Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
208/13.9TELSB-B.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: DESPACHO DE ARQUIVAMENTO/ACUSAÇÃO
INTERVENÇÃO HIERARQUICA
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
COMPETENCIA DO JIC
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário:

I - O juiz de instrução tem competência para apreciar as invalidades cometidas em inquérito sempre que contendam com direitos liberdades e garantias, tanto mais que as normas constitucionais são de aplicação directa.

II - Em questões de alegada violação de direitos liberdades e garantias, a intervenção jurisdicional impõe-se, no imediato, independentemente da fase processual em que a mesma ocorra, assim se garantindo a tutela jurisdicional consagrada no texto constitucional e materializando o “direito ao juiz” que a mesma comporta.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I - Relatório

Nos autos de inquérito que correm termos nos serviços do Ministério Público do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, com o Nº 208/13.9TELSB, na sequência de requerimento apresentado por M... através do qual pretendia que fosse declarado inexistente, nulo ou irregular o despacho de intervenção hierárquica inscrito a fls. 2070 a 2081 com todas as consequências legais, o Meritíssimo Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal indeferiu o mesmo nos seguintes termos: (transcrição)

“Fls. 2105 a 2109:

M..., que se considera suspeito nos presentes autos de inquérito, apresentou um requerimento dirigido a este tribunal e simultaneamente ao Ministério Público, de acordo com o qual pretende o reconhecimento de vícios de um despacho de intervenção hierárquica proferido na sequência de um despacho de arquivamento proferido neste processo.

O mencionado requerente não sustenta, de qualquer forma, ao abrigo de que disposição processual apresenta o seu requerimento a este tribunal e qual a norma processual que lhe atribui o direito de requerer nestes autos, designadamente de intervir a pedir a declaração de vícios processuais (arts. 60.º e 61.º do Código de Processo Penal a contrario).

Analisados os autos resulta que o mencionado M... nunca foi constituído arguido, nem, por outro lado, se encontra prevista qualquer intervenção judicial nesta fase do processo, sendo claro que o juiz de instrução criminal não se encontra integrado na hierarquia do Ministério Público, não sendo superior hierárquico de qualquer outra entidade.

Por isso, estando os autos em inquérito, não sendo o requerente um sujeito processual, ao abrigo do disposto nos arts. 263.º, n.º1, 268.º e 269.º do Código de Processo Penal, declaro o Ministério Público competente para o conhecimento do requerido.

Ds.” (fim de transcrição)

***

Não se conformando com a referida decisão dela veio M... interpor o presente recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões: (transcrição)

1)            O ora recorrente, de nacionalidade angolana, residente e contribuinte fiscal na República de Angola, foi denunciado nos presentes autos dos quais aliás tomou conhecimento pela imprensa portuguesa;

2)            Após o que, voluntariamente, veio aos autos coligir prova e demonstrar não possuir quaisquer antecedentes criminais e posteriormente a inexistência da pendência de quaisquer processos-crime contra si.

3)            Em 3 de Junho de 2014 foi o ora recorrente notificado do douto despacho proferido Exmo. Sr. Procurador da República titular do inquérito a fls. 1603 no sentido de vir juntar os suportes bancários e sumária justificação dos movimentos identificados no relatório pericial;

4)           Em 11 de Agosto de 2014, o recorrente veio a fls. … juntar os suportes bancários das operações ali identificadas e justificar sumariamente os referidos movimentos bancários.

5)            No dia 12 de Agosto de 2014, foi proferido pelo Exmo. Sr. Procurador da República titular da investigação, nos termos do disposto no nº 1 do art. 277º do CPP, o despacho de arquivamento inscrito a fls. 2015 a 2069;

6)           Em 15 de Setembro de 2014, o Exmo. Sr. Director do DCIAP proferiu o douto despacho de intervenção hierárquica inscrito a fls. 2070 a 2081, ordenando a fls. 2081 in fine a notificação simultânea destes dois despachos aos intervenientes processuais;

7)            Os referidos despachos de arquivamento e de intervenção hierárquica foram simultaneamente notificados ao ora recorrente a fls… , por Correio registado, expedido pela Secretaria de processos do DCIAP, no dia 16 de Setembro de 2014, com a Referência n.º 1652028;

8)            Da análise dos referidos despachos resulta que o referido douto despacho de intervenção hierárquica foi proferido pelo Exmo. Sr. Director do DCIAP sem que o despacho de arquivamento tivesse sido previamente notificado ao assistente, ao denunciante e ao aqui recorrente, dispensando o assistente e o denunciante de tomarem uma posição processual sobre o mesmo, omitindo assim o disposto no art. 277º nº 3 do CPP e antecipando o Exmo. Sr. Director do DCIAP nos autos a sua posição em benefício do assistente;

9)            Ao que acresce o facto de, nos termos do art.278º nº 1 do CPP, a intervenção hierárquica apenas poder ocorrer no prazo de 20 (vinte) dias a contar da data em que já não puder ser requerida a abertura de instrução, pelo que só depois de decorrido este prazo podia o superior hierárquico, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente determinar que seja formulada a acusação ou que as investigações prosseguissem;

10)        Deste modo, a intervenção hierárquica do Exmo. Sr. Director do DCIAP traduziu-se numa manifesta violação do disposto nos arts. 277º, nº 3 e 278º do CPP, bem como do Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 31/2009, publicado na 2ª Série do Diário da República, n.º 216, de 8 de Novembro de 2012, lesando gravemente os direitos de defesa do recorrente;

11)     Com efeito, não admitindo o crime de branqueamento a constituição de assistente (cfr. art.º 68.º, n.º1, al. e) do CPP, notificado que fosse do despacho de arquivamento o assistente e o denunciante teriam de sobre o mesmo tomar previamente posição e optando por requerer a abertura de instrução a mesma seria indeferida por inadmissibilidade legal (cfr. n.º 3 do art.º 287.º do CPP);

