Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18474/16.6T8LSB.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: ACTO MÉDICO
INTERVENÇÃO CIRÚRGICA
RESPONSABILIDADE CIVIL
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
PRESSUPOSTOS
MONTANTES INDEMNIZATÓRIOS
EQUIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÕES
Decisão: PROCEDENTES
Sumário: 1 - Em matéria de responsabilidade médica podem verificar-se, em simultâneo, responsabilidade civil contratual e extracontratual.
2 - A prestação que é devida pelos médicos corresponde tendencialmente a uma “obrigação de meios”. Pelo que, nesses casos, para haver incumprimento, não basta provar que determinado resultado não se verificou, é necessário demonstrar que o médico não desenvolveu todos os esforços devidos, de acordo com a legis artis, com vista a obter esse resultado.
3  - O consentimento do doente para a realização de determinada intervenção cirúrgica só é válido e eficaz se o médico cumpriu de forma adequada o dever de informação sobre o diagnóstico da doença, sobre a proposta operatória que de propõe realizar e seus riscos mais prováveis, bem como das demais soluções alternativas de terapêuticas admissíveis, de acordo com a Ciência Médica, por forma a que o doente possa formar a sua vontade de maneira verdadeiramente livre, consciente e esclarecida.
4 -   São atendíveis, para efeitos de indemnização, os danos não patrimoniais relativos à perda de vida, os sofrimentos da vítima antes do seu falecimento e os sofrimentos próprios dos familiares daquela, devendo o cálculo da indemnização ser fixada de acordo com critérios de equidade (cfr. Art.ºs 496.º do C.C.), tendo em atenção a jurisprudência de referência que sobre esses danos vem sendo proferida pelos tribunais superiores.
5 - Havendo dificuldades em estabelecer um nexo causal, enquanto pressuposto da responsabilidade civil, sempre se poderá recorrer ao instituto da “perda de chance”.
6 - A sociedade titular do estabelecimento hospitalar onde foram prestados os serviços médicos à doente e onde os médicos que a assistiram trabalham, ou prestam serviços, responde pelos incumprimentos destes, nos termos do Art.º 800.º n.º 1 do C.C., bem como pessoalmente pelos demais factos que, no quadro da sua organização empresarial, sejam realizados e venham a causar danos, incluindo qualquer deficiência decorrente dos meios de disponibiliza aos seus clientes ou utentes dos seus serviços (cfr. Art.ºs 978.º e ss. do C.C.).
7 - Só esgotadas as possibilidades conferidas às partes de fazerem prova do valor devido será legítimo o recurso à equidade pelo tribunal, em conformidade com o disposto no Art.º 566.º n.º 3 do C.C..
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
LL, BL e DL vieram intentar ação de condenação, em processo declarativo comum, contra PM, “Hospital” S.A., CN, CK e FR, pedindo a condenação dos R.R. no pagamento da quantia global de €270.000,00, a título de danos sofridos com o falecimento da sua esposa e mãe, acrescida dos respetivos juros de mora, contados desde a citação, devido aos prejuízos que terão sofrido em consequência desse falecimento, emergentes da responsabilidade dos R.R., que, com violação das legis artis, não terão cumprido aquilo a que se tinham contratualmente vinculado. Mais alegaram a ausência de prestação das informações relevantes sobre as intervenções cirúrgicas, obstando a um consentimento informado pleno para as mesmas. A título subsidiário, pediram que os danos fossem ressarcidos, pela perda de chance que resultou do mesmo falecimento.
Para tanto, e em síntese, alegaram que são, respetivamente, marido e filhos de CP, que faleceu no Hospital …, tendo esse falecimento ocorrido na sequência de uma intervenção cirúrgica realizada no mesmo hospital. Na sequência dessa intervenção, sobreveio a CP um quadro infecioso grave (sépsis), sendo na sequência sujeita a outra intervenção cirúrgica de urgência para tentar debelar essa infeção. Acabou, no entanto, por falecer como consequência dessa infeção.
Os R.R. intervieram numa ou na outra intervenção, sendo que, na primeira, não foram observadas as regras da legis artis, nem a falecida foi devidamente informada dos riscos da operação. Já na segunda, não foi igualmente informada dos mesmos riscos.
A falecida não foi devidamente acompanhada, especialmente, pelo 1.º R., no primeiro pós-operatório. Os procedimentos efetuados com a deteção da existência da sépsis e da realização da segunda cirurgia não tiveram a celeridade que se impunha, num caso como aquele, e também não foram prestas informações sobre os riscos dessa operação.
Estas situações levaram a que a sépsis se instalasse e que não tivesse sido possível evitar o decesso de CP, ou pelo menos, de se dar à mesma a máxima possibilidade de sobrevivência.
Citados os R.R. contestaram impugnando os factos alegados, sustentando essencialmente que os tratamentos e as intervenções cirúrgicas foram efetuados com as melhores técnicas e legis artis, não se verificando os pressupostos da responsabilidade civil, sustentando sempre, em todo o caso, que as quantias peticionadas seriam exageradas. O 4.º R. também invocou a sua ilegitimidade passiva, pugnando pela procedência dessa exceção dilatória.
Os 1.º e 3.º a 5.º R.R. requereram a intervenção provocada da A…, Companhia de Seguros, S.A. e, o 2.º R., requereu a intervenção provocada da F…, Companhia de Seguros, S. A., tendo ambas as seguradoras sido admitidas a intervir, as quais apresentaram igualmente contestações.
Findos os articulados, veio a ser designada audiência prévia, na qual veio a ser proferido despacho saneador, indeferindo a ilegitimidade invocada pelo 4.º R., CK. Na sequência, identificou-se o objeto do litígio e elencaram-se os temas da prova, admitindo-se os meios de prova requeridos.
Finda a fase instrutória prévia, na qual foi realizada perícia, procedeu-se à designação a audiência final.
Produzida a prova e discutida a causa, veio a ser proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, nos seguintes termos:
«1. Condenam-se os RR. PM e, “Hospital …” S.A., pagarem aos AA., LL, BL e DL, solidariamente, a quantia que se vier a liquidar, pela perda de chance resultante no falecimento de CP, quanto aos danos apurados.
«2. Condenam-se as RR. “A…, Companhia de Seguros”, S.A., e “F…, Companhia de Seguros” S. A., a primeira solidariamente com o R. PM, e a segunda, solidariamente com a R. “Hospital …” S.A., a pagarem aos AA., a quantia que se vier a liquidar, quanto a estes RR., dentro dos limites do capital seguro e tendo em conta as respetivas franquias contratuais.
«3. Absolvem-se os RR. CN, CK e FR, dos pedidos efetuados pelos AA..
«4. Absolvem-se os RR. PM e “Hospital…” S.A., do restante peticionado pelos AA.».
É dessa sentença que os A.A., o 1.º R. e as duas intervenientes seguradoras, vieram interpor recursos de apelação.
No final das suas alegações do recurso dos A.A., estes apresentaram as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo considerou que os sintomas típicos de deiscência da anastomose, que veio a vitimar CP, apenas estavam instalados às 11h38m do dia 24 de abril de 2015 e, por outro lado, considerou inexistir má prática médica por parte do 3.º Réu, absolvendo-o dos pedidos.
2. Os Recorrentes consideram que a douta sentença não procedeu a uma correta apreciação da prova produzida, o que conduziu, inexoravelmente, a uma incorreta aplicação do Direito.
