Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1704/18.7T9FNC.L1-5
Relator: SANDRA OLIVEIRA PINTO
Descritores: DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE DA SENTENÇA
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I- O dever de fundamentação em matéria de facto mostrar-se-á cumprido quando do texto da decisão se depreenda, não apenas a matéria de facto provada e não provada (sujeita a enumeração, ou seja, com indicação dos factos um a um), mas também a expressa explicitação do porquê dessa opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, isto é, dando-se a conhecer as razões pelas quais se valorou ou não valorou as provas e a forma como estas foram interpretadas.
II- A questão da prescrição constitui exceção que – quando verificada – obsta à apreciação do mérito da causa. Porém, no caso concreto, ela não poderia ser conhecida sem que, previamente, se fixassem os factos apurados no julgamento.
III- A discussão empreendida na decisão recorrida acerca da prescrição do procedimento criminal não pode prescindir da fixação dos factos (a partir da prova produzida na audiência de julgamento), porque só a partir dos factos é possível alcançar o respetivo enquadramento jurídico – e, no caso concreto dos crimes de abuso de confiança fiscal e/ou contra a segurança social, a unificação (ou não) das condutas num único crime ou num crime continuado (que são, desde logo, categorias diferentes), ou ainda a multiplicação de crimes em função da multiplicidade de condutas, estão longe de ser questões jurisprudencialmente pacíficas.
IV- A nulidade da sentença, por falta de fundamentação, deve ser conhecida, mesmo oficiosamente, por este Tribunal de recurso, tal como decorre do nº 2 do artigo 379º do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
Os arguidos AA, filho de BB e de CC, natural de DD, nascido a ........1963, residente na ..., e EE., NIPC 511029853, com sede social na ..., foram acusados, e pronunciados, no processo nº 1704/18.7T9FNC, a correr termos no Juízo Local Criminal do Funchal (Juiz 1), do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, sendo-lhes imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social agravado, p. e p., pelo artigo art. 107º, n.º 1 RGIT, em conjugação com o art. 105º, n.ºs 1, 4 e 5 RGIT.
Por sentença proferida em 29.05.2023, foi decidido julgar “procedente por verificada a excepção da prescrição e em consequência, absolv[er] AA, e EE, da pratica, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social agravado, p. e p., pelo artigo art. 107º, n.º 1 RGIT, em conjugação com o art. 105º, n.ºs 1, 4 e 5 RGIT”.
Mais se decidiu julgar “procedente por verificada a excepção da prescrição e em consequência, absolv[er] AA, e EE., do pedido civil que contra si foi deduzido Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM”.
Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Público interpor recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença que absolveu os arguidos AA e EE pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social agravado, p. e p., pelo artigo art. 107º, n.º 1 RGIT, em conjugação com o art. 105º, n.ºs 1, 4 e 5 RGIT
2. O presente recurso abarca a matéria de direito, designadamente, a errada qualificação jurídica atribuída ao crime, por não se ter considerada verificada a circunstância agravante do mesmo, na sequência de uma errada interpretação do art.º 105º, n.º 7 do RGIT, ex vi do art.º 107º, n.º 2 do mesmo diploma legal, que levou o Tribunal a quo a concluir pela prescrição do procedimento criminal contra os arguidos, na formulação do crime de abuso de confiança à segurança social, na forma simples.
3. A sentença a quo, considerou que na comissão do crime, os arguidos tiveram várias resoluções criminosas ou durante o processo de execução do mesmo, a resolução foi-se renovando.
4. Não sabemos em que factos a sentença se baseou para afirmar que existiram diversas resoluções criminosas ou que a mesma se tivesse renovado durante o período temporal em que o crime foi sendo cometido.
5. Entendemos que o crime em causa, ao contrário da sentença sub judice, resulta de apenas uma resolução criminosa, e tal encontra-se respaldado na expressão que consta da decisão instrutória de que os arguidos “decidiram não mais entregar” no período legal nem no prazo de 90 dias posteriores.
6. Entendemos assim que estamos perante um crime abuso de confiança à segurança social de trato sucessivo.
7. Ainda que se reconheça que a definição de crime através de trato sucessivo foi inicialmente concebida para o crime de tráfico de estupefacientes, posteriormente foi “alargada” aos crimes sexuais, consabidamente de natureza substancialmente diferente, pelo que não se vê qualquer constrangimento para que esta forma de comissão não se possa aplicar-se a outros crimes, desde que o agente tenha apenas uma resolução criminosa, a estrutura do facto criminoso se desdobre num feixe de factos semelhantes, espaçados entre si durante um determinado período de tempo.
8. Para além disso a jurisprudência e a doutrina dominantes não estabelecem um catálogo, grupos ou espécies, ou tipos de crimes aos quais pode ou não ser considerada esta forma de comissão.
9. O artigo 105º, n.º 7 do RGIT não foi correctamente interpretado e aplicado pela sentença sub judice.
10. O legislador pretendeu esclarecer que “os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.
11. Devem incluir no tipo de crime de abuso de confiança agravado pelo valor, as situações em que os valores são omitidos, ou são falseados. Pretende-se punir o agente pela infracção relativamente aos valores, que nos termos da legislação aplicável, devem constar na declaração e não pelos valores que o arguido efectivamente faça constar da mesma.
12. Apelando aos critérios de interpretação contidos no art.º 9º do Código Civil, sem perder de vista que interpretar também é atribuir um sentido e entender a correcta aplicação de uma norma a um caso concreto, tanto o elemento histórico, sistemático, literal ou teleológico, assim como o entendimento do sentido apontam clamente no sentido que damos a norma.
13. A ser validado o sentido que a douta sentença lhe atribuiu, a aplicação do art.º 105º, n.º 7 do RGIT, implicaria um retrocesso em termos históricos e uma repristinação do art.º 24º, n.º 6 do RJIFNA, o qual foi expressamente revogado e reformulado pelo DL 394/93 de 24 de Novembro.
14. No que diz respeito ao elemento literal para além do elemento que a sentença considerou, convém lembrar que da norma fazem também parte as expressões “os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável” e “Para efeitos do disposto nos números anteriores”, pelo que a interpretação apenas pode ser realizada em conjunto. Relativamente à primeira, a interpretação que fazemos é a de que os valores a serem considerados são os que deviam constar na declaração e não os que efectivamente o arguido fez constar, nos termos da lei aplicável, no caso, o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.
15. A segunda expressão “para efeitos…”, convoca-nos para a interpretação sistemática, e significa que não se resume unicamente ao crime de abuso de confiança fiscal ou à segurança social agravado, como parece ser o caso da interpretação da sentença a quo, mas também ao crime simples. E, aplicando-se igualmente ao crime “simples”, deixa de fazer sentido, porque não diz nada de novo e é absolutamente supérflua.
16. Atendendo que um dos escopos do RGIT é combater a evasão fiscal, a ser acolhida a interpretação da sentença, deixa de se compreender por que motivo merece maior censura jurídica o arguido que através de uma só declaração não entrega ao Estado um valor maior ou igual a € 50.000, daquele arguido que atinge esses valores através de várias acções prolongadas durante um certo tempo. Assim deve ser afastado o sentido dado à norma pela sentença sub judice.
