU.
Dispõe o n° 1 do art.° 1083° do CC que "1- Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte". E o n° 3 estipula que "É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a dois meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que ocorram por conta do arrendatário ..., sem prejuízo do disposto nos n2 3 e 5 do artigo seguinte", estatuindo o n° 2 do art. 1084° que a resolução pelo senhorio com este fundamento opera por comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida.

Foi com base neste normativo que a apelada resolveu o contrato de arrendamento celebrado com a apelante, tendo recorrido à presente acção para obter o despejo do arrendado, alegando a recusa da arrendatária em desocupá-lo.

A requerida opôs-se à pretensão de despejo, deduzindo oposição nos termos do n° 1 do art.° 15°-F da L. n° 6/2006, de 27.02 (NRAU), com as alterações introduzidas pela L. 31/2012, de 14.08.
Dispõe o n° 3 do referido artigo que "Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos n2s 3 e 4 do artigo 10832 do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor da rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça", estatuindo o n° 4 que "não se mostrando paga a taxa ou a caução previstas no número anterior, a oposição tem-se por não deduzida".

A Portaria n° 9/2013, de 10.01, veio regulamentar, para além do mais, as "formas de apresentação da oposição, e o modo de pagamento da caução devida com a oposição" (art. 1°, n° 1, al. b)), estabelecendo no art. 10° que "1 — O pagamento da caução devida com a apresentação da oposição, nos termos do n2 3 do artigo 152F da Lei n2 6/2006, de 27 de Fevereiro, é efectuada através dos meios electrónicos de pagamento previstos no artigo 172 da Portaria n2 419-A/2009, de 17 de Abril, após a emissão do respectivo documento único de cobrança. 2 — 0 documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário".

Resulta, para nós, evidente que existe manifesta contradição entre o estipulado no n° 3 do art. 15°F do NRAU e o estipulado no n° 2 do art.° 10° da Portaria n° 9/2013, de 10.01.

No NRAU, o legislador pretendeu isentar o beneficiário de apoio judiciário do pagamento da caução nas situações apontadas' em termos a regulamentar. A Portaria não isenta o arrendatário da prestação da caução prevista no n° 3 do art. 15°-F.

Ensina Oliveira Ascensão em matéria interpretativa 2 "A letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Quer isto dizer que o texto funciona também como limite da busca do espírito. Os seus possíveis sentidos dão-nos como que um quadro muito vasto, dentro do qual se deve procurar o entendimento verdadeiro da lei. Para além disto, porém, não se estaria a interpretar a lei, mas a postergá-la, chegando-se a sentidos que não encontrariam no texto qualquer apoio." Assim, perante vários sentidos possíveis sugeridos pela consideração de todos os elementos de interpretação, sem que nenhum desses elementos aponte decisivamente apenas para um desses sentidos, o intérprete deve eleger aquele que mais se aproxime do significado natural das palavras usadas no texto da lei, ou, como refere J. Baptista Machado, "Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo' .

Como se escreveu no Ac. desta Relação, de 28.4.2015, P. 1945/14.6YLPRT-A.L1 consultável em www.dgsi.pt, "A interpretação do n° 3 do dito art. 15°-F do NRAU, com recurso aos elementos gramatical — ou letra da lei — e lógico - espírito da lei —, leva-nos a concluir que, com ele, o legislador isentou o beneficiário de apoio judiciário da prestação de caução, em moldes a regulamentar por ulterior Portaria. De facto, "o texto é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos qualquer "correspondência" ou ressonância nas palavras da lei."

Segundo Rui Pinto, em Manual da Execução e Despejo, 2013, pág. 1187, o texto da lei aponta no sentido de que a concessão de apoio judiciário liberta o arrendatário/oponente tanto do ónus de pagamento da taxa de justiça como da prestação de caução.
In "O Direito Introdução e Teoria Geral", 13" ed., Almedina, 2006, pág. 396.
3 cfr. J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e o Discurso Legitimador, 13." reimp., Almedina, 2002, pp. 208 e ss.

Ora, a expressão verbal do preceito "Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos ngs. 3 e 4 do artigo 1083.° do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento (...)", não consente outro sentido que não seja o desígnio de isentar o arrendatário que beneficia de apoio judiciário do pagamento da caução no valor descrito, tanto mais que a inexigibilidade do pagamento da taxa de justiça resulta já da Lei do apoio judiciário — cfr., entre outros, o art. 16°, n° 1, alínea a), da Lei n° 34/2004, de 29.07.

Por outro lado, também o elemento teleológico ou racional — o que terá sido o fim visado pelo legislador - aponta no mesmo sentido. Refere-se na Proposta de Lei n° 38/XII, Exposição de Motivos, além do mais, o seguinte "(...). Por sua vez a transferência para o arrendatário do ónus de impugnação do despejo, de prestação de caução e de pagamento de taxa de justiça no âmbito do procedimento especial visa dissuadir o uso deste procedimento apenas como meio dilatório para a efectivação do despejo."