3. Os Recorrentes consideram, assim, incorretamente julgados os seguintes pontos de facto dados como provados:
a) 22. O que motivou o contacto telefónico do 3.º Réu na madrugada do dia 24 de abril de 2015.
b) 85. Ao mesmo tempo, a paciente apresentava, às 08H19 minutos deste terceiro dia de pós-operatório, sinais patentes de infeção, com valores de PCR (Proteína C- reativa) de 15,49, valores que foram subindo de forma exponencial à medida que as horas iam passando.
c) 166. Perante o quadro clínico descrito às 11h38, do dia 24 de abril de 2015 (3.º dia de pós-operatório) “febre e 2 episódios de vómito. Leucopenia, neutrofilia. PCR de 15”, era mandatório uma observação clínica rigorosa e eventual solicitação de vários exames complementares de diagnóstico, como por exemplo uma TAC abomino-pélvica.
d) 197. O Réu JN voltou a ser contactado pela Enfermeira MC pelas 01h06, pelo facto de CP se apresentar “queixosa e febril no início do turno. Dejeção de melenas em moderada quantidade”.
e) 198. Em face da descrição feita pela Enf.ª quanto às queixas de CP, o R. prescreveu a administração de Petidina 30 mg, pela via Endovenosa, que foi realizada às 03h00 e que, conforme resulta do registo de enfermagem, se revelou “(eficaz)”.
f) 199. O R. volta a observar a doente antes das 04h00, tendo então solicitado análises, tendo tal sido escrito no registo de enfermagem: “Foi posteriormente observada. Fica com análises pedidas”.
g) 200. Pelas 08h19 é efetuada a colheita para a realização das análises pedidas.
4. Os Recorrentes consideram, ainda, incorretamente julgados os seguintes pontos de facto dados como não provados:
a) – A falecida apresentava dejeção de melenas, ou seja, fezes com sangue escuro, com coloração negra, consistência mole e cheiro nauseabundo intenso, que pode indicar a existência de uma hemorragia do estômago ou do intestino delgado (Factos 100 da P.I.);
b) – Tais sintomas mereciam uma atuação médica imediata, nomeadamente por parte do médico especialista em medicina intensiva que se encontrasse de serviço (Factos 101 da P.I.);
c) – Ora, é prática assente em todos os hospitais, por banda de qualquer enfermeiro de serviço, solicitar o auxílio de um médico apenas e só em situações de urgência - as comummente designadas como situações de S.O.S. (Facto 112 da P.I.);
d) – O referido clínico fez visita à paciente à mesma hora que nos dias precedentes, não relevando a importância dos sintomas apresentados pela paciente, num pós-operatório de cirurgia de resseção anterior do reto, com anastomose (Facto 114 da P.I.);
5. Atendendo à prova produzida, entendem os Recorrentes que se a sentença procedeu a uma errada apreciação da matéria de facto.
Senão vejamos,
6. A sentença recorrida considerou provado que o 3.º Réu, Dr. CN, foi contactado telefonicamente pelas 01h06 do dia 24 de abril de 2015, prescrevendo Petidina que teria sido administrada pelas 03h00 e que, posteriormente, antes das 04h00, teria voltado a observar a doente e solicitado a realização de análises, conforme pontos da matéria provada:
a) 22. O que motivou o contacto telefónico do 3.º Réu na madrugada do dia 24 de abril de 2015.
b) 197. O Réu JN voltou a ser contactado pela Enfermeira MC pelas 01h06, pelo facto de CP se apresentar “queixosa e febril no início do turno. Dejeção de melenas em moderada quantidade”.
c) 198. Em face da descrição feita pela Enf.ª quanto às queixas de CP, o R. prescreveu a administração de Petidina 30 mg, pela via Endovenosa, que foi realizada às 03h00 e que, conforme resulta do registo de enfermagem, se revelou “(eficaz)”.
d) 199. O R. volta a observar a doente antes das 04h00, tendo então solicitado análises, tendo tal sido escrito no registo de enfermagem: “Foi posteriormente observada. Fica com análises pedidas.”
7. Entendem, porém, os Recorrentes que a conjugação das notas de enfermagem da madrugada do dia 24 de abril de 2015 (constantes de fls. 112 do resumo de informação clínica, junto como Doc. n.º 1 da contestação da 2.ª Ré), da prescrição das análises clínicas (juntas aos autos por requerimento da 2.ª Ré, datado de 18 de outubro de 2021, com referência n.º 40171401) e do Relatório de registo de enfermagem do dia 23 de abril de 2015 (constante de fls. 185 do Doc. n.º 1 da contestação da 2.ª Ré), bem como o depoimento da testemunha MC (depoimento prestado no dia 29 de junho de 2021, das 41:24 horas às 59:14 horas, e gravado no sistema h@bilus media studio com o ficheiro n.º 20210629095958_19064208_2871036), impunha decisão diversa sobre os referidos ponto de facto dados como provados.
8. De facto, da análise das notas de enfermagem da madrugada do dia 24 de abril de 2015 (constantes de fls. 112 do RESUMO DE INFORMAÇÃO CLÍNICA, junto como Doc. n.º 1 da contestação da 2.ª Ré) pode constatar-se que, pelas 01h06min, a Sra. Enf.ª MC regista “Foi dado conhecimento telefónico ao Dr. CN que pediu para administrar petidina 30 mg Ev à doente (eficaz)”.
9. Sendo o registo efetuado pelas 01h06 min, aquele contacto telefónico teria necessariamente de ter ocorrido antes da realização do registo e, ainda, antes da administração da Petidina, que decorreu daquele mesmo contacto e respetiva prescrição oral.
10. Ora, em conformidade com o Relatório de registo de enfermagem do dia 23 de abril de 2015 (fls. 185 do Doc. n.º 1 da contestação da 2.ª Ré), a administração de Petidina ocorreu pelas 22:00h do dia 23 de abril de 2015, pelo que sempre o contacto telefónico haveria de ter sido efetuado previamente.
11. O que é confirmado pelo depoimento da testemunha MC que afirmou que, tendo administrado Petidina às dez da noite do dia 23 de abril de 2015, o contacto com o 3.º Réu, Dr. CN, ocorreu um pouco antes dessa hora.
12. Não se deve dar, assim, como provado o facto constante dos pontos 22 e 197 da matéria provada. Em substituição dos referidos pontos de factos, deverão ser aditados os seguintes:
a. O que motivou o contacto do 3.º Réu um pouco antes das 22 horas do dia 23 de abril de 2015;
b. O Réu JN foi contactado pela Enfermeira MC um pouco antes das 22h00, pelo facto de CP se apresentar “queixosa e febril no início do turno. Dejeção de melenas em moderada quantidade”.
13. Consequentemente, se a Sra. Enf.ª MC regista, pelas 01h06min do dia 23 de abril de 2015, “Foi dado conhecimento telefónico ao Dr. CN que pediu para administrar petidina 30 mg Ev à doente (eficaz)”, a efetiva administração daquele fármaco sempre terá ocorrido antes da hora do respetivo registo.
14. De resto, a própria testemunha MC confirma que a administração da Petidina ocorreu pelas dez da noite, o que é ainda corroborado pelo RELATÓRIO DE REGISTO DE ENFERMAGEM DO DIA 23 DE ABRIL DE 2015 (Cfr. fls. 185 do Doc. n.º 1 da contestação da 2.ª Ré).
15. Não se deve dar, pois, como provado o facto constante do ponto 198 da matéria provada. Em substituição do referido ponto de facto, deverá ser aditado o seguinte ponto de facto:
a. Em face da descrição feita pela Enf.ª MC quanto às queixas de CP, o R. prescreveu a administração de Petidina 30 mg, por via endovenosa, que foi realizada às 22h00.
16. Ademais, a conjugação do depoimento da testemunha MC (depoimento prestado no dia 29 de junho de 2021, das 41:24 horas às 59:14 horas, e gravado no sistema h@bilus media studio com o ficheiro n.º 20210629095958_19064208_2871036), com as NOTAS DE ENFERMAGEM DA MADRUGADA DO DIA 24 DE ABRIL DE 2015 (constantes de fls. 112 do resumo de informação clínica, junto como Doc. n.º 1 à contestação da 2.ª Ré) e, ainda, com a PRESCRIÇÃO DAS ANÁLISES CLÍNICAS (junta aos autos por requerimento da 2.ª Ré, datado de 18 de outubro de 2021, com referência n.º 40171401), não poderá deixar de concluir-se que o 3.º Réu, Dr. CN, apenas viu a doente uma vez no turno da noite, de 23 de abril para 24 de abril de 2015, seguramente antes da 01h06min, altura do registo de enfermagem efetuado pela Sra. Enf.ª MC.