17. Para além disso, olhando para o sentido que a norma tem à luz da interpretação da sentença, a sua utilidade resume-se apenas a afastar do crime de abuso de confiança à segurança social (e fiscal, já agora), o trato sucessivo, o que deve ser liminarmente rejeitado, uma vez que esta forma de comissão e de construção jurisprudencial, sem qualquer consagração expressa na Lei.
18. Assim, de acordo com a tese explanada, o procedimento criminal não se mostra prescrito.
*
Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se despacho que declarou a prescrição do crime de abuso de confiança à segurança social, praticado pelos arguidos AA e EE, o qual deve ser substituído por outro que declare que estamos perante um crime de abuso de confiança à segurança social agravado, e declare que o procedimento criminal não se mostra prescrito, determinando-se o prosseguimento dos autos, designadamente a prolação de sentença condenatória.
No entanto, Vossas Excelências, como sempre e com maior prudência, decidirão como for de JUSTIÇA.”
O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.
O arguido AA, apresentou resposta, concluindo nos seguintes termos:
“i. O Ministério Público veio interpor recurso da douta sentença que absolveu os Arguidos da prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social agravado, previsto e punido pelo artigo 107.º, n.º 1 RGIT, em conjugação com o artigo 105.º, n.ºs 1, 4 e 5 do RGIT;
ii. Decerto, para sustentar a sua posição, o Ministério Público arrazoou que: “(…) os factos não se encontram prescritos, uma vez que se subsumem ao tipo legal de abuso de confiança à segurança social agravado, p. e p., pelo artigo art. 107º, n.º 1 RGIT, em conjugação com o art. 105º, n.ºs 1, 4 e 5 RGIT, e não ao tipo de abuso de confiança à segurança social, p. e p. pelo art.º 107º, n.º 1 do RGIT como foi, salvo melhor opinião, erradamente considerado na sentença aqui colocada em crise.
iii. Ora, salvo o devido respeito, a interpretação, qualificação e aplicação do direito, efetuada pelo Tribunal a quo, não merece qualquer censura, porquanto:
iv. A conduta imputada aos Arguidos integrava a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 107.º, n.º 1 e 105.º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 15 de Junho, a que corresponde uma pena de prisão até 3 (três) anos ou multa até 360 dias;
v. Assim, atento o disposto no artigo 21.º, do RGIT é de cinco anos o prazo de prescrição do procedimento criminal;
vi. O crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social é um crime omissivo, e como tal, considera-se praticado na data em que terminou o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários (art.º 5.º, n.º 2 do RGIT);
vii. Estando em causa um alegado crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, o prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal só corre desde o dia da prática do último acto. (Vide artigo 119.º, n.º 2, alínea b., do Código Penal);
viii. Nos termos do citado artigo 5.º n.º 1, do RGIT as infrações tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que o agente, no caso de omissão, devia ter atuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido;
ix. Perante a factualidade constante da acusação, temos de concluir que, sendo a última alegada retenção referente ao mês de Agosto de 2013, a sua entrega à segurança social deveria ter ocorrido até ao dia 20 de setembro de 2013, nos termos do disposto no art.º 43.º do Código dos Regimes Contributivos, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro;
x. Como se verifica pela tabela inserta no ponto 4 da douta acusação, os valores das cotizações alegadamente retidas e não entregues pelos Arguidos à Segurança Social, constantes em cada uma das declarações de remunerações mensais entregues à segurança social, variam entre os € 698,67 (seiscentos e noventa e oito euros e sessenta e sete cêntimos), (constante na declaração do mês de novembro de 2009) e os €1.881,35( mil oitocentos e oitenta e um euros e trinta e cinco cêntimos), (constante na declaração do no mês de outubro de 2011);
xi. Neste sentido, é evidente, que não é imputado aos Arguidos a retenção e não entrega mensal de cotizações de valor superior a € 50.000,00 (cinquenta mil euros), não sendo, pois, o crime imputado punível com pena de prisão igual ou superior a cinco anos;
xii. Conforme é consabido, tanto na doutrina como na jurisprudência a prescrição do procedimento criminal ocorre desde a data da omissão de entrega da última contribuição;
xiii. Assim, respeitando a última alegada cotização retida relativa ao mês de Agosto de 2013 e devendo por isso ter sido entregue à Segurança Social até ao dia 20 de Setembro de 2013, temos de concluir que a prescrição do procedimento criminal se iniciou no dia 21 de Setembro de 2013, e terminou no dia 20 de Setembro de 2018, uma vez que, é de cinco anos o prazo de prescrição do crime imputado (artigo 21.º do RGIT);
xiv. In casu, não ocorreu qualquer causa de suspensão ou de interrupção da prescrição (respetivamente, artigos 120.º e 121.º do Código Penal);
xv. Por conseguinte, induz-se com total clareza, que quando ocorreu a constituição como Arguido (no dia 16.10.2018), o procedimento criminal já estava prescrito há quase um mês, ou seja, desde o dia 20 de setembro de 2018;
xvi. Infelizmente, o Ministério Público está a tentar conferir uma teologia normativa completamente desenquadrada, para forçar a condenação dos Arguidos;
xvii. Sublinhe-se que, a declaração e o correspondente pagamento têm uma periodicidade mensal;
xviii. Com efeito, a cada declaração periódica e subsequente omissão do respectivo pagamento corresponderá um crime autónomo;
xix. A verdade é que, apesar da repetição mensal dos mesmos comportamentos ilícitos, jamais de poderá afirmar que estes se devem a uma só e única resolução criminosa!
xx. Nessa medida, o valor de cada declaração não é, obviamente, o valor global de todas as declarações cujo pagamento esteja em falta:
xxi. A argumentação aduzida pelo Ministério Público, contraria, o estipulado no artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal que determina que: “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crimes efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.
xxii. Assim, é impossível considerar a conduta dos Arguidos, como um único crime, quando se está perante uma pluralidade de condutas criminosas independentes entre si;
xxiii. Deveras, defender o entendimento do Ministério Público, resultaria, por exemplo, no seguinte: Se um Arguido, na presente data, decidisse passar a dedicar-se à prática de um ilícito, nomeadamente crime de homicídio e se durante um mês matasse todos os dias uma pessoa, tal conduta seria só qualificada como um único crime;
xxiv. Ora, tal conclusão é caricata e causa uma grande perplexidade, certo?
xxv. Assim, como é possível demonstrar, o entendimento do Ministério Público não tem qualquer cabimento teológico ou normativo, violando de forma gritante, o nosso sistema legal;
xxvi. Dúvidas não podem restar, de que estamos perante condutas autónomas e independentes, pelo que, não é possível somar os valores das prestações não pagas, para arrazoar a tese de “um único crime, mas com execução fracionada”;
xxvii. A sentença em crise não merece qualquer censura quando determinou que: “Cada prestação mensal que não é paga até à data limite, constitui um crime de abuso de confiança à Segurança Social.
xxviii. No caso em apreço, o valor de cada prestação é sempre inferior ao que é definido no artigo 105.º, n.º 5, pelo que, cada um desses crimes é punível pelo número 1 do mesmo artigo, com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias;
xxix. Consequentemente, o prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal é de cinco anos, conforme dispõe o artigo 21.º, n.º 1 do RGIT;
xxx. A constituição de Arguido só ocorreu no dia 16.10.2018, ou seja, já quase um mês depois de se encontrar prescrito o procedimento criminal (o que aconteceu em 20 de setembro de 2018);
xxxi. Com efeito, à data em que o Arguido foi notificado nos ternos e para os efeitos do aludido artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, já inexistia obrigação de pagamento porque a dívida estava prescrita;
xxxii. Neste sentido e atendendo ao exposto, a sentença em crise, não merece qualquer reparo, sendo que qualquer julgador na posição da meritíssima juíza do Tribunal a quo, teria proferido a mesma decisão de absolvição!
