Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
706/07.3TBRMR-A.L1-1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: ADMISSÃO DO RECURSO
PRESUNÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.
1. Tendo a execução dado entrada em juízo antes da vigência do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/07, que entrou em vigor em 01/01/2008 e, conforme expresso nos artigos 11.º, n.º 1 e 12.º da sua parte preambular, não se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
2. Todavia, quanto à oposição interposta em 15/09/2009, existindo, uma dependência funcional relativamente à execução, seria pouco curial considerar que o legislador pretendeu estabelecer um regime recursório para a execução e outro para a oposição à mesma execução.
3. A interligação intrínseca ou orgânica entre o apenso e a ação principal, como sucede entre a execução e a oposição à mesma, leva a aceitar que em observância da “unidade coerente da tramitação de um processo por referência à globalidade do ordenamento processual em vigor aquando do começo desse mesmo processo”  é  determinante do regime de recurso aplicável.
II.
4. As presunções são as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
5. Como tem sido jurisprudência largamente consensual, a Relação não pode fazer uso de presunções judiciais para alterar um facto dado como não provado pela primeira instância e alcançar outro resultado diferente, a não ser que se verifique algumas das situações previstas no artigo 712.º, n.º 1, do CPC, ou seja, no fundo, se ocorreu erro de julgamento, suscetível de determinar uma alteração da decisão de facto.
6. No caso, estando em causa a reapreciação da prova pericial e testemunhal, poderia o facto ser dado como provado, por via da presunção judicial, se da análise crítica da prova produzida se pudesse concluir, ainda que por via de presunção judicial, que havia elementos probatórios que evidenciassem e formassem de forma razoável a convicção do julgador no sentido da veracidade da assinatura.
7. Se a prova pericial não se revelou suficientemente esclarecedora e a prova testemunhal não teve qualquer valia probatória relevante por as testemunhas não terem conhecimento direto sobre o facto essencial controvertido.
8. A veracidade da assinatura é, no caso, o facto desconhecido.
Da existência da aposição da mesma no cheque, facto conhecido, não se infere, seja por razões de ordem lógica ou das regras da experiência comum, que a assinatura seja daquele que invoca a falsidade da mesma.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam noTribunal da Relação de Lisboa


I – RELATÓRIO
GF deduziu oposição à execução movida pela exequente CA, S.A. (atualmente designada S– Comércio de Automóveis, S.A.), alegando, em síntese, que não assinou e não preencheu o cheque apresentado como título executivo, pelo que nada deve à exequente e nunca teve qualquer relação comercial com a mesma, pedindo, consequentemente, que a execução seja extinta e a penhora levantada.
Notificada a exequente, apresentou contestação, impugnando os factos alegados pela executada, concluindo pela improcedência da oposição apresentada.
Foi proferido despacho saneador, foram selecionados os factos assentes e organizada a base instrutória.
Procedeu-se à realização de perícia (exame à escrita) relativamente à assinatura e preenchimento do título executivo, atribuídos à opoente, encontrando-se o respetivo relatório junto a fls. 77 a 87.
Procedeu-se a julgamento.
Foi proferida sentença que julgou procedente a oposição à execução e declarou extinta a execução, ordenando o levantamento da penhora e a entrega à executada dos montantes penhorados nos autos.
Inconformada, apelou a exequente, apresentando as conclusões recursórias abaixo inseridas.
Foram apresentadas contra-alegações que concluem pela manutenção da sentença, caso o recurso venha a ser apreciado.

Conclusões da apelação:
(…)
II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, importa decidir: se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto e, nesse pressuposto, alterada a decisão de mérito, julgando-se improcedente a oposição.


