Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5587/20.9T8SNT.L1-2
Relator: SUSANA MESQUITA GONÇALVES
Descritores: PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DIVÓRCIO
EFEITOS PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: (elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil)
- A realização oficiosa de diligências probatórias para o esclarecimento da verdade, efetuada ao abrigo do princípio do inquisitório, não se deverá traduzir numa gratuita substituição das partes, mas deverá ser assumida com vista a obviar dificuldades insuperáveis ou assaz excessivas e após esgotados os meios de que a parte disponha para esse efeito. Trata-se, assim, de uma intervenção subsidiária por parte do tribunal.
- As relações patrimoniais entre os cônjuges, decorrentes do regime de bens do casamento, cessam na data da sentença estrangeira que decretou o divórcio e não apenas na data da decisão do Tribunal da Relação que procede à sua revisão e confirmação em Portugal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados:
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I. Relatório:
“A” intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra “B”, formulando os seguintes pedidos:
a) Declarar-se ser a Autora a legítima dona e a única proprietária da fração autónoma Q melhor identificada no artigo 1.º da petição;
b) Condenar-se o Réu a reconhecer o direito exclusivo de propriedade da Autora sobre o imóvel identificado no art.º 1 da petição;
c) Ordenar o cancelamento do registo da propriedade na parte que respeita à titularidade do Réu, ou o seu cancelamento e a subsequente reinscrição da referida propriedade exclusivamente em nome da Autora;
d) Condenar-se o Réu a pagar à Autora a quantia de 9.000,00€ pelos prejuízos já apurados e causados pelo facto deste não reconhecer voluntariamente que a propriedade do imóvel é única e exclusiva da Autora.
Para tanto e em súmula alegou o seguinte.
Apesar da propriedade sobre a fração Q se mostrar inscrita a favor da Autora e do Réu, a Autora é a única proprietária da mesma, pois quando a adquiriu já era divorciada do Réu, embora a sentença de divórcio, proferida no estrangeiro em 1990, só tenha sido objeto de revisão por sentença da Relação de Lisboa proferida anos mais tarde, após a sua compra.
Foi a instituição bancária à qual a Autora pediu crédito para a compra da fração que exigiu a assinatura do Réu, o qual, à data e perante o ordenamento jurídico português, ainda era marido da Autora, exigência a que o Réu anuiu.
Contudo, o Réu não comprou a casa e nunca contribuiu para o pagamento do respetivo preço ou de quaisquer despesas com a fração, tendo, todos esses encargos, sido suportados exclusivamente pela Autora.
Do exposto a Autora retira que é inválido o registo da fração, defendendo que é possível ilidir a presunção resultante do art.º 7º do Código de Registo Predial.
Deve ainda o Réu indemnizar a Autora pelo prejuízo causado com a sua recusa a regularizar a situação da fração.
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Válida e regularmente citado o Réu contestou.
Invocou as exceções de erro na forma de processo e de incompetência material do tribunal.
Mais alega, em síntese, que após o divórcio Autora e Réu continuaram a viver como se casados fossem, de tal forma que, passados quatro anos e seis meses sobre o divórcio, tiveram um outro filho.
Impugna parte da matéria de facto alegada pela Autora, negando que tenha sido esta a suportar exclusivamente os gastos com a aquisição do imóvel e que tenha tido quaisquer prejuízos ou danos por causa da conduta do Réu, não aceitando a propriedade exclusiva da Autora sobre a fração.
Mais invoca a litigância de má fé da Autora, referindo, para tanto, que esta falta à verdade com o intuito de prejudicar o Réu.
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Na resposta às exceções deduzidas na contestação, também a Autora veio imputar ao Réu a litigância de má fé, pedindo a sua condenação em multa e indemnização a seu favor, no valor de 5.000,00€.
Alega, para tanto, que é o Réu quem omite e distorce os factos.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia.
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Foi proferido despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as exceções invocadas pelo Réu e acima assinaladas, concluindo-se pela validade e regularidade da instância.
Após, procedeu-se à fixação do objeto do litígio e à indicação dos temas da prova.
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Realizou-se audiência final, com observância do legal formalismo.
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Foi proferida sentença, na qual se decidiu:
Tudo visto e ponderado, decide este Tribunal julgar a presente ação improcedente, e, em consequência, absolver o Réu dos pedidos.
Mais se julgam improcedentes os pedidos formulados por cada uma das partes, de condenação da contraparte, como litigante de má fé.
Custas pela Autora - art.ºs 527º, nºs 1 e 2 e 528º, nº 1, ambos, do citado Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
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Inconformada com esta decisão, a Autora dela interpôs recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que condene o Réu em todos os pedidos por si deduzidos.
Formulou, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões que se transcrevem:
1- A decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, constitui uma autêntica violação do direito probatório, "maxime" na vertente de análise, avaliação e valoração da prova produzida nos autos e na omissão da apreciação de outras existentes nos mesmos.
2- A sentença incorre em erro no julgamento da matéria de facto, ao incluir no elenco dos factos não provados aqueles constantes dos pontos 1. a 25. e referentes à propriedade exclusiva da A. sobre o imóvel.
3- O Tribunal a quo, não podia dar resposta negativa aos mesmos, com base na inexistência de prova documental “...revelador de qualquer espécie de pagamento relacionado com a fração autónoma dos autos...”
3- A propósito, realce-se que a Autora só neste momento soube da inexistência de prova documental, uma vez que,
4- Convenceu-se de estar os documentos referentes à compra e venda com recurso ao financiamento hipotecário bem como à amortização do mesmo financiamento feito, exclusivamente, por si, junto aos autos, vidé, em sede de esclarecimentos às declarações da A., prestados em audiência de discussão e julgamento, cfr. passagens entre minutos 00:20:21 a 20:43 e em sede de alegações da mandatária da A., entre os minutos 00:13 a 00:26, supra transcrito na parte I das alegações.
5- Acresce que consta do ponto 7 dos factos provados que: “Nesta escritura, Inácio Silves Ferreira declarou aceitar, para a sua representada a venda da fração autónoma designada pela letra Q do prédio urbano em regime de propriedade horizontal (…)”
6- O que demonstra que a compradora da fração em causa, era apenas a A., atento a expressão utilizada “representada” e não “representados”.
7- O Tribunal recorrido ao ter dado esse facto como provado, deveria retirar a ilação jurídica - reconhecer e declarar que aquela fração apesar de no acto de aquisição constar A. e R., na verdade ficou especificado que apenas a A. era compradora.
8- Ao assim não proceder, faz prevalecer sobre a justiça material a formalidade da escritura, trazendo para a ordem jurídica uma decisão, extremamente prejudicial à A., que quis comprar, recorreu ao crédito e suportou sozinha os custos da escritura e dos registos, bem como e sozinha suportou amortização integral do capital mutuado pelo banco Montepio e juros e todos os outros associados ao facto de aquisição do imóvel.
9- De acordo com o princípio do inquisitório, devia o tribunal recorrido fazer uso do exercício dos seus poderes/deveres inquisitoriais ou de indagação oficiosa plasmados nos artigos 6.º, 7.º, 411.º, 429.º e 547.º, todos do CPC e
10- Visando a descoberta da verdade e a boa composição do litígio, pugnar pelo conhecimento ex officio dos referidos documentos,
11- Por os mesmos referirem-se quer ao objeto do processo quer aos temas de prova e consequentemente, com interesse para a decisão a proferir. [(vidé,entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02.09.2015, in proc 572/11.4TTPNF-A.C1.P1 e, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.10.2020, in proc 2023/19.7T8VNF-A.G1 ]
12- Podia e devia o Tribunal a quo ter notificado as partes para juntar aos autos, entre outros, documentos comprovativos do financiamento bancário, assim como do pagamento do crédito hipotecário obtido para efeito daquela aquisição e de todas as despesas relacionadas com o imóvel (prestações bancárias, condomínio, impostos, etc).
13- Sendo incompreensível a actuação do Tribunal a quo, que diligencia pela junção aos autos de determinados documentos (cfr. despachos de 16.03.2021 ref.129700309, de 09.09.2021, ref.:132419858 e de 14.10.2021, ref.: 133152981), em detrimento de outros, apesar de também eles, necessários e imprescindiveis à boa decisão da causa.
14- O não exercício de um poder-dever constitui omissão de um acto que a lei prescreve e que influi no exame e na decisão da causa e,
15- Gera nulidade, nos termos do artigo 195.º CPC, com evidente prejuízo na pretensão da Recorrente, o que não pode ficar incólume.
16- Ademais, não se vislumbra razão atendível para que o Tribunal recorrido, na apreciação dos factos tivesse, fundamentalmente, baseado no depoimento de testemunhas,
17- Não valorando devidamente as declarações da A., quando a mesma interveio e pessoalmente na questão em causa e por isso tem uma perceção objectiva, directa e melhor razão de ciência do que qualquer testemunha que nestes autos prestou depoimento.
18- Ao limitar a Autora a provar os factos por si alegados e que sustentam a sua pretensão, ou mesmo de fazer a contraprova dos factos contra si invocados,
19- O Tribunal a quo violou entre outros, o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva da A./Recorrente, previsto no artigo 20.º da C.R.P, pois,
20- As declarações de parte podem fundamentar a convicção do juiz de forma autosuficiente [ vidé, Mariana Fidalgo, A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, p. 80 e Acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 26.04.2017, in proc 18591/15.0T8SNT.L1-7]
21-In casu, as declarações prestadas pela Autora de forma isenta e desprendida, demonstraram com clareza inequívoca que sozinha adquiriu a fração autónoma e custeou exclusivamente todas as despesas.
22 - Tendo referido que fazia os pagamentos mensais através de contas bancárias tituladas por si, na Suíça para o banco Montepio em Portugal, cfr. melhor resulta das passagens entre os minutos 00:02:34 a 00:06:08; 00:10:46 a 00:11:28; 00:20:21 a 00:20:43 e 00:22:12 a 00:22:32, transcritas na parte I das supra alegações.
23 - A corroborar o facto ter a A. adquirido sozinha a fração através de empréstimo bancário e custeado todas as despesas a ela inerentes,
24- Veja-se o depoimento da testemunha H …, passagens entre os minutos 00:04:20 a 00:06:34 e N …, cfr. passagens entre os minutos 00:04:29 a 00:04:52 e 00:05:10 a 00:05:34 e 00:08:43 a 00:09:10, supra transcritas na parte I das alegações que aqui se tem por reproduzido.
25- Da cláusula primeira da escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca junta a fls aos autos, resulta que foi o Banco Montepio e não o BPI quem concedeu o empréstimo para aquisição da fração autónoma,
26- O que corrobora o sentido e alcance das declarações da Autora em detrimento do alegado pelo Réu de forma imprecisa, incoerente e contraditória, nos artigos 69.º e 70.º da sua contestação.
27- Inexiste nos autos prova que indicie qualquer envolvimento do Réu na obtenção de crédito, na compra da fração, no pagamento das prestações bancárias relativa ao empréstimo contraído ou de qualquer outro encargo relacionado com o dito imóvel.
28- De igual modo o Réu/Recorrido não logrou demonstrar conhecer a casa, da sua tipologia, da sua constituição, do seu valor e até da sua localização.
29- Não obstante tal, de uma análise criteriosa objectiva e imparcial da prova produzida, resulta ainda claro que, existia de facto uma separação de vidas e de patrimónios entre Autora e Réu– cfr. declarações da Autora, passagens entre os minutos 00:06:46 a 00:07:03; 00:07:41 a 00:08:20; 00:08:52 a 00:09:20; 00:10:15 a 00:10:31; 00:12:14 a 00:12:57;00:16:46 a 00:18:09, que aqui se tem por reproduzido.
30- A corroborar a inexistência de uma união de facto e a ausência de solidariedade e cooperação da Autora para com o Réu, vidé o depoimento das testemunhas Y … – passagens entre os minutos 00:13:02 a 00:14:58, S … - vidé passagens 00:01:59 a 03:04 e 00:05:14 a 00:06:38, bem como a testemunha N … - passagens 00:03:36 a 00:04:28, supra transcritos na parte I das alegações, que aqui se tem por reproduzido.
31- Por outro lado, apesar de ser relevante e essencial para a boa decisão da causa, o Tribunal a quo, também não apreciou, nem valorizou a carta de interpelação da A. de 09.11.2018 a fls dos autos, cujo teor não foi impugnado pelo Réu.