Nestes termos, e nos mais de Direito que V/Exa. doutamente suprirá deve a douta decisão proferida ser mantida e o recurso ser julgado totalmente improcedente.
V. Exas, no entanto, como sempre farão a MELHOR JUSTIÇA!”
Neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer, aderindo à motivação e conclusões apresentadas em 1ª instância e aditando:
“Conforme reconhece o digno recorrente, no seu meritório recurso, “a questão controvertida reside na (im)possibilidade de somar os valores das prestações não pagas” vindo a decisão final a ser contaminada pela interpretação sufragada de que a cada prestação social omitida, corresponde um crime. O que arrastaria a discussão do caso para a forma de comissão dos crimes de Abuso de Confiança e Abuso de Confiança Contra a Segurança Social agravado.
Vê-se que a sentença sindicada seguiu pari passu recente acórdão1 do Tribunal da Relação de Lisboa que discorrendo sobre caso em tudo semelhante, afirma que “Na verdade, nesta fase processual, em que já decorreu o julgamento e foi proferida decisão final, a prescrição do procedimento criminal não pode ser vista única e exclusivamente em função do crime imputado [e com isto se desarma um dos argumentos maiores do digno recorrente] na acusação, mas em função do crime efetivamente cometido pelo arguido, face à factualidade dada como assente pelo tribunal de julgamento”.
É, portanto, no confronto entre a ideia de um único crime, de execução fraccionada, praticado pelos arguidos, opção assumida pelo digno recorrente, e a ideia da prática de 77 crimes (tantos quantos os meses falhados pelo sujeito fiscal passivo), opção assumida indubitavelmente na sentença sindicada, que se joga a sorte destes autos.
Será oportuno dizer que o acórdão que citámos, do Tribunal da Relação de Lisboa, desfavorece as pretensões do digno recorrente.
Cremos, porém, que uma outra questão se intromete nesta contenda judiciária.
A sentença está ferida de nulidade, segundo cremos.
Justificando.
Segundo o art.º 374.º CPP, a sentença tem uma estrutura conhecida e reconhecida, que a sentença sub judice ignora.
Como se vê, a sentença em causa basta-se com a exposição do juízo da digna julgadora sobre a questão da prescrição, não entrando sequer na “fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados” - art.º 374.º n.º 2, CPP.
A sentença que se desvie desta estrutura é nula - art.º 379.º n.º 1, a) CPP.
Que não se diga, antecipando razões, que efectivamente a solução legal assumida na sentença em crise sobre a prescrição está correcta e, portanto, sempre a causa extintiva do procedimento criminal teria que ser atendida, mostrando-se desnecessário apurar qual a matéria de facto provada e não provada.
É que a própria sentença em causa, aliás seguindo de mãos dadas com o citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, admite que certas conformações da matéria de facto poderiam levar a diferente solução legal, mormente as que se relacionam com o crime continuado.
Simplesmente a sentença em causa abdicou de entrar na discussão da matéria de facto, não se chegando nunca a saber se o tal quadro exterior ao agente que lhe diminui consideravelmente a culpa e que justificaria um único crime continuado, se terá precipitado.
Neste conspecto, de nada vale à sentença em causa adiantar que a pronúncia não incluía a ideia de um crime continuado, pois que os limites da vinculação temática do tribunal conhecem as excepções permitidas pelas alterações substanciais e não substanciais da matéria de facto; só concluindo o julgamento e afirmando urbi et orbi o elenco de factos provados e não provados, poderia a sentença ter avançado com uma certa solução legal.
Neste sentido reforça-se a ideia de nulidade da sentença, por ter o tribunal deixado de pronunciar-se sobre questões que deveria apreciar – art.º 379.º n.º 1, c) CPP.
É assim o signatário do parecer de que deve ser declarada a nulidade da sentença em causa.
Na certeza de que, a final, melhor dirão V.ªs Exas.”
Notificado em conformidade com o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o arguido nada disse.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
*
II. questões a decidir
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso2.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a sentença proferida nos autos – está em causa saber se ocorreu, ou não, a prescrição do procedimento criminal, o que envolve considerar as opções tomadas na decisão recorrida quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos e o prazo de prescrição aplicável.
Porque suscitada neste Tribunal da Relação – e porque se trata de questão de conhecimento oficioso – haverá que tomar posição quanto à nulidade da sentença recorrida.
*
III. Decisão recorrida
Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:
Prescrição do procedimento criminal
Considerando que o arguido invoca a prescrição do procedimento criminal, por se tratar de uma excepção que, em caso de procedência, prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas na sua contestação, passamos a apreciá-la.
Vejamos:
Vem o arguido invocar a prescrição do procedimento criminal, uma vez que a quanto à última retenção referente ao mês de Agosto de 2013, a sua entrega à segurança social deveria ter ocorrido em 20 de Setembro de 2013.
Mais alega que para efeitos de punição nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º do RGIT, “(…) os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração (mensal) a apresentar à administração tributária e no caso os valores das cotizações alegadamente retidas e não entregues pelos arguidos à segurança social, constantes em cada uma das declarações de remunerações mensais entregues à segurança social, variam entre os € 698,67 (constante na declaração do mês de novembro de 2009) e os €1.881,35 (constante na declaração do mês de outubro de 2011), pelo que, que não é imputado ao arguido a retenção e não entrega mensal de cotizações de valor superior a € 50.000,00, não sendo, pois, o crime imputado punível com pena de prisão igual ou superior a cinco anos.
Aos arguidos vem imputada a pratica em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social agravado, p. e p., pelo artigo art. 107º, n.º 1 RGIT, em conjugação com o art. 105º, n.ºs 1, 4 e 5 RGIT.
O prazo de prescrição do procedimento criminal, do crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107º, n.ºs 1 e 2, por referência ao artigo 105º, n.º 1, 4 e 7, ambos do RGIT, por que o arguido se mostra pronunciado é de 5 anos (cf. artigo 21º, n.º 1 do RGIT).
De acordo com a jurisprudência fixada pelo STJ no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2015:
«No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º, número 1, e 105.º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5.º, número 2, do mesmo diploma».
Ora tendo sido os arguidos pronunciados pela pratica de um crime o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia da prática do mesmo que no caso é o data da omissão de entrega da ultima contribuição.
Assim, no caso dos autos, considerando que o último mês em que se verificou a omissão de entrega, à Segurança Social, das contribuições deduzidas do valor das remunerações dos trabalhadores, foi o mês de Agosto de 2013 e sendo o prazo legal estabelecido para efetuar essa entrega até ao 20º dia do mês seguinte (cf. artigo 43º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro), a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal iniciou-se em 21/09/2013.
De harmonia com o disposto no artigo 21º, n.º 4, do RGIT, o prazo de prescrição, interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal.
No tocante à interrupção da prescrição, dispõe o artigo 121º do Código Penal - no que ao presente caso importa considerar - que:
«1. A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a constituição de arguido;
b) Com a notificação da acusação (…);
2. Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
3. (…), a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade (…)».
