Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
315/13.8PELSB.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: INSTRUÇÃO CRIMINAL
INSTRUÇÃO DO PROCESSO
REQUISITOS
INADMISSIBILIDADE LEGAL DA INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - A estrutura acusatória do processo penal impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e precisão adequados em determinados momentos processuais. ente os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.

II - Uma instrução que peque por défice enunciativo de factos susceptíveis de conduzir à pronúncia do arguido titularia um acto inútil que a lei não poderia admitir.

III - O que significa que, a par de outros fundamentos da rejeição, que se reconduzem também a realidades de que deriva a inutilidade da instrução, se deva ter a instrução como legalmente inadmissível.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I           Relatório

Nos autos de instrução que correm termos na Comarca de Lisboa Oeste, Instância Central de Sintra, 1ª Secção Instrução Criminal, Juiz 1, com o número de processo 315/13.8PELSB, o Meritíssimo Juiz de Instrução, após admitir I... a intervir nos autos como assistente, proferiu o seguinte despacho de não abertura de instrução: (transcrição)

“REJEIÇÃO DA FASE FACULTATIVA DE INSTRUÇÃO POR FALTA DE OBJECTO

A assistente vem requerer a abertura da instrução.

No seu requerimento insurge-se contra o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público e descreve as circunstâncias gerais em que assinou determinados documentos com vista a contrair crédito bancário.

De entre os documentos que declara ter assinado, estaria um em que como "sempre afirmou não ter conhecimento de estar a celebrar um contrato de fiança relativo" a uma viatura.

Contudo, o que é omisso no requerimento para abertura de instrução são os factos concretos que teriam provocado na assistente esse desconhecimento enganoso.

Tais factos teriam que ser imputados ao arguido, objectiva e subjectivamente, por forma a tornar inteligível todo o percurso integrador do duplo nexo de causalidade exigido pelo art° 217°, do Código Penal.

É possível apreender da exposição constante do requerimento que a arguida assinou determinados documentos. O que não está traduzido em factos concretos é a razão pela qual a assistente apenas assinou esses documentos porque foi enganada por um ardil montado pelo arguido ...

É que a simples afirmação de que não tinha conhecimento de estar a celebrar um contrato de fiança não permite a conclusão pretendida pela assistente.

A falta de esclarecimento pode ter na sua origem diversos factos ou circunstâncias que no requerimento não são expostos e imputados ao arguido.

De acordo com o disposto no artº 217°, do Código Penal:

Artigo 217º

Burla

I - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

( ... )

Isto é, como já se escreveu no Ac. do STJ de 04110/2007, publicado em www_dgsi.pti,

( ... )

A factual idade capaz de integrar os conceitos acima expostos é omissa no requerimento apresentado.

Com efeito, não é em fase de instrução que tais factos devem ser recolhidos ou procurados, em face da finalidade específica reservada a esta fase processual pelo artº 286°, nº 1, do CPP.

Questão idêntica foi detalhadamente debatida no Acórdão do STJ, de 12/03/2009, publicado em www.itijj. pt.

Com efeito ai se refere que: "conhecido o paralelismo existente entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente na sequência dum despacho de arquivamento, conforme se reconheceu no acórdão deste Supremo Tribunal de 07-05-2008 - proc.4551/07 e estatuindo o nº 2 do art. 287º do Código de Processo Penal, que é aplicável ao requerimento do assistente para abertura de instrução o disposto no art. 283º nº 3 als. b) e c), norma que diz respeito à acusação, atentemos nas situações que determinam a manifesta falta de fundamento da acusação, com vista a aquilatar da possibilidade da sua aplicação ao requerimento para abertura da instrução.

De harmonia com o art. 311º nº 3, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as prova que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.