17. Antes, de mais, resulta documentalmente inequívoco que se a Enf.ª MC regista, às 01h06, “Foi posteriormente observada. Fica com análises pedidas”, essa observação e pedido de análises sempre haverão de ter ocorrido antes dessa hora. Ainda que assim não fosse, a própria testemunha Enf.ª MC esclareceu, no seu depoimento, que tendo registado a observação e o pedido de análises àquela hora, aqueles factos terão certamente ocorrido antes.
18. Por outro lado, tendo a observação da doente e a prescrição de análises ocorrido em simultâneo, a prescrição das análises junta aos autos confirma que ocorreu ainda durante o dia de 23 de abril de 2015.
19. Sempre se diga, por outro lado, que dos demais registos de enfermagem efetuados naquele turno da noite (seguramente entre as 20h e as 08:30h, conforme depoimento da Enf.ª MC), não consta qualquer outra evidência - como seria mandatório, caso tivesse existido - de que o 3.º Réu, Dr. CN, tenha voltado a observar a doente durante esse turno.
20. Embora desses registos adicionais – efetuados pelas 04:11h pela Enf.ª SF e das 07:56h pela Enf.ª MC – resulte inequívoco que as queixas da doente rapidamente se agravaram, com queixas, sudorese e hipotensão.
21. Pelo que deve ser dado como não provado o facto elencado no ponto 199 da matéria provada. E, em sua substituição, deverão ser aditados o seguinte ponto de facto:
a. O 3.º Réu observou a doente antes das 24h00 do dia 23 de abril de 2015, tendo então solicitado análises, conforme decorre do registo de enfermagem: “Foi posteriormente observada. Fica com análises pedidas.”
b. Os registos de enfermagem subsequentes, designadamente das 04:11 e das 07:56, realizadas, respetivamente, pelas Enf.ª SF e MC, provam que as queixas da doente rapidamente se agravaram, com manifestação de “sensação de sudorese e dor”, de “hipotensão”, com indicação de que a doente “não dormiu” e de que a dor estava “mais localizada aos quadrantes inferiores do abdómen”.
22. A sentença recorrida considera provado que, apenas às 08h19 minutos do dia 24 de abril de 2015, a falecida CP apresentaria sinais patentes de infeção e, ainda, que apenas face ao quadro clínico descrito às 11h38m era mandatória uma observação clínica rigorosa da doente e a eventual solicitação de exames complementares de diagnóstico, conforme pontos da matéria provada:
a. 85. Ao mesmo tempo, a paciente apresentava, às 08h19 minutos deste terceiro dia de pós-operatório, sinais patentes de infeção, com valores de PCR (Proteína C- Reativa) de 15,49 valores que foram subindo de forma exponencial à medida que as horas iam passando.
b. 166. Perante o quadro clínico descrito às 11h38, do dia 24 de abril de 2015 (3.º dia de pós-operatório) “Febre e 2 episódios de vómito. Leucopenia, neutrofilia. PCR de 15”, era mandatório uma observação clínica rigorosa e eventual solicitação de vários exames complementares de diagnóstico, como por exemplo uma TAC abdomino-pélvica.
23. Entendem, porém, os Recorrentes que a conjugação do depoimento das testemunhas JA (depoimento prestado na sessão que teve lugar no dia 15 de junho de 2021, das 11.18.32 horas às 11.36.10 horas e gravado no sistema h@bilus media studio com o ficheiro n.º 20210615111809_19064208_2871036), MR (depoimento prestado na sessão que teve lugar no dia 29 de junho de 2021, entre os minutos 12:25 e 40:06 e gravado no sistema h@bilus media studio com o ficheiro n.º 20210629095958_19064208_2871036), MC (depoimento prestado na sessão que teve lugar no dia 29 de junho de 2021, entre os minutos 41:24 e 59:14 e gravado no sistema h@bilus media studio com o ficheiro n.º 20210629095958_19064208_2871036) e APA (depoimento prestado na sessão que teve lugar no dia 15 de junho de 2021, das 10:29:54 horas às 11:16:12 horas e gravado no sistema h@bilus media studio com o ficheiro n.º 20210615102952_19064208_2871036), bem como das notas de enfermagem da madrugada do dia 24 de abril de 2015 (constantes de fls. 112 do resumo de informação clínica, junto como Doc. n.º 1 da contestação da 2.ª Ré) e dos RESULTADOS DAS ANÁLISES (constantes de fls. 102 do Doc. n.º 1 da contestação da 2.ª Ré), impunha decisão diversa sobre os referidos ponto de facto dados como provados.
24. Da conjugação do depoimento das testemunhas JA e MR resultam demonstrados os sintomas típicos de deiscência da anastomose: agravamento das análises e dos parâmetros analíticos, febre, dores e hemorragia.
25. Naquele dia 23 de abril de 2015, aquando do contacto telefónico com o 3.º Réu, Dr. CN, realizado um pouco antes das 22h00, a CP apresentava-se “queixosa e febril” e manifestava “dejeção de melenas em moderada quantidade”, conforme registo de enfermagem efetuado pela Enf.ª MC, pelas 01:06h.
26. Ao mesmo tempo, a doente evidenciava degradação dos parâmetros analíticos conforme resulta documentalmente demonstrado da análise comparativa dos resultados das análises (constantes de fls. 102 do Doc. n.º 1 da contestação da 2.ª Ré) que demonstra uma tendência decrescente de leucócitos e uma tendência crescente de Proteína C Reativa, sintomas típicos de um quadro infecioso, no caso de peritonite fecal.
27. Nessa ocasião, e como resulta dos registos de enfermagem, o 3.º Réu prescreve a realização de análises clínicas, sem que, no entanto, tenha providenciado pela sua realização urgente, conforme se impunha num caso como aquele que discute nos presentes autos, conforme resultou demonstrado também do depoimento da testemunha APA.
28. Era, pois, evidente, logo às 22 horas do dia 23 de abril de 2015, que CP revelava sintomas típicos de infeção e, consequentemente, de deiscência da anastomose, reclamando, pois, uma observação clínica rigorosa e solicitação de exames complementares, que pudessem confirmar o diagnóstico.
29. Pelo que os pontos de facto 85. e 166. constantes da matéria dada como provada deverão ser dados como não provados. Em substituição dos referidos pontos de factos, deverão ser aditados os seguintes pontos de facto:
a. Às 22h do dia 23 de abril de 2015, a CP apresentava sinais típicos de deiscência da anastomose, na medida em que contava com valores analíticos de manifesta tendência decrescente dos valores de leucócitos (15,7 - 9,6) e tendência crescente da Proteína C Recativa (1,95 – 9,62), acompanhados de sinais de instabilidade hemodinâmica como dor, febre e hemorragia.
b. Perante os sintomas revelados pela paciente, e a tendência dos resultados analíticos dos dias anteriores, às 22 horas do dia 23 de abril de 2015 era mandatória uma observação clínica rigorosa de CP, que determinasse a realização urgente de análises clínicas que permitisse avaliar os valores de Proteína C Reativa e, ainda, a necessidade de outros exames complementares de diagnóstico, designadamente TAC Abdominal.
c. Às 08H19 minutos deste terceiro dia de pós-operatório, a doente continuava a apresentar sinais cada vez mais patentes de infeção, com valores de PCR (Proteína C- reativa) de 15,49, valores que foram subindo de forma exponencial à medida que as horas iam passando.
d. Às 11h38, do dia 24 de abril de 2015 (3.º dia de pós-operatório), CP revelava “febre e 2 episódios de vómito. Leucopenia, neutrofilia. PCR de 15”, continuando a ser mandatória a observação clínica da doente.