E relativamente à suspensão da prescrição, estatui o artigo 120º do Código Penal - no que releva para o caso vertente -, que:
«1. A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
(…);
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação (…);
(…);
e) A sentença condenatória, após a notificação ao arguido, não transitar em julgado;
(…).
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar três anos.
(…).
4. No caso previsto na alínea e) do nº 1 a suspensão não pode ultrapassar 5 anos (…).»
Compulsados estes, verifica-se que o arguido foi constituído nessa qualidade em 16.10.2018.
Na verdade, seguindo o entendimento perfilhado pelao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo 2882/16.5TDLSB.L2-5 de 23-02-2021, o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas», o que está em consonância com o disposto no n.º 7 do artigo 105.º, o qual é igualmente aplicável ao crime de abuso de confiança à Segurança Social, por força do n.º 2 do artigo 107.º, do RGIT, no qual se determina que, «Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária».
- A prestação de declaração e o correspondente pagamento têm uma periodicidade mensal e cada prestação mensal que não é paga até á data limite, constitui um crime de abuso de confiança à Segurança Social.
- Apesar da repetição mensal dos mesmos comportamentos ilícitos, jamais se poderá afirmar que estes se devem a uma só e única resolução criminosa inicial, pois, em cada mês terá de haver pelo menos uma renovação dessa resolução, o que implica uma ação criminosa autónoma por cada prestação omitida.
- Seriam estas as regras e princípios aplicáveis, ainda que não houvesse, quanto aos crimes tributários em questão, a regra expressa do n.º 7 do artigo 105.º, do RGIT que não deixa qualquer margem para outra solução diferente daquela que defendemos, demonstrando que foi opção clara do legislador consagrar o princípio de que, a cada declaração periódica e subsequente omissão do respetivo pagamento corresponderá um crime autónomo, neste caso, de abuso de confiança à Segurança Social.
- Haverá, assim, tantos crimes desse tipo, quantos os meses cuja prestação estiver em falta e, uma vez que a última prestação omitida deveria ter sido paga em Agosto de 2013 e que o primeiro facto interruptivo da prescrição ocorreu apenas em 16 de Setembro de 2018, com a constituição de arguido, ou seja, depois de decorridos os aludidos cinco anos a contar da consumação do último ato ilícito, não tendo havido qualquer suspensão do prazo até àquela mesma data, conclui-se, pois, que ocorreu a prescrição, com a consequente extinção do procedimento criminal.
Aliás, mesmo na data em que o arguido foi notificado nos termos e para os efeitos do aludido artigo 105.º, n.º 4 al.b), do RGIT, já inexistia obrigação de pagamento, porque prescrita a dívida. Inexistindo tal obrigação, o arguido não estaria obrigado a pagar no prazo que lhe foi fixado e, consequentemente, o não pagamento nunca poderia traduzir a condição de punibilidade que decorre daquela norma ao abrigo da qual foi feita a notificação.
Na verdade, nesta fase processual, a prescrição do procedimento criminal tem de ser vista exclusivamente em função do crime imputado no despacho de pronúncia e por essa forma, os factos constantes daquele desapcho não preenchem a circunstância agravante do crime, prevista no n.º 5 do artigo 105.º, do RGIT, em conjugação com o subsequente artigo 107.º, n.º 1 - ser a prestação não entregue superior a 50000,00 euros -, o que determina que aqueles mesmos factos sejam puníveis com a pena prevista no n.º 1 daquele primeiro artigo, ou seja, com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
E isto assim é, porque:
Artigo 105.º - Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
Artigo 107.º - Abuso de confiança contra a segurança social
1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.os 1 e 5 do artigo 105.º
2 - É aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 7 do artigo 105.º
No que respeita a prescrição, rege o artigo 21,º, nos seguintes termos:
1 - O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos.
2 - O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a cinco anos.
3 - O prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infracção depender daquela liquidação.
4 - O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 42.º e no artigo 47.º.
A nível de jurisprudência dos tribunais portugueses, e a título exemplificativo:
- Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 2/2015 – in Diário da República n.º 35/2015, Série I de 2015-02-19:
No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º, número 1, e 105.º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5.º, número 2, do mesmo diploma.
Ac. TRC de 22.02.2017 : I - O crime de abuso de confiança contra a segurança social torna-se perfeito, isto é, consuma-se, com a omissão de entrega, dentro dos prazos fixados na lei, dos montantes que o agente deduziu aos valores das remunerações pagas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais, por estes devidas.
Ac. TRE de 3-06-2014 :
I. O momento relevante para aferir se o prazo prescricional se apresenta decorrido, para efeito de procedimento por crime de abuso de confiança contra a segurança social, é o do termo do prazo legal para entrega da prestação devida, não obstante a punibilidade dos factos esteja sujeita á condição objectiva de que tenham decorrido mais de 90 dias sobre esse mesmo termo.
II. A data da consumação do ilícito não é alterada por via da consagração daquela condição, funcionando esta, apenas, como causa de restrição da pena, por afastamento pelo legislador das necessidades da aplicação desta.
Ac. TRE de 16-04-2013:
III. O crime de abuso de confiança contra a Segurança Social consuma-se no momento da não entrega nos cofres do Estado das prestações tributárias deduzidas nos termos da lei e que se estava legalmente obrigado a entregar.
Ac. TRC de 5-12-2012 (proc. 173/11.7TAMGR.C1:
A circunstância de o crime - abuso de confiança contra a segurança social - ficar consumado no momento em que o agente devia proceder à entrega da prestação (último dia do prazo), mas não ser punível salvo depois de correrem 90 dias sobre o termo do prazo para a entrega, a natureza de condição objectiva de punibilidade de que se reveste este prazo (cfr. al. a), do n.º 4, do artigo 105º e n.º 2, do art.º 107º, do R.G.I.T.), aliado ao facto de estar por demonstrar que enquanto o mesmo não decorrer se encontra vedado o exercício da acção penal, a isto acrescendo que o contrário seria converter, à margem da lei, tal prazo numa causa de suspensão da prescrição, leva a que se perfilhe o entendimento de que tal prazo é irrelevante para o efeito de contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, cujo início se verifica na data em que o crime se consumou.
A regra é, pois, que «o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas».
O que está em consonância com o disposto no n.º 7 do artigo 105.º, o qual é igualmente aplicável ao crime de abuso de confiança à Segurança Social, por força do n.º 2 do artigo 107.º, do RGIT, no qual se determina que, «Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária».
O valor de cada declaração não é, obviamente, o valor global de todas as declarações cujo pagamento esteja em falta.
Os vencimentos dos trabalhadores são pagos mensalmente, sendo deduzidas naqueles vencimentos, pela entidade patronal, as quotizações e contribuições dos trabalhadores, para a Segurança Social. As declarações correspondentes a essa retenção na fonte têm de ser remetidas à Segurança Social até ao dia 15 do mês seguinte, com o respetivo pagamento a esta das quantias deduzidas.
Consequentemente, a prestação de declaração e o correspondente pagamento têm uma periodicidade mensal.
Cada prestação mensal que não é paga até á data limite, constitui um crime de abuso de confiança à Segurança Social.