Isto mostra que, no intuito de evitar que a oposição seja usada apenas como meio dilatório da efectivação do despejo, o legislador fez impender sobre o arrendatário o ónus de pagar, tanto a taxa de justiça, como a caução em valor que especifica. Ciente, porém, de que sujeitar a admissibilidade da oposição à prestação de caução pode equivaler a coartar ou anular o direito de defesa de arrendatário que se encontre em precária situação económica, bem se entende que, concomitantemente, tenha querido assegurar o exercício desse direito fundamental aos arrendatários mais carenciados, isentando-os de prestar a caução, em termos a definir por portaria.

Aliás, o que sobressai é que o legislador excepcionou em bloco e para quem beneficiasse de apoio judiciário, a desnecessidade de comprovação do pagamento da taxa de justiça e de prestação de caução relativamente às rendas devidas — caso quisesse excepcionar apenas uma destas situações, deveria ter tido o cuidado de o fazer. É certo que o apoio judiciário está dirigido, numa das suas modalidades, para as custas do processo e não para a inexigibilidade de prestação de cauções. Mas o legislador pode muito bem ter sido sensível, numa área tão melindrosa como é do contrato do arrendamento e das respectivas resoluções contratuais, que queira ter estendido essa excepcional prerrogativa de não prestar caução de rendas a quem não tenha disponibilidade para suportar as custas processuais.

Esta discriminação positiva tem todo o sentido e não se mostra irrazoável.


Assim, se o legislador não diferenciou, não cabe aos tribunais distinguir, face ao princípio constitucional de reserva de lei.

Existindo conflito de normas, de hierarquias diversas" --A L. 6/2006 é uma lei ordinária da AR — arts. 112°, n° 2, 161°, ai. c) e 1662, n2 1, al. b) da CRP, e a Portaria é um regulamento de fonte governamental — arts. 197°, n° 1, al. j) e 199°, n° 1, al. c) da CRP. --a resolução do problema passa "pela prevalência da fonte de maior hierarquia", como se escreveu no Ac. da RL de 19.2.2015, P. 4118/14.4TCLRS, in www.dgsi.pt, e para que remete o supra referido Ac. da RL de 28.4.2015.

O Tribunal Constitucional vem salientando que, estando em causa um conflito entre duas normas de direito infraconstitucional, mormente a violação de uma lei por um acto regulamentar existe um vício de ilegalidade — entre outros,cf. o Ac. do TC n° 779/2013, de 19.03.2013, em www.tribunalconstitucional.pt.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, Vol. II, zla ed. rev., reimpressão, pág. 67, em anotação ao n° 5 do art. 112° da CRP escrevem que "por maiores que sejam os problemas de interpretação levantados pela norma do n° 5 - "nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos", são líquidos, porém, dois sentidos primordiais: (a) afirmação do princípio da tipicidade dos actos legislativos e consequente proibição de actos legislativos apócrifos e concorrentes, com a mesma força e valor de lei; (b) a ideia de que as leis não podem autorizar que a sua própria interpretação, integração, modificação, suspensão ou revogação seja efectuada por outro acto que não seja outra lei".

E mais adiante, a págs. 70, escrevem que "o preceito do n° 5 também não proíbe os chamados reenvios normativos (ou remissões normativas), designadamente nos casos em que a lei remete para a administração a edição de normas regulamentares executivas ou complementares da disciplina por ela estabelecida... Importa definir a natureza e os limites constitucionais dos poderes de formação regulamentar executiva ou complementar da administração. Assim, em primeiro lugar, a norma regulamentar é uma norma de diferente natureza da norma legal, e a intervenção regulamentar visa regular aquilo que a lei se absteve de regular, e não "integrar" a regulamentação legislativa (o n° 5 exclui expressamente os regulamentos integrativos), pelo que o regulamento nunca pode intervir sub especie legis; ... ambas as normas mantêm a natureza e hierarquia respectivas, não se verificando qualquer fenómeno de integração. Em segundo lugar, o reenvio da lei para regulamento está também sujeito aos limites constitucionais da reserva de lei, não podendo a lei, no âmbito da reserva de lei, deixar de esgotar toda a regulamentação «primária» das matérias, só podendo remeter para regulamento os aspectos «secundários» (isto, independentemente do facto de as leis de bases deverem ser desenvolvidas por decretos-leis e não por actos regulamentares). "

Retomando o caso em apreço, considerando que a apelante beneficia do beneficio de apoio judiciário, fazendo preferir a norma de fonte superior, o NRAU, conclui-se que está isenta de demonstrar o pagamento da caução a que alude o n° 3 do art. 15°-F daquela lei.

Assim sendo, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, não existe motivo para considerar como não deduzida a oposição, e, na procedência da apelação, deve revogar-se a decisão recorrida.

Síntese: O requerido que beneficie de apoio judiciário está, para o efeito de deduzir oposição ao procedimento especial de despejo, dispensado de prestar a caução a que se refere o n° 3 do art. 15°­F do NRAU.

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Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por outra a admitir a oposição, se outro motivo a tal não obstar, prosseguindo seus termos o processo.
Custas pela Recorrida.

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Lisboa, 1 de Julho de 2021



Teresa Prazeres Pais
Rui Torres Vouga

Carla Mendes