30. A sentença recorrida considera como provado que às 08h19m do dia 24 de abril de 2015 foi efetuada a colheita para as análises prescritas pelo 3.º Réu, Dr. CN, ao final do dia 23 de abril de 2015, conforme ponto da matéria provada:
a. “200. Pelas 08h19 é efetuada a colheita para a realização das análises pedidas”
31. Entendem, porém, os Recorrentes que da análise de fls. 102 do processo clínico, junto como Doc. n.º 1 à contestação da 2.ª Ré, resulta inequivocamente que 08:19h é o horário de disponibilização dos resultados e não a horário da respetiva colheita.
32. De resto, e analisando comparativamente os RESULTADOS DAS ANÁLISES do dia 26 de abril de 2015 (constantes da página 66 do Doc. n.º 1 junto à contestação da 2.ª Ré), resultando do mesmo: “data de inscrição – 26-04-2015 – 11:48:27; data de emissão: 28-04-2015 – 10:48:11”, não se poderá nunca aceitar que a data de inscrição seja a data de colheita, sob pena de ter de aceitar-se que, neste caso, estando CP internada na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalentes, os resultados das análises apenas tenham sido disponibilizados dois dias depois, a 28 de abril de 2015, o que não é crível.
33. Pelo que deve ser dado como não provado o facto elencado no ponto 200 da matéria provada. E, em sua substituição, dever ser aditado o seguinte ponto de facto:
a. Pelas 08h19 estavam disponíveis os resultados das análises pedidas.
34. A sentença recorrida considera como não provado que a dejeção de melenas merecesse a atuação médica imediata, conforme os seguintes pontos da matéria não provada:
a. “100 da PI. A falecida apresentava dejeção de melenas, ou seja, fezes com sangue escuro, com coloração negra, consistência mole e cheiro nauseabundo intenso, que pode indicar a existência de uma hemorragia do estômago ou do intestino delgado. Ora,
b. 101 da PI. Tais sintomas mereciam uma atuação médica imediata, nomeadamente por parte do médico especialista em medicina intensiva que se encontrasse de serviço.”
35. A conjugação do depoimento das testemunhas MR (depoimento prestado na sessão que teve lugar no dia 29 de junho de 2021, entre os minutos 12:25 e 40:06 e gravado no sistema h@bilus media studio com o ficheiro n.º 20210629095958_19064208_2871036) e MC (depoimento prestado na sessão que teve lugar no dia 29 de junho de 2021, entre os minutos 41:24 e 59:14 e gravado no sistema h@bilus media studio com o ficheiro n.º 20210629095958_19064208_2871036), impunha, porém, que o referido ponto de facto tivesse sido dado como provado.
36. Do depoimento da testemunha MR resulta evidente que a atenção a eventuais hemorragias, como é o caso das melenas, deve ser um sintoma a que os profissionais de saúde devem estar particularmente atentos.
37. Assim, e conforme resultou do respetivo depoimento, o surgimento daquelas melenas justificou que a Sra. Enf.ª MC, de serviço no turno em que aquelas dejeções surgiram, tenha contactado o médico responsável pela doente, o 3.º Réu, Dr. CN, para lhe dar conhecimento da ocorrência, tendo seguido as suas indicações – tudo demonstrativo da importância de uma atuação médica imediata.
38. Decorre ainda do depoimento da testemunha MR que os quartos do 2.º Réu, Hospital …, não eram adequados à prestação do acompanhamento de que a CP necessitava.
39. Pelo que deve ser dado como provado o facto elencado no ponto 101 da petição inicial. Ademais, devendo ainda ser aditado à matéria provada o seguinte ponto de facto:
a. Ante o quadro provado e os sintomas revelados pela CP, devia o 3.º Réu assegurar a sua monitorização próxima, por si próprio, ou, em alternativa, por clínico para tal qualificado, devendo, neste caso, ter procedido à sua transferência para a Unidade de Cuidados Intensivos.
40. A sentença recorrida considera ainda como não provado que “112 da P.I. - Ora, é prática assente em todos os hospitais, por banda de qualquer enfermeiro de serviço, solicitar o auxílio de um médico apenas e só em situações de urgência – as comummente designadas como situações de S.O.S..”.
41. Porém, do depoimento da testemunha APA (depoimento prestado na sessão que teve lugar no dia 15 de junho de 2021, das 10:29:54 horas às 11:16:12 horas e gravado no sistema h@bilus media studio com o ficheiro n.º 20210615102952_19064208_2871036), resultou que pondera sempre muito bem se liga ao médico cirurgião durante a noite, não o fazendo por qualquer motivo, desde logo porque os profissionais de saúde também precisam de descansar. Mais explicou, de forma inequívoca, que o critério de contactar o médico de madrugada é a situação clínica do doente e, consequentemente, a urgência reclamada pelo seu estado.
42. Pelo que deve ser dado como provado o facto elencado no ponto 112 da petição inicial. Ademais, deve ainda ser aditado o seguinte ponto de facto:
a. A 2.ª Ré não dispõe de procedimentos padronizados em matéria de contacto noturno dos médicos responsáveis pelo doente, sendo este contacto gerido de acordo com o bom senso da equipa de enfermagem.
43. A sentença recorrida considera como não provado que o 3.º Réu apenas tenha efetuado visita médica a CP, no dia 24 de abril de 2015, à mesma hora dos dias precedentes, conforme o seguinte ponto da matéria dada como não provada:
a. “114 da PI - O referido clínico fez visita à paciente à mesma hora que nos dias precedentes, não relevando a importância dos sintomas apresentados pela paciente, num pós-operatório de cirurgia de resseção anterior do reto, com anastomose.”
44. Entendem, porém, os Recorrentes que a conjugação das notas constantes de fls. 110 do RESUMO DE INFORMAÇÃO CLÍNICA (constantes do processo clínico, junto como Doc. n.º 1 da contestação da 2.ª Ré) e do RELATÓRIO DE REGISTO DE ENFERMAGEM, constante de fls. 181 do processo clínico (junto como Doc. n.º 1 junto com a contestação da 2.ª Ré), bem como dos artigos 37.º e 38.º da contestação do 3.º Réu e, ainda, do depoimento da testemunha APA (depoimento prestado na sessão que teve lugar no dia 15 de junho de 2021, das 10:29:54 horas às 11:16:12 horas e gravado no sistema h@bilus media studio com o ficheiro n.º 20210615102952_19064208_2871036), impunha decisão diversa do referido ponto de facto dado como não provado.
45. Do depoimento da testemunha APA resulta, de forma inequívoca, que os resultados de exames de diagnóstico solicitados durante a noite, em situação de urgência, como era a do turno de 23 para 24 de abril de 2015, devem ser observados pelo profissional de saúde que os prescrevem com brevidade, após a sua realização.
46. Ora, tendo o 3.º Réu prescrito a realização de análises clínicas ainda na noite de 23 de abril de 2015, na sequência de contacto telefónico da equipa de enfermagem que lhe relatara a instabilidade clínica e hemodinâmica da doente e a dejeção de melenas, não cuidou aquele 3.º Réu de diligenciar pela realização imediata daqueles meios complementares de diagnóstico, nem sequer cuidou de proceder à imediata análise dos seus resultados quando aqueles foram conhecidos às 08:19h do dia 24 de abril de 2015.
47. De resto, conforme resulta da contestação do próprio 3.º Réu, as cirurgias programadas em que interveio começaram apenas pelas 10:02h, pelo que, não se tendo provado qualquer outra circunstância que o impedisse de visitar a doente, mal se compreende que não o tenha feito antes do início das mesmas.