É evidente que se o requerimento para abertura de instrução não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde consta tal identificação, a instrução será inexequível. E constituirá uma fase processual sem objecto se o assistente que a requer deixar de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis, elementos acerca dos quais o Prof Germano Marques da Silva (op. cit., pág. 145), refere: "insiste-se que, tratando-se doe requerimento do assistente, é imprescindível que do requerimento conste sempre a narração dos factos constitutivos do crime ou crimes e das disposições legais aplicáveis".

A propósito da alínea d) do art. 311º, nº 3. escreve o Prof. Germano Marques da Silva:

"Também esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir". Pode, portanto, afirmar-se, fazendo uso das palavras do Conselheiro Maia Gonçalves (op. cit .. pág. 667) que "acusação manífestamerue infundada é aquela que, em face dos seus próprios elementos, não tem condições de viabilidade" Ora, se o juiz de instrução, apreciando o requerimento do assistente nos seus precisos termos, conclui que de modo algum o arguido poderá ser pronunciado, uma vez que os factos que aquele narra jamais constituirão crime, deverá rejeitar o requerimento do assistente. É que, num caso desses, o debate instrutório nenhuma utilidade poderia ter, nomeadamente, porque, tal como se decidiu no acórdão para fixação de jurisprudência nº 7/2005 (D.R. n° 212 - S-A de 4-11- 2005) "não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 28º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Também o Tribunal Constitucional afirma, no acórdão nº 385/2004, de 19 de Maio de 2004, que "a estrutura acusatória do processo penal .... Impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e precisão adequados em determinados momentos processuais. ente os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução ".

Quando assim suceder, quando pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, então estaremos face a uma fase instrutória inútil. Ou, conforme se refere no mencionado acórdão de fixação de jurisprudência, "uma instrução que peque por défice enunciativo de factos susceptíveis de conduzir à pronúncia do arguido titularia um acto inútil que a lei não poderia admitir {artº 137º do CPP)". O que significa que, a par de outros fundamentos da rejeição, que se reconduzem também a realidades de que deriva a inutilidade da instrução, se deva ter a instrução como legalmente inadmissível.

Também a jurisprudência tem considerado que "não faz sentido procede-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento, sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutáría não poderá ser proferida nesse sentido" (ac. do STJ, de 22-10-2003 - proc. 2608/03-3), entendendo ser de "rejeitar, por inadmissibilidade legal «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura e instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito ... e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime" (ac. de 22-03-2006 - proc. 357/05-3 e de 07-05-2008, proc. 4551/07-3) E, mais especificamente, o acórdão de 7-12-1005 - proc. 1008/05, que o aqui relator subscreveu como adjunto, onde foi decidido, com um voto de vencido, que "se o requerimento do assistente para abertura da instrução não narra factos susceptíveis de integrar a prática de qualquer crime não pode haver legalmente pronúncia (cf art. 308º o do CPP), pois a instrução seria, então, um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (arts. 137º do CPC e 4º do CPP), e como tal legalmente inadmissível", sendo certo que "a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento para abertura da instrução, nos termos do nº 3 do aludido art. 287º".

Também os tribunais da Relação vêm decidindo que a falta de indicação de factos que preencham os elementos típicos do crime produz uma situação de inadmissibilidade legal da instrução. Nesse sentido, cfr, entre outros, os acs. da Rel. de Lisboa de 03-10-2001 - p. 1293/00, de 18-03-2003 - p. 77635; de 30-03-2004 - p. 8701/03; de 30-05-2006 - p. 1111/06; da Rel. do Porto de 15-12-2004 - p. 3660/03; de 01-03-2006 - p. 5577/05; de 21- 06-2003 - p.1176/06; e da Rel. de Coimbra de 23-04-2008 - p. 988/05.8TAACN

Tudo quanto se deixou exposto permite concluir que a falta de indicação no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório. Ou seja, nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. Haverá, assim, em consequência, que incluir no conceito de "inadmissibilidade legal da instrução", além dos fundamentos especíjicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral. "

Como se referiu, a leitura do presente requerimento para abertura de instrução revela ser manifesto que não poderá ser imputado qualquer crime a um agente determinado, nomeadamente ao aqui arguido.