12)        O Exmo. Sr. Director do DCIAP obstou assim a um resultado favorável à defesa do recorrente não se conformando com as consequências da lei, dever a que está obrigado, aliás, dispõe expressamente o n.º 2, do Art.º 8.º, do Código Civil: «O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob o pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo”;

13)        A intervenção hierárquica do Exmo. Sr. Director do DCIAP traduziu-se numa manifesta violação do disposto nos arts. 277º nº 3 e 278º do CPP,  lesando assim os direitos de defesa do aqui recorrente;

14)        Consequentemente veio o ora recorrente a fls. 2105 a 2109 apresentar requerimento ao Exmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal no sentido de ver apreciados e reconhecidos os vícios que ferem o aludido despacho de intervenção hierárquica;

15)         Através do douto despacho a quo inscrito a fls. 2131/2132 o Exmo. Sr. Dr. Juiz de Instrução Criminal entendeu não ser competente para conhecer e decidir sobre as invalidades arguidas relativamente ao despacho de intervenção hierárquica por não estar prevista na lei a sua intervenção na fase de inquérito e por não estar integrado na hierarquia do Ministério Público;

16)        O Juiz de Instrução Criminal (JIC) surge no processo penal como um verdadeiro garante dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, competindo-lhe, pela positiva, velar pelo cumprimento dos mesmos;

17)        Por outro lado, inexistem quaisquer dúvidas de que compete ao JIC, além do mais, praticar todos os actos que consubstanciem o exercício de funções jurisdicionais relativas ao inquérito, tal como dispõe o art. 17º do CPP;

18)        O conhecimento de invalidades – quer se trate de inexistência, nulidades ou irregularidades - cometidas na fase de inquérito insere-se no âmbito função jurisdicional do juiz de instrução;

19)        A inexistência jurídica ou a nulidade trazidas ao conhecimento do JIC são do conhecimento oficioso;

20)         Não obstante, encontramos outros fundamentos dispersos no Código de Processo Penal que reclamam a intervenção do JIC no que respeita à apreciação de invalidades ocorridas no inquérito, como os previstos nos artigos 268º, nº1, al f), 122º, nº2 e 3 e 291º nº 3 do CPP;

21)        A intervenção hierárquica, realizada em violação dos termos previstos no art. 278º do CPP, traduziu-se num acto processual capaz de comprimir direitos e garantias do aqui recorrente, pelo que dificilmente se percebe e pode sustentar que o juiz de instrução não tenha competência para conhecer as invalidades legitimamente arguidas pelo ora recorrente;

22)        Não poderia assim o JIC deixar de apreciar os vícios arguidos pelo ora recorrente a fls. 2105 a 2109;

23)         O douto despacho a quo violou assim os arts. 17º, 122º nº 2 e 3, 268º nº 1 f) e.291º nº3 todos do CPP e o art.32º da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que, em face do exposto, requer a V. Exas. se dignem revogar o douto despacho a quo e determinar a apreciação pelo Exmo. Sr. Dr. Juiz de Instrução Criminal das invalidades arguidas pelo ora recorrente a fls. 2105 a 2109 relativamente à extemporânea intervenção hierárquica constante de fls. 2070 a 2081;

assim glorificando o Direito, a Justiça, a Verdade e a Razão.  (fim de transcrição)