48. Pelo contrário, o 3.º Réu apenas observou a doente à mesma hora que a tinha visitado nos dias precedentes, conforme se pode constatar pelas notas em sede de processo clínico (constantes de fls. 110 do Resumo de informação clínica, junto como Doc. n.º 1 à contestação da 2.ª Ré), segundo as quais: (i) no dia 22 de abril de 2015, o 3.º Réu observa a doente às 11:34h; (ii) no dia 23 de abril de 2015, o 3.º Réu observa a doente às 11:31h; e (iii) no dia 24 de abril de 2015, o 3.º Réu observa a doente às 11:38h.
49. Pelo que deve ser dado como provado o facto elencado no ponto 114 da petição inicial como provado.
50. Discordam também os Recorrentes da interpretação da matéria de facto levada a cabo pelo douto Tribunal a quo, essencialmente com o facto de a decisão sob escrutínio não ter considerado verificados todos os pressupostos de responsabilidade civil relativamente ao dano morte e, em consequência, ter julgado procedente apenas o pedido subsidiário de condenação por perda de chance.
51. Os RR. Dr. PM, Hospital … e Dr. CN são responsáveis pelo incumprimento contratual, ao abrigo do disposto no artigo 762.º e, ainda, ao abrigo do disposto no artigo 483.º do Código Civil, nos termos da melhor doutrina e jurisprudência, que unanimemente admitem o cúmulo de responsabilidade contratual e extracontratual. Por seu turno, a 2.ª Ré é ainda responsável pelos atos dos profissionais ao seu serviço, nos termos do disposto no artigo 800.º do Código Civil. Sendo os referidos RR. Solidariamente responsáveis pela reparação, ao abrigo do disposto no artigo 497.º do Código Civil.
52. Entendem, pois, os Recorrentes que se produziu prova bastante da verificação de todos os pressupostos de responsabilidade civil relativamente ao dano morte de CP, a saber: ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade.
53. Diga-se, a propósito que o resultado visado pela cirurgia realizada à CP no dia 21 de abril de 2015 era a remoção do tumor de que esta padecia, sendo que, na medida em que a doente não veio a falecer dessa causa, esse resultado não está em crise. Ao invés, CP faleceu de doença adquirida durante o procedimento cirúrgico realizado pelo 1.º Réu, enquanto estava ao seu cuidado e, bem assim, ao cuidado dos 2.º e 3.º Réus.
54. Sucedeu, pois, e o mesmo resultou provado da conjugação entre os factos 168 e 169 da matéria provada, que, efetivamente, existiu falha na realização do procedimento cirúrgico, pois quer tenha sido laqueado um vaso inadvertidamente (justificando assim a necrose do intestino e a presença de melenas reiteradamente documentada no processo clínico), quer tenha ocorrido falha na sutura (que tenha deixado extravasar a matéria fecal que se encontrava na cavidade abdominal de CP e que veio a provocar a infeção que a vitimou) – quer num caso, quer no outro – ficou provada a falha na execução do procedimento cirúrgico, por imperícia ou falta de zelo, tanto faz. Prova maior, da parte dos Autores, seria objetivamente impossível e, por tal, haveria de determinar-se a inversão do seu ónus.
55. Por tal, não obstante o atraso grosseiro na realização dos meios de diagnóstico e, por conseguinte, no próprio diagnóstico e na realização da cirurgia corretiva, que justificou – e bem! – a condenação por perda de chance, deveria a sentença condenar os RR. PM e Hospital … no ressarcimento, solidário, da totalidade do dano reclamado pelos AA. por se encontrar estabelecido o nexo de causalidade entre a atuação destes RR. e a morte de CP.
56. Acresce que, conforme tem vindo a ser reconhecido pela jurisprudência (sendo particularmente relevante o Acórdão do Tribunal de 16-12-2015 – Proc. n.º 1490/09.1TAPTM.L1-3), os deveres do cirurgião (responsável pelo doente) não se circunscrevem ao puro ato cirúrgico, mas antes se prolongam no período de pós-operatório.
57. Pelo que, encontrando-se CP internada numa unidade de saúde que aceita a realização de cirurgias como aquela a que foi submetida, e que assegura a vigilância pós-operatória, não podia deixar de se exigir ao RR. CN que tivesse efetuado um acompanhamento pós-operatório mais cuidado.
58. De facto, da factualidade que agora se entende como provada, ressalta evidente a má prática médica por parte do 3.º Réu, Dr. CN, que atuou com diligência inferior à exigível a um cirurgião medianamente diligente, contrariamente ao que resulta da sentença de que ora se recorre.
59. No turno da noite de 23 para 24 de abril de 2015 – que conforme depoimento da testemunha MC se situa entre as 20h ou 22h00 de 23 de abril e as 08:30h de 24 de abril –, o 3.º Réu foi contactado telefonicamente pela Enf.ª MC dando-lhe nota de que a CP se encontrava queixosa, febril e havia tido dejeções de melenas.
60. Segundo depoimento da mesma Enf.ª MC, fê-lo porque entendeu que tal quadro clínico justificava o contacto noturno ao cirurgião responsável pela doente, contacto que, não sendo prática habitual, apenas efetua quando a situação clínica dos doentes assim o exige.
61. Perante tal contacto, realizado pouco antes das 22h de 23 de abril de 2015, o 3.º Réu deu indicações telefónicas para administração de Petidina, tendo, posteriormente, ainda nesse dia (entre as 22h e as 24h), visitado a doente e prescrito a realização de análises clínicas.
62. Posteriormente a essa observação, e conforme registos de enfermagem realizados pelas 04:11h (Enf.ª SF), a CP continuou a manifestar sinais de instabilidade hemodinâmica como sudorese, dor e hipotensão, que se mantinham independentemente da administração de Petidina.
63. É, pois, evidente que, tanto pelas 22horas, como no restante período deste turno, a doente apresentava sintomas típicos de deiscência da anastomose, ou seja: dor, febre, hemorragia e degradação das análises, na medida em que revelava já uma tendência decrescente de leucócitos e tendência crescente de Proteína C Reativa (cfr. fls. 102 do processo clínico, junto como Doc. n.º 1 à contestação da 2.ª Ré).
64. Tal constatação não é sequer negada pela resposta da perícia ao quesito 13, segundo a qual “De acordo com os registos clínicos e de enfermagem do dia 23 de abril de 2015 do processo a que tivemos acesso, não é correta a afirmação de que a doente já apresentava sintomas típicos de deiscência da anastomose”.
65. Isto porque daqueles registos de enfermagem do dia 23 de abril de 2015 a que os peritos tiveram acesso, e no qual fundam a resposta ao referido quesito, não consta a instabilidade hemodinâmica que veio a justificar o contacto telefónico ocorrido ao Dr. CN pelas 22 horas daquele dia, na medida em que a Enf.ª MC apenas procedeu àquele registo pelas 01:06h. De resto, como bem explicou a testemunha no seu depoimento, pode existir um distanciamento entre as horas a que as coisas acontecem e as horas a que são registadas, porque quando estão a administrar medicação ao doente não param para registar.
66. Assim, sendo inequívoco que, pelas 22 horas do dia 23 de abril de 2015, a doente apresentava já sintomas típicos de deiscência, impunha-se ao 3.º Réu, enquanto cirurgião responsável pela doente, que tivesse cuidado de antecipar a realização das análises clínicas prescritas ainda durante a madrugada do dia 24 de abril de 2015.
67. A realização imediata das análises clínicas, que vieram a confirmar agravamento dos parâmetros analíticos, com leucopenia, neutrofilia relativa e PCR de 15, teria permitido antecipar a prescrição da imprescindível TAC, que confirmaria a deiscência da anastomose.
68. Apesar disso, conformou-se o 3.º Réu, cirurgião responsável pela doente naquele período, com a realização das análises apenas na manhã do dia 24 de abril de 2015 e com a disponibilização dos seus resultados apenas pelas 08:19h, isto é, 10 horas e 19 minutos após o contacto efetuado pela Enf.ª MC.
69. Mais, estando os resultados daquelas análises disponíveis pelas 08:19h, e começando as suas cirurgias apenas pelas 10:02h (como resulta da sua própria contestação), o 3.º Réu apenas os observa pelas 11:38h, ou seja, à mesma hora a que fez visita médica nos dias precedentes, não valorando as circunstâncias particulares do quadro clínico da doente.
70. Assim, por não ter assegurado um acompanhamento de pós-operatório atento aos sinais manifestados por doente submetida a recessão anterior do reto, com anastomose, também o 3.º Réu, Dr. CN, deve ser condenado solidariamente com os RR. Dr. PM e Hospital ….
71. Pelo exposto, perante o cumprimento defeituoso dos RR. Dr. PM, Hospital … e Dr. CN na realização do ato cirúrgico e, ainda, no acompanhamento pós-operatório, cabia a estes a produção de prova que deixasse evidente que tal cumprimento defeituoso não se devera a culpa sua. Contudo, não lograram os RR. efetuar tal prova, tendo, de resto, resultado provada a sua culpa, em virtude de uma atuação negligente e do grosseiro atraso na execução de atos que, nas circunstâncias, eram exigíveis a profissionais de saúde que agissem com normal diligência e zelo.
72. É, pois, sobejo que a decisão sob escrutínio deve ser revogada e substituída por outra que, atendendo aos factos que se consideram provados, e nos termos do disposto nos artigos 762.º, 483.º e 800.º do Código Civil, condene os RR. Dr. PM, Hospital … e Dr. CN, a pagar aos AA. a quantia de €270.000,00 (duzentos e setenta mil euro) a título de danos não patrimoniais.
73. Caso assim não se entenda, sempre o 3.º Réu Dr. CN deverá ser condenado a pagar solidariamente com os RR. Dr. PM e Hospital … a quantia que se vier a liquidar pela perda de chance resultante do falecimento de CP.
74. Isto porque, tivesse o 3.º Réu promovido a realização das análises, requisitadas ainda na noite do dia 23 de abril de 2015, durante a madrugada do dia 24 de abril de 2015, tivesse o 3.º Réu analisado os seus resultados também naquela madrugada e, consequentemente, tivesse o 3.º Réu prescrito a realização de TAC mais precocemente e as probabilidades de sobrevida da falecida CP seriam incomparavelmente maiores.
75. Contrariamente, e por força da incúria do 3.º Réu, que não empregou a diligência exigida a um cirurgião médio naquelas circunstâncias, os resultados das análises (às 08:19h do dia 24 de abril de 2015) da falecida CP apenas ficaram disponíveis 10 horas e 19 minutos após a manifestação de sintomas típicos de deiscência da anastomose (manifestados, pelo menos, às 22 horas do dia 23 de abril de 2015).
76. Este atraso na realização das análises clínicas, condicionou a requisição da TAC abdomino-pélvica, imprescindível à confirmação do diagnóstico de deiscência anastomótica, que apenas foi solicitada às 11:48h do dia 24 de abril de 2015, ou seja, 13 horas e 48 minutos após a manifestação de sintomas típicos de deiscência da anastomose por CP e, consequente, contacto telefónico ao 3.º Réu, por parte da Enf.ª MC, ocorridos às 22 horas de 23 de abril de 2015.
77. Embora tardiamente, a TAC foi solicitada pelas 11:48h pelo 3.º Réu, mas apenas realizada entre as 17:15h e as 18:00h. Ora, sendo a TAC um exame imprescindível à confirmação da deiscência da anastomose, e estando CP internada nas instalações da 2.ª Ré, unidade de saúde que assume a realização de cirurgias de resseção anterior do reto com anastomose e o seu acompanhamento pós-cirúrgico imediato, não se pode aceitar esta demora na realização de um exame urgente.
78. Por tudo isso, e por não ter o 1.º Réu, entretanto regressado ao serviço e reassumindo a responsabilidade pela doente, cuidado como devia de apressar a realização daquele meio complementar de diagnóstico, o resultado da TAC, que lamentavelmente viria a confirmar o diagnóstico de deiscência da anastomose, apenas foi conhecido pelas 18:03h, ou seja, 20 horas após a manifestação de sintomas típicos de deiscência (presentes, pelo menos, desde as 22 horas do dia 23 de abril de 2015).
79. Todo este atraso comprometia, e como se veio a demonstrar inviabilizou, a possibilidade de recuperação de CP, que se apresentava cada vez mais prostrada e abatida.
80. Porém, mesmo na posse do resultado (tardio!) da TAC, o 1.º Réu não tratou de solicitar atempadamente bloco operatório para a realização de cirurgia emergente, sendo certo que, se o tivesse feito, a sala de bloco ter-lhe-ia sido imediatamente disponibilizada, na medida em que, conforme resultou provado, existiam salas e equipas disponíveis para a realização da intervenção.
81. Assim, e por força da atuação negligente dos 1.º, 2.º e 3.º Réus, a falecida CP apenas foi submetida a reintervenção cirúrgica pelas 20h30m, ou seja, 22h30m após a manifestação dos sintomas típicos da anastomose, o que lamentavelmente se veio a verificar ser tarde demais.
82. Pelo que, também sempre por este motivo, a decisão sob escrutínio deve ser revogada e substituída por outra que, atendendo aos factos que se consideram provados, condene os 3.º Réu, Dr. CN, solidariamente com os RR. PM e Hospital …, S.A., a pagar a quantia que se vier a liquidar, pela perda de chance resultante do falecimento de CP.
83. E, em consequência, condene as RR. “A…, Companhia de Seguros, S.A.” e “F…, Companhia de Seguros, S.A.”, a primeira solidariamente com os RR. PM e CN e a segunda solidariamente com a R. Hospital …, S.A., a pagar a quantia que se vier a liquidar quanto àqueles Réus.
Pede assim que seja dado provimento ao recurso, revogando a sentença e substituindo-a por outra que:
a) Condene os R.R., Dr. PM, Hospital … e Dr. CN, a pagar aos A.A. a quantia de €270.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.
b) Caso assim não se entenda, condene os 3.º R., Dr. CN, solidariamente com os R.R., PM e Hospital …, S.A., a pagar a quantia que se vier a liquidar, pela perda de chance resultante do falecimento de CP.
c) Em todo o caso, condene as R.R. A…, Companhia de Seguros, S.A. e F…, Companhia de Seguros, S.A.., a primeira solidariamente com os R.R., PM e CN, e a segunda solidariamente com a R., Hospital …, S.A., a pagar a quantia em que aqueles R.R. venham a ser condenados.
Por sua vez, no final das suas alegações de recurso, o 1.º R. apresentou as seguintes conclusões:
I. A matéria de facto deve ser alterada, em face da prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com a documentação existente.
II. Concretamente devem ser eliminados os nºs 16, 96, 97 e 172, dos factos provados e 22 dos factos não provados relativos à contestação do Dr. PM.
III. a paciente foi informada do diagnóstico – adenocarcinoma, isto é, um tumor maligno nos intestinos. Foi esclarecida sobre o objetivo da cirurgia – retirar o tumor, as suas vantagens, as perspetivas futuras, nomeadamente em termos de tratamentos de que viria a necessitar (como referiram as testemunhas) e, obviamente, os riscos inerentes, com os quais a doente se conformou.