Pelo exposto, por inadmissibilidade legal por falta de objecto, rejeito o presente requerimento para abertura de instrução e determino o arquivamento do processo.

Sem custas em consequência do concedido apoio judiciário.

Notifique”. (fim de transcrição)

***

Inconformada a assistente I... veio interpor recurso, retirando da respectiva motivação de fls. 197 a 209, as seguintes conclusões: (transcrição)

“1. Apesar de indicadas, as duas testemunhas juntas pela Assistente, nunca foram ouvidas em sede de inquérito,

2. Alegou o MP que:”(…) pese embora…pendente a inquirição...testemunha arrolada pela queixosa na PSP do Seixal, o certo é que as declarações do arguido e da queixosa e da sua concatenação com os documentos aos autos, existem, desde já, motivos bastantes para proferir despacho final de inquérito.”!!!

Por outro lado,

3. Não deixa de ser contraditório que o MP não tenha acatado a versão da Assistente, tendo no seu despacho de arquivamento feito constar que:

“(…) Aquele sujeito processual declarou ter levado o contrato de crédito constante dos autos para a denunciante assinar, não tendo, contudo, noção de que a última ficaria fiadora do referido mutuo ( fls 55) (…)” !!!!

4. Ora, face ao supra exposto, veio o Exm.ª Dr Juiz aquo a indeferir  o requerimento de abertura de instrução com base na inadmissibilidade legal do mesmo, face à falta de objecto, o que de todo não se verifica em lado algum, aliás

5. Nos termos legais, o requerimento de abertura, tem de conformar uma verdadeira acusação e, por isso, não é admissível se dele resultar falta de tipicidade ou a falta de inimputabilidade do arguido, porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta dos pressupostos do objecto, de arguido.

6. A este propósito temos o AC TRL de 20.05.1997, CJ, tomo 3, pág 143:” O requerimento do assistente para abertura de instrução, no caso de arquivamento do processo pelo MP, é que define e limita o respectivo objecto do processo, constituinte, substancialmente, uma acusação alternativa. Assim, além do mais, deverão dele constar a descrição dos factos que fundamentam a eventual  aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições legais incriminatórias”.

7. Só no caso  de faltar no processo o seu objecto ou o arguido, o processo é inexistente, o que claramente não foi o caso dos autos.

8. O próprio AC da TRL de 12.07.95, CJ, XX, tomo 4, pág 140, esclarece que: “ A insuficiência dos factos, suas consequências e seus autores, não integra o conceito de inadmissibilidade legal, a que se refere o nº 2 do art 287 do CPP e por isso a sua reapreciação estás vedada ao juiz para justificar a recusa da instrução.”

9. É o próprio arguido que, nas suas declarações invoca que ajudou a Assistente a celebrar um empréstimo para aquisição de uma casa, tendo-lhe levado inúmeros documentos para assinar….

10.  Aliás, facilmente se apura que, confrontados os documentos bancários, até o logótipo do banco Banif, aparece no canto superior esquerdo o que, ao esfolhear os mesmos para proceder à assinatura, o referido logótipo não se vê, levando ou induzido a Assistente em erro.

11.  De igual modo, pese embora seja contrato de fiança, atendendo às letras pequenas onde consta quem assina, e sem que o arguido tenha em primeiro lugar assinado o referido contrato, para todos os efeitos, a Assistente achou que estava a assinar somente os documentos da contratação do empréstimo da sua habitação própria.

12. Assim, é e foi do entendimento, a existência de uma actuação enganosa por parte do arguido, com intenção de equivocar a queixosa e, por conseguinte, levar a empobrecer o seu património, à custa do seu enriquecimento pessoal.

Face a todo o exposto,

              Se requer a Vª Ex.ªs, D e A,  a dar provimento ao presente recurso e, por conseguinte que seja aceite, com as legais consequências, a abertura de Instrução requerida, nos termos nela constantes.

                Termos em que se fará

                                                                                              JUSTIÇA”. (fim transcrição)

***

O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu, nos termos constantes da motivação de fls. 216 a 218, apresentando as seguintes conclusões: (transcrição)

1. O que resulta do teor do requerimento de abertura de instrução é uma manifesta discordância quanto aos fundamentos invocados pelo Ministério Público aquando do encerramento do inquérito, bem como uma síntese dos actos e ou depoimentos prestados.

2. Não há qualquer delimitação do campo factual sobre o qual a instrução há- de versar nem consequentemente uma vinculação temática a que o Juiz de Instrução delimite o seu objecto concluindo-se assim pela sua falta de objecto ou inexequibilidade.

3. O requerimento é totalmente omisso quanto ás disposições legais violadas.

4. Não faz a narração de factos, o lugar, o tempo nem a motivação da sua prática.

5.. Deverá, pois, manter-se a decisão recorrida”. (fim de transcrição)

***

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer a fls. 227 a 237, manifestando-se também pela improcedência do recurso, citando pertinente jurisprudência e aderindo às alegações do Ministério Público em 1ª instância.

Foi cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do Código de Processo Penal.

       Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II          Fundamentação

1. É pacífica a jurisprudência do STJ[1] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.[2]

Da leitura das conclusões da recorrente a mesma pretende ver alterado despacho que não admitiu a abertura da instrução por outro que determine a realização da mesma.

Vejamos.

A instrução visa “(...) a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (artigo 286º, nº 1 do Código Processo Penal). O requerimento para a abertura da mesma “(...) não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º” (artigo 287º, nº 2 do Código Processo Penal), ou seja, deve conter a “(...) narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” (...) e a  “indicação das disposições legais aplicáveis” (artigo 283º, nº 3 alíneas b) e c) do Código Processo Penal).

Esta exigência legal sobre o conteúdo da acusação ou do requerimento para a abertura da instrução, inexistindo acusação do Ministério Público, que não é mais do que uma acusação provisória do assistente, com vista a um possível juízo de pronúncia do juiz de instrução e submissão do arguido a julgamento, tem na sua base a estrutura acusatória do processo penal a qual decorre directamente do nº 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do acusatório”.

É esta estrutura do processo, a exigência de um processo justo e equitativo e o princípio de igualdade de armas, que exige ao Ministério Público e ao assistente requerente de instrução, que no seu libelo acusatório elenquem os factos, os situem no tempo e extraiam dos mesmos as conclusões jurídicas que se impoêm no que respeita à culpabilidade do arguido. No fundo é necessário responder às perguntas básicas de qualquer investigação: O quê? Quando? Onde? Como? Quem? Porquê? Isto é, o que aconteceu? Quando aconteceu? Onde aconteceu? Como aconteceu? Quem fez? E porquê fez? É deste conjunto de perguntas e consequentes respostas que tratam os preceitos em causa e terá que ser deste conjunto de factos que o arguido se vai defender. No fundo a acusação vai começar a consolidar o “thema decidendum” – consolidado com o despacho de pronúncia ou com o despacho que designa dia para julgamento - a que o Tribunal vai ter que responder ao longo das várias fases do processo e do qual o arguido se vai defender. São os mesmos princípios que estão na base da impossibilidade de alteração substancial dos factos sem o consentimento do arguido e ao abrigo dos quais se conferem poderes inquisitoriais ao Tribunal na procura da verdade material, mas sempre limitado pelo tema a decidir no mesmo.

Deve assim o requerimento para a abertura da instrução corresponder às mesmas exigências substanciais e formais da acusação do Ministério Público ficando o Juiz de Instrução, por força dos princípios supra elencados, limitado a esse mesma acusação ou requerimento, não podendo a sua pronúncia extravassar esses mesmos factos[3][4].