***

O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso nos termos constantes de fls. 14 a 26 dos presentes autos concluindo, nos seguintes termos: (transcrição)
1. “Nos termos do disposto no art. 414°, 11.° 2, do Código de Processo Penal, o recurso não é admitido quando o requerente não reunir as condições necessárias para recorrer.
2. No caso dos autos, o requerente não tem legitimidade para apresentar o presente recurso [cf. art. 401°, n.º 1, al.s b), e d), ín fine, do Código de Processo Penal], como não dispõe de interesse em agir processualmente relevante (cf. art. 401°,11.° 2, do Código de processo Penal).
3. o requerente não assume, nos presentes autos de inquérito, a qualidade de sujeito processual, não tendo sido constituído arguido, não lhe sendo, por esta via, aplicável a norma constante do art. 401°, n." 1, al. b), do Código de Processo Penal.
4. o requerente assume, assim, nos presentes autos, a mera qualidade de suspeito, já que se trata de alguém relativamente a quem existe indício de que cometeu um crime, ou de que nele participou [cf. art. 1°, alo e), do Código de Processo Penal).
5. Não altera a posição processual do requerente o facto de este ter procedido à entrega de elementos documentais solicitados pelo Ministério Público ou a circunstância de lhe ter sido comunicado o despacho final proferido nos presentes autos juntamente com o despacho que determinou a sua reabertura.
6. o requerente não se apresenta na veste de alguém que tenha a defender um direito afetado pela decisão que pretende agora ver colocada à apreciação do tribunal superior [cf mi. 401 ", n." 1, al. d), ín fine, do mesmo diploma legal], já que aquela não determinou um prejuízo para os seus direitos.
7. o "resultado favorável à defesa do recorrente" que a decisão proferida terá evitado que se produzisse não é uma circunstância que careça da tutela do direito, uma vez que o mesmo não passa de uma conjetura, incapaz, pela sua própria natureza, de produzir efeitos na ordem jurídica e, deste modo, de afetar direitos subjetívos.
8. o requerente carece de interesse em agir processualmente relevante (cf. art. 401 ", n." 2, do Código de Processo Penal).
9. o interesse em agir é "( ... ) o interesse em recorrer ao processo, na perspectiva de o direito do recorrente estar necessitado de tutela", necessidade esta apreciada "objectivamente e em relação à normatividade jurídica e não a nenhuma outra (moral, profissional, etc.}."
10. Meras conjeturas ou resultados incertos não são circunstâncias passíveis de caracterizar um objetivo interesse em agir processualmente relevante.
11. No presente caso, a própria configuração do processo penal português inviabiliza considerar-se assistir ao requerente interesse em agir no presente recurso, já que os efeitos desejados com o mesmo não são alcançáveis por essa via, tendo em conta o sistema legal que regula a área da pretensão formulada.
12. Uma vez que o requerente não reúne as condições necessárias para recorrer, não tendo legitimidade para o efeito nem tendo interesse em agir [cf art. 401°, n." 1, al.s b) e d), infine, e n." 2, do Código de Processo Penal], deve, ao abrigo do que dispõem os art.S 420°, n." 1, alo b), e 417°, n." 6, alo b), do Código de Processo Penal, o presente recurso ser rejeitado, já que se verifica causa que devia ter determinado a sua não admissão, nos termos do art. 414°, n.? 2, do mesmo diploma legal.
13. Nos termos do art. 32°, n." 5, da Constituição da República Portuguesa, o processo penal tem estrutura acusatória.
14. o art. 219°, n." 1, da Constituição da República Portuguesa densifica, do ponto de vista orgânico, uma das dimensões da estrutura acusatória do processo penal, ao consagrar o Ministério Público como a magistratura a quem compete, entre o demais, o exercício da acção penal orientada pelo princípio da legalidade, e ao proclamar a autonomia do Ministério Público, seja em relação aos demais órgãos de poder do Estado, seja em relação à magistratura judicial.
15. o Ministério Público surge assim, na estrutura processual penal portuguesa, como o dominus da fase de inquérito, cabendo-lhe a sua direcção e a tomada de decisões com vista à prossecução da sua finalidade: a decisão sobre a acusação ou o seu arquivamento.
16. Neste contexto, a intervenção jurisdicional na fase de inquérito é contida, sendo "o juiz de instrução, no domínio do inquérito, sobretudo, um juiz de garantias e de liberdades, não tendo qualquer intervenção de tipo hierárquico ou de supervisão jurisdicional dos actos do Ministério Público, para além dos consagrados nos artigos 268.° e 269.° do c.P.P.".
17. Este modelo envolve "uma separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito".
18. o juiz de instrução não tem competência para conhecer, durante o inquérito, da invalidade de atos processuais praticados pelo Ministério Público, cabendo tal competência ao Ministério Público, enquanto autoridade judiciária titular do processo penal na fase de inquérito.
19. A estrutura acusatória do processo penal e as consequências que a mesma envolve no que respeita à concorrência de competências para a apreciação de invalidades invocadas na fase de inquérito determinam uma interpretação extensiva do art. 122°, n." 3, do Código de Processo Penal, por forma a nele incluir o Ministério Público quanto a atas por si praticados na fase processual a que preside.
20. Outro entendimento redundaria na possibilidade de prolação de decisão jurisdicional sobre uma decisão do Ministério Público convolando, desta forma, ilegitimamente, uma decisão do Ministério Público numa outra, com o mesmo objeto e alcance materiais, desta feita, de natureza judicial e, portanto, passível de recurso para um tribunal superior.
21. As decisões do Ministério Público tomadas em fase de inquérito não deixam de ser, sempre, jurisdicionalmente sindicáveis pelo órgão judicial que vier a ter intervenção nas subsequentes fases do processo.
22. o recorrente pretende ver apreciada judicialmente uma questão que, na realidade, não pode ser, na presente fase, conhecida por uma instância jurisdicional.
23. o ora recorrente apresentou reclamação hierárquica à Ex.ma Sr.a Conselheira Procuradora-Geral da República, na qual invoca um conjunto de argumentos em absoluta contrariedade com aqueles de que se socorre no recurso a que ora se responde.
24. A assunção de tal conduta no processo (invocando um conjunto de argumentos no requerimento de reclamação hierárquica dirigido à Ex.ma Sr.a Conselheira Procuradora-Geral da República e, agora, no recurso em apreciação, invocando razões de direito absolutamente opostas e contraditórias com aqueles) é reveladora de um comportamento contrário aos deveres de boa-fé e de lealdade processual que impendem sobre qualquer interveniente no processo penal.
25. Inexiste qualquer falha a apontar à decisão ora colocada em crise, na medida em que, naquela, o M.mo juiz a quo limitou-se a dar cumprimento ao princípio do acusatório que rege o processo penal e a respeitar estritamente a autonomia do Ministério Público enquanto autoridade judiciária que dirige, com poderes decisórios, a fase de inquérito, ao declarar-se incompetente para apreciar os termos do requerimento apresentado pelo ora recorrente.
26. A decisão recorrida deu estrito cumprimento às disposições legais que versam sobre esta matéria, não se vislumbrando qualquer vício, ilegalidade ou inconstitucionalidade que se lhe possa apontar, não oferecendo qualquer motivo de sindicância que determine a sua revogação.
27. Deste modo, o presente recurso não merece provimento, devendo, em consequência, a decisão recorrida ser mantida, nos seus precisos termos.

Pelo exposto:

a)    o presente recurso deve ser rejeitado, ao abrigo do que dispõem os art.s 420°, n 1, al. b), e 417°, n 6, al. b), do Código de Processo Penal, uma vez que se verifica causa que devia ter determinado a sua não admissão, nos termos do art. 414°, n.º 2, do mesmo diploma legal, considerando que o requerente não reúne as condições necessárias para recorrer, não tendo legitimidade para o efeito nem tendo interesse em agir [cf. art. 401°, n.º 1, al.s b) e d), in fine, e n.º 2, do Código de Processo Penal];

assim não se entendendo

b)    o presente recurso não merece provimento, devendo ser mantida, nos seus precisos termos, a decisão recorrida;

fazendo-se, deste modo, a costumada JUSTIÇA.” (fim de transcrição)

***

       O recurso foi admitido após decisão do Exmo Juiz Desembargador Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa que deferiu a reclamação apresentada pelo recorrente, após ter sido indeferida inicialmente pelo Meritíssimo Juiz de Instrução a sua admissão.

O Meritíssimo Juiz não deu cumprimento ao disposto no artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal.

       Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer a fls. 231 e 232 o qual, após considerar “Inacreditável” o despacho do Exmo Juiz Desembargador Vice- Presidente deste Tribunal que decidiu a reclamação e decidiu a admissão do recurso, considera que o mesmo deve ser rejeitado por o processo não estar na esfera de jurisdição do Tribunal de Instrução e este não poder interferir com a autonomia do Ministério Público, sob pena de violação do artigo 219º da Constituição que a consagra.

       Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal veio responder o recorrente invocando, para além daquilo que são as suas conclusões de recurso, a incompetência dos Tribunais portugueses para apreciar os factos e concluindo ainda pela procedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II -   Fundamentação

1. É pacífica a jurisprudência do STJ[1] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.[2]

Da leitura das conclusões do recorrente o mesmo coloca a este Tribunal de recurso a questão de saber se o Juiz de Instrução é competente para conhecer, em sede de inquérito, de eventuais invalidades/nulidades praticadas pelo Ministério Público, lesivas dos direitos, liberdades e garantias de um cidadão/suspeito, não constituído arguido.

Para responder a esta questão impõe-se analisar a mesma pelas seguintes perspectivas: Qualidade do recorrente; Autonomia do Ministério Público e Poderes do Juiz de Instrução em sede de Inquérito.

Na questão referente à qualidade do recorrente aborda-se e decide-se simultaneamente a questão suscitada pelo Ministério Público sobre a admissibilidade do recurso.

Vejamos cada uma delas.

2. O Meritíssimo Juiz de Instrução no seu despacho considera que o recorrente “se considera suspeito nos presentes autos de inquérito” (sic). Por sua vez o recorrente nunca se considera, expressamente, suspeito no seu recurso, assumindo-se sempre como “cidadão” e “pessoa” e apelando, nessa qualidade, ao seu direito de defesa. Por sua vez os Dignos Magistrados do Ministério Público, nos seus despachos, apelidam o recorrente de “investigado” (sic).

Resulta dos autos, nomeadamente do despacho do Exmo Director do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, junto ao presente recurso e da motivação do recorrente, o seguinte:
a) « O presente inquérito iniciou-se com uma certidão do Inquérito n.º 142/12.0TELSB, o qual teve origem em queixa apresentada por A.... No essencial, e como referido a fls. 124, os denunciantes vinham solicitar “que seja feito inquérito às transações de avultadas somas envolvendo bancos e instituições financeiras portuguesas, realizadas por personalidades politicamente expostas e empresários de origem angolana e portuguesa”»;
b) No decurso do inquérito o recorrente, através do seu ilustre advogado, « apresentou requerimento (fls.1470), em 20/3/2014, no qual reiterou a disponibilidade para prestar quaisquer esclarecimentos considerados necessários e fornecer esclarecimentos complementares»;
c) «O Exm.º Procurador titular do inquérito, em 29 de maio de 2014, proferiu o seguinte despacho: “atendendo à disponibilidade manifestada e com vista a imprimir maior celeridade à despistagem do alegado branqueamento de capitais, notifique o mandatário de M... do teor do relatório pericial de fls. 1491 a 1583 e do ponto 1 de fl.s 1488-1489 para, querendo, juntar os suportes bancários e sumária justificação dos movimentos” (fls. 1603).»;
d) Em 11 de agosto de 2014 apresentou o investigado M..., na sequência da notificação, os suportes bancários solicitados através de requerimento com o objetivo de «justificar os movimentos identificados»;
e) O recorrente foi notificado do despacho de arquivamento e o despacho de intervenção hierárquica “(...) por Correio expedido no dia 16 de Setembro de 2014”.

Tendo em conta estas incidências processuais resulta que contra o recorrente foi aberto inquérito para investigar a eventual prática pelo mesmo do crime de branqueamento de capitais e, nessa medida, foram-lhe solicitados elementos bancários, que forneceu, foi notificado do despacho de arquivamento e do despacho de intervenção hierárquica do Ministério Público.

Com esta factualidade o recorrente não pode deixar de assumir a condição de suspeito, tal como resulta da definição legal do artigo 1º, al. e), do Código Processo Penal, no qual se define suspeito nos seguintes termos: “toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar”.

Ora, se foi aberto um inquérito para apurar a eventual responsabilidade do recorrente, é porque o Ministério Público considerou que contra o mesmo existem indícios da eventual prática de um crime, como, aliás, decorre de todo o douto despacho de intervenção hierárquica, no qual não se considerou que “(...) não se encontram justificadas (...) algumas operações”.

Em resumo, o recorrente é, em termos processuais, “suspeito” de acordo com a definição legal referida.

Tendo o recorrente a condição de suspeito, quais os seus direitos e deveres processuais?

O legislador, apesar de definir legalmente a condição de suspeito, não lhe atribui quaisquer direitos especiais para além da possibilidade de a “pessoa suspeita”, a seu pedido, poder requerer a sua constituição como arguido “(...) sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem” (artigo 59º, nº 2 do Código Processo Penal). Só a partir desse momento, constituição de arguido, é que a essa “pessoa suspeita” lhe é “(…) assegurado o exercício de direitos e deveres processuais” (artigo 60º).

A referência a suspeito ou pessoa suspeita, é vasta ao longo do Código Processo Penal, nomeadamente nos artigos 58º, nº 1 al.c), 254º a 261º; 174º e 175º (aqui na expressão “visado”); 179º, nº1 al. a); 187º, nº 4 als. a) e b) e 189º; 250º, nº 2 e 3 e 251º, nº 1 als a) e b), algumas das quais inseridas no âmbito das competências do juiz de instrução. Apesar destas referências a verdade é que o legislador não lhe atribuiu, como referimos, expressamente, um conjunto de direitos ou deveres, não o tratando autonomamente.

Como refere o Exmo Conselheiro Henriques Gaspar o suspeito, “tem relevância residual no processo (...) é uma figura dos tempos iniciais da fase preliminar do inquérito ou do âmbito das medidas cautelares de polícia. (...) A obrigatoriedade da constituição de arguido nos casos do artigo 58º determina que a autonomia da noção de suspeito não possa ultrapassar os momentos de investigação de primeira abordagem. (...) As referências avulsas à categoria de “suspeito”, as sujeições pontuais de que pode ser objecto e as faculdades processuais de que dispõe (...) não permitem considerar o “suspeito” como sujeito processual, por não dispor de um conjunto de direitos e deveres que possibilitem uma intervenção que seja constitutiva ou que possa co-determinar o objecto do processo”.[3]

Da leitura destes preceitos e dos mecanismos de funcionamento do processo penal parece concluir-se que o “suspeito” para ter direitos, nomeadamente o de defesa ab initio num processo justo e equitativo, tem de se auto-limitar e exercer o direito potestativo de ser constituído arguido. A fase liminar do processo, isto é, aquela em que o suspeito ainda não foi constituído arguido por iniciativa da investigação ou a pedido do próprio, seria uma zona sem garantias. Nesta leitura, para haver garantias, é necessário ser arguido.

Não nos parece, em nossa modesta opinião, que seja este o melhor entendimento.

Não podemos esquecer que o artigo 1º da Constituição da República Portuguesa estatui que, “Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana”, o que implica não só que a “(…) a pessoa é sujeito e não objecto” e que essa dignidade “(…) tem um valor próprio e uma dimensão normativa específicos[4], onde se incluem as normas do processo criminal, as quais devem ser interpretadas, na apreciação jurisdicional dos casos concretos, tendo na base os princípios estruturantes da comunidade que somos e que o artigo 1º da Constituição estrutura.

É a partir deste ADN da República que são desenhados os poderes dos vários órgãos de soberania, as suas interdependências e todas as normas inseridas no texto constitucional e desenvolvidas na demais legislação.

É também a partir desta matriz ou acto fundador, que o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa estabelece que o “processo criminal assegura todas as garantias de defesa”, enquanto princípio programático do processo criminal, não pode cingir-se às fases contemporâneas ou posteriores à constituição de arguido, sob pena de poder permitir, em teoria, situações de violação dos direitos liberdades e garantias e, em última instância, fraude à lei. Gomes Canotilho e Vital Moreira consideram que todo o feixe de direitos inseridos no direito constitucional de defesa “(…) deve ser posto em acção pelo menos a partir do momento em que o sujeito assume a qualidade de arguido” [5]. Verifica-se assim que, para estes constitucionalistas, o limite mínimo e inultrapassável para o exercício do direito constitucional de defesa é a constituição de arguido, não fechando, contudo, a porta a que o mesmo possa ser exercido antes desse momento.

Parece-nos, em nossa modesta opinião, que o direito constitucional de defesa, no que tange ao âmago dos direitos liberdade e garantias, deve poder ser exercido antes do momento de constituição de arguido.

A ausência de tutela dos direitos do suspeito nas fases embrionárias do processo poderia permitir, em tese, que o mesmo era alvo de revista, apreensão de correspondência, escutas telefónicas ou outro meio de comunicação (tudo isso legalmente admissível de aplicar a um suspeito), sem ser constituído arguido e em violação dos seus direitos fundamentais e ficando esse mesmo suspeito, tendo tido conhecimento do processo, impossibilitado de recorrer aos Tribunais na defesa dos seus direitos, salvo se exercer o seu direito potestativo de requerer a constituição como arguido nos termos do artigo 59º, nº 2 do Código Processo Penal. Estas situações apenas são admissíveis nos casos em que existe segredo de justiça e a existência do processo não é do conhecimento do suspeito.

A severidade desta tese resulta, além do mais, da circunstância de a constituição como arguido trazer consigo um conjunto de direitos e garantias processuais, mas, também, um conjunto de deveres alguns dos quais fortemente limitativos dos direitos pessoais, como seja a prestação de termo de identidade e residência, uma verdadeira medida de coacção de aplicação automática[6], para nós de duvidosa constitucionalidade fora dos pressupostos gerais de aplicação das medidas de coacção, limitadora do direito constitucional de liberdade de deslocação, previsto no artigo 44º da Constituição da República Portuguesa.

Como refere o Dr. Rui Pereira a propósito da qualidade de arguido, “ (…) é irrealista considerar, em geral, que tal qualidade (de arguido) é vantajosa no plano jurídico-processual. Com efeito, para além de ser condição de aplicação de medidas restritivas ou privativas de direitos de natureza cautelar, o estatuto de arguido envolve, em regra, um efeito estigmatizante que não pode ser ignorado”.[7]  

Se é verdade que o “suspeito” não é sujeito processual e não tem condições de co-determinar o processo, não deixa de ser igualmente verdade que qualquer cidadão suspeito que considere que os seus direitos fundamentais foram afectados por uma decisão de qualquer autoridade, tem o direito de recorrer aos tribunais para defesa dos seus direitos, tal como resulta dos artigos 20º e 202º da Constituição da República Portuguesa.

É este direito, “(...) a defender um direito afectado pela decisão”, que consubstancia a legitimidade e o interesse em agir do recorrente para efeitos do artigo 401º, nº 1, al.d) in fine e nº 2 do Código Processo Penal. O interesse em agir não está, nem pode estar apenas, confinado aos sujeitos processuais. Se fosse essa a intenção do legislador, o artigo 401º, nº1, al.d), in fine, não alargaria o direito ao recurso a todos aqueles que “tiverem a defender um direito afectado pela decisão” sejam ou não sujeitos processuais. Os sujeitos processuais já estão elencados nas restantes alíneas do preceito.