Qualquer outro entendimento viola frontalmente não só as disposições legais acima citadas, em especial o n.º 7 do artigo 105.º, do RGIT, assim como contraria o disposto no artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal - salvo se verificados, no caso concreto, os pressupostos do crime continuado, nos termos do n.º 2 deste mesmo preceito -, e, para além disso, afronta os princípios definidos pela doutrina respeitantes à teoria geral do crime, ao considerar a existência de um crime único, quando se está perante uma pluralidade de condutas criminosas independentes entre si, com base numa formulação genérica de uma potencial resolução criminosa inicial formulada pelo arguido em data anterior aos factos, no sentido de que iria, a partir de então, «deixar de pagar as quotizações devidas à segurança Social (facto provado n.º 5).
Se esta afirmação valesse como princípio geral e fosse suficiente para definir o número de crimes, reduzindo as várias ações criminosas a um só crime com base numa só resolução criminosa inicial, então, sempre que um arguido decidisse, em determinado momento da sua vida, passar a dedicar-se à prática de crimes - fosse qual fosse o tipo de ilícito que conjeturasse, homicídio, roubo, burla, furto, etc,… -, por mais crimes que cometesse ao longo da sua vida, de um ou de vários tipos, haveria sempre apenas um só crime ou, no máximo, um crime por cada um desses tipos legais.
A regra é, segundo o que dispõe o mencionado artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal que «o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».
Ressalva-se, como dissemos, a hipótese do crime continuado, previsto no n.º 2 do mesmo artigo, cujos pressupostos, porém, não se verificam no presente caso, porque nada foi alegado, nem consta dos factos elencados no despacho de pronúncia, que permita concluir que o arguido agiu «no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa».
É que, independentemente da formulação daquele seu propósito genérico inicial quanto ao seu eventual modo de vida no futuro, o agente do crime terá sempre de planear cada um dos atos ilícitos a executar em cada momento, planificar o modo de atuação, munir-se dos meios necessários à sua concretização, criar as condições ideais para que a sua ação criminosa seja bem sucedida. Em suma, tem de formular uma resolução criminosa dirigida ao crime concreto que pretende executar, dando início, de seguida, à sua execução. Aquele “pensamento” ou “decisão” inicial quanto ao que se propõe fazer no futuro, não o dispensa de formular a aludida resolução, ou de, pelo menos, renová-la, agora dirigida ao ato típico, concreto, que intenta executar.
Apesar da alegada repetição mensal dos mesmos comportamentos ilícitos, jamais se poderá afirmar que estes se devem a uma só e única resolução criminosa inicial, pois, em cada mês terá de haver pelo menos uma renovação dessa resolução, o que implica uma ação criminosa autónoma por cada prestação omitida.
Atente-se ainda no teor do Ac. da Rel. de Coimbra de 1/6/2016, Proc. 41/14.0TACVL.C1:
I - O número de crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social e de abuso de confiança fiscal ter-se-á necessariamente de aferir pelo equivalente número de prestações contributivas e tributárias intencionalmente (dolosamente) retidas pelo respectivo vinculado no termo final do prazo legal da respeitante entrega à Segurança Social e à Administração Tributária, e, no que concerne ao tipo-de-ilícito de abuso de confiança fiscal, ainda pelo concreto valor pecuniário de cada uma das devidas prestações tributárias (fiscais), por só para tanto relevarem as de montante superior a € 7.500,00.
II - Apenas se legitimará juridicamente equacionar a sua unificação e subordinação à figura do concernente crime continuado caso na acusação se enuncie e em julgamento comprove a contemporânea – aquando de tais termos finais legais do cumprimento de cada uma das faltosas prestações contributivas e fiscais – existência dalgum específico, concreto e objectivo circunstancialismo fáctico externo/exógeno à pessoa do próprio obrigado cuja repetição ou manutenção reúna racional adequação à quebra do seu exigível sentido de atinente dever jurídico e cívico e ao comummente/empiricamente compreensível condicionamento da sua sucessiva queda em tentação de desobediência às correspectivas imposições legais e de indevida retenção/apropriação dos montantes pecuniários correspondentes a cada uma das devidas prestações, decorrentemente justificativa da simétrica redução da carga da respeitante censurabilidade.
*
Regressemos então agora ao caso concreto.
Nos autos está em causa a omissão de entrega das contribuições devidas pelos trabalhadores à Segurança Social no período compreendido entre Abril de 2007 e Agosto de 2013.
O despacho de pronúncia integrou os factos como um único crime agravado em virtude do valor das cotizações não entregues.
No presente caso, o valor de cada prestação é sempre inferior ao que é definido no n.º 5 do artigo 105.º (50 000,00 euros), pelo que, cada um desses crimes é punível pelo número 1 do mesmo artigo, com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
Consequentemente, o prazo de prescrição do respetivo procedimento criminal é de cinco anos, conforme decorre do citado artigo 21.º, n.º 1, do RGIT.
A última prestação omitida deveria ter sido paga em Agosto de 2013.
O primeiro facto interruptivo da prescrição ocorreu apenas em 16.10.2018, com a constituição de arguido, ou seja, depois de decorridos os aludidos cinco anos a contar da consumação do último acto ilícito, não tendo havido qualquer suspensão do prazo até àquela mesma data.
Conclui-se assim que ocorreu a prescrição em 21 de Setembro de 2018, com a consequente extinção do procedimento criminal quanto a toda a conduta ilícita que é imputada aos arguidos, implicando a sua absolvição do crime e do pedido de indemnização civil contra eles formulado após aquela data.
*
III – DECISÃO.
Julgo procedente por verificada a excepção da prescrição e em consequência, absolvo AA, e EE, da pratica, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social agravado, p. e p., pelo artigo art. 107º, n.º 1 RGIT, em conjugação com o art. 105º, n.ºs 1, 4 e 5 RGIT.
Notifique.
Julgo procedente por verificada a excepção da prescrição e em consequência, absolvo AA, e EE, do pedido civil que contra si foi deduzido INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL DA MADEIRA, IP-RAM.”
*
Ainda com interesse para a decisão a proferir neste recurso, da decisão instrutória proferida em 14.01.2022 (refª Citius 51116121), consta, entre o mais:
“Foi imputada aos arguidos a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social agravado, p. e p., pelo artigo art. 107º, n.º 1 RGIT, em conjugação com o art. 105º, n.ºs 1, 4 e 5 RGIT.
De acordo com o referido artigo 107.º, n.º 1, “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.º 1 e 5 do artigo 105.º”.
Por sua vez o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), estabelece que “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500 deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
Tendo em conta o teor do requerimento de abertura de instrução verifica-se que os arguidos, importa apreciar se ocorreu a invocada prescrição.
Nos autos está em causa a omissão de entrega das contribuições devidas pelos trabalhadores à Segurança Social no período compreendido entre Abril de 2007 e Agosto de 2013.
A acusação deduzida integrou os factos como um único crime agravado em virtude do valor das cotizações não entregues.
Quanto a este valor é de admitir a integração do ilícito no previsto no n.º 5 do art. 105.º do RGIT, ex vi art. 107.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, na medida em que o previsto no n.º 7 do preceito se reporta ao valor a considerar, mas não impede que os mesmos sejam considerados na sua globalidade para efeitos de agravação, pelo que o prazo de prescrição do procedimento criminal é de 10 anos (cfr. art. 22.º, n.º 2 do RGIT e 118.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal).