B- De Facto
A 1.ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto:
(…)

III- DO CONHECIMENTO DO RECURSO
1. Comecemos pela questão prévia da admissibilidade do recurso da apelante, cuja apreciação mais aprofundadada, por razões de economia processual (conforme de mencionou resumidamente no despacho que recebeu o recurso), se relegou para este momento.
O requerimento executivo foi apresentado em juízo em 04/10/2007.
A oposição, na qual foi interposto o recurso ora em apreciação, foi instaurada por apenso àquela, em 15/09/2009.
A sentença recorrida foi proferida em 04/04/2013.
O recurso dela interposta foi apresentado em juízo em 09/05/2013.
Foi admitido em 1.ª instância em 12/06/2013.
As alegações foram apresentadas em 07/10/2013.
 Defende a apelada que o recurso deveria ter sido interposto segundo as regras recursórias introduzidas ao CPC de 1961, através do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08, pelo que não deveria ter sido admitido e, tendo-o sido, deve ser desentranhado.
Não se pode corroborar este entendimento, pelas razões que sucintamente se deixam consignadas, sendo certo que se trata de questão já debatida noutros arestos e que, segundo cremos, tem vingado sem controvérsia de maior.
É importante nessa ponderação levar em conta que o que está em causa é o regime recursório aplicável às decisões/recurso proferidas num apenso a uma execução, ou seja, numa oposição.
A execução deu entrada em juízo antes da vigência do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/07, que entrou em vigor em 01/01/2008 e, conforme expresso nos artigos 11.º, n.º 1 e 12.º da sua parte preambular, não se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
Não era esse o caso em relação à execução.
Já assim sucedia em relação à oposição, por a mesma ter sido interposta em 15/09/2009.
Existindo, porém, uma dependência funcional da oposição relativamente à execução, seria pouco curial considerar que o legislador pretendeu estabelecer um regime recursório para a execução e outro para a oposição à mesma execução.
Como se observou lapidarmente num aresto que analisou esta matéria, existindo uma interligação intrínseca ou orgânica entre o apenso e a ação principal, como sucede entre a execução e a oposição à mesma, “o objectivo de alcançar uma unidade coerente da tramitação de um processo por referência à globalidade do ordenamento processual em vigor aquando do começo desse mesmo processo, é plenamente alcançada com a consideração do processo principal – rectius, da data de instauração deste – como factor decisivo na determinação do regime de recursos globalmente aplicável.” [1]
Deste modo, o regime recursório vigente e aplicável à data da interposição do recurso era o que resultava do CPC de 1961 na versão anterior às alterações introduzidas pelo citado Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08, ou seja, o prazo de interposição era de 10 dias contados da notificação da sentença e, admitido o recurso, desencadeava-se o prazo das alegações (cfr. artigos 685.º, n.º 1, 698.º, n.º 2 e 6, do CPC, na redação aplicável).
Foi o que se verificou no caso em apreço, pelo que falece a razão que sustenta, no entender da apelante, o não recebimento do recurso e o seu desentranhamento.
Importa, ainda, mencionar que a entrada em vigor do novo CPC, em 01/10/2013, (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26/06) ou seja, antes da apresentação das alegações e, independentemente da sua aplicação aos processos pendentes em fase de recurso (cfr. artigo 7.º da parte preambular da referida Lei n.º 41/2013), em nada altera a conclusão anterior, por os pressupostos de admissibilidade da referida impugnação serem aferidos em face das normas processuais em vigor àquela data.
Por conseguinte, reitera-se que nada obsta a que se conheça do objeto do recurso.