32- Não tendo sequer fundamentado a sua omissão de pronúncia quanto ao respectivo valor probatório daquele, não obstante, na sua obrigação de julgar se impor procedimento diferente, nos termos do artigo 154.º do CPC.
33- Conclui-se que, com base na descrita prova produzida em juízo, com realce particular para as declarações da A. e sem olvidar a sentença transitada em julgado, proferida em 15.06.1990 pelo tribunal de Distrito de Broye Estavayer-le-lac e revista pelo tribunal da Relação de Lisboa de 12.01.2016 (cfr. ponto 4 dos factos provados)
34- Deveria o Tribunal a quo, dar como certo e provado, entre outros, os factos constantes dos artigos 5.º a 32, 42.º a 52.º da P.I a que corresponde os pontos: 1 a 25 dos factos insertos na sentença (v.g alíneas A) a H) dos temas de prova), com todas as legais consequências.
35- Apela assim a Recorrente a este Venerando Tribunal no sentido de proceder à reapreciação da prova supra indicada e a correcção da decisão, substituindo-a por outra que considere provados pontos 1. a 25. dos factos insertos na sentença.
36- Releva ainda para caso que encontrando-se de facto e de direito, a Autora divorciada do Réu em 1990,
37- Os efeitos retroagem a essa data, quando tal facto foi reconhecido pela ordem jurídica portuguesa (vidé Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02/08/2000, relator António Geraldes, transcrito na parte II do corpo das alegações)
38- Pelo que, sendo os mesmos divorciados à data da aquisição do imóvel (1999) e,
39- Inexistindo nos autos elementos probatórios com razoabilidade suficiente para atestar que tal bem também pertence ao Réu/Recorrido,
40- Extrai-se, sem margem para dúvida, que o imóvel não integra o acervo de bens comuns do casal, por ter cessado entre eles à data do divórcio as relações pessoais e patrimoniais (cfr. artigo 1688.º do Cód.Civil).
41- Devendo antes ser considerado como bem próprio da Autora/Recorrente.
42- Apesar de o Réu/Recorrido constar da inscrição do registo predial, da mencionada prova carreada para os autos resulta que o mesmo, é desconforme com a realidade substantiva.
43- Dúvidas não há que a Autora/Recorrente, logrou ilidir presunção registral (cfr. artigo 7.º e 8.º CRP, 342.º e 350.º do CC, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22.10.2015, in proc 1196/11.1TBSSB.E1 Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 26.11.2013, in proc 1643/10.0TBCTB.C1,
44- Assim, o destino da acção seria, ao invés do agora decidido pela 1ª Instância, a procedência dos pedidos formulados nas alíneas a) a c) do petitório final da Autora/Recorrente.
45- Resultou dos autos que, tendo sido interpelado para o efeito (doc n.º 5 junto à P.I) o Réu recusa-se a colaborar com a Autora na regularização da situação registral do imóvel, uma vez que,
46- Arroga-se também ele proprietário, mas, sem qualquer prova que o demonstre, adiando, dolosamente, assim a solução para o problema.
47- Com a sua conduta, o Réu/Recorrido viola, reiteradamente, o artigo 1305º do Código Civil, privando a A./Recorrente do seu direito de usar, fruir e dispor do imóvel, quando e como lhe aprouver.
48- A simples privação do uso em pleno da propriedade do imóvel, contra a vontade da Autora/Recorrente, é meio idóneo para causar-lhe danos,
49- Não sendo necessário que a Autora/Recorrente alegue e demonstre quais os concretos fins ou utilidades que visava com o bem, assim como os reflexos que isso teve no seu património.
[a propósito, vidé excerto o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.01.2010, in proc. 314/06.6TBCSC.S1, Acórdão do tribunal da Relação do Porto 17.03.2011 530/09.9TBPVZ.P1 e excerto do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12.03.2020, in proc 436/19.3T8SSB.E1, supra transcrito na parte II das alegações que aqui se tem por reproduzido]
50- Com o devido respeito por melhor opinião, decorre das regras da experiência e do senso comum que, o circunstancialismo em que a Autora se viu envolvida, em virtude da conduta do Réu,
51- Só poderia despoletar nela sentimentos de stress e tristeza,
52- Devendo o Tribunal a quo ter levado em conta na fundamentação da sentença os factos derivados de presunção, para formar a sua convicção, entre outros, aos pontos 19 a 25, dando-os como provados, em conformidade com o disposto nos artigos 341.º, 342.º, 344.º, 349.º, 351.º 1 do Cód. Civil e 412.º n.º 1 do CPC.
53- Conclui-se ser o Réu/recorrido responsável pelos prejuízos causados à Autora/Recorrente, pela privação do pleno uso do imóvel, nos termos do disposto no artigo 483º, 496.º, 563.º, 564.º e 566.º do Código Civil, sendo certo o nexo de causalidade entre o dano e a acção cometida pelo Réu/Recorrido.
54- À semelhança do demais, conclui-se ser merecedora de censura a decisão do Tribunal a quo que julgou improcedente o pedido indemnizatório formulado pela Autora nos artigos 41.º a 52.º da P.I e na alínea d) do petitório final.
55- O que resulta de uma análise critica e objectiva da prova carreada para os autos, que o Réu faltou à verdade, despudoradamente, pretendendo fazer crer ao Tribunal que, comparticipou financeiramente para a aquisição da fração,
56- Bem ciente que, aquando da aquisição do dito imóvel, há muito que já estava divorciado da Autora (vidé os pontos 4 e 6 dos factos provados), nunca tendo tido qualquer ligação com o imóvel, tanto a nível monetário, como a nível habitacional,
57- Reafirma-se que não existe nos autos, o mais pequeno indício de prova de envolvimento do Réu na aquisição da fração autónoma.
58- De forma a justificar a sua pretensão que sabe não ser legitima, o Réu/Recorrido distorce e omite a verdade dos factos,
59- Pelo que o Réu/Recorrido violou um dever de conduta processual,
60- É por isso, censurável a decisão do Tribunal a quo que não condenou o Réu/Recorrido como litigante de má fé, em conformidade com o alegado nos artigos 17.º a 24.º e ponto 4. do pedido formulado no articulado de resposta da A. que aqui se reitera, violando as disposições dos artigos 542.º e 543.º do CPC.
61- O tribunal a quo ao não reconhecer a A. como legitima dona e única proprietária da fração autónoma em causa,
62- Premiou a conduta daquele que, apenas tem como propósito obter para si vantagens patrimoniais, nomeadamente, em sede de partilha, enriquecendo de forma injustificada e ilícita à custa do empobrecimento da Autora/Recorrente.
63- Torna-se manifesto concluir que ao decidir-se como se decidiu, julgando improcedente a pretensão da A./Recorrente,
64- O Tribunal recorrido, incorreu em erro na apreciação da prova e na aplicação e interpretação do direito aos factos, violando frontalmente, além do mais, entre outros, as disposições dos artigos 13º, 20º n.º 1, 202º, e 205º n.º2 da Constituição da República Portuguesa e artigos 341.º, 342.º n.º1 e 2, 344.º n.º 2; 349.º 350.º e 351.º, 483º, 496.º, 563.º, 564.º e 566.º, 1305º, 1688.º , todos do Código Civil, bem como os artigos 4.º; 5.º; 6.º; 7.º; 154.º; 411.º 412.º n.º1; 413.º; 429.º; 547.º, 542.º, 543.º 607°, 4, 2.ª parte, 608 n.º2, todos do Código de Processo Civil, 7.º, 8.º e 13.º CRPredial o que não pode ficar incólume.
65- Assim, face ao que antecede, a decisão que ora se impugna torna-se juridicamente insuportável,
66- Nestes termos, a Recorrente apela a este Venerando Tribunal, no sentido de concluir dever ser a douta sentença recorrida revogada e substituída quanto à matéria objecto do recurso (…).
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O Réu contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Termina com as seguintes conclusões que se transcrevem:
1. Como decorre da leitura da fundamentação da decisão recorrida, esta não se baseou em qualquer meio probatório junto por iniciativa do tribunal, nem em preceito jurídico com cuja aplicação as partes (justificadamente) não tivessem contado, ou seja, esse julgamento não se apresentou de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos então constantes do processo;
2. Na conclusão nº 29 das suas alegações, a apelante alega que «existia de facto uma separação de vidas e de patrimónios entre a Autora e Réu», e na conclusão nº 30: « A corroborar a inexistência de uma união de facto e a ausência de solidariedade e cooperação da Autora para com o Réu, vide depoimento das testemunhas Y … e N …».
3. “A” e de “B” divorciaram-se por sentença transitada em julgado, proferida pelo Tribunal de Distrito de Broye Estavayer-le-lac em 15 de Junho de 1990, e em 4-12-1994, nasceu B …, filho de “A” e de “B”;
4. Resulta dos depoimentos das testemunhas C …, Y …, N …, S …, V … e das declarações de parte da Apelante que não é verdade as conclusões 29 e 30;
5. Depoimento de C … – 19.01.2022 a minutos 07.05, «Juiz- Certo, o que eu pergunto é se conhece a sra. “A” como esposa do sr. “B”, então desde quando é que ela é a esposa? Test- A esposa? O sr. “B” saiu de lá cinco anos mais ou menos. Juiz - Portanto, há desde uns cinco anos que eles se separaram, é isso? Test- Mais ou menos. Juiz – Mais ou menos.»
6. Depoimento de V … – dia 19.02.2023, 03.12.«Juiz- E eles viveram juntos até quando? Test- Eles viveram juntos até ao principio, há agora aí quatro anos ou cinco anos, eles não moram mais juntos. Juiz- Sim senhor. Olhe, a sra. está de mal, diga, diga Test- cinco anos, já não moram juntos, já não moram junto. 03.44 Juiz – Quando a sra. foi para lá eles moravam juntos? Test- moravam juntos. Juiz - Moravam juntos.»
7. Depoimento de Y … - 19.01.23 - 06.30 - «Adv- Daquilo que via, daquilo que experienciava na casa o padrinho e a sra. “A” davam-se bem? 06.35 Test- Sim todos os dias encontravam-se em casa. Via-os, ele vinha comer connosco. Davam-se bem.»
8. Depoimento de S …, dia 19.01.2023, minuto 03.10-«Juiz – E a sra. esteve lá até que altura? Test- 20017. Antes de ir para Portugal eu ainda ia lá. Juiz- Sim senhora. Juiz- Sempre lá foi?» e ao minuto 13.33 «Adv- Enquanto que viveu lá não sabe se eles mantinham uma relação se eles eram casados ou se estavam divorciados, ou se só namoravam? Test- Não. Eles tinham uma vida de casal normal.»
9. Depoimento de parte da Apelante gravação áudio em 19.02.2023, minuto 19.09 Juiz- É verdade que até á cerca de cinco anos viviam no seu apartamento de Payerne? Autora- Sim. Sim. Adv - Até á cerca de cinco anos, estamos em 2023, se tirarmos cinco, dá 2018, vocês faziam. Autora - Sim ela tinha um apartamento dele, vinha e ia. Adv - Portanto, 2018 mais os dez do divórcio, são 28, andaram vinte e oito anos a namorar, vá. Juiz- A namorar.
10. A testemunha N …, filha do casal, declarou: «Não sabia que os meus Pais estavam divorciados. Era jovem não sei quando eles casaram, não sei quando se divorciaram. E quando soube: «Não me lembro já estava grávida» e «Até aos meus treze anos o meu Pai vivia connosco. Depois foi-se embora na casa dele. Depois o meu Pai dormia na casa dele, antes dormia na nossa casa, ás vezes dormia na nossa casa, ás vezes na casa dele, cada um tinha a casa deles. Depois dormimos em casa dele.»;
11. A prova tem por função a demonstração da realidade dos factos, factos que têm que constar do processo, alegados pelas partes nos respectivos articulados, e que são em primeira linha os factos principais da causa;
12. Nos termos do art.º 342º nº 1 do CC àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. É o específico ónus de prova como obrigação que recai sobre uma pessoa de provar algum facto ou alguma circunstância com interesse para um determinado fim. Neste sentido o AC.RELPORTO, Relatora Ana Paula Amorim, Proc.º 295/20.3T8PVZ-A.P1 de 06.09.2021: «II - A prova tem por função a demonstração da realidade dos factos alegados (art.º 341ºCC e art.º 410º CPC);
13. Sendo a prova o acto ou série de actos processuais através dos quais há que convencer o juiz da existência ou inexistência dos dados lógicos que tem que se ter em conta na causa, o ónus da prova (342º Código Civil) é a obrigação que recai sobre os sujeitos processuais da realidade de tais actos, traduzindo-se para a parte a quem compete no encargo fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova. Neste sentido decidiu o AC STJ 1437/16.9T8OER.L2.S1, Relator: BERNARDO DOMINGOS, de 25-03-2021 e Ac. STJ de 30/04/96;
14. No julgamento da matéria de facto importa ter presente a prevalência do princípio da liberdade de julgamento, consagrado no art.º 607.°, n.º 5, do NCPC, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto controvertido, não invalidando a convicção do tribunal o facto de não existir uma prova directa e imediata da generalidade dos factos em discussão, sendo legítimo que se extraiam conclusões em função de elementos de prova, segundo juízos de normalidade e de razoabilidade, ou que se retirem ilações a partir de factos conhecidos (Cf. Ac. RG de 11.2.2016, Proc. 185/10: dgsi.Net);
15. Nem tudo o que é mencionado pelas próprias testemunhas tem que merecer o acolhimento do Tribunal. A apreciação da prova pelo julgador é muito mais profunda, merecendo um tratamento de decifração sério, objectivo e inequívoco, distanciada do interesse subjectivo da parte (Cf. Ac. RL de 26.1.2016: Proc. 111/11.7TBPDL-A.L1-1.dgsi.Net;
16. A Recorrente insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, incidindo a impugnação sobre a matéria não provada dos pontos 1 a 25 (conclusão 2ª), e artigos 5º a 32º, 42 a 52 da p.i. (conclusão 34º) da apelação, e erro de julgamento, transcrevendo partes dos depoimentos das testemunhas das audiências de discussão e julgamentos.
17. Questiona-se, desde já, se nas alegações de recurso de apelação, em sede de impugnação da matéria de facto, a Autora satisfez, ou não, os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640.º do CPC - impugnação da decisão respeitante aos factos dados como não provados, mais precisamente, os factos 1 a 25 do elenco de factos dados como não provados?
18. Questionar a forma como o tribunal a quo a valorou a prova, não equivale, em absoluto, a uma verdadeira e própria impugnação da matéria de facto;
19. A Apelante no corpo das alegações indicou genericamente, por números, os pontos da matéria de facto cuja prova impugnava, sem análise crítica dos meios de prova indicados por referência a cada um dos factos, ou, pelo menos, a cada uma das situações de facto individualizadas, e em relação a nenhum deles ter sido indicada a decisão que, no entender da apelante, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas;
20. Nas conclusões relativas à impugnação da decisão sobre a matéria de facto a Apelante limitou-se a referir alguns deles, por números:
21. Outros factos foram omitidos nas conclusões, e não existe prova bastante nos autos para alcançar a pretensão da apelante;
22. Afigura-se-nos não ter a autora/apelante cumprido os ónus de impugnação de facto acima mencionados, não indicando com precisão os pontos de facto que, em seu entender, deveria ter diverso resultado probatório, bem como, o sentido deste e, ainda, os meios de prova que, na sua perspectiva, a tal conduzem, com indicação de excertos dos depoimentos em questão;
23. A apelante violou as exigências previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, não especificando quais os concretos meios probatórios que, quanto a cada um daqueles factos, impunham decisão diversa da recorrida e não indicando a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. impondo-se a imediata rejeição do recurso no que toca à impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
24. Alega a apelante que só ela comprou e pagou a fracção autónoma, com recurso a um empréstimo bancário, omitindo o contrato de mútuo hipotecário que é parte integrante da escritura de compra e venda mútuo com hipoteca, em que foram mutuários a apelante e o apelado;
25. Da certidão da escritura de compra e venda, mútuo com hipoteca outorgada no dia 26 de Maio de 1999, no extinto … Cartório Notarial de Lisboa, junta a os autos, consta que: «Compareceram como outorgantes: Segundo- I …, casado, natural de Cabo verde, residente na Rua …, que outorga como procurador de “B” e mulher “A”, casados na comunhão de adquiridos, naturais, ele de Cabo Verde e ela de Angola, residentes em …, Suíça, NIF nº …, adiante designados por parte devedora, conforme procuração que arquivo»- Factos provados nº 6 e 7;
26. Na cláusula 1ª do contrato de mútuo da escritura, lê-se: «Disseram o Segundo e Terceiro Outorgantes: - Que ajustam um contrato de empréstimo nos termos das clausulas constantes do documento complementar, elaborados nos termos do nº 2 do art.º 64º do Código do Notariado, cujo conteúdo expressamente declaram conhecer e aceitar e que faz parte integrante da presente escrituras pelo que dispensam a sua leitura, e ainda as seguintes clausulas: - Cláusula Primeira- Os representados do segundo outorgante confessam-se devedores à Caixa Económica Montepio Geral, da quantia de quinze milhões de escudos, que nesta data dele receberam a título de empréstimo, para aquisição da referida fracção, que se destina a habitação secundária.» Disse o Terceiro Outorgante, na Indicada Qualidade: -Que a Caixa Económica Montepio Geral, sua representada, aceita a confissão de divida e hipoteca, nos termos exarados» Factos provados nºs 6 e 7.
27. À data da compra e venda da fracção, a sentença de divórcio proferida na Suíça não tinha eficácia legal em Portugal, eficácia que só veio a ter por força da decisão da Relação de Lisboa de 12-1-2016, no âmbito do processo nº …, por via da decisão de 12 de janeiro de 2016, foi dissolvido aquele casamento e decretado o divórcio, entre a Autora e o Réu;
28. divórcio que, desde 12 de janeiro de 2016, passou a “ter eficácia na ordem jurídica portuguesa”. Facto Provado nº 4;
29. Deste modo, à data da compra e venda em apreço (em 1999) a escritura de a sentença de divórcio proferida na Suíça (em 1990) ainda não tinha efeitos de caso julgado, em Portugal, termos em que, efetivamente, então, na ordem jurídica portuguesa, Autora e Réu eram casados; e, como afirma a Autora, no regime supletivo da comunhão de adquiridos.
30. Alega a apelante que a sentença incorre em erro de julgamento da matéria de facto ( conclusão 2 e 64), pois de acordo com o principio do inquisitório devia o tribunal recorrido fazer uso no exercício dos seus poderes/deveres inquisitoriais ou de indagação oficiosa plasmados nos art.º 6º, 7º, 411º, 429º e 547 todos do CPC (conclusão 9 a 14), gerando nulidade (conclusão 15).
31. A instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova - art.º 410º CPC; A prova tem por objecto os factos pertinentes para o objecto do processo.;
32. Os temas de prova constituem quadros de referência das questões fundamentais do processo controvertidas e que decorrem da causa de pedir e das excepções. Nesses quadros de referência há que recorrer aos factos alegados pelas partes e que são em primeira linha os factos principais da causa – José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum – À luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, Setembro de 2013, pág. 206. Neste sentido decidiu o AC. REL COIMBRA 231/19.0T8CNF.C1, Relator António Carvalho Martins, 16-03-2021, dgsi.net: «O juiz não tem que responder aos «temas de prova» mas aos factos que consubstanciam o direito invocado, ou as excepções deduzidas.»
33. Não obstante o Tribunal a quo ter convidado a Autora, ora Apelante, - Despacho de 16.03.2021- Refª Citius 12970039 - a suprir as deficiências da sua Petição Inicial e juntar os cinco documentos a que fez referência na p.i.,- mas não juntou com o referido articulado -, demorou seis meses para cumprir o despacho, sendo a segunda Petição Inicial apresentada, idêntica á primeira;
34. Na p.i. a Autora não protestou juntar qualquer documento;
35. Nem na p.i. nem em requerimentos posteriores alegou qualquer facto que impossibilitasse a junção de documentos, nem requereu que os mesmos fossem solicitados a pessoas ou entidades.;
36. Teria o Tribunal que adivinhar qual foi a entidade bancária Suíça, o balcão, o número de conta o mesmo se passando com a conta sediada na Caixa Económica Montepio Geral, em Portugal? As despesas com o condomínio, o IMI, etc?
37. Nos termos do nº 1 do artigo 264º do CPCivil, é sobre as partes que recai o ónus de «alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções.»: é o princípio do dispositivo, que enforma o nosso processo civil, não podendo o Tribunal «substituir-se» às partes, colmatando a ausência de factos essenciais à composição do litígio;
38. Uma coisa é ónus de alegação, outra coisa é o ónus da prova, e este só pode funcionar na medida em que se deu cumprimento prévio àquele: isto é, sobre as partes impende o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito, artigo 342º, nº1 do CCivil.;
39. Se se seguisse à risca o entendimento da Apelante, então nunca seria necessária a alegação de qualquer factualidade, bastando apenas as partes formularem um pedido e juntarem, ou requisitarem a efectivação de prova dos hipotéticos factos que dariam origem ao petitório, fazendo-se impender sobre o Tribunal, quiça, um dever de premonição, ou de presunção sobre aqueles: quer dizer, a parte não alega os factos, mas se pedir a efectivação de determinada prova é porque quis alegar isto ou aquilo. Neste sentido decidiu o Ac. REL Proc.º nº 1723/2004-2, Relator ANA PAULA BOULAROT de 29-04-2004: «I – Impende sobre as partes o ónus de alegar os factos que integram a sua causa de pedir ou que fundamentam as excepções. II - O princípio do dispositivo veda que o Tribunal se substitua às partes, colmatando, por qualquer meio a ausência de alegação por aquelas dos factos essenciais»;
40. A Lei faz depender a concessão de determinados direitos, da verificação de determinados requisitos, sendo que as partes são obrigadas a alegar todas as circunstâncias factuais de onde o Tribunal os possa vir a extrair. Nesse sentido decidiu o Ac. REL de Coimbra, Proc.º nº 204/19.2T8SPS.C1, Relator António Carvalho Martins, de 16 de Março de 2021: …..«7. Em direito processual, sendo a prova o acto ou série de actos processuais através dos quais há que convencer o juiz da existência ou inexistência dos dados lógicos que tem que se ter em conta na causa, o ónus da prova (342º Código Civil), é a obrigação que recai sobre os sujeitos processuais da realidade de tais actos. A traduzir-se - haverá de dizer-se, agora e sempre -, para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova;
41. A consagração do princípio do inquisitório, pressupõe a compatibilização entre o princípio do dispositivo, que determina a necessidade de alegação de factos pelas partes, e a actuação do juiz sobre o qual impende a responsabilidade de realizar diligências que repute como essenciais.
42. O princípio do inquisitório não dispensa as partes da observância dos princípios do dispositivo, da auto-responsabilização, nomeadamente do acatamento de ónus de alegação e prova e consequentes preclusões.
43. Quer isto dizer que, por força do princípio do inquisitório, deve o juiz acautelar a necessidade de produção dos meios de prova requeridos pelas partes com os factos alegados, apenas indeferindo esses meios de prova quando os meios não se adequem ao objecto processual ou se revelem inúteis. Neste sentido, veja-se Ac. TRC de 25-10-2022, proc. 4322/21.9T8LRA-A.C1, relator Luís Cravo.
44. O princípio do inquisitório – assim como o dever de gestão processual consagrado no art.º 6º do CPC - não se destina a suprir incumprimento de ónus processuais.
45. Visando demonstrar que pagou as prestações do empréstimo, incumbia à apelante o ónus de prova. E apenas na impossibilidade ou dificuldade séria na sua obtenção cabia ao tribunal o poder-dever de os solicitar, desde que relevantes e pertinentes;
46. O princípio do inquisitório não concede ao juiz o poder de se substituir às partes, colmatando os seus lapsos ou esquecimentos no que respeita ao ónus de arrolar ou de aditar determinada testemunha ao rol apresentado;
47. As partes têm o ónus de praticar os actos que devam ter lugar em prazo peremptório, sob pena de preclusão e, nos casos indicados na lei, de cominações;
48. A autorresponsabilidade da parte exprime-se na consequência negativa (desvantagem ou perda de vantagem) decorrente da omissão do ato;
49. Atento o que já ficou dito supra, é manifesto que da parte da apelante houve manifesta incúria no seu ónus probatório de reunir informação documental, cuja pertinência para o litígio era facilmente previsível. Essa incúria prolongou-se por anos.
50. Num contexto desta índole, de grave inobservância do princípio da autorresponsabilidade das partes conexo com o seu ónus probatório e tratando- se de documentos de obtenção fácil ou previsível, não colhe razão de ser a invocação do princípio do inquisitório para suprir a incúria grave dos autores.
51. Neste sentido decidiu o AC. RL, Proc.º nº 50/13.7TBFUN-F.L1-7, Relator JOSÉ CAPACETE, 19-02-2019 « 2. É que esse poder-dever não pode implicar a total desconsideração dos princípios da autorresponsabilidade das partes e do dispositivo, pelo que a atividade inquisitória do juiz deve assumir uma natureza complementar relativamente à que foi empreendida pelas partes. 3. Significa isto que, apesar dos poderes oficiosos que lhe são atribuídos, a intervenção do tribunal deve ser subsidiária relativamente à iniciativa das partes, devendo apenas ocorrer quando estas demonstrem que, apesar de terem efetuado as diligências que estavam ao seu alcance para conseguirem as informações e/ou documentos de que necessitam, por razões que não lhe são imputáveis, não lograram a sua obtenção» e Ac. RL Proc.º nº 639/18.8T8FNC-A.L1-4, Relator CELINA NÓBREGA, 30-01-2019I: « II– Mas o princípio do inquisitório não concede ao juiz o poder de se substituir às partes, colmatando os seus lapsos ou esquecimentos no que respeita ao ónus de arrolar ou de aditar determinada testemunha ao rol apresentado.»
52. Na sentença recorrida constam os factos e as razões de direito em que o tribunal alicerçou a sua decisão e esta é consequência lógica daquela fundamentação, é evidente que aquela peça processual não está inquinada de qualquer nulidade (art.º 668°, nº1, alíneas b), c) e d) do CPC - art.º 615° NCPC);
53. Nos nº 1, 2 e 64 das conclusões alega a apelante erro na apreciação da prova e na aplicação e interpretação do direito aos factos.
54. O processo não constitui um meio de investigação, visa apenas dirimir conflitos com o objecto definido pelas partes em obediência ao princípio do dispositivo (art.º 2º, 3º, 5º/1 CPC) - Cfr. Fernando Pereira Rodrigues, Os meios de prova em processo civil, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 33-40.
55. Não cabe ao juiz supor ou conceber factos que poderão ter relevo, é necessário que estejamos perante factos que resultem da instrução da causa, isto é, factos que tenham aflorado no processo através dos meios de prova produzidos e, portanto, possuam já alguma consistência prática, não sejam meras conjecturas.
56. O juiz a quo fundamentou a sua convicção na razão de ciência das testemunhas inquiridas, e não havendo motivos que contrariem tal convicção, não há erro de julgamento se o juiz optou pela versão relatada pelos depoimentos das testemunhas (Ac. RE de 14.5.2015: Proc. 1246/1I.TBLGS.E1.dgsi.Net), por tal forma o revelando a prova produzida, na compatibilidade à motivação/fundamentação exarada, como se verifica circunstancialmente.
57. Inexiste qualquer tipo de contradição entre a matéria factual consagrada, que vem referida;
58. Alega a Apelante a desconsideração da prova por declaração de parte – pontos nº 17, 18,19, 20,21,- das conclusões.
59. Assiste à parte provar os factos por si alegados e que sustentam a sua pretensão, ou mesmo de fazer a contraprova dos factos contra si invocados, no quadro do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva (art.º 20.° da CRP), pelo que, nessa medida, é a cada uma das partes que incumbe eleger os meios de prova adequados à demonstração com que está onerada ou que, de algum modo, convém à prossecução dos seus interesses;
60. Tal não significa que não devam impor-se certas limitações aos meios de prova utilizáveis em cada caso, mas essas limitações devem mostrar-se materialmente justificadas e respeitadoras do princípio da proporcionalidade (Cf. Ac. RL de 29.4.2014: CJ, 2014. 2.º-325);
61. As declarações de parte - que divergem do depoimento de parte - devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. Como meio probatório, não se pode esquecer que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na acção;
62. Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos (Ac. RP de 15.9.2014: Proc. 216/11.dgsi.Net);
63. A prova por declarações deve merecer a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis e deverá ser valorada conforme se estabelece no art.º 466.°, n.º 3 do NCPC, isto é, deverá ser apreciada livremente pelo tribunal;
64. O valor probatório dessas declarações, caso respeite a factos favoráveis ao declarante é apreciado livremente pelo Julgador segundo o seu prudente critério. Não existe qualquer fundamento epistemológico para não se reconhecer nas declarações favoráveis ao depoente um meio válido de formação da convicção esclarecida e racional do julgador, isto é, uma fonte válida de convencimento racional do juiz (Ac. RL de 12.3.2015, Proc. 1/12.6TBTPTM.E1.dgsi.Net);
65. A credibilidade das declarações da parte tem de ser apreciada em concreto, numa perspectiva crítica, com vista à descoberta da verdade material, bem podendo suceder que as respectivas declarações, em concreto, possam merecer muita, pouca ou, mesmo, nenhuma credibilidade (Ac. RG. de 2.5.2016: Proc. 2745/15. 1T8VNF-A.G1.dgsi.Net);
66. Lidas e relidas as declarações de parte da Autora, verificam-se que nos vinte e minutos de duração, o seu depoimento incidiu sobre como e aonde, duramente vinte e oito anos a Apelante viveu com o ex-marido sr. “B”, na sua expressão “no ia e vinha”, facto que confessou à M.ª Sr.ª Juiz , gravação áudio do dia catorze de Fevereiro de 2023 19.09, aos 19.09 minutos: «Juiz- É verdade que há cerca de cinco anos viviam no seu apartamento de Payern? Test- Sim, sim. Adv- Até à cerca de cinco anos, estamos em 2023, se tirarmos cinco, 2018 fazia ..Test-Sim ele tinha o apartamento dele, vinha e ia. Adv- Portanto, 2018 mais os dez do divórcio, são vinte e oito, andaram vinte e oito anos a namorara, vá. Juiz- A namorar.»;
67. Quanto a pagamentos do empréstimo contraído pelo casal na Caixa Económica do Montepio Geral, nada sabia, limitando-se a «Eu mandava dinheiro da suíça para aqui». Minutos 19.47. A sra. É que viu a fracção que comprou, e a sra qual é o seu regime de casamento? A sra. era casada no regime de comunhão geral de bens? Test- Eu não sei, acho que está escrito na acta. Adv- Então a sra. Qual era o banco? Porque é que a sra ainda não disse qual era o banco? Era um banco suíço, qual era o banco? Test- Eu mandava dinheiro da suíça para aqui. Adv-. Mas, qual é o banco daqui? Test- Montepio;
68. A testemunha H …, filho do procurador da Autora, Sr. I … que outorgou a escritura de Compra e Venda e Mútuo Hipotecário, no seu depoimento disse que a ora Apelante tinha uma conta conjunta com o seu Pai na Caixa Económica do Montepio Geral – Depoimento H …, Registo Àudio em 19.01.2023, 01.24.44, minutos 07.58: «Test- O trabalho que o meu Pai fazia eu é que o tenho feito, nomeadamente entregar as declarações anuais de IRS e pouco mais, neste momento sou eu que lhe estou a fazer a ajudar nesse sentido, minutos 08.08 Test- Questões bancárias já ajudei uma vez, bem que não sou titular da conta era o meu Pai mas ás vezes costumo ajudar noutras contas minutos 08.19 Adv- O seu Pai era titular da conta com a sra “A”? Test- Era titular, sim. Adv- Só os dois? Test- Só os dois, sim, ou titular ou autorizado, sei que podia ajudá-la nas questões bancárias, ia ao banco tratar de certas situações, mas pronto, era o conhecimento que eu tinha.»
69. No caso sub judice, era sobre a Autora que recaía o ónus de praticar os actos necessários á apresentação de documentos, entre outros, transferência ordenados à entidade bancária suíça e ao Montepio, em Portugal;
70. Não estamos perante situações insusceptíveis de outros meios de prova – prova testemunhal directa, de prova documental - porquanto a apelante tinha à sua disposição desde há muitos anos, pelos menos após a data da outorga da escritura de compra e venda e mútuo hipotecário, em vinte e seis de Maio de mil novecentos e noventa e nove, muitos e variados meios probatórios, sobretudo documentais, oriundos de instituições bancárias suíças e nacionais, o Montepio Geral, onde diz ter contas bancárias sediadas, às quais não lançou mão mas que terá arquivado numa das suas casas, na Suíça ou em Portugal, ou até disponíveis pela Internet.
71. Além disso, a apelante podia ter-se socorrido do procurador, co-titular da conta da Caixa Económica Montepio Geral, Sr. I …, residente em Portugal, que, facilmente, obteria toda a documentação necessária;
72. Todas as testemunhas que compareceram foram ouvidas em 1ª Instância, o que permitiu aquilatar do sentido dos seus depoimentos, alcance intrínseco e razão sustentada de ciência;
73. É de referir que a prova testemunhal, ela própria, apesar de falível e precária, é aquela que, na prática, assume a maior importância, por ser a única a que pode recorrer-se na demonstração da realidade de muitos factos, como ensinava o Senhor Professor Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 2.ª edição, p. 614);
74. O Mº juiz a quo não podia fundar a sua convicção apenas com base nas declarações de parte da Apelante. As declarações de parte da Autora tiveram, forçosamente, que ser complementadas com as declarações das testemunhas inquiridas à mingua de prova documental. Neste sentido decidiu o Ac. RL 518/18.9T8AGH.L1-2, Relator CARLOS CASTELO BRANCO,10-09-2020: «Não deixou de ser observado, com adequação e no seu enquadramento e análise no conjunto da demais prova, de cariz manifestamente holístico, produzida. Servindo tal apreciação para significar - e para que dúvidas não restem -, inexistir qualquer indevida apreciação de depoimentos, mesmo indirectos, ou erro na apreciação da prova testemunhal produzida, como vem alegado»;
75. Contrariamente á alegação da apelante, - desvalorização do depoimento de parte nas conclusões 17,18,21,26 - não houve a mínima ofensa do direito à prova, no quadro do direito de acesso aos tribunais e ao direito e de uma tutela jurisdicional efectiva (art.º 20º, n.º 1, da Constituição);
76. Nas conclusões nº 47, 48, 49 das alegações, a apelante alega que a conduta do recorrido viola o direito de usar, fruir e dispor do imóvel, quando e como lhe aprouver – 47, a simples privação de uso é meio idóneo para causar-lhe danos – 48, não sendo necessário os fins ou utilidades que visava o bem – 29, sentindo stress e tristeza – 51, 53- responsável e 54 – censura a não condenação;
77. Depoimento de Parte de “A” – dia 14.02.2023, 00.01-23.41, 11.35: «Adv - A casa está arrendada? Autora – Sim. Adv- Há quanto tempo? Autora - Há um ano e tal. Adv- A sra. tem alguém que a ajude aqui em Portugal a tratar das questões mais burocráticas, com os bancos, as finanças? Autora- Sim. Sim.;»
78. Depoimento da testemunha H …, 19.01.20023, minuto 12.50 -«Juiz – E há quantos anos é que o imóvel está arrendado? No tempo do seu Pai já estava arrendado? Test- Há cinco ou seis anos, pelo menos, está arrendado. Adv- E já agora sabe quanto é a renda? Test- Não sou eu que faço a contabilidade mas vejo a declaração e se não estou em erro, anda à volta de €500,00, anda à volta disso.»;
79. A ora apelante disse que a fracção está arrendada há pelo menos um ano e recebe de renda €350,00. Contudo, a testemunha H …, que lhe trata da Declaração de IRS anual, disse que a fracção estava arrendada há pelo menos cinco ou seis anos, com uma renda mensal à volta de €500,00;
80. A Apelante alegou a necessidade da venda da fracção, mas inquirida pelo Mº Juiz a quo, disse a minutos 13.44: «Adv- A sra. deu conhecimento ao sr. “B” que tinha interessados na compra do imóvel? Juiz- Disse ao sr. “B”, olha eu tenho pessoas que me querem comprar a casa? Autora- Não. Juiz – Nunca lhe disse? Juiz - Mas tinha interesse na venda? Autora – Não»;
81. As declarações quer da apelante quer da testemunha H …, contrariam frontalmente a matéria alegada pela Autora nos artigos 45º, 48, 49º, 50 a 52º da p.i. – a necessidade da venda, desvalorização do mercado, etc;
82. Estando a fracção arrendada, pelo menos há seis anos, com é que a alegada conduta do recorrido viola o direito da ora apelante de usar, fruir e dispor do imóvel, quando e como lhe aprouver?
83. Que danos causou à apelante que tira do arrendamento um benefício económico bruto na ordem de €6.000,00 ano, tendo recebido nos últimos cinco anos um benefício de €30.000,00?
84. Além disso, quê danos são causados à apelante quando comprou em Queluz um outro apartamento, livre e disponível para as suas vindas em Portugal?
85. A apelante «nunca quis vender», nunca informou nem se queixou ao co-proprietário, o recorrido, arrendou-a há pelo menos seis anos, recebeu, pelo menos €30.000,00 de rendas do inquilino, de que não prestou contas, permitiu-se comprar outro apartamento em Queluz, que stress e tristeza tem?
86. Quais são os prejuízos da ora Apelante? A apelante age de má fé!
87. Nas conclusões 58, 59, 60, 66 alínea B, do recurso de apelação, a apelante insurge-se contra a não condenação do apelado como litigante de má fé, requerendo a condenação do mesmo no pagamento da quantia de 5.000,00€;
88. Considerou o tribunal a quo não ter resultado provado “qualquer facto do qual decorra que o requerente, com dolo ou negligência grosseira, tenha alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa ou deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar”, e mais afirmou não terem ficado provados factos “dos quais resulte que o requerente fez um uso indevido e reprovável dos meios processuais, no intuito de conseguir um objectivo ilegal, ou impedir a descoberta da verdade”, e, em consequência deste entendimento, absolveu o requerente do pedido referente à litigância de má-fé;
89. O apelado fez o normal uso do processo e dos meios processuais para conseguir a descoberta da verdade denunciando o nascimento do filho do casal, B …, quatro anos depois do divorcio, facto omitido pela ora apelante na petição inicial, bem como a vivência à vista de todos, nomeadamente nas cidades suíças de Dondidier e Payern, que a apelante e o apelado era um casal, viviam juntos, comiam, dormiam, recebiam familiares e amigos durante pelo menos vinte e oito anos,
90. Vivendo em economia comum durante vinte e oito anos, como se de marido e mulher se tratarem, suportando as despesas em conjunto
91. escondendo dos filhos terem-se divorciado - depoimento dia 14.02.2023 da filha do casal, N …, no dia 14.02.2023 – 00.11.25, agora com trinta e seis anos de idade, «Não sabia que os meus Pais estavam divorciados. Era jovem não sei quando eles casaram não sei quando se divorciaram. Adv- E quando soube recorda-se que idade tinha? Test- Não me lembro já estava grávida. Adv- Quando teve conhecimento, o seu irmão B … já era nascido?»
92. O apelado não agiu de má fé nem fez do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável.
93. Nas conclusões 36 a 43 afirma a apelante que logrou ilidir a presunção registral do art.ºs 7º e 8º do CRP .
94. À data da compra e venda da fracção, a sentença de divórcio proferida na Suíça não tinha eficácia legal em Portugal, eficácia que só veio a ter por força da decisão da Relação de Lisboa de 12-1-2016. Deste modo, à data da compra e venda em apreço (em 1999) a escritura de a sentença de divórcio proferida na Suíça (em 1990) ainda não tinha efeitos de caso julgado, em Portugal, termos em que, efetivamente, então, na ordem jurídica portuguesa, Autora e Réu eram casados; e, como afirma a Autora, no regime supletivo da comunhão de adquiridos.
95. Dispõe o Artigo 7.º do Código de Registo Predial: «O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define». Trata-se de uma presunção Juiris Tantum, uma mera presunção, ilidível por prova em contrário, que actua relevantemente em relação ao facto inscrito e aos sujeitos e objecto da relação jurídica dele emergente;
96. Para conseguir a ilisão da presunção legal derivada do registo, há que provar e para isso alegar os factos demonstrativos de que a titularidade da propriedade inscrita não corresponde à verdade, e tal ónus incumbe ao impugnante do registo.
97. Para tanto era essencial que a sentença proferia nos presentes autos lhe fosse favorável.
98. O que não a aconteceu, pelo que não foi ilida a presunção.
99. Não há fundamento para que procedam os pedidos formulados de a) a c), do petitório final da Autora e das conclusões 36 a 43 da apelante, porque não logrou ilidir a presunção registral do artº 7 e 8º do CRP.
100. Há litigância de Má fé da apelante.
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O recurso foi corretamente admitido.
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Foram os autos remetidos a este Tribunal e colhidos os vistos legais.
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II. Questões a Decidir:
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:
- Se deve se alterada a decisão da matéria de facto constante da decisão recorrida quanto aos factos considerados como não provados sob os números 1. a 25., no sentido de estes passarem a integrar o elenco de factos provados;  
- Se o imóvel objeto da escritura pública outorgada a 26.05.1999 deve ser considerado bem próprio da Autora, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida quanto aos pedidos formulados sob as alíneas a) e b) e substituindo-se a mesma por uma outra que julgue procedentes esses pedidos;
- Se, concluindo-se que o imóvel objeto da escritura pública outorgada a 26.05.1999 deve ser considerado bem próprio da Autora, deve ordenar-se o cancelamento da inscrição de aquisição por compra efetuada pela Ap. … de 1999/05/10, na parte em que a mesma respeita à titularidade do Réu ou o seu cancelamento e a subsequente reinscrição da referida aquisição exclusivamente em nome da Autora, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida quanto ao pedido formulado sob a alínea c) e substituindo-se a mesma por uma outra que julgue procedente esse pedido;
- Se em função da alteração da decisão da matéria de facto constante da decisão recorrida quanto aos factos considerados como não provados sob os números 19. a 25., deve ser revogada a decisão recorrida quanto ao pedido formulado sob a alínea d), substituindo-se a mesma por uma outra que julgue procedente esse pedido;
- Se o Réu deve ser condenado como litigante de má-fé.
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III. Fundamentação:
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos:
1. A propriedade da fração autónoma com a letra Q, correspondente ao quinto andar frente – para habitação – com arrecadação no sótão, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … (anterior nº … da freguesia de …), mostra-se inscrita em nome de “A” casada com “B”, no regime de comunhão de adquiridos, por ter sido adquirida por compra (Ap. … de 1999/05/10).
2. Este imóvel sito na Praça …, corresponde ao artigo matricial … (com origem no artigo …) que apresenta como Titular, “B”.
3. Os ora Autora e Réu contraíram, entre si, casamento, em 13 de dezembro de 1986, sem convenção antenupcial; constando do Assento de Casamento Civil nº …, do ano de 1987, do Consulado Geral de Portugal em Genebra, Suíça que o ora Réu era de nacionalidade portuguesa e a ora Autora de nacionalidade angolana.
4. Por sentença transitada em julgado, proferida pelo Tribunal de Distrito de Broye Estavayer-le-lac em 15 de Junho de 1990; e objeto de revisão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo nº …, por via da decisão de 12 de janeiro de 2016; foi dissolvido aquele casamento e decretado o divórcio, entre a Autora e o Réu; divórcio que, desde 12 de janeiro de 2016, passou a “ter eficácia na ordem jurídica portuguesa”.
5. O Réu entende que é, juntamente, com a ora Autora, proprietário da fração em apreço.
6. Em sede de escritura de “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca” lavrada em 26 de maio de 1999, no … Cartório Notarial de Lisboa, figura como “Segundo” outorgante, I …, como “procurador de “B” e mulher “A”, casados na comunhão de adquiridos”.
7. Nesta escritura, I … declarou aceitar, para a sua representada, a venda da fração autónoma designada pela letra Q, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ….
8. Conforme certidão da Conservatória do Registo Civil, da Confederação Suíça, em 4-12-1994, nasceu B …, filho de “A” e de “B”, ambos, de nacionalidade portuguesa.
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Nessa mesma sentença foram considerados como não provados os seguintes factos, todos eles impugnados em sede de recurso:
1. Como a Autora teve que recorrer a crédito bancário, para a aquisição, exclusivamente por si, do apartamento, a instituição bancária exigiu a assinatura do aqui Réu, por este ser, para o ordenamento jurídico português, marido da Autora.
2. Apenas por causa dessa exigência da entidade bancária e em virtude do bom relacionamento que mantinha com o ora Réu, a Autora pediu-lhe que aquele facultasse os recibos de vencimento, e que assinasse a documentação que o banco exigia, ao que o Réu anuiu.
3. Só por essa razão, o ora Réu consta como proprietário inscrito relativamente ao imóvel em causa.
4. O Réu não escolheu a casa.
5. O Réu não conhece a casa.
6. O Réu nunca quis comprar a casa.
7. O Réu nunca usou a casa.
8. O Réu nunca contribuiu para o pagamento do preço da casa, que de igual modo desconhece.
9. O Réu nunca pagou qualquer prestação bancária da casa ou qualquer prémio do seguro associado ao mútuo.
10. O Réu nunca contribuiu para qualquer despesa de manutenção da casa.
11. O Réu nunca pagou o condomínio da casa.
12. O Réu nunca pagou quaisquer impostos relativos ao imóvel.
13. E nunca o fez, porque o Réu bem sabe que o apartamento, a que respeita o presente processo, não lhe pertence.
14. Foi a Autora que comprou e pagou o apartamento sozinha, assim como foi a Autora sozinha, que criou os filhos que teve em conjunto com o Réu, sem que este tivesse alguma vez contribuído com o que quer que fosse, quer para aquela, quer para estes.
15. Foi a Autora, não só na data da escritura, mas também posteriormente, que sempre liquidou todas a importâncias para aquisição do apartamento.
16. Pagamentos que fez sempre com recurso a transferências, a partir de contas bancárias por si tituladas.
17. De igual modo sempre foi a Autora que custeou todas as despesas inerentes à manutenção do imóvel, condomínio e impostos.
18. O Réu só soube que “tinha” uma casa e lembrou-se de reclamar a sua quota parte na mesma, quando, em 09 de novembro de 2018, a Autora o interpelou para regularização da situação.
19. O Réu bem sabia que ao recusar colaborar com a Autora no sentido de regularizar a situação registal do imóvel, tal a prejudicava.
20. Bem sabia, o Réu, que não tem qualquer direito sobre o referido imóvel e que a sua conduta era meio idóneo a causar os danos à Autora.
21. Por força da conduta do Réu, há anos que a Autora se vê impedida de desfrutar da propriedade plena do imóvel, pois que sempre que confrontou aquele com a necessidade de regularização da presente questão, o Réu, refugiando-se em argumentos insubsistentes, foi adiando a solução do problema.
22. A Autora, por dificuldades financeiras, pretendeu vender o imóvel e já perdeu mais de que uma oportunidade de o vender pelo facto de não poder fazê-lo sem a assinatura do Réu.
23. O imóvel teve uma grande valorização nos últimos anos e nos últimos meses o valor de mercado tem vindo a decrescer.
24. Tal decréscimo virá a ser ainda mais acentuada em virtude da situação pandémica vigente no ano de 2020.
25. Por causa da supra descrita conduta do Réu, a Autora tem andado muito ansiosa e tem tido muita dificuldade em dormir, porquanto esta situação causa lhe grande stress e profunda tristeza. Não lograram provar-se quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa.
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IV. Mérito do Recurso:
- Se deve ser alterada a decisão relativa à matéria de facto quanto aos factos considerados como não provados sob os pontos 1 a 25, no sentido de estes passarem a integrar o elenco de factos provados.
Para a impugnação da matéria de facto deve a parte observar os requisitos legais previstos no artigo 640º do CPC, incluindo a formulação de conclusões, pois são estas que delimitam o objeto do recurso.
Preceitua o artigo 640º, n.ºs 1 e 2, do CPC:
1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. 
Como se lê no Acórdão do STJ de 01.10.2015, processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt:
Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão” (cfr., também, sobre esta matéria, Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil”, pág. 465 e que, nesta parte, se mantém atual).
Diz-se também no Acórdão do STJ de 19.02.2015, processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, acessível em www.dgsi.pt, que:
“(...), a exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto.
Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, serve sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no nº 1 do artigo 662º do CPC.
É, pois, em vista dessa função, no tocante à decisão de facto, que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afetada, nos termos do artigo 640º, nº 1, proémio, e nº 2, alínea a), do CPC.
Não sofre, pois, qualquer dúvida que a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1 do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada”.
A interpretação da alínea c), do n.º 1, do artigo 640º do CPC, é-nos dada de forma exemplar por Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª Edição, pág. 156), podendo ler-se a este propósito que:
O Recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem no reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”.
Com este novo regime, em contraposição com o anterior, pretendeu-se que fosse rejeitada a admissibilidade de recursos em que as partes se insurgem em abstrato contra a decisão da matéria de facto.
Nessa medida, o recorrente tem que especificar os exatos pontos que foram, no seu entender, erradamente decididos e indicar, também com precisão, o que entende que se dê como provado.
A imposição de tais indicações precisas ao recorrente, visou impedir “recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, restringindo-se a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.” (cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 153).
Também por esses motivos, o recorrente, além de ter que assinalar os pontos de facto que considera incorretamente julgados e indicar expressamente a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre esses pontos, tem igualmente que especificar os meios de prova constantes do processo que determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos (cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág.155).
Assim, quanto a cada um dos factos que pretende obter diferente decisão da tomada na sentença, tem o recorrente que, com detalhe, indicar os meios de prova deficientemente valorados, criticar os mesmos e, discriminadamente, concluir pela resposta que deveria ter sido dada, evitando-se assim que sejam apresentados recursos inconsequentes, e sem fundamentação que possa ser apreciada e analisada.
A este ónus de impugnação, soma-se um outro não menos importante, que é o ónus de conclusão, previsto no artigo 639.º, n.º 1, do CPC, onde se lê que “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.
Este ónus de conclusão para além de visar a síntese das razões que estão subjacentes à interposição do recurso, visa também a definição do seu objeto.
Como se refere no sumário do Acórdão do STJ de 16.05.2018, processo n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt:
“I - Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração.
II - Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art.º 640º do CPC e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do nº 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso.
III - Tendo o recorrente nas conclusões se limitado a consignar a globalidade da matéria de facto que entende provada mas sem indicar, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, não cumpriu o estabelecido no art.º 640º, nº 1, als. a) e c) do CPC, devendo o recurso ser liminarmente rejeitado nessa parte.”
Assim, pretende-se que o recorrente indique de forma resumida, através de proposições sintéticas, os fundamentos de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão, para que seja possível delimitar o objeto do recurso de forma clara, inteligível, concludente e rigorosa (neste sentido, veja-se ainda o Acórdão do STJ de 18.06.2013, processo n.º 483/08.0TBLNH.L1.S1, disponível no mesmo sítio).
Revertendo agora para o caso dos autos, entendemos que a Recorrente cumpriu os ónus previstos no acima citado artigo 640º, nº 1, a) e c), do CPC.
Com efeito, resultam das conclusões apresentadas os concretos pontos de facto que a Recorrente considera incorretamente julgados (todos os factos considerados como não provados), bem como a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre esses mesmos pontos de facto impugnados (todos devem ser dados como provados).
Cumpriu igualmente, embora de forma algo confusa, o ónus previsto no artigo 640º, n.º 1, b), do CPC. De facto, pese embora nas conclusões se tenha limitado a identificar os meios de prova com base nos quais, na sua ótica, todos os factos não provados deveriam ter sido considerados como não provados, a verdade é que nas suas alegações a Recorrente agrupa, por temas, os factos que considera incorretamente julgados, fazendo corresponder a cada um desses grupos os meios de prova que entende levarem, quanto aos mesmos, a decisão diversa, transcrevendo as passagens das declarações de parte e dos depoimentos nos quais alicerça a sua posição. 
Nesse sentido, iremos proceder à apreciação do recurso no que à impugnação da matéria de facto se refere.
Analisemos então os pontos de facto impugnados.
A Recorrente começa por afirmar que estão incorretamente julgados os pontos 1., 8. a 12. e 14. a 17. do elenco de factos não provados, defendendo que os mesmos devem ser considerados como provados.
São eles os seguintes:
1. Como a Autora teve que recorrer a crédito bancário, para a aquisição, exclusivamente por si, do apartamento, a instituição bancária exigiu a assinatura do aqui Réu, por este ser, para o ordenamento jurídico português, marido da Autora.
(…)
8. O Réu nunca contribuiu para o pagamento do preço da casa, que de igual modo desconhece.
9. O Réu nunca pagou qualquer prestação bancária da casa ou qualquer prémio do seguro associado ao mútuo.
10. O Réu nunca contribuiu para qualquer despesa de manutenção da casa.
11. O Réu nunca pagou o condomínio da casa.
12. O Réu nunca pagou quaisquer impostos relativos ao imóvel.
(…)
14. Foi a Autora que comprou e pagou o apartamento sozinha, assim como foi a Autora sozinha, que criou os filhos que teve em conjunto com o Réu, sem que este tivesse alguma vez contribuído com o que quer que fosse, quer para aquela, quer para estes.
15. Foi a Autora, não só na data da escritura, mas também posteriormente, que sempre liquidou todas a importâncias para aquisição do apartamento.
16. Pagamentos que fez sempre com recurso a transferências, a partir de contas bancárias por si tituladas.
17. De igual modo sempre foi a Autora que custeou todas as despesas inerentes à manutenção do imóvel, condomínio e impostos.”
Preliminarmente, analisados os pontos 1. e 14. da matéria de facto considerados como não provados, entendemos ser de retificar, desde já, a redação dos mesmos.
Vejamos porquê.
Na sentença recorrida foram considerados como provados, entre outros, os seguintes factos que não foram objeto de impugnação:
“4. Por sentença transitada em julgado, proferida pelo Tribunal de Distrito de Broye Estavayer-le-lac em 15 de Junho de 1990; e objeto de revisão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo nº …, por via da decisão de 12 de janeiro de 2016; foi dissolvido aquele casamento e decretado o divórcio, entre a Autora e o Réu; divórcio que, desde 12 de janeiro de 2016, passou a “ter eficácia na ordem jurídica portuguesa”.
(…)
7. Nesta escritura, I … declarou aceitar, para a sua representada, a venda da fração autónoma designada pela letra Q, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …” (sublinhado nosso).
Perante essa factualidade elencada como provada, entendemos que do ponto 1. do elenco de factos não provados deverá ser retirada a expressão “exclusivamente por si” e, do ponto 14. do mesmo elenco, deverá ser retirada a expressão “comprou”, porquanto saber se a Autora foi ou não a única compradora e se é ou não a única proprietária da fração em causa nos autos é uma conclusão que terá de ser retirada dos factos contidos nos pontos 4 e 7 do elenco de factos provados, em sede própria, ou seja, em sede de conhecimento de mérito.   
Assim sendo, tais pontos passam a ter a seguinte redação:
1. Como a Autora teve que recorrer a crédito bancário para a aquisição do apartamento, a instituição bancária exigiu a assinatura do aqui Réu, por este ser, para o ordenamento jurídico português, marido da Autora.
(…)
14. Foi a Autora que pagou o apartamento sozinha, assim como foi a Autora sozinha, que criou os filhos que teve em conjunto com o Réu, sem que este tivesse alguma vez contribuído com o que quer que fosse, quer para aquela, quer para estes.”
Feita esta retificação e prosseguindo, vemos que a decisão do Tribunal a quo de considerar tais factos como não provados alicerçou-se, desde logo, na circunstância de não constar dos autos um único documento revelador de qualquer espécie de pagamento relacionado com a fração autónoma objeto da presente ação. E, de facto, percorridos os autos, verificamos que assim é. 
Refere a Recorrente, nas suas alegações, que só neste momento soube da inexistência dessa prova documental e que estava convencida de que tais documentos constavam dos autos, concretamente, os documentos referentes ao financiamento bancário para aquisição da fração e à amortização desse financiamento, feita exclusivamente por si.
E, perante a reconhecida inexistência nos autos desses documentos, a Recorrente defende que o Tribunal a quo deveria ter feito uso dos seus poderes/deveres de indagação oficiosa e, nesse sentido, ao abrigo do princípio do inquisitório, deveria ter diligenciado por si pelo conhecimento dos mesmos, notificando as partes para procederem à sua junção aos autos.  
Vejamos.
O princípio do inquisitório encontra-se consagrado no artigo 411º do CPC nos seguintes termos: “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
Esse princípio do inquisitório constitui o contraponto do princípio do dispositivo.
O princípio do dispositivo determina que o processo se encontra na disponibilidade das partes e desdobra-se em dois subprincípios: (i) subprincípio do impulso processual, nos termos do qual incumbe às partes a prática dos atos que dão origem à pendência da causa e ao andamento do processo (ne iudex procedat ex officio); e, (ii) subprincípio da disponibilidade do objeto, nos termos do qual as partes, através do pedido e da defesa circunscrevem o thema decidendum.
Associados ao subprincípio do impulso processual surgem diversos ónus processuais, de entre os quais se destacam o ónus de prova e, inerentemente, o ónus de proposição das provas.
A prova é feita através da atividade probatória. Esta consiste na prática sequencial de atos processuais que têm por finalidade a produção dos meios de prova com vista à demonstração dos factos alegados e destina-se a convencer o tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos (artigo 341º do Código Civil, doravante apenas CC). Essa atividade probatória incumbe às partes oneradas com a prova. É o chamado ónus de prova, previsto no artigo 342º do CC. De acordo com esse normativo, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (n.º 1). A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (nº 2).
Por seu lado, o princípio do inquisitório informa o campo de iniciativa processual do juiz, designadamente, no âmbito da instrução do processo, determinando a amplitude dos seus poderes nessa matéria. E estende-se em duas vertentes: (i) os poderes de cognição do tribunal quanto à matéria de facto, enunciado no artigo 5º do CPC, de que resulta que o juiz deve considerar os factos essenciais – que constituem a causa de pedir ou fundam as exceções – desde que alegados pelas partes (aliás, se a parte não alega os factos essenciais constitutivos da sua pretensão, corre o risco de a ver indeferida por falta de causa de pedir) e ainda os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, os factos complementares e os factos concretizadores dos que as partes tenham alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido oportunidade de se pronunciar; (ii) os poderes de instruir os factos de que lhe é lícito conhecer.
Saliente-se que considerar factos não se confunde com instruir factos. A consideração de factos coloca-se por ocasião da sentença e reporta-se à factualidade que é permitida ao juiz tomar em consideração (e isso depende do tipo de processo: contrariamente ao que sucede em processo comum, no processo de jurisdição voluntária o juiz pode considerar, oficiosamente, factos essenciais constitutivos da pretensão, ainda que não alegados pelas partes). A instrução dos factos coloca-se em momento anterior e reporta-se às diligências de prova que ao juiz é permitido realizar de modo a demonstrar os factos de que lhe é lícito conhecer (artigo 411º do CPC).
No que toca ao âmbito da intervenção oficiosa do juiz, é necessário não esquecer que são as partes que assumem o risco pela condução do processo (princípio da auto-responsabilidade), o que decorre dos princípios do dispositivo, do contraditório e da igualdade das partes.
É neste quadro, de tensão dialética, que poderá ocorrer a iniciativa do juiz, que se deve pautar por uma intervenção dirigida ao andamento regular do processo e à boa resolução da causa, sem perturbar o equilíbrio das partes, antes garantindo-o.
Deste modo, a realização oficiosa de diligências probatórias para o esclarecimento da verdade, não se deverá traduzir numa gratuita substituição das partes, mas deverá ser assumida com vista a obviar dificuldades insuperáveis ou assaz excessivas e após esgotados os meios de que a parte disponha para esse efeito. Trata-se, assim, de uma intervenção subsidiária por parte do tribunal.
O princípio do inquisitório, ao longo dos tempos e das diversas opções legislativas, não tem sido estático. Antes, tem visto evoluções e modificações das quais decorre que o poder inquisitório do juiz não é absoluto: está limitado, no seu âmbito, pelas diversas regras de direito probatório estabelecidas no código de processo civil relativas à prova documental, confissão judicial provocada, prova pericial, inspeção judicial e prova testemunhal. Ou seja, quando o artigo 411º do CPC diz que o juiz ordena, oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade, não significa que ele tenha poder ilimitado de instrução. Tem de interpreta-se que esse poder do juiz está limitado pelas normas processuais que concretizam, balizando, esse poder instrutório judicial.
Não se põe em causa que o princípio do inquisitório exerce atualmente um importante papel no processo civil português, mas, a nosso ver, funciona subordinado ao princípio do dispositivo, parecendo-nos excessiva a sua configuração como um sistema processual híbrido que se coaduna em par em torno dos dois princípios.
O nosso sistema processual civil é norteado pelo princípio do dispositivo, competindo-lhe o “monopólio” dos factos e dos meios de prova. Assim, o princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade.
O disposto no artigo 411º do CPC não descaracteriza, nem invalida, o princípio base do processo civil que é o do impulso processual e que compete às partes em toda a sua extensão, nomeadamente no tocante à indicação e realização oportuna das diligências probatórias.
Em suma, o exercício do dever de diligenciar pelo apuramento da verdade e pela justa composição do litígio não comporta uma amplitude tal que o autorize a colidir, quer com o princípio da legalidade e da tipicidade que comanda toda a tramitação processual, quer com outros princípios fundamentais como o do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes.
No sentido por nós exposto veja-se o Acórdão da RP de 12.09.2022, proferido no proc. n.º 866/20.8T8VCD-A.P1, disponível em www.dgsi.pt.
Revertendo para a situação em análise, como bem sabe a Recorrente, cabia-lhe a si assegurar-se de que constavam dos autos todos os documentos que considerava relevantes para a demonstração dos factos por si alegados e que se propunha provar, pelo que qualquer falha ou descuido que a tal nível se tenha verificado, só à própria será imputável. E, conforme decorre do que acima ficou exposto, o princípio do inquisitório não pode traduzir-se numa mera substituição das partes, muito menos deverá servir para suprir as suas falhas ou descuidos.
Não invocou a Recorrente, no decurso do processo, qualquer dificuldade na obtenção por si dos documentos que agora defende que deveriam ter sido juntos por iniciativa do tribunal, a saber, os referentes ao financiamento com hipoteca para aquisição da fração e à respetiva amortização. Também não a invoca agora, pois apenas refere que pensou que esses documentos constavam dos autos. Note-se que os factos a cuja prova se destinaria a junção desses documentos não admitem apenas prova documental, como sucede com a compra e venda da fração e com o registo dessa aquisição na respetiva Conservatória de Registo Predial, cuja prova teria de ser, essa sim, necessariamente, documental. Por isso mesmo, ao abrigo do princípio do inquisitório, o Tribunal a quo notificou a Recorrente para juntar aos autos a escritura pública de compra e venda da fração e a certidão predial comprovativa da respetiva inscrição predial. Refere a Recorrente ser incompreensível a atuação do Tribunal a quo que diligenciou pela junção desses documentos mas não pela junção dos referentes ao financiamento com hipoteca para aquisição da fração e à respetiva amortização. Ora, como vimos, as duas situações não são equiparáveis, a compra e venda da fração e a inscrição predial da respetiva aquisição apenas admitem prova documental, justificando a intervenção do Tribunal no sentido de se assegurar que essa prova, a única admissível, consta dos autos; enquanto os factos elencados como não provados nos pontos 1., 8. a 12. e 14. a 17. não estão sujeitos a tal limitação, podendo ser demonstrados através de outros meios de prova que não apenas a documental, cabendo à própria Recorrente carrear para os autos os meios de prova que considerava pertinentes, sem esperar que o Tribunal a substitua no cumprimento desse ónus.  
Conclui-se, em face do exposto, não ter ocorrido por parte do Tribunal a quo qualquer omissão, muito menos geradora de nulidade, pelo facto de não ter notificado as partes, e concretamente a Recorrente, ao abrigo do princípio do inquisitório, para proceder à junção dos documentos por esta última identificados e que se destinariam a fazer prova dos factos que alega.
Refere também a Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter valorado as declarações de parte prestadas pela Autora, considerando que das mesmas decorre que sozinha adquiriu a fração em causa nos autos e que custeou em exclusivo todas as despesas, efetuando os pagamentos mensais através de contas bancárias tituladas por si, na Suíça, para o “Montepio” em Portugal. Refere igualmente que essas declarações foram corroboradas pelo depoimento das testemunhas H… e N… e que inexiste nos autos prova que indicie o envolvimento do Réu na compra da fração e no pagamento das prestações relativas ao empréstimo contraído para a sua aquisição.
Analisemos.
O Tribunal ouviu as gravações das declarações de parte prestadas pela Autora e dos depoimentos prestados pelas testemunhas H … e N …
E efetuada essa audição, temos que dizer que concordamos integralmente com a apreciação dessa prova efetuada pelo Tribunal a quo, a qual não merece reparo.
É verdade que a Autora afirmou que só ela comprou o apartamento e que os respetivos pagamentos eram por si efetuados através de transferências de uma conta bancária na Suíça, da qual era exclusiva titular, para a conta do “Montepio”. No entanto, também é verdade que essas suas afirmações, no que se refere a ter suportado em exclusivo os custos dessa aquisição, não encontraram confirmação em qualquer outro meio de prova. Desde logo, inexistem documentos que comprovem que a Autora era a única titular da conta na Suíça através da qual referiu que eram efetuadas as transferências dos montantes destinados ao pagamento das prestações relativas ao empréstimo contraído para aquisição do imóvel, bem como inexistem documentos comprovativos dessas transferências bancárias. Saliente-se que, considerando que a Autora afirmou ser a exclusiva titular dessa conta, ter-lhe-ia sido fácil juntar esses documentos aos autos, cuja relevância não podia ignorar, não se vislumbrando o que a possa ter impedido de o fazer, sendo que a Autora também não alegou qualquer dificuldade nesse sentido. Quanto à testemunha H …, o mesmo declarou que a sua relação com a Autora remonta há 10 anos atrás, ou seja, a data posterior ao divórcio da mesma e à aquisição da fração em causa nos autos, sendo que quanto ao Réu nem sequer o conhece. Em tais circunstâncias, concluímos que não tem qualquer conhecimento relativamente à vontade de Autora e Réu quanto à compra dessa fração. E também nada sabe quanto a quem realizou os pagamentos referentes à aquisição do imóvel, exceto aquilo que a própria Autora lhe transmitiu, decorrendo do seu depoimento que nunca ouviu do Réu a respetiva versão dos factos. Desconhece, inclusive, se a fração já está paga. Também quanto à relação entre a Autora e o Réu só sabe o que lhe contaram pois a nada assistiu. Nem sequer sabe a data em que se divorciaram. Mesmo a testemunha N …, filha da Autora e do Réu, não revelou ter conhecimento desses factos. Desde logo, disse que só teve conhecimento do divórcio dos pais já depois de o seu irmão mais novo ter nascido, sendo que até há cerca de 13 anos viveu com os pais, todos juntos na mesma casa. Quanto à fração não sabe se o pai contribuiu ou não para o seu pagamento.
Acresce que, como bem se refere na sentença recorrida, toda a prova produzida em audiência final, inclusivamente, fruto das declarações de parte da própria Autora, é reveladora da existência de uma vida em comum entre a Autora e o Réu até data posterior ao ano 2000, não obstante o divórcio decretado na Suíça no ano de 1990. Inclusive, da relação entre os dois nasceu um filho mais de 4 anos depois da data do divórcio. Essa circunstância, reportando-se a escritura pública de compra e venda da fração em causa nos autos ao ano de 1999 e resultando da mesma que o contrato de empréstimo celebrado para pagamento do respetivo preço foi celebrado por Autora e Réu, levanta-nos séria dúvidas de que fosse efetivamente apenas a Autora a suportar os encargos com a aquisição dessa fração.
Neste enquadramento, entendemos que as declarações de parte prestadas pela Autora, desacompanhadas de qualquer outro meio de prova que minimamente as confirme, foram de todo insuficientes para convencer este Tribunal de recurso a alterar a decisão do Tribunal a quo quanto aos factos elencados como não provados sob os pontos, 1., 8. a 12. e 14. a 17. (com as retificações que lhes introduzimos), improcedendo quanto a essa matéria o presente recurso.
Afirma depois a Autora que também estão incorretamente julgados os factos dados como não provados sob os pontos 2. a 7., 13. e 18.
São eles os seguintes:
“2. Apenas por causa dessa exigência da entidade bancária e em virtude do bom relacionamento que mantinha com o ora Réu, a Autora pediu-lhe que aquele facultasse os recibos de vencimento, e que assinasse a documentação que o banco exigia, ao que o Réu anuiu.
3. Só por essa razão, o ora Réu consta como proprietário inscrito relativamente ao imóvel em causa.
4. O Réu não escolheu a casa.
5. O Réu não conhece a casa.
6. O Réu nunca quis comprar a casa.
7. O Réu nunca usou a casa.
(…)
13. E nunca o fez, porque o Réu bem sabe que o apartamento, a que respeita o presente processo, não lhe pertence.
(…)
18. O Réu só soube que “tinha” uma casa e lembrou-se de reclamar a sua quota parte na mesma, quando, em 09 de novembro de 2018, a Autora o interpelou para regularização da situação.
Considera a Recorrente que das declarações de parte prestadas pela Autora, dos depoimentos das testemunhas Y …, S … e N … e da carta de 09.11.2018 decorre a prova desses factos.
Também aqui é verdade que a Autora confirmou, em sede de declarações de parte, a matéria em causa. Sucede que, mais uma vez, essas declarações não encontraram apoio em qualquer outro meio de prova. A testemunha Y … declarou que viveu com a Autora e o Réu durante 1 mês, em 2009, desconhecendo, à data, a existência da fração em causa nos autos, da qual só veio a ter conhecimento muito mais tarde. Nada disse a propósito da matéria aqui em análise, decorrendo claramente do seu depoimento que sobre a mesma nada sabe. A testemunha S … declarou que conheceu a Autora e o Réu em 2011, data em que ia a casa deles passar a ferro a roupa do Réu. Nada revelou saber quanto à matéria em causa. E, a própria filha da Autora e do Réu, também nada sabe a tal propósito.
Quanto à carta de 09.11.2018, mais uma vez se dirá que inexiste nos autos qualquer prova documental de que foi efetivamente a Autora a única a suportar as despesas inerentes à sua aquisição, sendo a mesma irrelevante para os efeitos que dela a Recorrente pretende retirar.
Assim sendo, perante a inexistência de qualquer meio de prova que confirme as declarações prestadas pela Autora, as quais se revelaram tendenciosas, improcede também quanto à factualidade agora em causa, que se manterá inalterada, o presente recurso. 
Por fim, a Recorrente insurge-se contra a decisão do Tribunal de considerar como não provada a factualidade contida nos pontos 19. a 25.
São os seguintes os factos em causa:
“19. O Réu bem sabia que ao recusar colaborar com a Autora no sentido de regularizar a situação registal do imóvel, tal a prejudicava.
20. Bem sabia, o Réu, que não tem qualquer direito sobre o referido imóvel e que a sua conduta era meio idóneo a causar os danos à Autora.
21. Por força da conduta do Réu, há anos que a Autora se vê impedida de desfrutar da propriedade plena do imóvel, pois que sempre que confrontou aquele com a necessidade de regularização da presente questão, o Réu, refugiando-se em argumentos insubsistentes, foi adiando a solução do problema.
22. A Autora, por dificuldades financeiras, pretendeu vender o imóvel e já perdeu mais de que uma oportunidade de o vender pelo facto de não poder fazê-lo sem a assinatura do Réu.
23. O imóvel teve uma grande valorização nos últimos anos e nos últimos meses o valor de mercado tem vindo a decrescer.
24. Tal decréscimo virá a ser ainda mais acentuada em virtude da situação pandémica vigente no ano de 2020.
25. Por causa da supra descrita conduta do Réu, a Autora tem andado muito ansiosa e tem tido muita dificuldade em dormir, porquanto esta situação causa lhe grande stress e profunda tristeza.
Afirma a Recorrente que estão em causa factos notórios e que a prova dos mesmos resulta das regras da experiência e senso comum.
Ora, não explica a Recorrente porque considera que tais factos são notórios, nem em que medida os mesmos resultam das regras da experiência e senso comuns.
Os prejuízos e danos abstratamente referenciados nos pontos 1. e 2. do elenco de factos provados, e que a Autora imputa à conduta do Réu, serão os concretizados nos pontos 21. a 25. do mesmo elenco, não se vislumbrando que os mesmos traduzam factos notórios ou decorrentes das regras da experiência e senso comum. E a verdade é que nenhuma prova foi feita que os confirme. Como se refere na sentença recorrida em sede de motivação da matéria de facto, “O Tribunal também não contou com quaisquer elementos de prova, produzidos em audiência ou juntos aos autos que permitissem dar como certo o que consta dos pontos 19 a 25 deste elenco dos factos não provados, mormente, quanto à valorização ou desvalorização do imóvel. Ademais, em particular, quanto ao ponto 22, salientem-se as declarações de parte da própria Autora no sentido de que nunca disse ao Réu que havia terceiros interessados em comprar a casa em questão, até porque (disse a Autora) não tem qualquer interesse em vender o imóvel”.
Improcede assim também quanto a este segmento o presente recurso.
De tudo quanto acima ficou dito decorre que, à exceção das retificações introduzidas nos pontos 1. e 14. do elenco de factos provados, se mantém inalterada a matéria de facto fixada na sentença recorrida.
*
Se o imóvel objeto da escritura pública outorgada a 26.05.1999 deve ser considerado bem próprio da Autora, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida quanto aos pedidos formulados sob as alíneas a) e b) e substituindo-se a mesma por uma outra que julgue procedentes esses pedidos.
Defende a Recorrente que o imóvel em causa nos autos é bem próprio seu, uma vez que, tendo-se divorciado do Réu em 1990, com o reconhecimento desse facto pela ordem jurídica portuguesa os efeitos do divórcio retroagem a essa data. Assim sendo, conclui que logrou ilidir a presunção prevista no artigo 7ª do Código de Registo Predial.
Vejamos se lhe assiste razão.
Com interesse para a apreciação dessa questão resultou provado o seguinte:
- A propriedade da fração autónoma com a letra Q, correspondente ao quinto andar frente – para habitação – com arrecadação no sótão, descrita na Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº … (anterior nº … da freguesia de …), mostra-se inscrita em nome de “A” casada com “B”, no regime de comunhão de adquiridos, por ter sido adquirida por compra (Ap. … de 1999/05/10).
- Autora e Réu contraíram, entre si, casamento, em 13 de dezembro de 1986, sem convenção antenupcial, constando do Assento de Casamento Civil n.º …, do ano de 1987, do Consulado Geral de Portugal em Genebra, Suíça, que o Réu era de nacionalidade portuguesa e a Autora de nacionalidade angolana.
- Por sentença transitada em julgado, proferida pelo Tribunal de Distrito de Broye Estavayer-le-lac em 15 de Junho de 1990 - objeto de revisão pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo nº …, por via da decisão de 12 de janeiro de 2016 -, foi dissolvido aquele casamento e decretado o divórcio entre a Autora e o Réu, divórcio que, desde 12 de janeiro de 2016, passou a “ter eficácia na ordem jurídica portuguesa”.
- Em sede de escritura de “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca” lavrada em 26 de maio de 1999, no … Cartório Notarial de Lisboa, figura como “Segundo” outorgante, I …, como “procurador de “B” e mulher “A”, casados na comunhão de adquiridos”.
- Nesta escritura, I … declarou aceitar, para a sua representada, a venda da fração autónoma designada pela letra Q, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …
Perante essa factualidade, cumpre desde logo referir que o Réu, na sua contestação, não invoca a existência de qualquer lapso de escrita no texto da escritura pública de “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca” outorgada em 26.05.1999, o que significa que temos por seguro que de acordo com a mesma apenas a Autora figura como compradora do imóvel em causa nos autos.
Em tais circunstâncias, a questão a decidir prende-se com a determinação do regime de bens do dissolvido casamento entre a Autora e o Réu e com o momento a partir do qual devem considerar-se cessadas as relações patrimoniais derivadas desse casamento.
Conforme ambas as partes aceitam, o regime de bens do casamento entre a Autora e o Réu é o regime supletivo da comunhão de adquiridos, conforme ficou a constar da escritura pública de “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca” a que acima se aludiu.
Em função desse regime de bens, o imóvel em causa nos autos será bem próprio da Autora ou bem comum da Autora e do Réu, apurados que sejam dois fatores essenciais, a saber: a data em que cessaram as relações patrimoniais do casal por virtude da dissolução do casamento por divórcio; e, a data da aquisição pela Autora do imóvel.
A questão atinente ao momento em que cessaram as ditas relações patrimoniais é exclusivamente jurídica e prende-se com os efeitos da sentença proferida no processo de revisão da decisão estrangeira que decretou o divórcio.
Em geral, o reconhecimento de uma sentença estrangeira pressupõe a verificação prévia da sua regularidade, isto é, pressupõe a verificação, no caso concreto, das condições de que segundo a lei do país requerido depende a atribuição de eficácia às decisões de tribunais estrangeiros.
O sistema apresenta duas modalidades, conforme se exija ou não a revisão de mérito.
No nossa ordem jurídica vigora o regime da mera revisão formal (verificação da regularidade da decisão e do processo de que ela constitui o último termo), doutrinariamente conhecido por sistema da delibação (cfr. Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, I, 4ª reimpressão da edição de Outubro de 2000, pág. 464), em que a sentença de confirmação opera a receção na ordem jurídica do foro dos efeitos que a decisão estrangeira produz na ordem jurídica do Estado de origem e, geralmente, confere-lhe força executiva. Como refere Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, III, pág. 375/376, “A sentença de confirmação não se substitui à sentença estrangeira nem a “nacionaliza” através de uma incorporação do seu conteúdo. A confirmação também não é uma condição legal de eficácia de um mero facto jurídico (a sentença estrangeira). A sentença estrangeira é encarada como um acto jurisdicional, que pode ou não ser reconhecido. A confirmação tem por função conferir à sentença estrangeira um título de eficácia na ordem jurídica interna.” Daqui deriva que o tribunal de reconhecimento nunca se substitui ao tribunal de origem; é a sentença estrangeira que é executada, mas a sentença de confirmação que lhe atribui relevância na ordem jurídica interna não pode deixar de integrar o título e, por último “a confirmação da decisão estrangeira tem efeito retroactivo com ressalva dos direitos de terceiro. Quer isto dizer que os efeitos que a sentença estrangeira produz na ordem jurídica interna retroagem ao momento da sua produção na ordem jurídica do Estado de origem” (o mesmo autor e obra citados, pág. 376 e, no mesmo sentido, Ferrer Correia, obra citada, pág. 476). E, nesse sentido, não colhe o entendimento de que a mesma apenas adquire o efeito de caso julgado na nossa ordem jurídica depois da sua confirmação.
Em face da doutrina exposta e dos factos provados e acima elencados, dúvidas não há de que as relações patrimoniais do primitivo casal, decorrentes do regime de bens do casamento, cessaram na data da sentença estrangeira que decretou o divórcio e não aquando da sua revisão e confirmação em Portugal, ocorrida somente em 2016.
Ora, reportando-se a compra do imóvel pela Autora à data de 26.05.1999 e tendo as relações patrimoniais decorrentes do seu casamento com o Réu cessado no dia 15.01.1990, dúvidas não temos de que o imóvel é bem próprio da Autora.
Saliente-se que qualquer contributo patrimonial do Réu para a compra do imóvel nunca teria influência nessa conclusão, podendo apenas conferir-lhe um direito de crédito sobre a Autora.
Em face do que ficou exposto, impõe-se revogar a sentença recorrida relativamente à decisão proferida quanto aos pedidos formulados pela Autora e contidos nas alíneas a) e b), substituindo-se a mesma por uma outra que julgue procedentes esses pedidos.
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- Se, tendo nós concluído que o imóvel objeto da escritura pública outorgada a 26.05.1999 é bem próprio da Autora, deve ordenar-se o cancelamento da inscrição de aquisição por compra efetuada pela Ap. … de 1999/05/10, na parte em que a mesma respeita à titularidade do Réu ou o seu cancelamento e a subsequente reinscrição da referida aquisição exclusivamente em nome da Autora, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida quanto ao pedido formulado sob a alínea c) e substituindo-se a mesma por uma outra que julgue procedente esse pedido.
Dúvidas não se suscitam de que à data da inscrição em causa, efetuada pela Ap. … de 1999/05/10, a mesma refletia a realidade existente à luz do ordenamento jurídico português e espelhada no texto da escritura pública que lhe serviu de título, perante o qual Autora e Réu eram casados de acordo com o regime da comunhão de adquiridos. Nessa data a sentença de divórcio proferida na Suíça não tinha eficácia legal em Portugal. E, nessa medida, a referida inscrição, com referência à data em que foi feita, não enferma de qualquer vício que afete a sua validade.
Acresce que, conforme decorre do que acima referimos, a confirmação da sentença estrangeira de divórcio operada pela decisão do Tribunal da Relação de 12.01.2016 tem efeito retroativo mas com ressalva dos direitos de terceiro. E o registo da aquisição do imóvel, dando publicidade a esse ato, visa precisamente acautelar os direitos desses terceiros.
Assim sendo, inexiste fundamento legal para o seu cancelamento.
Em face do que ficou exposto, confirma-se a decisão recorrida no que se refere ao pedido contido na alínea c).
*
Neste âmbito, e pese embora a improcedência desse pedido, cumpre ter presente uma outra questão. É que os pedidos deduzidos nesta ação sob as alíneas a), b) e c), tal como as decisões que sobre eles recaem, estão sujeitas a registo, conforme decorre dos artigos 2º, n.º 1, al. a) e 3º, n.º 1, al. a) e c), do Código de Registo Predial, impondo-se o cumprimento, oficioso, do disposto nos artigos 8º-B, n.º 3, al. a), 53º, n.º 1, al. b) e 53-A, desse mesmo diploma legal, o que se determinará.
*
- Se em função da alteração da decisão da matéria de facto constante da decisão recorrida quanto aos factos considerados como não provados sob os números 19. a 25., deve ser revogada a decisão recorrida quanto ao pedido formulado sob a alínea d), substituindo-se a mesma por uma outra que julgue procedente esse pedido:
No que a tal questão se refere, uma vez que a matéria de facto em causa não sofreu qualquer alteração, fica prejudicada a sua apreciação.
Assim sendo, quanto ao pedido contido na alínea d), improcede o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
*
- Se o Réu deve ser condenado como litigante de má-fé.
Defende a Recorrente que o Réu deve ser condenado como litigante de má-fé.
Nos termos do artigo 542º, nº 2, do CPC, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A razão de ser da responsabilidade pela litigância de má-fé fica, resulta clara nas seguintes palavras do Professor Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, a pág. 261: “A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição dos titulares de direitos; que no caso concreto o litigante tenha ou não razão, é indiferente; num e noutro caso goza dos mesmos poderes processuais. Mas ao princípio da licitude do exercício dos meios processuais a mesma ordem jurídica impõe uma limitação: que o exercício seja sincero, que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão. Quando falta este requisito, o acto passa a ter o carácter de ilícito. Estamos então perante um ilícito processual, a que corresponde ou uma sanção meramente civil (responsabilidade pelas perdas e danos causados à parte contrária) ou uma sanção civil e uma sanção penal (multa)”.
Só deverá ser proferida decisão condenatória por litigância de má-fé no caso de se estar perante “uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte”, como se exarou no Acórdão da RP de 06.10.2005, disponível in www.dgsi.pt.
Tendo presente esse princípio, e depois de analisada a posição defendida pelo Réu em sede de contestação, o elenco de factos considerados como provados e como não provados, bem como a motivação da decisão da matéria de facto, entendemos que os elementos de que dispomos são insuficientes para que deles se retire que o Réu agiu com dolo ou negligência, não se verificando no presente caso os pressupostos do citado artigo 542, n.º 2, do CPC. De facto, o Réu apenas enveredou por uma construção jurídica que não obteve acolhimento.
Assim sendo, mantém-se, no que a tal questão se refere, a decisão recorrida, improcedendo, nessa parte o presente recurso.
*
V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem o coletivo desta 2.ª Secção Cível em julgar parcialmente procedente o presente recurso e, consequentemente:
a) Revoga-se a sentença recorrida no que concerne aos pedidos formulados sob as alíneas a) e b), decidindo-se:
- Declarar que a Autora é a legítima dona e a única proprietária da fração autónoma “Q”, melhor identificada no artigo 1.º da petição;
- Condenar o Réu a reconhecer o direito exclusivo de propriedade da Autora sobre a referida fração autónoma;
b) Mantém-se, quanto ao mais, a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente e pelo Recorrido na proporção dos respetivos decaimentos.
Registe.
Notifique.
*
Após trânsito, cumpra-se o disposto nos artigos 8º-B, n.º 3, al. a), 53º, n.º 1, al. b) e 53-A, do Código de Registo Predial.

Lisboa, 18/04/2024
Susana Mesquita Gonçalves
Pedro Martin Martins
José Manuel Monteiro Correia