Ora, tendo em conta estes princípios, doutamente elencados na decisão em crise, bem andou o Meritíssimo Juiz em rejeitar liminarmente o requerimento para a abertura da instrução formulado pela assistente.

A assistente no seu requerimento de abertura de instrução de fls. 143, começa por indicar duas testemunhas que não foram ouvidas em sede de inquérito, passando depois a criticar ou a discordar do despacho de arquivamento do Ministério Público, seguindo-se uma análise do direito e terminando com a prova. Mas, quais os factos a imputar ao arguido? Nada. Teria que ser o juiz de instrução, na tese da recorrente, a elencar esses factos e a responder às perguntas anteriormente formuladas substituindo-se assim à assistente. Não é essa a intenção do legislador. Se tivesse sido não teria remetido, na formulação do requerimento de abertura de instrução, para as exigências legais previstas para a acusação.

Não cumprindo o requerimento de abertura de instrução, como não cumpre, as exigências legais, o que fazer?

Mandar aperfeiçoar o mesmo?

Não nos aprece que tal seja possível, como decidiu doutamente o Supremo Tribunal de Justiça em 12/05/2005, no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2005, em cuja decisão se estabeleceu jurisprudência nos seguintes termos: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido[5].

Indeferir liminarmente o requerimento como fez o Tribunal a quo?

Parece-nos ser esta a decisão correcta. Na verdade, não faz qualquer sentido que não cumprindo o requerimento de abertura de instrução as exigências legais, se estivessem a praticar actos de instrução inconsequentes já que apenas poderiam levar a um despacho de não pronúncia. Não podemos esquecer que a lei proíbe a prática de actos inúteis (artigo 137º do Código Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º do Código Processo Penal). 

O legislador no artigo 287º, nº 3 do Código Processo Penal, estabeleceu que o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado “(...) por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”. Esta tipificação legal dos casos de indeferimento do requerimento parece, à primeira vista, afastar situações como a dos autos, ou seja, situações em que o requerimento não cumpre os requisitos formais e substanciais previsto no nº 2 do mesmo preceito.

Não nos parece que assim seja. O conceito de “inadmissibilidade legal da instrução” deve abranger e abrange, situações como a dos autos, sob pena de estar o juiz a praticar actos inúteis e a instrução ser sempre possível, ainda que no requerimento se conte um conto, se indiquem umas normas e meia página da lista telefónica. Não foi isto que o legislador quis, nem pode ser isto que o bom senso reclama. Este entendimento é sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça e outros Tribunais superiores[6].

Em resumo, bem andou o Tribunal a quo ao rejeitar o requerimento de abertura da instrução, inexistindo, por isso, qualquer fundamento para alterar a decisão recorrida.

Improcede assim o recurso interposto pela assistente, mantendo-se a douta decisão recorrida.

III         Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pela assistente, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s - artigo 515.º, n.º 1 al. b), do Código de Processo Penal.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por onze páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 07 de Maio de 2015

Antero Luís

João Abrunhosa

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[1]   Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006 Proferido no Proc. Nº O6P2267.
[2]   Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995
[3] Neste sentido Prof. Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal Vol. III pag. 141 e 161.
[4] Neste sentido e por todos,  Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 21/11/2001, Proc. 0140893 e Tribunal da Relação de Coimbra de 06/06/2012, Proc. 135/10.1.TALSA.C1, in www.dgsi.pt
[5] Proc. n.º 430/2004 - 3.ª Secção in DR 212 SÉRIE I-A, de 2005-11-04
[6] Neste sentido e a título meramente exemplificativo, acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 12/03/2009, e Proc. 08P3168, in www.dgsi.pt  e acórdão Tribunal Constitucional, sobre a constitucionalidade desta interpretação, 636/2011in DR 19 II Série de 26/01/2012.