2. Vejamos, agora, a questão da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A apelante invoca erro de julgamento em relação ao ponto 1.º (e único) da base instrutória.
No seu entender a matéria ali inserida encontra-se provada por via da prova pericial e testemunhal produzida nos autos.
O ponto da base instrutória em apreço foi formulado com a seguinte redação:
“A expressão mencionada em C) supra foi ali aposta pelo próprio punho da executada/oponente GF?”
(A expressão mencionada em C) tem a seguinte redação: “No segmento relativo a “Assinatura(s)” consta inscrita em tal cheque a expressão “GF”).
Está, assim, questionada a resposta “Não provado” dada ao referido ponto da base instrutória, discordando a apelante do juízo crítico que o tribunal a quo realizou em função das provas produzidas, por considerar que, em face do teor do cheque apresentado como título executivo e do depoimento das testemunhas por si arroladas, resulta que foi do punho da executada/oponente que saiu a assinatura aposta no cheque, considerando, ainda, que o tribunal desvalorizou o testemunhos daquelas testemunhas, apesar de terem conhecimento direto dos factos, e valorizou o depoimento das testemunhas arroladas pela executada/oponente que, ao invés, não tinham esse tipo de conhecimento, apresentando um testemunho de ouvir dizer.
Cumpre apreciar:
Os meios probatórios submetidos à apreciação do tribunal a quo - prova documental por via de documentos de natureza particular, prova testemunhal e pericial – estão todos sujeitos à livre apreciação do tribunal (cfr. artigos 362.º, 363.º, n.º 1, 373.º, 374.º, 376.º, 383.º, 389.º, 392.º e 396.º, todos do Código Civil).
Visam, como decorre do artigo 341.º do Código Civil, a demonstração da realidade dos factos.
No caso, o ónus de prova da veracidade da assinatura aposta no cheque – única questão que efetivamente releva na apreciação da presente causa, já que o título executivo apresentado à execução foi esse título cambiário e não outro título executivo, nada sendo alegado no sentido do referido cheque não reunir os respetivos requisitos legais de exequibilidade inerente a esse tipo de documento (cfr. artigo 45.º, 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961,vigente à data da instauração da execução, e artigo 1.º da LUCh) – considerando que a oponente impugna a veracidade da assinatura ali aposta, impende sobre a exequente, ora apelante, conforme expresso na sentença recorrida, por aplicação do disposto nos artigos 342.º, n.º 1 e 374.º, n.º 2 do Código Civil.
Na presente situação, em que não ocorreu declaração confessória da ora apelada, bem pelo contrário, a prova da veracidade poderia resultar da prova pericial, da prova testemunhal ou resultar da aplicação de presunção judicial.
No tocante à prova pericial, levada a cabo através de exame à letra e assinatura da oponente, resultou que, cientificamente, apenas se pode formular o seguinte juízo: a assinatura “pode ter sido produzida pelo seu punho” (cfr. fls. 80).
Não sendo possível nestas matérias os peritos formularem juízos de probabilidade em termos matemáticos (cfr. fls. 83), adiantam, porém, uma escala graduada em que sistematizam o grau de segurança das expressões usadas.[2]
A expressão usada, conforme decorre dessa escala, situa-se aquém da zona em que os peritos entendem que existem elementos indiciadores para afirmarem positivamente que há alguma probabilidade da letra e assinatura pertencerem à examinada.
Ora esta conclusão não revela a segurança mínima que permita ao juiz, só por via deste meio de prova, formar a sua convicção de forma esclarecida.
Por conseguinte, dizer-se que “pode ter sido” quando está em causa o apuramento da veracidade da assinatura, traduz uma dúvida que só poderia ser superada por recurso à concatenação e cruzamento com outros elementos probatórios.
Obviamente que não o próprio título executivo, já que é sobre a assinatura aposta no mesmo que está suscitada a invocação da falsidade da assinatura da oponente.
No tocante à prova testemunhal, considerando os depoimentos das testemunhas arroladas pela oponente e ouvidas em julgamento – SM e MCF – resulta dos seus depoimentos (extratados no recurso) que efetivamente não tinham conhecimento direto dos factos relevantes, ou seja, não sabiam se a assinatura aposta no cheque pertencia à oponente, de quem disseram ser amigas. Também nem sequer resulta dos seus depoimentos que o cheque em causa foi algum ou alguns daqueles que a oponente lhes disse que lhe teriam sido retirados nas circunstâncias que relataram.
O despacho que fundamentou a decisão sobre a matéria de facto também considerou que os depoimentos destas testemunhas não foi apto a desfazer as dúvidas que estavam suscitadas sobre a veracidade da assinatura da oponente (contrariamente ao que parece ser a interpretação que a recorrente faz do despacho que fundamentou a decisão sobre a matéria de facto).
Restam os depoimentos das testemunhas arroladas pela exequente/apelante, ouvidas em julgamento, ou seja, GA e RJC, trabalhadores da mesma, e que revelaram estar a par do negócio que deu origem à apresentação do cheque por parte do comprador da viatura, PS.