O Digno Magistrado do Ministério Público na sua resposta ao recurso, para fundamentar a não admissão do recurso, cita jurisprudência deste Tribunal na qual o enfâse do interesse em agir é colocado na perspectiva do direito do recorrente estar “necessitado de tutela”, o que não seria o caso.

Com o devido respeito não nos parece que a questão deva ser colocada em tais termos. Nesta fase o que está em causa não é qualquer relação material controvertida, isto é, saber se os direitos fundamentais invocados pelo recorrente foram ou não violados, mas, antes a competência ou não, do Juiz de Instrução para apreciar o seu requerimento. Estamos assim em algo anterior à relação material em discussão no processo, traduzido no direito de ver a sua pretensão apreciada por um órgão independente e imparcial, isto é, “o direito ao juiz”.

Só teria razão na sua argumentação, se se entender que o suspeito não tem quaisquer direitos em processo penal, tese que não perfilhamos pelas razões aduzidas.

3. O Digno Magistrado do Ministério Público na sua resposta ao recurso entende que o artigo 219º da Constituição da República Portuguesa, consagra a autonomia do Ministério Público, bem como lhe confere o exercício da acção penal, a qual é materializada no Código de Processo Penal, conferindo-lhe, no processo criminal, o “dominus da fase de inquérito” e limitando a intervenção do Juiz de Instrução às situações dos artigos 268º e 269º o que, concatenados, afastam qualquer possibilidade de intervenção de um órgão jurisdicional, fora dos casos expressamente previstos, sob pena de violação da referida autonomia.

Com o devido respeito não nos parece que tal argumentação seja procedente.

A Constituição da República no seu artigo 219º, nº 2 consagra efectivamente o princípio de autonomia do Ministério Público o qual é depois densificado no respectivo Estatuto. Esta autonomia é assegurada numa perspectiva organizacional e funcional, isto é, em relação aos demais órgãos de soberania, incluindo os Tribunais e simultaneamente numa perspectiva subjectiva em relação aos Magistrados do Ministério Público no exercício das suas funções. Significa isto que o Ministério Público não recebe ordens ou instruções dos demais poderes do Estado e o mesmo acontece, em relação ao exercício dos poderes que lhe estão confiados, no exercício funcional dos respectivos Magistrados, salvas as excepções consagradas na lei e nos Estatutos.

A autonomia do Ministério Público “(…) não se traduz na transposição para o Estatuto do MP da independência individual dos juízes. Por isso também não confere aos cidadãos uma garantia igual à que integra o princípio do juiz natural. Autonomia do MP significa tão só que as opções tomadas no seu seio ocorrem sem interferências externas àquela magistratura”[8], incluindo da magistratura judicial. Existe assim uma total separação das duas magistraturas e ausência de hierarquia entre ambas, existindo igualmente uma diferença de estatuto não beneficiando o Ministério Público do privilégio de independência objectiva e subjectiva próprio do juiz, mas, tão só, de autonomia nos moldes referidos.

O Ministério Público é estatuariamente uma magistratura e uma autoridade judiciária à qual compete, além do mais, “(…) colaborar com o Tribunal na descoberta da verdade material (…)” (artigo 53º), revestindo os actos de inquérito uma natureza materialmente administrativa,[9] excepto aqueles em que intervém o juiz de instrução os quais revestem natureza jurisdicional.

Esta qualidade específica e única do Ministério Público que o afasta, em grande parte, da demais administração, nem por isso lhe atribui, como ficou referido, a característica de independência própria dos juízes e dos tribunais. O estatuto e competências híbridas do Ministério Público dão-lhe um cariz sui generis, mas não o eximem ao controlo jurisdicional, presente em todos os órgãos de soberania e na Administração Pública no seu conjunto, como é próprio de um Estado de Direito.

Não nos parece curial que, estando em causa, alegadamente, direitos liberdades e garantias dos cidadãos, se possa argumentar com a autonomia de um órgão do Estado, neste caso o Ministério Público, para se poder defender a inexistência de sindicância jurisdicional desse mesmo órgão, no que respeita à sua actuação no processo criminal, de que tem o domínio.

O que está em causa no recurso não é a autonomia do Ministério Público mas, antes, se a sua actuação é conforme ao direito e se com a mesma foram violados os direitos do suspeito. Não é, em nossa modesta opinião, razoável defender que a actuação do Ministério Público não é jurisdicionalmente sindicável na fase de inquérito quando a alegação que se coloca perante o tribunal se prende com a violação dos direitos fundamentais. Defender esta tese é limitar a competência do juiz de instrução para além do quadro do artigo 17º, no qual se estatui que o mesmo tem competência, além do mais, “(…) exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento”.

Não podemos esquecer que é aos tribunais que cabe “(…) assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (…)” e que a todos é assegurado o acesso aos mesmos. Não podem pois estes princípios estruturantes ser postergados tendo na base apenas razões de autonomia de um órgão.

4. É pois tendo na base as competências do juiz de instrução e não a pretensa violação da autonomia do Ministério Público que a questão deve ser resolvida, ainda que algumas das posições, sobre a matéria, como veremos, sejam sustentadas nessa mesma autonomia e na estrutura acusatória do processo penal.

Como já referimos o juiz de instrução tem competência para a instrução, decidir quanto à pronúncia e “(…) exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste Código” (artigo 17º do Código de Processo Penal).

O Código ao longo de todo o seu articulado, estabelece especificamente um conjunto de competências do juiz de instrução, deixando nos artigos 268º, nº 1, al. f) e 269º, nº 1 al. f), tal como já tinha feito no artigo 17º, uma porta aberta para outras situações de competência não especificadas ao estatuir, “Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução” e “ (…) quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução”, respectivamente. Como exemplos de outras intervenções do juiz de instrução, para além das referidas nos citados preceitos podemos, entre outras, encontrar a suspensão provisória do processo (artigo 281º), a admissão do assistente (artigo 64º) e as declarações para memória futura (artigo 271º).

Da leitura destes preceitos e da norma que atribui a competência ao juiz de instrução já citada, parece concluir-se que o legislador não estabeleceu um numerus clausus no que respeita às competências do juiz de instrução, nomeadamente no que respeita à sua intervenção no inquérito. Se o legislador tivesse pretendido que a intervenção do juiz de instrução se cingisse apenas aos casos expressamente previstos na lei, não teria lançado mão de normas em branco em matéria de competência mesmo, ainda que de forma ambígua, nas normas em que especificadamente a consagra como são os artigos 268º e 269º do Código de Processo Penal.

É tendo na base esta opção legislativa, a qual se compreende dado o melindre das matérias em causa, que o legislador, em matéria de apreciação de nulidades cometidas em sede de inquérito, parece apontar para uma competência do juiz de instrução, em tudo que se prenda com direitos liberdades e garantias.

Esta mesma percepção pode ser retirada das disposições do Código de Processo Penal em matéria de nulidades. Na verdade, ainda que o legislador não diga expressamente a quem compete apreciar as nulidades cometidas em sede de inquérito, o mesmo, no inciso 122º nº 3 do Código de Processo Penal, relativo aos efeitos da declaração de nulidade, estatui que, “Ao declarar a nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela”. Em todo o articulado referente às nulidades, com excepção deste preceito, nunca se faz qualquer referência à competência do juiz ou do Ministério Público, nem se distinguem as várias fases do processo criminal, para além do que resulta da tipificação das várias nulidades expressamente cominadas.

Significa isto que a competência para apreciar as nulidades cometidas em sede de inquérito é do Ministério Público ou, pelo contrário, é do juiz de instrução, atenta a referência ao juiz no que respeita aos efeitos de declaração de nulidade?

A questão é controversa na doutrina e na jurisprudência.

Na doutrina, o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, defende a tese de que a competência para apreciação das nulidades em sede de Inquérito é do Ministério Público considerando que, “(…) Durante o inquérito o MP e o juiz de instrução têm ambos competência para declarar um acto processual inexistente, nulo ou irregular ou uma prova proibida. Esta solução é imposta pela conjugação de dois princípios estruturantes do processo penal: o princípio da legalidade e o princípio da estrutura acusatória do processo penal (…) Contudo, esta concorrência concorrente tem limites e eles resultam da estrutura acusatória do processo penal. Esta estrutura implica uma separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito. Assim, durante o inquérito, o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade dos actos da sua competência e o magistrado do MP só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência, nestes se incluindo actos investigatórios”.[10] No mesmo sentido Paulo Dá Mesquita, o qual considera que, “ (…) a metodologia funcional da Constituição da República Portuguesa não acolheu tal conceito material de jurisdição. Portanto ao MP compete conhecer e apreciar as nulidades em fase de Inquérito, (…) contudo esta decisão do MP, sendo definitiva na sequência procedimental do Inquérito, não vincula o órgão judicial que tiver de intervir nas subsequentes fases processuais (…) o MP detém um poder de cognoscibilidade que, contudo, não forma caso decidido, (…) existindo ainda um poder judicial de controlo dessas invalidades, em sede de incidentes judiciais em que se revelem os actos inválidos ou no decurso de fases dirigidas judicialmente”.[11][12]

Em sentido oposto vai a opinião de João Conde Correia o qual, ainda que entenda que o Ministério Público pode repara as invalidades cometidas por si próprio na fase de Inquérito, defende que “(…) o Ministério Público não tem competência para declarar a invalidade, atento o carácter materialmente judicial da declaração de invalidade. Desde logo porque as decisões do MP não estão protegidas pela força de caso julgado e delas não é possível recorrer”[13][14].

Esta mesma divergência de posições também se verifica ao nível jurisprudencial.

No sentido de que a competência é do Ministério Público podem consultar-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26/02/2014, Proc. 9585/11.5TDPRT.P1; de 15/2/2012, Proc. 36/09.6TAVNH.P1 e de 2/11/2015, Proc. 0541293, acórdão da Relação de Guimarães de 20/09/2010, Proc. 89/09.7GCGMR.G1; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/05/2011, Proc. 1566/08.2TACSC.L1.5[15].

Em sentido oposto de que a competência é do juiz de instrução podem consultar-se, acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.02.1996, CJ, XXI, I, 51; do Tribunal da Relação do Porto de 30.05.2001, CJ, XXVI, III, 241; do Tribunal da Relação de Évora de 02.07.1996, CJ, XXI, IV, 296 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-09-2008, Proc. 1640/06.0TAAVR-C.C1[16].

Feita esta resenha doutrinal e jurisprudencial, voltemos ao caso concreto.

No caso em apreço a nulidade invocada pelo recorrente é a sua não notificação, na qualidade de suspeito, do despacho de arquivamento de 12 de Agosto de 2014, a não notificação do mesmo ao denunciante e ainda intervenção hierárquica do Exmo Director do DCIAP sem estar esgotado o prazo de vinte dias em que, em tese, a instrução podia ser requerida (artigos 277º, nº 3 e 278º, nº 1 do Código de Processo Penal), o que, na tese do recorrente, lesou gravemente os seus direitos de defesa.

O que está em causa é pois aferir da eventual lesão grave dos direitos de defesa do recorrente na sua dimensão constitucional e processual supra referida. Não se trata aqui de uma simples invalidade decorrente da tramitação do processo na sua fase preliminar conduzida e dominada pelo Ministério Público mas, antes, a apreciação da eventual violação do direito de defesa. Ora, esta dimensão, enquanto núcleo essencial do processo criminal, só pode ser apreciada por um órgão jurisdicional independente e imparcial, no caso o juiz de instrução.

Não podemos esquecer que são as conclusões do recurso que balizam a intervenção deste tribunal e estas, no caso sub judice em apreciação neste tribunal de recurso, estão estruturadas, não numa perspectiva material de eventual violação dos direitos de defesa do recorrente, mas, antes e apenas, na perspectiva da competência do juiz de instrução para apreciar o seu requerimento em que alega uma violação grave do direito de defesa e, nessa medida, de direitos liberdades e garantias.

Tendo em atenção esta perspectiva, a argumentação expendida em alguma doutrina e jurisprudência citadas, segundo as quais, mesmo conhecendo o Ministério Público das invalidades, sempre haverá um controlo judicial das mesmas, seja ao nível de incidentes judiciais, seja nas fases jurisdicionalizadas do processo, não nos parece que seja a que melhor se adequa aos princípios do processo penal. Nesta tese teríamos que aguardar alguma intervenção incidental do juiz de instrução ou que o processo passasse para a fase de instrução, para a ser apreciada jurisdicionalmente a alegada violação do direito de defesa. Inexistindo tal intervenção a apreciação jurisdicional nunca se verificaria.

Com o devido respeito não nos parece que esta solução mereça acolhimento. Em questões de alegada violação de direitos liberdades e garantias, a intervenção jurisdicional impõe-se, no imediato, independentemente da fase processual em que a mesma ocorra, assim se garantindo a tutela jurisdicional consagrada no texto constitucional e materializando o “direito ao juiz” que a mesma comporta.

Perfilhando nós a corrente doutrinal e jurisprudencial que confere ao juiz de instrução competência para apreciar as invalidades cometidas em inquérito sempre que contendam com direitos liberdades e garantias, tanto mais que as normas constitucionais são de aplicação directa (artigo 18º Constituição da República Portuguesa), não pode, no caso em apreço, o juiz de instrução deixar de apreciar o requerimento apresentado pelo recorrente.

Esta solução em nada contende com a circunstância de a direcção do Inquérito ser da competência do Ministério Público, nem coloca em crise o princípio do acusatório que rege o processo criminal.

O princípio do acusatório resultante do artigo 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, visa assegurar o direito a um julgamento, imparcial, justo e equitativo assegurando que a acusação é feita por um órgão diferente do julgador. Isto não significa que não existam articulações, em momentos diferentes das fases do processo, entre os vários órgãos, como, aliás, se constata das várias intervenções do juiz de instrução na fase de Inquérito que é da competência do Ministério Público. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, “(…) A densificação semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e o órgão acusador (…) Esta estrutura acusatória tem sido flexibilizada no sentido de nem sempre a acumulação de funções orgânica e subjectiva do juiz no processo penal pôr em causa esta mesma estrutura, devendo ter-se em conta a frequência, intensidade e relevância da intervenção do juiz em várias partes do processo (…)[17].

O princípio do acusatório não implica, nem exige estanquicidade nas várias fases do processo no que respeita à intervenção dos vários órgãos com competência em sede processo criminal. O que exige, por força do julgamento justo e equitativo que resulta das várias normas constitucionais em matéria de processo criminal e de direitos liberdades e garantias, é que a apreciação de todas as questões em que os mesmos estejam em causa, seja feita por um órgão jurisdicional, neste caso o juiz de instrução, atenta as suas garantias de independência e imparcialidade.

Em resumo, entendemos, pelas razões aduzidas, que o Meritíssimo Juiz de Instrução é competente para apreciar o requerimento apresentado pelo recorrente.

III- Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra na qual o Meritíssimo Juiz de Instrução aprecie o requerimento do recorrente de fls. 2105 a 2109 dos autos principais.

Sem custas por não serem devidas (artigo 522º nº 1 do CPP).

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por vinte e uma páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 24 de Setembro de 2015.

Antero Luís

João Abrunhosa

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[1]   Neste sentido e por todo, ac. do STJ de 20/09/2006 Proferido no Proc. Nº O6P2267.
[2]   Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995
[3] In Código de Processo Penal Comentado 2014, Almedina, em comentário ao artigo 1º.
[4] Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa Anotada,  4ª Edição, Vol. I pág. 198.
[5] Obra citada,. Pág. 516.
[6] Gomes Canotilho e Vital Moreira Obra citada pág. 517 e 518, «É o que acontece muitas vezes com a medida de coacção designada por «TIR» (Termo de identidade e residência), que representa uma coacção grave da liberdade de deslocação sem outro fundamento que não seja o de alguém ter resolvido apresentar queixa ou denúncia cujos fundamentos estão ainda por apurar».
[7] In O domínio do Inquérito pelo Ministério Público, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, pág. 125.
[8] Juiz Conselheiro Souto Moura in http://www.stj.pt/ficheiros/estudos/justicaeminpub_soutomoura.pdf
[9] G. Bettioli, “Instituições de Direito e Processo Penal”, pág. 277, citado por Dr. Castro e Sousa in “As formas de processo Penal e respectiva tramitação”, Edição DFL, Lisboa 1983.
[10] Comentários ao Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da CEDH, 4ª Edição, pág. 314.
[11] In Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, pág. 309.
[12] Neste sentido também Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 11ª Edição, 2007, pág. 313.
[13] In Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, Coimbra Editora, 1999, pág. 86.
[14] No mesmo sentido, ainda que parcialmente, Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Ed, pág. 89.
[15] Todos in www.dgsi.pt.
[16] In www.dgsi.pt.

[17] Ob. Cit. Vol I, pág. 522.