Acresce que, o valor a ter em conta é o valor total da não entrega à data da consumação do último acto praticado sendo indiferente o valor pago em sede de insolvência para efeitos do valor a ter em conta para agravação do ilícito.
Tal valor só pode ser considerado para efeitos de quantificação do prejuízo em sede de perda de vantagens ou poderia excluir a punibilidade dos factos se tivesse ocorrido na sua totalidade aquando da notificação para o efeito.
Como tal, o procedimento criminal não está prescrito.
Nestes termos, e em face de tudo o que ficou exposto, considero que os indícios recolhidos em sede de inquérito e de instrução são suficientes para que os arguidos AA e EE, sejam submetidos a julgamento pela prática do crime de que vêm acusados, onde, fazendo-se aplicação plena dos princípios do contraditório, da imediação, da livre apreciação da prova e da liberdade de convicção do julgador, se formulará então um juízo de condenação ou absolvição dos mesmos.”
*
IV. Fundamentação
Como acima se assinalou, face às alegações do Digno recorrente haveria que apreciar o enquadramento jurídico-penal dos factos, de modo a tomar posição quanto ao prazo de prescrição aplicável, desse modo habilitando o exame da decisão recorrida quanto às opções tomadas a respeito da prescrição do procedimento criminal.
Há, porém, uma questão que deve ser apreciada previamente, como acertadamente aponta o Exmo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, qual seja, a nulidade da sentença recorrida.
iv.1. da nulidade da sentença
Em conformidade com o disposto no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, é nula a sentença “Que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 389º-A e 391º”.
O artigo 374º do Código de Processo Penal, por seu turno, abrange uma ampla consignação de deveres que recaem sobre o julgador, em sede de fundamentação da convicção e de enquadramento jurídico, no que concerne a três instâncias decisórias, que constituem em grande medida a sentença que terá de ser proferida a final. Pese embora tais deveres se mostrem interligados (dada a sede em que têm de ser cumpridos, isto é, no texto decisório que põe termo à causa), a verdade é que se distinguem entre si.
Assim, determina o artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Tal preceito traduz a consagração legal da imposição constante do artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são, sempre, fundamentadas (nos termos definidos por lei).
Como tem jurisprudencialmente vindo a ser entendido, de modo pacífico, o dever de fundamentação da decisão traduz-se em assumir uma síntese intelectualmente honesta e suficientemente expressiva do resultado do exame contraditório sobre as distintas fontes de prova. Pela fundamentação decisória o juiz presta conta aos destinatários da sentença do veredicto que emana, denotando o seu verdadeiro perfil. O juiz examina a prova e depois manifesta uma opção de sentido e valor, e essa tarefa não dispensa que ao fixar os seus elementos de convicção o faça de forma clara, em vez de, materialmente, descrever, mas, antes, convencer, não «ad pompam», em puras e absurdas exibições de banal «erudição de disco duro», por isso a fundamentação decisória se reconduz a uma exposição tanto quanto possível completa , porém concisa das razões de facto e de direito – artigo 374º, nº 2 , do Código de Processo Penal - contrariada, vezes sem conta, espelhando uma alongada reprodução da matéria de facto, que exige e só um trabalho de síntese, de seleção, conexo e explicativo do processo decisório, dispensando a enumeração pontual, à exaustão das fontes em que o julgador se ancorou.3
A necessidade de fundamentação da sentença serve claros propósitos, repetidamente afirmados, como se pode ver no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.20054:
“A fundamentação da sentença consiste, pois, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.
As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de processo penal”, III, pág. 289).
A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cfr. Michele Taruffo, «Note sulla garanzia costituzionale della motivazione», in BFDUC, ano 1979, Vol. LV, págs. 31-32).”.
O dever de fundamentação em matéria de facto mostrar-se-á cumprido quando do texto da decisão se depreenda, não apenas a matéria de facto provada e não provada (sujeita a enumeração, ou seja, com indicação dos factos um a um), mas também a expressa explicitação do porquê dessa opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, isto é, dando-se a conhecer as razões pelas quais se valorou ou não valorou as provas e a forma como estas foram interpretadas5.
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos - para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19.12.20196 7.
No que se reporta à decisão sobre a matéria de facto, a exigência de fundamentação impõe, como acima se referiu, a enunciação dos factos provados e não provados. E, quanto ao âmbito material desse enunciado, estabelece o artigo 339º, nº 4 do Código de Processo Penal que a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação, os factos alegados pela defesa e os factos que resultarem da prova produzida em audiência, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368º (questão da culpabilidade) e 369º (questão da determinação da sanção). Isto sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, como o próprio artigo 339º, nº 4 também ressalva, e levando ainda em linha de conta que a questão da culpabilidade, nos termos acima indicados, abrange a matéria factual alegada pela acusação e pela defesa e bem assim a que resultar da discussão da causa, relevante para saber, entre outros aspetos, se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido o praticou e atuou com culpa, e ainda se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil (cf. artigo 368º, nº 2, alíneas a), b), c) e f), do Código de Processo Penal).
No fundo, a enumeração dos factos provados e não provados a integrar a fundamentação que obrigatoriamente deve constar na sentença, em conformidade com os citados artigos 374º, nº 2, 339º, nº 4, 368º, nº 2 e 369º, traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e em relação aos quais a decisão terá de incidir, incluindo os que, embora não fazendo parte da acusação ou da pronúncia, da contestação, do pedido de indemnização e da contestação a este, tenham resultado da discussão da causa e revistam relevância para a decisão. Daí que, como sublinha o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/20128, aquela enumeração assuma também extrema importância como meio de evidenciar os factos que foram efetivamente considerados e apreciados pelo tribunal e sobre os quais recaiu um juízo de prova – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.04.20199.
A esta enunciação acresce o exame crítico das provas que corresponde, como se disse já, à indicação das razões pelas quais e em que medida o tribunal valorou determinados meios de prova como idóneos e credíveis e entendeu que outros em sentido diverso não eram atendíveis, explicitando os critérios lógicos e racionais que utilizou na sua apreciação valorativa, e que permite, assim, aferir a concreta utilização que o julgador fez do princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal, tendo em vista a verdade prático-jurídica baseada na convicção pessoal, mas em todo o caso objetivável e motivável e capaz de se impor aos outros10.
Temos, assim, que sobre o tribunal de julgamento recai o dever de se pronunciar sobre os factos atrás indicados que, à luz de um enquadramento jurídico plausível, se mostram relevantes, determinando a sua verificação ou não verificação de acordo com a prova produzida11, para além de indicar as provas em que se baseou para formar a convicção e efetuar o seu exame crítico, tudo nos termos acima explanados.
Não o fazendo estará a omitir aspetos considerados essenciais para a fundamentação da sentença, levando a que esta fique inquinada da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Mantendo presente o que acima se deixou dito quanto às características que deve revestir a enunciação e fundamentação da matéria de facto: ou seja, uma justificação tanto quanto possível completa, mas concisa, que se cumpre num modelo de economia argumentativa onde a explicitação do juízo decisório deve ser sintética, ao invés de exaustiva, sem usar mais argumentos do que os necessários para dizer o que é essencial – espera-se, pois, uma fundamentação razoável, mas estritamente suficiente, para cumprir o parâmetro legal da concisão – importa confrontar o paradigma legal com a correspondente operação de enunciação e fundamentação da matéria de facto plasmada na decisão sob recurso.
Ora, o que imediatamente ressalta da sentença recorrida é que a mesma não contém qualquer indicação quanto aos factos provados ou não provados, nem qualquer exame crítico dos meios de prova (apesar de ter sido proferida após produção de prova em audiência de julgamento). Na verdade, a sentença recorrida corresponde a um «despacho prévio», que desconsidera toda a (intensa) atividade probatória levada a cabo pelo Tribunal a quo.
É verdade que a questão da prescrição constitui exceção que – quando verificada – obsta à apreciação do mérito da causa. Porém, no caso concreto, ela não poderia ser conhecida sem que, previamente, se fixassem os factos apurados no julgamento – desde logo, porque o esclarecimento dos factos se liga inelutavelmente à respetiva qualificação jurídica, e é evidente, da leitura da decisão recorrida, que esta tomou posição quanto ao enquadramento jurídico dos factos, e fê-lo em sentido divergente do considerado na acusação e na pronúncia.
Explicitemos.
Como decorre do que acima se deixou transcrito no ponto III. deste acórdão, os arguidos vêm acusados e pronunciados pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social agravado, previsto e punido nos termos conjugados dos artigos 107º, nº 1 e 105º, nos 1, 4 e 5 do RGIT, ao qual é abstratamente aplicável uma pena de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas.
Importa, por outro lado, ter em conta que o artigo 21º do RGIT prevê, no seu nº 1, que “O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos”, mas o nº 2 do mesmo preceito estabelece que “O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a cinco anos”. E o prazo de prescrição estabelecido no Código Penal para crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas que não exceda dez anos, é de 10 anos (cf. artigo 118º, nº 1, alínea b) do Código Penal).
Vemos, assim, que não pode prescindir-se do enquadramento jurídico dos factos para estabelecer qual o prazo de prescrição aplicável.
Ora, ao não ter fixado os factos, não refletindo nos autos a atividade probatória desenvolvida, nem o seu exame crítico da mesma, a sentença recorrida acabou por se debruçar sobre os factos que foram considerados indiciados na acusação e no despacho de pronúncia, atribuindo-lhes, porém, diverso enquadramento jurídico – note-se que, a dado passo, referencia o «facto nº 5», quando é certo que a decisão não contém qualquer enumeração dos factos provados.
Adicionalmente, não pode ignorar-se que, na decisão instrutória, o Juiz de instrução pronunciou-se expressamente sobre a questão da prescrição, considerando-a não verificada. Sobre esta decisão formou-se caso julgado formal, que impede uma nova apreciação da mesma antes do julgamento.
Ao conhecer a exceção de prescrição, nos termos em que o fez, o Tribunal recorrido tratou-a como questão prévia à realização do julgamento, nos termos que seriam consentidos pelo artigo 338º, nº 1 do Código de Processo Penal (e não, verdadeiramente, nos termos previstos no artigo 368º, nº 1 do mesmo diploma legal). No entanto, como aponta Luís Lemos Triunfante12, se é certo que “As nulidades, questões prévias ou incidentais devem ser apreciadas tão cedo quanto possível, sendo que existem pelo menos três momentos para o efeito: i) saneamento processual (v. art. 311.º/1); ii) em sede prévia ao julgamento (art. em análise) e iii) sentença (v. art. 368.º/1)”, é também verdade que “Considerando os diferentes momentos, o tribunal apenas pode, no início do julgamento, conhecer nulidades, questões prévias ou incidentais que ainda não tenham sido conhecidas anteriormente, pois quanto a essas já se pode ter verificado caso julgado formal, objeto de uma anterior decisão específica transitada em julgado, que não podem ser novamente discutidas.”.
E, finalmente, não pode ignorar-se o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 11/201313, que fixou jurisprudência no sentido de que «A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.os 1 e 3 do CPP».
Neste mesmo aresto, a propósito da interligação entre a factualidade e a respetiva qualificação jurídica, escreveu-se: «Como assinala Frederico Isasca na Revista Portuguesa de Ciência Criminal 14: Tudo aponta no sentido de que o momento processualmente adequado para o tribunal de julgamento se pronunciar sobre a qualificação jurídica do objecto do processo é necessariamente posterior à decisão sobre a factualidade imputada.
E, debruçando-se sobre a questão da qualificação jurídica, escreve:
Face ao C.P.P. vigente e em estreita relação com o conceito de alteração dos factos, seja esta substancial ou não, a questão que se coloca é a de saber se o tribunal é livre no exercício da qualificação, ou se, pelo contrário, alguma limitação se lhe impõe naquela sua função. A resposta, qualquer que ela seja, deverá surgir das disposições legais e ser, num segundo momento, apreciada à luz dos princípios fundamentais do nosso Direito Processual Penal.
Um primeiro ponto importa, porém, desde já esclarecer. O do objecto da qualificação jurídica. Objecto da qualificação jurídica são factos. São os factos que formam um acontecimento da vida: debilitado no espaço e no tempo, e que se imputam a certo sujeito. Objecto da qualificação jurídica é, portanto, o facto processual, i. e., o objecto do processo. Qualificar um determinado facto do ponto de vista jurídico-penal é subsumir um determinado acontecimento na descrição abstracta de uma preposição penal, i. e., verificar se aquele comportamento concreto daquele agente, corresponde ou não, ao comportamento abstractamente descrito numa dada lei penal como constituindo um crime. Nisto e só nisto consiste a qualificação jurídico-penal 15.
A liberdade do tribunal, no que concerne à apreciação da questão de direito, é, numa outra perspectiva, uma decorrência lógica do dever que sobre ele impende de uma apreciação esgotante de todo o objecto do processo. A posição que quanto a esta questão aqui se tome, terá os seus reflexos na questão do âmbito e dos efeitos do caso julgado. Entendemos, pois, que só uma apreciação esgotante da matéria de facto, i. e., a sua apreciação sob todos os pontos de vista jurídicos possíveis, é compatível com a posição que acolhemos em sede de caso julgado e por sua vez coerente com a liberdade de qualificação que aqui se defende.” 16 »
E mais adiante ainda: «A norma incriminadora não faz parte do facto, como já referimos, mas é a referência à norma que dá ao facto o concreto sentido de ilicitude.
O facto com relevância penal é o facto com significado e esse significado é-lhe dado pela referência à norma incriminadora. Por isso que a alteração da norma incriminadora pode alterar a significação do facto, logo a sua relevância jurídico-penal.»
Retomando o caso dos autos, é manifesto que a discussão empreendida na decisão recorrida acerca da prescrição do procedimento criminal não pode prescindir da fixação dos factos (a partir da prova produzida na audiência de julgamento), porque só a partir dos factos é possível alcançar o respetivo enquadramento jurídico – e, no caso concreto dos crimes de abuso de confiança fiscal e/ou contra a segurança social, a unificação (ou não) das condutas num único crime ou num crime continuado (que são, desde logo, categorias diferentes), ou ainda a multiplicação de crimes em função da multiplicidade de condutas, estão longe de ser questões jurisprudencialmente pacíficas.
Ao não enunciar os factos provados, a decisão recorrida não corresponde, verdadeiramente, a uma sentença, antes traduzindo uma alteração da qualificação jurídica (face à que foi definida na acusação e acolhida na pronúncia) numa fase do procedimento em que tal não é admissível17.
Não pode, pois, deixar de se concluir pela nulidade da decisão recorrida, por evidente falta de fundamentação.
A nulidade em referência deve ser conhecida, mesmo oficiosamente, por este Tribunal de recurso, tal como decorre do nº 2 do citado artigo 379º do Código de Processo Penal.
Na verdade, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13.03.200718, citando o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.03.2005, “« … não restam dúvidas que as nulidades de sentença enumeradas no n.º 1 desse artigo [379º] são oficiosamente cognoscíveis, uma vez que têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais, estabelecendo-se no n.º 2 do mesmo que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso (cfr. Acórdão do S.T.J, de 31-05-2001, SASTJ, n.º 51, 97, citado por Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado,13ªEdição-2002, pág. .749)
Ao alterar a redacção do nº2 do art. 379º, a Lei 58/98 de 25 de Agosto terá pretendido deixar claro o entendimento do legislador em duas matérias que tinham dividido a jurisprudência: a possibilidade de arguição da nulidade de sentença na motivação de recurso (tal como entendera o Acórdão do STJ para Fixação de Jurisprudência nº 1/94, de 2.12.93, DR I-A de 11.02.94) e o conhecimento oficioso da nulidade, ou seja, o seu conhecimento em recurso mesmo que não arguida (pois só assim constitui uma verdadeira alternativa .- arguidas ou conhecidas em recurso), contrariamente ao entendimento que obteve vencimento no Acórdão do STJ para Fixação de Jurisprudência de 6 de Maio de 1992, DR I-A de 6.8.92, o qual caducou19 por efeito da referida Lei 58/98.”
[No mesmo sentido, vd., ainda, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.201020, e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.12.202021.]
Decorre, pois, do disposto no artigo 379º, nº 2 do Código de Processo Penal, que “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 4 do artigo 414º”.
Como anota Oliveira Mendes22, “Por efeito da alteração introduzida ao texto do nº 2 pela Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro, passou a constituir um dever do tribunal de recurso o suprimento das nulidades da sentença recorrida (é o que decorre da actual letra da lei «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las…»), razão pela qual sobre o tribunal de recurso impende a obrigação de suprir as nulidades de que padeça a sentença recorrida, a menos, obviamente, que a nulidade só seja susceptível de suprimento pelo tribunal recorrido, situação que será a comum, visto que na maioria dos casos o suprimento pelo tribunal de recurso redundaria na eliminação de um grau de jurisdição.”
No caso, uma vez que não foram consignados na sentença os factos considerados provados e não provados, é de todo inviável suprir neste Tribunal de recurso a nulidade que afeta a sentença, devendo o processo ser devolvido ao Tribunal recorrido, a fim de, analisada a prova perante si produzida, proferir decisão que fixe os factos provados e não provados e exponha o percurso conviccional seguido nessa fixação.
Impõe-se, por isso, declarar nula a decisão, que deverá ser substituída por outra que, tendo em consideração a prova produzida na audiência de julgamento, contenha todos os elementos legalmente obrigatórios. Devem, pois, os autos ser devolvidos ao Tribunal recorrido, para suprimento da nulidade detetada.
*
Em face do decidido, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso interposto pelo Ministério Público.
*
V. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em declarar nula a sentença recorrida por falta de fundamentação, nos termos acima indicados, e, em consequência, determinar a sua substituição por outra sentença que supra a apontada nulidade, devendo para tanto os autos baixar à 1ª instância para que o tribunal assim proceda.
Sem tributação.

Lisboa, 05 de março de 2024
Sandra Oliveira Pinto
Manuel José Ramos da Fonseca
Ana Cláudia Nogueira
_______________________________________________________
1. Processo n.º 2882/16.5TDLSB.L2-5, de 23.02.2021, assinado por unanimidade
2. Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, págs. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.º, n.º 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
3. cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.01.2014, proferido no processo nº 7/10.0TELSB.L1.S1, Relator: Conselheiro Armindo Monteiro, acessível em www.dgsi.pt.
4. No processo nº 05P662, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar, igualmente acessível em www.dgsi.pt.
5. Cf. anotação de Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, Almedina, 2021, pág. 1144.
6. No processo nº 10/18.1GBFTR.E1, Relator: Desembargador João Amaro, acessível em www.dgsi.pt
7. Com este sentido, vd., entre outros, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 27/2007, no processo nº 784/05, Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, do qual citamos: “A exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais tem uma função não apenas endoprocessual, mas também dirigida ao exterior do processo: ela visa explicitar a ponderação que integrou o juízo decisório e permitir às partes – no caso, ao arguido – o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a possibilidade de optar pela reacção (impugnatória ou não) que entendam mais adequada à defesa dos seus direitos (e por esta via, a obrigação de fundamentação possibilita também, mediatamente, o exercício do direito ao recurso que possa caber no caso). Mas a exigência de fundamentação visa também possibilitar o próprio conhecimento pela comunidade das razões que levaram a uma determinada decisão, e, pela via da exigência de lógica ou racionalidade da fundamentação (contida na exigência de fundamentação), contribui também para a própria legitimação da actividade decisória dos Tribunais.”
8. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/2012, de 20.06.2012, Relator: Conselheiro João Cura Mariano, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. Cf., ainda, a anotação de Oliveira Mendes ao artigo 374º, in Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, Almedina, 2021, pág. 1144-1145.
9. No processo nº 708/15.6T9CBR.C1, Relatora: Desembargadora Helena Bolieiro, acessível em ECLI:PT:TRC:2019:708.15.6T9CBR.C1.DC/
10. Cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I vol. reimp., Coimbra Editora, 1984, págs. 202-205.
11. Cf. Sérgio Poças, “Da sentença penal – fundamentação de facto”, in Revista Julgar, nº 3, Set.-Dez. 2007, pág. 25.
12. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2022, pág. 400.
13. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2013, de que foi relator o Conselheiro Pires da Graça, publicado no Diário da República, Série I, de 19.07.2013.
14. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, fasc. 3, Julho Setembro de 1994, Aequitas Editorial Notícias, Frederico Isasca, p. 380.
15. Ibidem, p. 100.
16. Ibidem, p. 104.
17. Vd., a propósito, a decisão singular do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.01.2024, proferida no processo nº 136/21.4GALNH-A.L1-5, relatada pelo Desembargador Luís Gominho, acessível em www.dgsi.pt.
18. No processo nº 2453/06-1, Relator: Desembargador António João Latas, também acessível em www.dgsi.pt
19. Assim, expressamente, o Ac RE de 17.10.2006, acessível em www.dgsi.pt.
No sentido do conhecimento oficioso podem ver-se ainda, por todos, os Ac STJ de 2.02.2005, CJ STJ I/p. 189 e 9.11.05, CJ STJ T. III/p. 209 e Ac RL de 13.01.2005, CJ XXX - I/p. 123.
Entre muitos outros acórdãos, das Relações e do STJ, que implicitamente entendem serem as nulidades de sentença de conhecimento oficioso, ao conhecer das mesmas sem prévia arguição, podem ver-se os Ac STJ de 16.11.05, CJ STJ T. III/p 210 e de 11.01.06, CJ STJ I/p. 160.
20. No processo nº 274/08.9JASTB.L1.S1, Relator: Conselheiro Pires da Graça, em www.dgsi.pt.
21. No processo nº 24/19.4GAVPA.G1, Relatora: Desembargadora Teresa Coimbra, também acessível em www.dgsi.pt.
22. Ob. cit., pág. 1158.