Ora, conforme decorre dos depoimentos destas testemunhas, também extratados no recurso, nenhum deles jamais conheceu ou viu a oponente no stand de vendas em qualquer altura da realização do negócio, no momento da apresentação do cheque, ou sequer em momento posterior quando foi feita a devolução do veículo por parte do comprador. Muito menos presenciaram a assinatura do cheque.
Consequentemente, não tinham conhecimento direto da matéria relevante, ou seja, se a assinatura aposta no cheque foi feita pelo punho da oponente.
Também o tribunal recorrido considerou que, perante os depoimentos dessas testemunhas, havia sérias dúvidas sobre se foi a oponente quem assinou o cheque em causa nos autos, dúvida que não sendo resolvida pelos meios probatórios carreados para os autos, determinou o funcionamento das regras do ónus da prova, decidindo contra a parte onerado com o mesmo, ou seja, a ora apelante (cfr. artigo 516.º do CPC aplicável).
Argumenta, porém, a apelante que o comportamento do comprador, segundo o relatado por estas testemunhas, não indicia qualquer comprometimento com uma situação de burla, tanto mais que ao saber que o cheque não tinha provisão, tentou resolver a situação e, não o conseguindo, devolveu o veículo.
E no seguimento dessa linha argumentativa defende que o tribunal ad quem pode alterar a decisão de facto da 1.ª instância com base numa presunção judicial, na medida em que a ilação em que a decisão daquela instância se fundou não foi afastada pelos depoimentos orais prestados, devendo, assim, considerar-se provado que o cheque foi assinado pelo punho da ora apelada.
Nada mais desacertado, a nosso ver.
Como tem sido jurisprudência largamente consensual[3], a Relação não pode fazer uso de presunções judiciais para alterar um facto dado como não provado pela primeira instância e alcançar outro resultado diferente, a não ser que se verifique algumas das situações previstas no artigo 712.º, n.º 1, do CPC, ou seja, no fundo, se ocorreu erro de julgamento, suscetível de determinar uma alteração da decisão de facto.
No caso, estando em causa a reapreciação da prova pericial e testemunhal, poderia o facto ser dado como provado, por via da presunção judicial, se da análise crítica da prova produzida se pudesse concluir, ainda que por via de presunção judicial, que havia elementos probatórios que evidenciassem e formassem de forma razoável a convicção do julgador no sentido da veracidade da assinatura.
Mas, na verdade, não há, pelas razões já antes analisadas.
A prova pericial não se revelou suficientemente esclarecedora e a prova testemunhal não teve qualquer valia probatória relevante por as testemunhas não terem conhecimento direto sobre o facto essencial controvertido.
Conforme decorre do artigo 349.º do Código Civil, as presunções são as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
A veracidade da assinatura é, no caso, o facto desconhecido. Da existência da aposição da mesma no cheque, facto conhecido, não se infere, seja por razões de ordem lógica ou das regras da experiência comum, que a assinatura seja daquele que invoca a falsidade da mesma.
Não é, assim, passível de censurar a decisão fáctica da 1.ª instância por não se verificar acerto em qualquer das críticas que lhe foram dirigidas nas conclusões recursórias (algumas, aliás, meramente enunciativas e consequenciais ao pedido de alteração da decisão, mas sem fundamentação minimamente consistente – cfr. por exemplo, conclusões 30, 31, 32, 41, 45 -, outras completamente desconexionadas dos factos provados – cfr. por exemplo, conclusão 34), nem consequentemente proceder à sua alteração, nos termos requeridos pela apelante.
Mantêm-se, pois, inalterada a decisão de facto.
E perante essa conclusão, a decisão de direito não poderia ser diferente da proferida, sendo que a apelante também nada mais invoca de direito que justifique maior análise jurídica.
Em suma, não procedem de todo as conclusões recursórias, não violando a sentença quaisquer das normas jurídicas invocadas pela apelante.
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da apelante, sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.


IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.

Lisboa, 18 de março de 2014

Maria Adelaide Domingos

Eurico José Marques dos Reis

Ana Grácio

[1] Ac. RP, de 01-10-2009, proc. 4129/06.3XYLSB-C.P1, em www.dgsi.pt
[2] A escala em causa apresenta os seguintes “graus de segurança”: -“Probabilidade próxima da certeza científica”; - “Muitíssimo provável”; - “Muito provável”; - “Provável”;- “Pode ter sido”; - “Não é possível formular conclusão”;- “Pode não ter sido”; - “Provável não”; - “Muito provável não”;- “Muitíssimo provável não”;- “Probabilidade próxima da certeza científica não”.
[3] Cfr. resenha jurisprudencial mencionada por LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “Prova por Presunção no Direito Civil”, Almedina, 2012, p. 153 a 156v.

Decisão Texto Integral: