Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7358/15.5TDLSB.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Na perspetiva da impugnação ampla da matéria de facto, visando os chamados erros de julgamento, o enquadramento da violação do in dubio pro reo como erro de julgamento,  postula uma concepção objectiva da dúvida quanto aos factos desfavoráveis ao arguido, que é, de resto, a que melhor se coaduna com os princípios da culpa e da livre apreciação da prova, perante as dúvidas sobre os factos desfavoráveis ao arguido, no sentido em que, se o Tribunal tem a máxima liberdade, mas também a máxima responsabilidade na forma como deve, com objectividade, efectuar o exame crítico e global das provas, adquirir a sua convicção quanto aos factos provados e fundamentar a sua decisão, também a dúvida relevante para a aplicação do princípio in dubio pro reo terá de ser motivada, segundo critérios de razoabilidade e de lógica, igualmente sindicáveis e passíveis de impugnação em via de recurso.
Assim sendo, também haverá violação do princípio in dubio pro reo, sempre que o tribunal do julgamento tenha julgado provado facto desfavorável ao arguido, não obstante a prova disponível não permitir, de forma racional e objectiva, à luz das máximas de experiência comum, das regras da lógica, dos conhecimentos científicos aplicáveis, ou das normas e princípios legais vigentes em matéria de direito probatório, com o grau de certeza ou convencimento «para além de toda a dúvida razoável», dar por verificada a realidade desse facto,  mesmo que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras do senso comum, não resulte que o Tribunal se tenha confrontado, subjetivamente, com qualquer dúvida insuprível, no momento da decisão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que integram a 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por sentença proferida em 18 de Junho de 2019, no Juízo Local Criminal, Juiz 9 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, o arguido O---- foi condenado como autor material de um crime de falsidade informática, previsto e punível pelo artigo 3° n°s 1 e 2 da Lei 109/2009 de 15 de setembro, com referência aos artigos 14° n° 1 e 26° do mesmo diploma, na pena de duzentos e setenta dias de multa, à taxa diária de € 12,00, no total de € 3.240,00 €, a que corresponderão 180 dias de prisão subsidiária, em caso de aplicação do artigo 49° n° 1 do Código Penal.
O arguido interpôs recurso desta decisão, no qual apresentou as seguintes conclusões:
1. Veio o Tribunal a quo condenar o arguido, ora Recorrente, pela prática, como autor material de um crime de falsidade informática, previsto e punível pelo artigo 3.°, n.° 1 e 2 da Lei 109/2009, de 15 de setembro, com referência aos artigos 14.° n° 1 e 26.°, do mesmo Diploma, na pena de 270 (duzentos e setenta) dias de multa à taxa diária de € 12,00 (Doze Euros), perfazendo o montante global de € 3.240,00, a que corresponderão 180 (cento e oitenta) dias de prisão subsidiária, discordando, porém, o Recorrente da douta sentença proferida, nomeadamente porque esta deu como não provados, factos que, no entender do Recorrente, se deveriam ter dado como provados.
2.Assim sendo, vem o presente recurso interposto dos factos dados como não provados, constantes da acusação, que, sendo dados como provados, imporiam decisão diversa da recorrida, nomeadamente, os seguintes:
"Após ter redigido a mensagem de correio eletrónico, o arguido e demandado, refletindo melhor sobre a situação, desistiu da ideia de a enviar para a Polícia Municipal de Lisboa."
"Quando encerrou o computador, não apagou o texto que tinha escrito e que foi inadvertidamente enviado para a Polícia Municipal de Lisboa."
"Mesmo depois do seu envio, ficou convencido de que a denúncia não cumpria os requisitos para ser aceite, porque não ia acompanhada de uma cópia do cartão de cidadão do denunciante."
3.Ao impugnar a matéria de facto dada como não provada, incumbe ao Recorrente indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, e quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.° 3 do artigo 364.°, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
4.Neste sentido, o Tribunal a quo não atendeu às declarações do Recorrente, que, apesar de serem credíveis e consistentes, não mereceram acolhimento, justificando o Tribunal tal opção porque "sendo o arguido uma pessoa com elevada literacia informática e conhecimento do modo de funcionamento dos programas computacionais pelo menos na ótica do utilizador, não é verosímil nem plausível que o envio da mensagem de correio eletrónico tenha ocorrido por mero acidente (involuntário). Aliás, a justificação apresentada para a desistência não é igualmente verosímil e plausível, pois a Polícia Municipal de Lisboa aceita e dá seguimento a denúncias recebidas, mesmo que apresentadas sob anonimatos - assim o confirmou a testemunha J----, agente daquela força policial."
5.Contudo, essa justificação, por si só, não colhe, pois as declarações do arguido foram no sentido de esclarecer o tribunal, quer quanto à intenção que esteve por base da sua atuação, quer que a situação se tratou de um grande erro, que o Recorrente reconhece e do qual se arrepende. (Cfr. Declarações do Arguido - Minutos 06.50 a 08.50 Arguido: Portanto, eu fiz realmente esse email, sempre tenho admitido, foi num ato de em que, em que eu não estava bem, eu andava na altura sob um grande stress, devido a vários problemas que eu já posso explicar, nomeadamente, porque nós, o H---- estava a fazer obras no apartamento que tinha comprado, e o empreiteiro abandonou essa obra nessa altura, um pouco antes, até, deixou o apartamento completamente sem nada lá dentro, todo, todo em, todo em muito mau estado, recusando-se a continuar a obra depois dos pagamentos feitos, e na sequência disso, o H---- teve uma depressão, e nós estávamos a viver esse período muito complicado, e a juntar a esse facto, o que acontece é que eu no meu trabalho também estava sob uma grande pressão, porque havia despedimentos em curso devido à redução de negócio em Portugal, e, pronto, eu fiz na altura esse email, num ato mesmo que eu considero de loucura, e que não devia ter feito, e reconheço e na altura, sei que era um, e não devia fazer, que era ocupar uma identidade, não me apercebi ou não sabia que seria um crime, mas efetivamente fiz o email e não devia ter feito, nem sei como é que o fiz, eu hoje não era capaz de o fazer, mas o que é certo é que na altura, estava..., estava mesmo, sob essa grande pressão, e esse email foi porque eu via essas discussões que havia lá, depois o que acontece é que havia essa obra que estava, não foi uma obra, foi, esse vizinho fez uma plataforma para pôr os ares-condicionados na fachada tardoz do edifício, e já numa reunião tinha sido pedido que ele retirasse isso que era ilegal, e ele recusou-se a retirar.").
6. Daqui decorre que o Recorrente não tinha intenção de cometer um crime, que agiu irrefletidamente, e estando psicologicamente fragilizado por uma série de situações que, a não terem acontecido, não teriam motivado este comportamento.
7. Ora, tais circunstâncias não foram levadas em linha de conta pelo Tribunal, nos termos em que o deveriam ter sido, nem tidas em consideração na pena aplicada.
8. Mas mais, não podia o Tribunal a quo considerar como não provados os factos identificados e constantes da contestação do Recorrente, com os fundamentos invocados, pois o arguido esclareceu o motivo de ter inadvertidamente enviado o email por si elaborado, que se ficou a dever, por um lado à sua falta de visão, e por outro, por ter deixado o email em rascunho, tendo o seu envio sido feito aquando do encerramento do computador. (Cfr. Declarações do Arguido - Minutos 13.53 a 15.23 Arguido: Eu fiz, depois, nessa sequência dessa discussão que tinha havido, eu fiz o email, e preparei tudo para enviar o email, e fiz. Portanto, não devia ter feito. O que acontece é que depois, eu, antes de enviar o email, fui à página da Polícia Municipal verificar como é que se faziam as denúncias, e verifiquei que está lá expressamente dito no procedimento de denúncia que é preciso apresentar o cartão de cidadão, e então, eu, como estava a fazer um email de outra pessoa, não teria, evidentemente o cartão de cidadão, e desisti de enviar o email, e desisti. Só que, entretanto, pus-me a fazer outras coisas no PC e não me lembrei mais do assunto, e o que é certo é que, quando desliguei o PC, o PC deve ter feito uma pergunta se era para enviar o email, e eu, como vejo muito mal, sou cego de uma vista, não vejo de uma, e na outra, tenho lente intraocular de 22 dioptrias, que é o máximo, e ainda uso óculos em cima, e não vejo como uma pessoa normal, portanto eu tenho dificuldades a ver, e normalmente não ligo muito ao que o PC, a essas perguntas, e então acabei por enviar o email e não dei conta que tinha enviado o email. Lá no meu trabalho às vezes também envio emails para outras pessoas, por ver mal.")
9. Atendendo às declarações do arguido, e à forma como as mesmas foram prestadas, deveria o Tribunal a quo ter dado como provado que, o Arguido, apesar de ter cometido os factos constantes da acusação, e da pronúncia - que confessou - os cometeu inadvertidamente, pois desistiu de completar o procedimento de envio da denúncia, e, na sua consciência pensou que não tinha seguido o envio do email.
10. As declarações do arguido são, neste âmbito em particular, absolutamente credíveis, e que evidenciam um erro que pode acontecer a qualquer pessoa e muito mais a uma pessoa que, sendo cega de uma vista, e tendo falta de vista acentuada na outra, não conseguisse ler o aviso do email, e tenha inadvertidamente procedido ao seu envio. (Cfr. Declarações do Arguido - Minutos 15.42 - Arguido - "Eu não remeti, eu na minha cabeça fiquei a pensar que eu não tinha enviado o email". E Minutos 16.00 Arguido - "Mas eu na minha cabeça eu não tinha enviado o email. Eu não estou a negar que enviei o email, atenção, estou a dizer é que, na minha cabeça, eu fiquei a pensar que tinha desistido, porque o manual de procedimentos da polícia obriga a que a queixa, para ter seguimento, tem que ter o cartão de cidadão.")
11.Contudo, o Tribunal a quo considera que o Recorrente não foi credível, dando maior credibilidade às declarações da testemunha J----, agente da polícia municipal, que declarou que existe a possibilidade de serem apresentadas denúncias anónimas.
12. Mas, se o Tribunal a quo tivesse feito fé nas declarações do Arguido, e tivesse tentado obter, oficiosamente, a informação de como apresentar denúncias relativas a obras supostamente ilegais, teria concluído que daí resulta que a denúncia "Consiste na apresentação de uma exposição à câmara municipal que descreva a realização de obras supostamente ilegais, a qual deve incluir o detalhe das obras realizadas (ou em curso), a morada completa do imóvel e fração, bem como outros elementos considerados relevantes. Na apresentação desta exposição é obrigatório o preenchimento dos dados pessoais do requerente, dado que não são admitidas denúncias anónimas." (Cfr. http://www.cm-lisboa.pt/servicos/pedidos/urbanismo- e-obras/obras-de-edificacao-e-demolicao/denuncia-de-obras-supostamente-ilegais).
13. Sendo, além do mais, exigido o preenchimento e envio de um requerimento, disponível no separador denominado por "Documentos", em http://www.cm- lisboa.pt/fileadmin/DOCS/Formularios/transversais/CML multiusos.pdf. cuja cópia consta inclusivamente dos autos, e que se aqui se reproduz para melhor elucidação, e de onde resulta que, é obrigatória a junção dos seguintes documentos: "Documentos a apresentar - Identificação do requerente - Pessoas singulares: documento de identificação."
14. Ou seja, deu o Tribunal a quo absoluta credibilidade a uma testemunha que contradisse a informação que consta do próprio site da Câmara Municipal de Lisboa, consultado pelo Arguido e que atribui credibilidade absoluta às declarações deste.
15. Face ao exposto, é evidente que o Tribunal a quo julgou incorretamente os factos que considerou como não provados, resultantes da contestação do Recorrente, ignorando quer as suas declarações, consentâneas com a documentação constante dos autos, e com a informação que ainda hoje consta do site da Câmara Municipal de Lisboa, a respeito de denúncias quanto à realização de obras ilegais.
16. Andou mal o Tribunal a quo, pelo que urge corrigir os factos dados como não provados, dando-os como provados, e considerando toda a versão do Recorrente como absolutamente credível, e consequentemente proferir decisão que se adeque à realidade dos factos por si praticados e à intenção - ou falta de intenção - com que os praticou!
17. O Tribunal a quo condenou o Recorrente pela prática do crime de falsidade informática, na pena de 270 dias de multa à taxa diária de € 12,00 (Doze Euros).
18. Para a condenação pela prática deste crime contribuíram, a nosso ver, dois fatores:
a) a criação de um email em nome de outra pessoa;
b) o envio voluntário de um email ao órgão de polícia criminal, com uma participação utilizando o email criado;
19.Ora, e se quanto à primeira alínea inexistem quaisquer dúvidas de que o Recorrente criou efetivamente um email, com a intenção de usurpar a identidade de outra pessoa, e em nome dela efetuar uma denúncia, a verdade é que não chegou, voluntariamente, a efetuá-la, ou seja, se não há dúvidas de que o arguido criou o email ----@gmail.com, e que escreveu a denúncia que pretendeu em determinado momento remeter aos serviços da polícia municipal, a verdade é que dúvidas existem - e muitas - de que o tenha feito intencionalmente.
20. Note-se que a informação constante do site da Câmara Municipal, quanto à denúncia de obras pretensamente ilegais é de que é necessário apresentar o documento de identificação do requerente, factos estes que corroboram a versão do arguido, de que desistiu de efetuar a participação no momento em que se apercebeu que não tinha, nem podia ter, cópia do documento de identificação do seu vizinho, D----, em nome de quem estava a efetuar a denúncia, fazendo-se passar por ele.
21.Soube, mais tarde, que a denúncia tinha seguido, na sequência da ação inspetiva que teve lugar! Nunca o Recorrente representou a possibilidade de a denúncia ter efetivamente seguido, ou seja, na sua convicção, ele não usara a identidade de ninguém e consequentemente não praticara o crime de falsidade informática!
22.Perante isto, são mais do que justificadas as dúvidas de que o Recorrente tenha, intencionalmente, procedido ao envio do email, e assim consumado o crime de falsidade informática, voluntariamente, mas antes o inverso, já que todos os indícios apontam no sentido de que, efetivamente, o Recorrente não quis enviar o email, e que este apenas foi enviado por erro ou lapso seu, que ainda hoje não sabe explicar, porque não se apercebeu de como foi feito o envio.
23. Nessa medida, não pode o Tribunal a quo condenar o Recorrente na mesma medida do que condenaria se o Recorrente tivesse consciência do seu ato e o tivesse cometido com intenção.
24. Aliás, entendemos, como se verá, que não pode o Tribunal condená-lo, de todo!
25.Isto porque, no seguimento dos ensinamentos do MM.° Juiz de Direito, Duarte Alberto Rodrigues Nunes, na Revista Julgar, Outubro de 2017, página 35, "O crime de falsidade informática apenas poderá ser cometido dolosamente, não sendo puníveis condutas meramente negligentes (cfr. art. 3.° da Lei n.° 109/2009, conjugado com o art. 13.9 do CP), podendo a conduta do agente revestir qualquer das modalidades de dolo previstas no art. 14.° do CP (direto, necessário ou eventual)."
26. Isto significa que, ao não ter procedido ao envio do email intencionalmente, com um dolo específico, mas antes tê-lo feito por erro, lapso, ou por qualquer situação informática, de que não se apercebeu, o agente não quis praticar o crime, ou seja, não agiu dolosamente.
27. Tivesse o Tribunal a quo atendido às suas declarações, e observado os procedimentos constantes do site da Câmara Municipal de Lisboa, para concluir que o Recorrente não atuou, voluntariamente, no sentido de praticar o crime, sendo que este, não sendo punível a título de negligência, impõe que o Arguido seja dele absolvido, em observância do princípio do in dubio pro reo.
28. Merece, nessa medida, crítica, a sentença ora recorrida, sendo violadora do artigo 32° da CRP.
Pediu a revogação da sentença e sua substituição por outra que, dando como não provados os factos indicados, absolva o recorrente do crime de falsidade informática.
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, na qual sintetizou as razões pelas quais entendeu que o presente recurso não merece provimento´, nas seguintes conclusões:
1 - A Douta Sentença recorrida mostra-se bem elaborada na apreciação da prova produzida em sede de Julgamento. A este propósito sempre se dirá que segundo o princípio da livre apreciação (art. 127º do Cód. Proc. Penal), as provas, em particular as que são prestadas por declarações (arguidos e assistentes) e a prova testemunhal, devem e têm de ser apreciadas segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.
2 - Bem decidiu o Tribunal a quo ao dar como não provados os factos constantes da contestação.
3 - E, igualmente bem decidiu, ao dar como provado os factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo de crime em apreço.
4 - Não se compreende como pode ter sido violado o princípio do in dubio pro reo, pois tal violação pressuporia que o Tribunal a quo tivesse chegado a um non liquet em matéria de facto e após condenasse o arguido.
5 - Ora, tal jamais ocorreu.
6 - O Tribunal face à valoração da prova produzida, deu como provados os factos imputados ao arguido, tendo, portanto, chegado a uma certeza em matéria de prova (sobre como ocorreram os factos em apreço).
7 - Assim, jamais se poderia ter por verificada tal violação do princípio do in dubio pro reo, desde logo porque o Tribunal a quo não teve dúvidas quanto à prova produzida e em como essa prova permitia a imputação dos factos ao arguido.
8 – Em nosso entender a Douta Sentença recorrida não viola qualquer das disposições invocadas pelo recorrente ou outras.
9 – Em consequência, deve manter-se na íntegra a Douta Sentença recorrida, a qual aplica o direito em conformidade.
10 – Deve manter-se o julgado.
Remetido o processo a este Tribunal da Relação, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Mº.Pº. pronunciou-se mais uma vez no sentido da improcedência do presente recurso e consequente manutenção da sentença recorrida, por entender que na mesma forma observados todos os critérios de razoabilidade e de legalidade, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.
Cumprido o disposto no art. 417º do CPP, o arguido apresentou resposta nos reiterando que perante a prova produzida, nomeadamente atendendo ao documento junto aos autos e às regras impostas no site da CML quanto à apresentação de denúncias, não pode o Tribunal considerar que inexistem dúvidas de que o crime ocorreu e de que o Recorrente quis enviar o email, e que o enviou intencionalmente.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Do âmbito do recurso e das questões a decidir:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito.
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-H----s, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061 e Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a tratar são as seguintes:
A) Erro de julgamento, nos termos do art. 412º do CPP;
B) Violação do princípio in dubio pro reo.
2.2. DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Da sentença recorrida consta a seguinte matéria provada e não provada e a forma como o Tribunal a quo fundamentou a mesma (transcrição):
O assistente D---- é proprietário da fração autónoma designada pela Letra --, correspondente ao 7° andar, do prédio urbano sito na Avenida ----, ----, em Lisboa.
O companheiro do arguido O----, H----, era igualmente proprietário de uma fração autónoma nesse mesmo prédio.
No âmbito das assembleias dos condóminos do sobredito imóvel foram surgindo divergências constantes entre o companheiro do arguido e os demais condóminos e, em particular, o assistente e M----, a propósito da realização de obras, designadamente a instalação, por este último, de uma estrutura metálica de suporte de aparelhos de ar condicionado fixada na fachada a tardoz, ao nível da fração daquele outro condómino (Letra K).
O assistente havia anuído à realização destas obras e, ademais, mantinha boas relações com o dito condómino.
Resolveu então o arguido apresentar uma queixa junto da Câmara Municipal de Lisboa intitulando-se como sendo o assistente.
Na prossecução de tal desiderato, no dia 19 de setembro de 2015, pelas 14:57:33, o arguido, através do IP ------------, alocado à operadora de telecomunicações Vodafone e registado em nome de H----, resolveu criar um endereço eletrónico sob o nome de utilizador ----@gmail.com. com o nome e apelido do assistente, a fim de fazer crer que fora este quem criara e utilizava tal conta de correio eletrónico.
Em seguida, no dia 19 de setembro de 2015, pelas 16:09:00, o arguido, usando o referido endereço por si criado e sob assunto “Obra ilegal na fachada traseira do prédio, Avenida ------------, no 3.° andar Esquerdo”, enviou para a caixa de correio eletrónico da Polícia Municipal de Lisboa, uma mensagem de correio eletrónico com o seguinte teor:
Boa tarde
Vinha solicitar o favor de verificarem a legalidade de uma varanda metálica, construída nas traseiras de um edifício na Avenida ------------, no 3.° andar Esquerdo, em Lisboa.
Foi construída uma varanda metálica presa à fachada com acesso através de uma escada na janela.
Obrigado,
D----
Nessa decorrência, agentes da Polícia Municipal, no dia 1 de outubro de 2015, pelas 10:00:00, deslocaram-se ao local, tendo verificado a existência da dita estrutura metálica e apurado que o seu promotor havia sido o sobredito condómino M---- que, contactado, retirou tal estrutura.
Chegou ao conhecimento deste último que a denúncia junto da Polícia Municipal fora apresentada através de uma mensagem de correio eletrónico subscrita por D---- e oriunda do citado endereço de correio eletrónico.
O arguido tinha perfeito conhecimento que o assistente não tinha autorizado a criação do dito endereço de correio eletrónico e, não obstante, não se inibiu de o criar e utilizar, fazendo-se passar por aquele para enviar a referida denúncia por obras ilegais à Polícia Municipal, fazendo crer, com a aposição do nome D---- e pela designação do próprio endereço por si criado, que se tratava do assistente.
O arguido atuou com o intuito de criar o dito endereço e, através deste, forjar um documento que sabia não ser genuíno, de modo a ser utilizado pela Câmara Municipal de Lisboa e pela Polícia Municipal para obrigar M---- a retirar a estrutura e aplicar a devida coima, e simultaneamente para que este ficasse convicto de que o delator fora o seu vizinho e ora assistente, o que logrou concretizar.
Atuou o arguido de forma livre, deliberada e consciente, ao utilizar os dados de identidade do assistente como deste se tratasse, criando o documento com a intenção de que fosse considerado genuíno, com o intuito concretizado de causar prejuízos ao assistente e a M----, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por Lei.
1.1.      Da contestação
Nenhuns.
1.2. Da instrução e discussão da causa
O arguido não tem antecedentes criminais registados.
Aufere o vencimento mensal aproximado de 2,500,00 €.
Reside com o seu companheiro em casa própria.
Paga cerca de 700,00 €/mês, a título de prestação por crédito hipotecário relativo a um outro imóvel que adquiriu.
2 FACTOS NÃO PROVADOS
2.1.Da acusação
O condómino M---- ficou convicto de que tinha sido o assistente a enviar a mensagem de correio eletrónico para a Polícia Municipal.
2.2. Da contestação
Após ter redigido a mensagem de correio eletrónico, o arguido e demandado, refletindo melhor sobre a situação, desistiu da ideia de a enviar para a Polícia Municipal de Lisboa.
Quando encerrou o computador, não apagou o texto que tinha escrito e que foi inadvertidamente enviado para a Polícia Municipal de Lisboa.
Mesmo do seu envio, ficou convencido de que a denúncia não cumpria os requisitos para ser aceite, porque não ia acompanhada de uma cópia do cartão de cidadão do denunciante.
3 MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
A motivação da decisão de facto consiste na exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito da decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374.°, n.° 2, 2.a parte, do Código de Processo Penal), valendo, para este efeito, as provas produzidas ou examinadas em audiência (artigo 355.°, n.° 1, do Código de Processo Penal) apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (artigo 127.° do Código de Processo Penal). 
Ora, no caso, mostram-se decisivas as declarações quase integralmente confessórias prestadas pelo arguido O----. Com efeito, o arguido admitiu ter praticado intencionalmente todos os factos imputados, à exceção do envio da mensagem de correio eletrónico para a Polícia Municipal de Lisboa, o qual atribuiu a mero e involuntário lapso informático pois havia desistido de o concretizar ao constatar que teria de enviar, com a denúncia, uma cópia do bilhete de identidade ou do cartão de cidadão do denunciante. No que diz respeito a esta segunda parte das suas declarações há que dizer não terem merecido credibilidade porquanto, sendo o arguido uma pessoa com elevada literacia informática e conhecimento do modo de funcionamento dos programas computacionais pelo menos na ótica do utilizador, não é verosímil nem plausível que o envio da mensagem de correio eletrónico tenha ocorrido por mero acidente (involuntário). Aliás, a justificação apresentada para a desistência não é igualmente verosímil e plausível, pois a Polícia Municipal de Lisboa aceita e dá seguimento a denúncia recebidas, mesmo que apresentadas sob anonimatos - assim o confirmou a testemunha J----, agente daquela força policial (cf. infra).
Em súmula, as declarações prestadas pelo arguido, acompanhadas pela prova documental examinada em audiência de julgamento [a saber, os documentos apresentados com a queixa-crime dos presentes autos, o documento de fls. 17 (fls. 281-287), a mensagem de correio eletrónico de fls. 286, a informação prestada pela Google de fls. 573, a informação da operadora Vodafone de fls. 587-590, e as informações da SIBS de fls. 593-598 e 600] foram elementos de prova necessários e suficientes para estabelecer a correspondência com a realidade (rectius, a verdade) da matéria factual provada.
Os restantes meios probatórios limitaram-se a reforçar, se necessário fosse, a demonstração dos factos, bem como a confirmar este ou aquele aspeto mais periférico do objeto do processo. Assim:
O assistente D---- e mulher, P----, relataram a sua surpresa ao saberem do envio da mensagem de correio eletrónico, bem como os incómodos, desconforto e aborrecimento causados por toda esta situação, de resto prontamente esclarecida junto do condómino denunciado sem outras consequências assinaláveis. Manifestaram ainda o receio - sobretudo a esposa do assistente - de que os elementos de identidade pudessem ter sido usados pelo arguido para outros fins ainda desconhecidos, receio, porém, que não se concretizou;
A testemunha C---- (denunciado) referiu ter tomado conhecimento da denúncia porventura aquando da fiscalização realizada pela Polícia Municipal de Lisboa (ou através da administração do condomínio, aspeto que não logrou precisar), ficando de imediato convicto de que não fora enviada pelo assistente, convicção de pronto confirmada em conversa com este. De resto, acrescentou, o assunto não foi muito conversado dada a sua bizarria;
A testemunha J----, agente da Polícia Municipal de Lisboa, disse recordar-se vagamente da situação, mormente da fiscalização levada a cabo no imóvel e do contacto com o proprietário da fração autónoma implicada. O mais importante no seu depoimento, porém, residiu na confirmação de que a apresentação de denúncia através da mensagem de correio eletrónico não implica o envio de um documento de identificação do denunciante, sendo recebidas e processadas as denúncias mesmo que anónimas (cf. supra);
A testemunha V----, advogada, integrava a empresa que, à data, era administradora do condomínio, razão pela qual recebeu um agente da Polícia Municipal de Lisboa no seu escritório e, perante a denúncia exibida, contactou o condómino denunciado para lhe dar conta da situação.
O depoimento da testemunha T----, também condómina do supracitado imóvel, incidiu sobre aspetos relacionados com as atribuladas assembleias de condóminos e as decisões aí tomadas, não denotando interesse para a descoberta da verdade material e boa decisão da presente causa.
Por último, o depoimento da testemunha E----, amiga do arguido e seu companheiro há cerca de dez anos, respeitou às características da personalidade e à conduta social daquele, expressando a convicção de que tudo não terá passado de um lamentável e ocasional erro, ditado por um impulso isolado e sem risco de repetição.
No tocante aos factos não provados, a decisão alicerçou-se no depoimento da testemunha M---- mutatis mutandis (cf. supra) e na análise do comportamento do arguido, à luz das regras da experiência comum (cf. o exarado quanto às suas declarações).
2.3. DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO
2.3.1. Quanto ao erro de julgamento:
A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma, envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante, mas com limites, porque subordinada ao cumprimento de um dever muito específico de motivação e formulação de conclusões, no recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Guimarães de 25.02.2019, processo 119/17.9GAMDL.G1 e da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1, in http://www.dgsi.pt). 
Assim, nos termos do nº 3, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
Acrescentando o nº 4 do mesmo artigo que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6.
Ou seja, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe.
Não cumpre o ónus de impugnação especificada exigido pelo art. 412º do CPP a mera pretensão do reexame da convicção alcançada pelo tribunal de primeira instância com recurso exclusivo a argumentos susceptíveis de alicerçarem uma outra convicção.
É imprescindível demonstrar que as provas indicadas impõem uma convicção diversa, ou seja, que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, por violação de regras de experiência comum, uma errada utilização de presunções naturais, ou por evidente desconsideração de máximas de dedução lógica ou de conhecimentos científicos ou de uma flagrante inobservância de princípios de prova.
«A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24.03.2004, in DR, II Série, n.º 129, de 02.06.2004. No mesmo sentido, Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012. No mesmo Ac. do Tribunal Constitucional acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt).
«Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida» (Prof. Germano Marques da Silva, Registo da prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390 e Paulo Saragoça da Mata, in “A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença”, em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág. 253).
Do teor das conclusões do recurso resulta que o arguido recorrente coloca o cerne da sua divergência com a decisão recorrida na violação do princípio in dúbio pro reo.
Na sua formulação constante do art. 32º nº 2 da Constituição da República, o princípio da presunção de inocência surge articulado com o princípio in dúbio pro reo, na medida em que, quando aplicado à apreciação da matéria de facto, impõe a absolvição, quando haja dúvida acerca da culpabilidade do arguido (esta culpabilidade, na acepção de facto criminalmente punível, abrangendo, pois, todos os elementos constitutivos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime,  circunstâncias agravantes e excludentes da ilicitude e da culpa).
A dúvida relevante para a aplicação do princípio in dubio pro reo terá de ser a que corresponde a «um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva» (Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615), mas desde que seja positiva e racional, que ilida a certeza contrária, enfim, que seja uma dúvida impeditiva da convicção do tribunal.
O in dubio pro reo tem a sua oportunidade de aplicação circunscrita à ocorrência de factos incertos e não é mais do que o resultado da aplicação do princípio da presunção de inocência à actividade judicial de valoração da prova e de resolução de dúvidas dela emergentes quanto à verificação dos factos que integram o objecto do processo.
É um princípio de prova e um mecanismo de resolução dos estados de incerteza, na convicção do julgador, quanto à verificação dos factos integradores de um crime ou relevantes para a pena. Pressupõe que a dúvida seja razoável e se mantenha insanável, mesmo depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas. Resolve a dúvida, cominando-lhe como consequência a consideração dos factos como não provados e a consequente absolvição do arguido, ou, em qualquer caso, a decisão da matéria de facto, sempre, no sentido que mais favorecer o arguido.
«Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed., pág. 203).
«O tribunal deve dar como provados os factos favoráveis ao arguido, quando fica aquém da dúvida razoável, apesar de toda a prova produzida» (Maria João Antunes Direito Processual Penal, 2016, Almedina, p. 171).
«O principio in dubio pro reo aplica-se sem qualquer limitação, e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude (v. g. a legitima defesa), de exclusão da culpa. Em todos estes casos, a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido» (Figueiredo Dias in Dtº Processual Penal, I, 1974, p. 211).
Constituí, deste modo, um limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do CPP, na medida em que a dúvida que lhe subjaz, sendo insuperável, impõe-se com carácter vinculativo, impedindo o juiz de decidir uma parte do objecto do processo: precisamente, a que se refere aos factos incertos que sejam desfavoráveis ao arguido.
«Não adquirindo o tribunal a "certeza" (a convicção positiva ou negativa da verdade prática) sobre os factos (...), a decisão tem de ser, por virtude do princípio in dubio pro reo, a da absolvição. Neste sentido não é o princípio in dubio pro reo uma regra de ónus da prova, mas justamente o correlato processual da exclusão desse ónus» (Castanheira Neves in Processo Criminal, 1968, p. 55/60).
Nesta medida, é também o correlato processual do princípio da culpa – nulla poena sine culpa - porquanto o seu desiderato último é garantir que sem a demonstração suficiente dos pressupostos de facto de tal decisão, jamais haverá lugar à aplicação de qualquer pena ou medida de segurança (cfr.  Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e «in Dubio Pro Reo», Studia Juridica 24, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1997, p. 11).
Nos termos do art. 428º do CPP, os poderes de cognição do tribunal da Relação incluem os factos fixados na primeira instância e, na medida em que o in dubio pro reo é uma vertente processual do princípio nulla poena sine culpa, a sua inobservância também pode e deve ser apreciada como um erro de julgamento, nos termos regulados pelo art. 412º do CPP.
Com efeito, a impugnação ampla da matéria de facto, visando os chamados erros de julgamento, habilita o Tribunal da Relação, fora dos limites apertados dos vícios decisórios previstos no art. 410º do CPP a aferir da conformidade ou desconformidade da decisão sobre os factos impugnados com a prova efectivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como, com as regras específicas e os princípios vigentes em matéria probatória, entre os quais se incluem, naturalmente, os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo.
Nesta perspectiva, o enquadramento da violação do in dubio pro reo como erro de julgamento, postula uma concepção objectiva da dúvida quanto aos factos desfavoráveis ao arguido, que é, de resto, a que melhor se coaduna com os princípios da culpa e da livre apreciação da prova, perante as dúvidas sobre os factos desfavoráveis ao arguido, no sentido em que, se o Tribunal tem a máxima liberdade, mas também a máxima responsabilidade na forma como deve, com objectividade, efectuar o exame crítico e global das provas, adquirir a sua convicção quanto aos factos provados e fundamentar a sua decisão, também a dúvida relevante para a aplicação do princípio in dubio pro reo terá de ser motivada, segundo critérios de razoabilidade e de lógica, igualmente sindicáveis e passíveis de impugnação em via de recurso.
«Só a uma convicção objectivável e motivável terá de corresponder uma dúvida também ela objectivável e motivável (…) ao pedir-se ao juiz, para a prova dos factos, uma convicção objectivável e motivável, está-se a impedi-lo de decidir quando não tenha chegado a esse convencimento; ou seja: quando possa objetivar e motivar uma dúvida. (…). Não importa tanto saber se aquela concreta pessoa teve ou não dúvida sobre o facto – do que para a ciência e discernimento que deve possuir em comum com qualquer outro julgador e o há-de levar, portanto, a uma avaliação da prova admissível por todos (ao menos no seu conteúdo essencial). Um “juiz” médio (neste sentido) ter-se-ia convencido da veracidade daquele testemunho, da autenticidade daquele documento, da espontaneidade daquela confissão? Ou, pelo contrário, não poderia deixar de duvidar, com razoabilidade, da ocorrência de determinado facto perante a prova produzida?
«O princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, como tensão de objectividade, encontra assim no “in dubio pro reo” o seu limite normativo, ao mesmo tempo que transmite o carácter objectivo à dúvida que acciona este último.
«Livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» (Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», Coimbra Editora, 1997, pp. 51-53).
Assim sendo, também haverá violação do princípio in dubio pro reo, sempre que o tribunal do julgamento tenha julgado provado facto desfavorável ao arguido, não obstante a prova disponível não permitir, de forma racional e objectiva, à luz das máximas de experiência comum, das regras da lógica, dos conhecimentos científicos aplicáveis, ou das normas e princípios legais vigentes em matéria de direito probatório, com o grau de certeza ou convencimento «para além de toda a dúvida razoável», dar por verificada a realidade desse facto,  mesmo que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras do senso comum, não resulte que o Tribunal se tenha confrontado, subjetivamente, com qualquer dúvida insuprível, no momento da decisão (cfr. nesse sentido, Acs. da Relação de Évora de 19.08.2016, processo 36/14.4GBLLE.E1 e da Relação de Lisboa de 29.11.2016, processo 18/14.6PFLRS.L1-5; de 07.05.2019, processo 485/15.0GABRR.L2, in http://www.dgsi.pt).
No entanto, para que o Tribunal da Relação possa detectar a violação do in dubio pro reo, como erro de julgamento e segundo a concepção objectiva da dúvida, nos termos acima expostos, é preciso que o recorrente cumpra cabalmente os ónus primário e secundário de impugnação especificada de que o art. 412º faz depender o êxito da pretensão de reavaliação da prova produzida e de subsequente sindicância da convicção do Tribunal do julgamento sobre essa prova produzida em primeira instância.
Mas, no caso vertente, esse ónus não se mostra cumprido.
O recorrente alicerçou este recurso em dois grandes argumentos: um, o de que o Tribunal não atribuiu credibilidade às suas declarações, quando elas são absolutamente esclarecedoras, quanto à sua falta de intenção de praticar o crime de falsidade informática, na medida em que já tinha desistido de enviar o email contendo a denúncia obra ilegal à Câmara Municipal fazendo-se passar por outra pessoa e só por acidente, acabou por fazê-lo, estando, porém, convencido de não o ter enviado; o outro, o de que o Tribunal, contra as informações constantes do próprio site da Câmara Municipal, que referem de forma expressa, não serem admissíveis denúncias anónimas ou desacompanhadas de cartão de cidadão ou outro que identifique o denunciante em matéria de obras ilegais, acreditou no depoimento prestado pela testemunha J----, agente da polícia municipal que veio afirmar essa possibilidade em audiência de discussão e julgamento.
Só por esta linha de argumentação já se pode concluir que a versão probatória e factual alternativa que o recorrente apresenta, em substituição daquela que considera ter sido julgada de forma incorrecta, afinal, não assenta num erro de julgamento, mas antes na discordância do recorrente quanto ao sentido final da decisão proferida pelo Tribunal do julgamento, porque ao contrário do decidido, quer ser absolvido.  
Não há, neste recurso, argumentação objectiva que, com base em excertos concretos de depoimentos ou dos conteúdos dos documentos, infirmem a valoração feita pelo Tribunal, no sentido de que, de acordo com as regras de experiência e da lógica, segundo critérios de razoabilidade, a interpretação a dar aos concretos meios de prova produzidos era a inversa da que lhe foi atribuída, na primeira instância.
O que há é uma insurgência contra o facto de a sentença recorrida não ter dado acolhimento à versão dos factos apresentada pelo arguido, nem às informações constantes do site da Câmara Municipal de Lisboa que, a seu ver, credibilizam a sua versão dos factos.
Ora, a questão é saber se os factos julgados como provados têm ou não sustentação nos meios de prova produzidos, segundo critérios de lógica, de razoabilidade e de regras de experiência comum.
Mas sobre essa, o recorrente não trouxe nada de novo, até porque contra as razões da inverosimilhança da sua afirmação de que não tinha intenção de enviar o email que assumiu ter redigido e assinado com o nome de outra pessoa, como se fosse a própria, explanadas na motivação da convicção do Tribunal, quanto aos factos considerados provados e não provados, não aduziu qualquer argumento, limitando-se a invocar a natureza esclarecedora das suas declarações.
Mas, pese embora, o presente recurso não dar cabal cumprimento ao tríplice ónus de impugnação especificada nos termos impostos pelo art. 412º do CPP, o que bastaria para lhe ser negado provimento, sempre se dirá o seguinte:
O acerto da fixação de matéria de facto, afere-se a partir da comparação entre a prova realmente produzida e a matéria de facto fixada como provada e não provada, porque é ela que permite avaliar a conformidade entre a actividade probatória realizada e as regras da livre apreciação da prova, nos termos do art. 127º do CPP, o valor probatório legalmente atribuído aos meios de prova cuja eficácia está pré-estabelecida (v.g., confissão, documentos autênticos, ou perícias), as regras de experiência comum, os conhecimentos científicos ou técnicos aplicáveis e os critérios de razoabilidade humana, a pertinência dos juízos de inferência ou lógico-dedutivos retirados dos factos conhecidos para afirmar outros factos desconhecidos, próprios da prova por presunções naturais.
A prova indirecta tem, de resto, um importante peso, na consideração como demonstrados dos estados psicológicos atinentes ao processo de formação da vontade de cometer um crime, quando não houver confissão integral e sem reservas, como aconteceu, no caso vertente.
Com efeito, o arguido recorrente, começando por assumir que redigiu o email  com o texto «Boa tarde.Vinha solicitar o favor de verificarem a legalidade de uma varanda metálica, construída nas traseiras de um edifício na Avenida ------------, no 3.° andar Esquerdo, em Lisboa. Foi construída uma varanda metálica presa à fachada com acesso através de uma escada na janela.(…)» e de o ter assinado com o nome de D----, como se fosse este, veio dizer que desistiu de o enviar, num primeiro momento, num segundo momento, reconhecendo que o enviou, mas inadvertidamente, invocando, para o efeito, deficiências de visão e complementando que estava convencido de que, mesmo tendo sido recebido, seria desconsiderado por não estar acompanhado de documento comprovativo da identificação do denunciante.
Ora, para além de a «elevada literacia informática e conhecimento do modo de funcionamento dos programas computacionais pelo menos na ótica do utilizador», contrariar a possibilidade de que o envio da mensagem de correio eletrónico tenha ocorrido por mero acidente (involuntário), como muito pertinentemente se refere na sentença recorrida, o que cumpre perguntar é se, a ser verdadeira a tese do arguido, porque é que não apagou o email ?. Esse é que teria sido o comportamento lógico e adequado à sua apregoada desistência de o enviar à Polícia Municipal de Lisboa.
De resto, estando o arguido ciente dos seus problemas de visão e de que já havia enviado e-mails inadvertidamente, a pessoas a quem não eram dirigidos, em ocasiões anteriores, como ele próprio explicou, mais motivos teria para apagar a mensagem logo que formulado o propósito de não o enviar.
A verdade é que só não o apagou, como por uma de todo em todo estranha e excepcional coincidência, logo, o computador teria tomado sozinho a iniciativa de remeter a mensagem ao destinatário escolhido pelo arguido, tese que não tem a menor razoabilidade, ou sentido, à luz das máximas de experiência. 
No que se refere à discordância do recorrente por ter sido valorado o depoimento da testemunha J---- para concluir que a Polícia Municipal de Lisboa aceita e dá seguimento a denúncias recebidas, mesmo que apresentadas sob anonimato, relembra-se que as testemunhas C---- e V---- e os factos que relataram confirmam que, efectivamente, assim sucede.
Com efeito, destes depoimentos resultou inequívoco que houve uma fiscalização realizada pela Polícia Municipal de Lisboa, na sequência e em resultado da denúncia enviada pelo arguido, fazendo-se passar por D----, apesar de desacompanhada de cartão de identificação do próprio.
Assim, cumpre, em síntese, negar provimento a este recurso pois, além de incumprido o ónus previsto no art. 412º do CPP, na medida em que os argumentos aduzidos pelo recorrente, quanto muito, poderiam alicerçar uma convicção alternativa, mas jamais imporiam a solução oposta à exarada na sentença, como exige o citado art. 412º, tais argumentos são destituídos de razoabilidade ou verosimilhança.
Do mesmo modo, quanto ao exame crítico das provas, ao respectivos conteúdo, quando comparado com a factualidade dada como provada, não existe qualquer incerteza, nem se afigura que devesse ter existido, porque o Tribunal decidiu para além de qualquer dúvida razoável apoiado em provas bastantes, esclarecedoras e convincentes, não se mostrando inobservado o princípio in dubio pro reo.
III – DISPOSITIVO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas pelo arguido, que se fixam em 3 UCs – art. 513º do CPP.
Notifique.
*
Tribunal da Relação de Lisboa, 15 de Janeiro de 2020
Cristina Almeida e Sousa
Florbela Sebastião e Silva