Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
185/11.0TJLSB.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: HOSPITAL
DÍVIDA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O legislador estipulou o prazo de prescrição presuntiva para determinadas situações (ponderado o tipo de relações sobre que recai quanto aos sujeitos e quanto ao objecto), quer a dívida seja pequena ou elevada, quer seja ou não passado recibo e quer o devedor guarde ou não o recibo emitido.
II - Se está em causa um crédito de um estabelecimento hospitalar pelos serviços prestados naquele, o prazo de prescrição a ponderar é o estabelecido no art. 317º, alª a) do CC, sendo, de todo, irrelevante ponderar as circunstâncias concretas do crédito.
III - Assentando a prescrição presuntiva na presunção de pagamento do crédito, torna-se imprescindível, para beneficiar daquele instituto, que o excepcionante alegue que realizou o pagamento do crédito reclamado, ficando dispensado da respectiva prova de cumprimento, passando a ser ónus do credor ilidir a presunção de pagamento, prova essa que apenas poderá ser feita pela confissão do devedor.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.

Hospital …, S.A. intentou contra B acção declarativa de condenação, com processo sumário, pedindo que o R. seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 5.658,54, acrescida de juros de mora, à taxa legal anual supletiva para os créditos de que sejam titulares empresas comerciais, desde a citação e até efectivo pagamento.
A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese, que:
Prestou assistência médica e hospitalar ao R., a pedido deste, no valor de € 8.658,54. Instado a pagar o saldo em dívida, o R. não o fez integralmente, tendo apenas pago a quantia de € 3.000,00, mantendo-se o resto em dívida.
A final, requereu o “depoimento de parte do Réu, a toda a matéria da p.i., …”

Regularmente citado, o R. contestou, por excepção, alegando já ter pago a totalidade da dívida e estar prescrito o crédito reclamado.
A A. não replicou.
Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou procedente a excepção de prescrição, e se absolveu o R. do pedido.
Não se conformando com a decisão, apelou a A., tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões:
A. Parece-nos legítimo concluir que a decisão enferma de vícios.
B. Primeiramente, porque não se realizou do depoimento de parte do Réu, tal como havia sido requerido, pelo Autor, na P.I..
C. Este facto reveste-se de grande importância, uma vez que seria a única forma de poder afastar a prescrição presuntiva (através da confissão).
D. Ainda assim, o Autor entende que o instituto da prescrição não tem aplicação no caso em apreço, uma vez que não se está perante uma dívida de pequena monta e porque o recibo sempre seria guardado pelo Réu, dado que é dedutível em sede de IRS.
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que condene o R. no pedido.
O R. contra-alegou, propugnando pela improcedência do recurso.

QUESTÕES A DECIDIR.
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente ( art. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPC ) as questões a decidir são:
a) Se a decisão recorrida padece de “vícios”;
b) Se o instituto da prescrição não tem aplicação no caso em apreço.

Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
O tribunal recorrido deu como assentes os seguintes factos:
1. O A. pede nesta acção a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de € 5.658,54, acrescida de juros, à taxa supletiva para os créditos comerciais, vencidos e vincendos até integral pagamento.
2. Fundamentou a sua pretensão no facto de ter prestado assistência médica e hospitalar ao R. que este não pagou integralmente.
3. A petição inicial deu entrada na secretária judicial no dia 16.02.2011 e o R. foi citado para acção em 21.02.2011.
*
Nos termos do disposto no art. 659º, nº 3 do CPC, aplicável ex vi do art. 713º, nº 2 do mesmo diploma, tem-se, ainda, como assente o seguinte facto:
4. Os serviços prestados a que se alude em 2. foram no valor de € 8.658,54, conforme factura nº FISF2007/213834 de 21.11.2007.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Peticiona a A., na presente acção, a condenação do R. a pagar-lhe a quantia em dívida relativa a assistência médica que, a pedido do R., lhe prestou no seu estabelecimento hospitalar, conforme factura emitida em 21.11.2007.
O tribunal recorrido, fazendo aplicação do disposto no art. 317º, al. a) do CC, julgou prescrito o direito da A. a reclamar do R. a quantia peticionada.
Insurge-se a A. contra o decidido, quer porque a sentença recorrida enferma de vícios (não atentou que havia sido requerido o depoimento de parte do R., com vista a ilidir a presunção de cumprimento, nem que a A. não respondeu à matéria da excepção porque já tinha invocado o não pagamento na P.I.), quer porque entende que, in casu, o instituto da prescrição não tem aplicação, porque não está em causa “uma dívida de pequena monta, da qual não é usual guardar recibo”.
Comecemos por apreciar se, no caso, é ou não aplicável o instituto da prescrição.
Dispõe o art. 317º, al. a) do CC que “prescrevem no prazo de dois anos: a) os créditos dos estabelecimentos que forneçam alojamento, ou alojamento e alimentação, a estudantes, bem como os créditos dos estabelecimentos de ensino, educação, assistência ou tratamento, relativamente aos serviços prestados”.
Este artigo integra-se na subsecção III, que tem por epígrafe “prescrições presuntivas”, esclarecendo o art. 312º do CC que inicia a referida subsecção, que “as prescrições de que trata a presente subsecção fundam-se na presunção de cumprimento”.
As prescrições presuntivas, ou de curto prazo, distinguem-se das prescrições ordinárias, extintivas, porque, naquelas o decurso de um certo prazo, faz presumir o cumprimento da obrigação, e nestas, o decurso do prazo legal extingue a obrigação, independentemente do cumprimento.
Estas presunções destinam-se, como refere Antunes Varela, in RLJ, Ano 103, pág. 254, a proteger o devedor contra o risco de pagar 2 vezes dívidas de que não é usual exigir recibo ou guardá-lo durante muito tempo, ou que, elas próprias não constem de documento.
Como referia Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, págs. 452 e 453, ensinando na vigência do CC de 1867, as prescrições presuntivas distinguem-se das prescrições verdadeiras, pois que enquanto nestas mesmo que o devedor confesse que não pagou, não deixa de funcionar a prescrição, naquelas se o devedor confessa que deve, mas não paga, é condenado da mesma maneira.
E este mesmo professor, na ob. e loc. cit., justificava os motivos da lei em fixar estes prazos curtos de prescrição nos seguintes termos: “ela estabeleceu curtos prazos para a prescrição dos créditos do merceeiro, do hoteleiro, do advogado, do procurador, etc., etc., porque se trata de créditos que o credor adquire pelo exercício da sua profissão, da qual vive. Ao fim de um prazo relativamente curto o credor, em regra, exige o seu crédito, pois precisa do seu montante para viver. Por outro lado, o devedor, em regra, também paga estas dívidas dentro de curto prazo, porque são dívidas que ele contraiu para prover às suas necessidades mais urgentes. ... Finalmente, o devedor em regra não cobra recibo destas dívidas, quando as pagas, e se exige recibo não o conserva por muito tempo”.
Em regra é isto que acontece, nas situações previstas na lei, e será esse o fundamento para o legislador ter optado pela fixação de um prazo curto de prescrição.
Mas seja ou não isso que acontece em cada caso concreto, o que é um facto é que o legislador estipulou o referido prazo de prescrição para determinadas situações (ponderado o tipo de relações sobre que recai quanto aos sujeitos e quanto ao objecto), quer a dívida seja pequena ou elevada, quer seja ou não passado recibo e quer o devedor guarde ou não o recibo emitido.
Se está em causa um crédito de um estabelecimento hospitalar pelos serviços prestados naquele, o prazo de prescrição a ponderar é o estabelecido no art. 317º, al. a) do CC, sendo, pois, inquestionável que o instituto é, in casu, aplicável, sendo, de todo, irrelevante ponderar as circunstâncias concretas do crédito (no que àqueles elementos se refere) [1].
Improcede, pois, nesta parte, a apelação.
O que já não é irrelevante é que o devedor, que invoca a prescrição do crédito do credor e desse instituto pretenda beneficiar, alegue que pagou a quantia reclamada.
De facto, assentando a prescrição presuntiva na presunção de pagamento do crédito, torna-se imprescindível, para beneficiar daquele instituto, que o excepcionante alegue que realizou o pagamento do crédito reclamado [2].
A prescrição presuntiva funda-se na presunção de cumprimento, não conferindo ao devedor, como sucede com a prescrição extintiva, a faculdade de recusar a prestação ou de se opor ao exercício do direito prescrito, visto não ser extintiva de direitos (art. 304º do CC), apenas o dispensando da respectiva prova de cumprimento, que, à luz do art. 342º, nº 2 do CC, lhe incumbiria.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 22.01.2009, P. 08B3032, rel. Cons. Maria dos Prazeres Beleza, in www.dgsi.pt, “Na realidade, a prescrição presuntiva é um benefício para o devedor que – parte-se do princípio – pagou, pois que apenas o dispensa do ónus que sobre ele impede de provar o pagamento (nº 2 do art. 342º do CC)”. Assim, provado o decurso do prazo (bem como os demais factos descritos nos arts. 316º e 317º do CC, relativos nomeadamente à natureza do crédito, à qualidade dos contraentes e à ligação entre o crédito e as respectivas actividades profissionais), presume-se o cumprimento, recaindo sobre o credor o ónus de ilidir a presunção”.
E foi isso que o R. fez, na contestação, ficando, assim, dispensado, de provar o pagamento, passando a ser ónus da A. ilidir a presunção de pagamento.
E essa prova apenas poderá ser feita pela confissão do devedor, nos termos do disposto nos arts. 313º e 314º do CC [3].
Entramos, agora, na apreciação do outro fundamento invocado pela apelante para obter a revogação da decisão recorrida: a de que esta padece de “vício” por não ter atentado que a A., na P.I. pediu o depoimento de parte do R., com o que poderia ilidir  a presunção de pagamento, não tendo de replicar sobre tal matéria.
Invocada pelo R. a prescrição do crédito reclamado pela A. (bem como o seu pagamento), esta nada disse.
E sustenta que não o fez, porque na P.I. já tinha alegado o não pagamento e já havia requerido o depoimento de parte do R., pelo que não fazia sentido repetir o já alegado.
Sustenta o apelado que a réplica era o articulado próprio para a A. se pronunciar sobre a excepção invocada e requerer o depoimento de parte sobre a mesma.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, não podemos concordar.
É um facto que à matéria das excepções deve o A. responder na réplica (art. 785º do CPC).
Mas não terá de o fazer se a matéria excepcional estiver em manifesta oposição com o alegado na P.I. (arts. 505º e 490º, nº 2 do CPC, aplicáveis ex vi do art. 463º, nº 1), como é o caso.
Na P.I. o A. alegou que o R. não pagou o montante da dívida peticionado.
Perante a alegação do R. de que pagou, nada tem o A. que responder, uma vez que essa alegação está em oposição com o já por si alegado, e uma vez que, já na P.I., requereu o depoimento de parte do R. [4] [5], única forma admissível para lograr ilidir a presunção de pagamento.
Do silêncio da A. perante a invocada excepção não se pode, pois, retirar qualquer efeito processual preclusivo.
E o facto do R. ter, na contestação, alegado o pagamento, não obsta a que seja requerido o seu depoimento de parte, visando obter a confissão do não pagamento [6].
Como se escreveu no Ac. do STJ de 22.01.2009 supra referido, entende-se “que há confissão tácita “se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento”. A especialidade, aqui, reside em que a recusa em depor ou a prestar juramento (que, em geral, tem o mesmo efeito que a recusa a depor, no âmbito da prova por confissão, como resulta do art. 559º, nº 3 do CPC) não é livremente apreciada pelo juiz, como em regra sucede (art. 357º, nº 2 do CPC)”.
Não deveria, pois, o tribunal recorrido ter conhecido da excepção invocada no despacho saneador, uma vez que a factualidade se mostra, ainda, controvertida, nesta matéria.

DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, devendo o processo seguir seus termos, para apuramento da matéria de facto alegada e controvertida.
Custas pelo recorrido.
                                                           *
Lisboa, 8 de Novembro de 2011

Cristina Coelho
Maria João Areias
Luís Lameiras
---------------------------------------------------------------------------------------
[1] Neste sentido, cfr. o Ac. do STJ de 29.11.2006, in CJASTJ, Tomo III, pág. 136.
[2] Como se sumariou no Ac. do STJ de 24.06.2008, in CJASTJ, Tomo II, pág. 125, “… 3. Para poder beneficiar da invocada prescrição presuntiva, o réu terá de afirmar, claramente, que o pagamento reclamado já foi efectivamente realizado”. No mesmo sentido ver o Ac. da RL de 7.12.2010, P. 1861/09YXLSB.L1-7, rel. Desemb. Luís Espírito Santo, in www.dgsi.pt
[3] Confissão expressa ou tácita.
[4] Tendo requerido o depoimento de parte sobre “toda a matéria da P.I.”, necessariamente requereu sobre o art. 3º da mesma, onde alega que o R. não fez o pagamento integral do saldo em dívida. É sobre esta matéria que a A. poderá obter a confissão do R. e não sobre o pagamento alegado na contestação (art. 352º do CC).
[5] No que o tribunal recorrido não atentou, de facto.
[6] Com interesse, cfr. o Ac. da RC de 23.06.2009, in CJ, Tomo III, pág. 25.