IV. E conformou-se como se conformaria qualquer pessoa com um tumor diagnosticado, com uma hipótese de sobrevida devastadora caso não fosse tratado, e cita-se a testemunha Dr. JA, médico cirurgião que foi o Ajudante na primeira cirurgia realizada, e com vasta experiência nesta área, que afirmou taxativamente que “um diagnóstico desses é catastrófico e se não se fizer nada a sobrevida vai à volta dos 25 meses”, sublinhou ainda que com a cirurgia “não estamos a falar em curá-la, estamos a falar na hipótese de estar viva 5 anos ou 10 anos” e que “Se a senhora não fosse operada a sobrevida seria muito curta” (depoimento prestado no dia 15 de junho de 2021, gravado no sistema Habilus). Era, por isso, uma situação complicada, e de vida ou morte, ao contrário do que o Autor e mesmo algumas testemunhas tentaram fazer crer.
V. Deve ser aditado o facto 80-A - A doente não tolerou a gastrografina, contraste necessário à realização do TAC, o que retardou este exame, tendo sido necessário administrar contraste endovenoso e contraste rectal.
VI. Releva ainda considerar o documento que a falecida leu e assinou, intitulado “Consentimento Informado” (Fls. 772 dos autos).
VII. Para uma correta aferição deste documento cabe recordar as declarações feitas pelo 1.ª Autor, agora recorrido, no dia 14 de janeiro de 2021 (depoimento de parte gravado no sistema Habilus ficheiro n.º 20210114100304_19064208_2871036).
VIII. Assinala-se desde logo que o depoente não se recordava deste documento, referindo nunca o ter visto, justificando-se com o facto de se encontrar mais afastado, e cita-se “não estava em cima, estava pelo lado”, e de que “estava lá a CP a responder a essas coisas”.
IX. Não obstante, reconheceu a assinatura da sua esposa.
X. Quanto à informação que foi prestada, o A. acabou por dizer “… da explicação técnica não retenho nada, não retive nada…”.
XI. Ou seja, o 1.º A. não nega que ela tenha sido dada, antes refere que não reteve nada, o que é bem diferente de afirmar que nenhuma explicação foi prestada.
XII. Ou seja, a conversa sobre a cirurgia foi, efetivamente, tida e mantida entre o recorrente e a doente, que conscientemente assinou o documento que lhe foi entregue pelo médico.
XIII. CP era uma pessoa diferenciada e era a principal interessada na recuperação da sua saúde.
XIV. Já antes havia estado com o médico que havia feito o diagnóstico da existência de um tumor nos intestinos – Dr. PR que, como o 1.º Recorrido confirmou nas declarações que prestou no dia 27 de outubro de 2021 (declarações gravadas das 12:17:52h às 13:13:00 – ficheiro n.º 20211027121726_19064208_2871036) os havia informado de que o tratamento que se impunha era cirúrgico. Aliás de acordo com as expressões utilizadas pelo 1.ª Recorrido, tratava-se de “…corta, cola e une…”.
XV. De resto, dos diversos depoimentos de familiares e amigos de CP resultou que esta nunca demonstrou ou verbalizou ter dúvidas ou questões sobre o procedimento que iria realizar, ou que estivesse desconfortável com a conversa tida com o médico por não ter ficado devida ou suficientemente esclarecida.
XVI. Mais, mesmo tendo o contacto telefónico direto do 1.º Réu, durante os 10 dias que mediaram até ao momento da cirurgia, não sentiu necessidade de contactar o médico para pedir qualquer esclarecimento adicional.
XVII. Assim, da conjugação destes factos só se pode concluir que a doente estava suficientemente informada e anuiu conscientemente na realização do procedimento e na assinatura do documento correspondente.
XVIII. Concretamente, e como resulta do seu teor, declarou que foi informada sobre o diagnóstico clínico e adequação da cirurgia, foram explicadas as complicações, os riscos e as consequências mais previsíveis e as alternativas existentes. Declarou, por fim, estar perfeitamente esclarecida e aceitar a realização do procedimento de plena e livre vontade.
XIX. A circunstância do 1.º Autor não ter retido as informações prestadas à sua mulher, é coisa diferente de afirmar que as mesmas não foram prestadas.
XX. É certo que o Recorrente declarou não se recordar de ter falado no risco de morte, mas admite que não o tenha feito porque, como explicou, ele próprio não prefigurava tal risco como previsível na situação em concreto.
XXI. Ou seja, seria um evento possível – em todas as cirurgias o é – mas de verificação remota.
XXII. Em face destes elementos deve ser dado como parcialmente provado o facto constante do artigo 22.º da contestação do R. PM, retirando-se este, consequentemente do elenco dos factos não provados.
XXIII. Assim, deve ser reformulado o facto 133 - Após a prestação dos esclarecimentos necessários para a compreensão da doente, solicitou que fosse assinado o documento de Consentimento Informado.
XXIV. Também o facto 135 carece de modificação no sentido de nele constar que O 1.º R. conversou com CP na presença do marido, tendo esta consentido na realização da intervenção após as informações sobre a cirurgia proposta e os riscos mais comuns inerentes à mesma que aquele lhe prestou.
XXV. Não resulta da factualidade considerada provada pelo Tribunal a quo qualquer facto que lhe permita sustentar que a falecida CP teria a possibilidade (a chance) de vencer ou não o adenocarcinoma que lhe foi diagnosticado e a deiscência da anastomose que surgiu na sequência da primeira cirurgia.
XXVI. No domínio da perda de chance avulta, desde logo, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2022, proferido no processo n.º 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A, e publicado no Diário da República, I Série, n.º 18, de 26 de Janeiro, o qual uniformizou jurisprudência no sentido de que: O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade;
XXVII. Os AA., enquanto lesados, foram incapazes de provar a consistência e seriedade da chance de sobrevivência da de cuiús, ónus que obviamente lhes pertencia;
XXVIII. A Sentença em crise nos presentes autos parte do princípio de que haveria probabilidade (chance) apesar de nela mesma se afirmar que essa probabilidade não está demonstrada.
XXIX. Com efeito, era aos Autores que cabia demonstrar a chance perdida, sendo que esta só se demonstra com a alta – “séria, real e credível” – probabilidade, elementos de que o Tribunal não dispõe.
XXX. Por conseguinte, impunha-se que o litígio fosse decidido contra a parte onerada com o ónus da prova, ao contrário do que fez, erro que certamente agora será corrigido.
Pede assim que seja concedido provimento ao recurso, alterando-se a sentença em conformidade com o preconizado.
A interveniente F…, que também recorreu, apresentou as seguintes conclusões:
A. Não resulta da factualidade considerada provada pelo Tribunal a quo qualquer facto que lhe permita sustentar que a falecida CP teria a possibilidade (a chance) de vencer ou não o adenocarcinoma que lhe foi diagnosticado e a deiscência da anastomose que surgiu na sequência da primeira cirurgia.
B. No tocante à suposta deficiente informação prestada a CP sobre as cirurgias a que foi sujeita, não se verificou qualquer dano consistente na perda da oportunidade de decidir correr o risco de lesão na medida em que o dever de informação foi cabalmente prestado.
C. Os factos provados 12. a 15., 36., 37. e 130. a 137. demonstram que, relativamente à primeira cirurgia, foi cumprido o dever de informação que impedia sobre o 1.º Réu, Dr. PM.
D. O facto de o consentimento informado constante a fls. 772 dos autos tratar-se de um documento pré-elaborado não significa ou indicia que o ali expresso não tenha sido conversado, explicado e informado, pois não só não é credível que a falecida CP tivesse assinado o mesmo “de cruz”, como o Primeiro Autor, aqui Apelado, confirmou, tal como resulta da Sentença, que, entre outros, “(…) o R. PM explicou o que iria fazer na operação, designadamente, cortar o intestino para remover a parte afetada e voltar a juntar os mesmos).” e que “perante a pergunta do tribunal se fosse dito que existia risco de morte com a operação, de que se teve que insistir para obter uma resposta direta, acabou por reconhecer, embora de forma não perentória, que a operação seria mesmo efetuada”.
E. O facto provado 94. demonstra que, relativamente à segunda cirurgia, foi igualmente cumprido o dever de informação que impedia sobre o 1.º Réu, Dr. PM – é impossível que a falecida CP não tenha ficado ciente da sua situação clínica e da solução adiantada (nova cirurgia), à qual não manifestou qualquer oposição
F. Importa ter presente que o facto provado 94 tem de ser analisado no contexto em que surgiu a necessidade da segunda cirurgia, contexto este que, aliás, é reconhecido pelo Tribunal a quo: tal intervenção era uma questão emergente de vida ou de morte.
G. Mas mesmo que assim não fosse, estando-se perante uma questão de vida ou morte, não se concebe como pode ser afirmado que foi coartado o direito de CP decidir correr o risco da lesão - é o próprio Tribunal a quo que considera que “Estava em risco sério a vida de CP que se agravava com cada minuto que passava. Nestes casos, não é normalmente prestada a informação para o consentimento, atenta a urgência e o facto que a pessoa nestas situações não está normalmente em condições de o prestar, (…).”
H. Em todo o caso, no cenário hipotético de a falecida CP, ao ser informada dos riscos associados à realização da segunda cirurgia, recusar submeter-se à mesma, o desfecho era, inequívoca e infelizmente, o falecimento da mesma, pelo que não existe qualquer perda de chance.
I. O facto provado 16. deve ser eliminado da factualidade provada em face do depoimento de parte prestado pelo Primeiro Autor na sessão de julgamento de 14.01.2021 (das 00:00:00h às 00:42:41h, gravado no Sistema Habilus - ficheiro n.º 20210114100304_19064208_2871036), bem como nas declarações de parte prestadas na sessão de julgamento de 27.10.2021 (das 12:17:52h às 13:13:00h – ficheiro n.º 20211027121726_19064208_2871036), analisado de acordo com as regras da experiência e da normalidade.
J. O facto provado 96. deve ser eliminado da factualidade provada, por contradição com a factualidade provada no ponto 95.
K. Relativamente ao imputado atraso na realização da TAC abdomino-pélvica, solicitada pelas 11h38 mas apenas realizado entre as 17h15 e 18h00, o Tribunal a quo faz uma errada análise da prova produzida ao desvalorizar e desatender o facto provado 80.
L. Do registo das Notas de Enfermagem constante do Resumo da Informação Clínica de fls. 547, confirmado pelo confirmado pelo depoimento da Enfermeira APA (prestado na sessão de julgamento de dia 15.06.2021, das 10:29:53h às 11:18:12h, gravado no Sistema Habilus - ficheiro n.º 2021061510295_19064208_2871036), resulta que às 14h42 do dia 24-04-2015 a falecida CP “Não tolerou gastrografina.”, produto necessário para o contraste radiológico necessário à realização da TAC.
M. Assim, impunha-se concluir que existiu um motivo objetivo, alheio à vontade dos Réus, que justifica que a TAC solicitada não tenha sido realizada de imediato, pelo que, não poderia o Tribunal a quo considerar, como o fez, que CP perdeu a chance de se realizar a segunda operação de forma mais célere, o que possibilitaria que debelação da sépsis tivesse maiores possibilidades de sucesso.
N. A responsabilização por perda de chance implica a existência de um comportamento censurável, que privou o lesado de determinadas possibilidades de obter um benefício/não sofrer um prejuízo e, nessa sequência, essa perda poderá ser indemnizada.
O. É, assim, necessário que seja confirmada a probabilidade de o lesado obter um benefício/não sofrer um prejuízo, o que significa que a “probabilidade” é intrínseca à responsabilização por perda de chance.
P. O Tribunal a quo remete para liquidação em execução de sentença a fixação da “probabilidade” perdida e do consequente dano daí decorrente, o que é, por si só, contraditório, na medida em que a fixação da “probabilidade” perdida é um requisito para a decisão proferida – não tendo sido apurada a “probabilidade”, não há perda de chance.
Q. Acresce que, a perda de chance no âmbito da responsabilidade médica deve analisada e aplicada com prudência, na medida em que a circunstância de estarmos perante uma obrigação de meios, a que está associado um elevado grau de imprevisibilidade decorrente de fatores não controláveis, designadamente dos riscos decorrentes da situação concreta de cada paciente, não é compatível com uma solução que responsabiliza o agente pela criação de um risco.
R. A intervenção dos Réus, em concreto, do 1.º Réu, Dr. PM, não visava a cura de CP mas, isso sim, o aumento da sua sobrevida, face ao diagnóstico catastrófico de um adenocarcinoma bem diferenciado na porção distal do intestino, situação de especial gravidade que inclusivamente tinha provocado que a mesma tivesse perdido 3kgs no espaço de uma semana e que impunha uma premente e urgente intervenção cirúrgica.
S. Estava-se, assim, perante um caso de vida ou morte – nas palavras da testemunha JA, o diagnóstico em causa obrigava a uma intervenção cirúrgica de modo a garantir a sobrevivência de CP pois, se nada fosse feito, a mesma teria uma esperança de vida de cerca de 2 anos.
T. Perante este cenário, i.e., perante a situação clínica de CP antes da cirurgia, e sabendo-se que a atividade médica é uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia diagnosticada, mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas, não se pode assumir, após consumado o dano, que a mera existência, em abstrato, de um outro comportamento ou atitude, configura a lesão à chance de, neste caso, sobreviver.
U. Assim, para que o Tribunal a quo pudesse decidir como decidiu, impunha-se que da factualidade provada resultasse que CP teria a possibilidade (a chance) de vencer ou não o adenocarcinoma que lhe foi diagnosticado e a deiscência da anastomose que surgiu na sequência da primeira cirurgia, não fosse a alegada deficiente informação prestada e os alegados atraso injustificados na realização da TAC e da segunda cirurgia.
V. Pois a responsabilização ao abrigo do instituto da perda de chance implica necessariamente, por um lado, a prova de uma chance séria e real de obter um resultado favorável ou evitar um resultado desfavorável e, por outro, a prova do nexo causal entre o facto verificado e a perda de possibilidade de se obter o resultado último que a vítima esperava alcançar.
W. Ora, não só não ficaram provados factos que permitam sustentar a sobrevida de CP, como ficou demonstrada factualidade - veja-se, em especial, os factos provados 10., 11., 35., 36., 88., 104. a 106., 168., 169., 171., 177. e 188. – que afasta a existência de tal chance.
X. Até porque, ao ser reconhecido pelo Tribunal a quo que “(…)não se demonstrou que o falecimento de CP se tenha devido à existência de erro médico (violação da legis artis) nas intervenções cirúrgicas ou tratamentos a que CP foi submetida. Efetivamente, conforme resulta dos factos provados e das conclusões da perícia médica efetuada, verifica-se que as intervenções cirúrgicas foram as adequadas e foram realizadas de acordo com as melhores práticas médicas. (…) Ter-se-á assim que entender que a deiscência da anastomose ocorrida se tratou de uma consequência dos imponderáveis riscos próprios da intervenção, que pode ocorrer, não obstante terem sido adotados todos os procedimentos técnicos que a ciência médica atualmente conhece para evitar tais consequências (quesito 5 da perícia).”,
Y. Não pode aceitar-se que a atuação do 1.º Réu, Dr. PM, lesou as oportunidades de CP obter um resultado diferente daquele que, infelizmente, se verificou.
Z. Assim, ao decidir como decidiu, mal andou o Tribunal a quo ao considerar verificada a perda de chance resultante no falecimento de CP, devendo, por isso, a sentença ora em crise ser revogada e substituída por outra que absolva os Réus PM e Hospital …, S.A., bem como a ora Apelada e a A… – Companhia de Seguros, S.A. do pedido.
Pede assim a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que altere a decisão da matéria de factos nos termos requeridos e julgue a ação improcedente, por inexistência de perda de chance.
Finalmente, a interveniente Ageas, que também recorreu da sentença, apresentou as seguintes conclusões:
 I. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Juízo Central Cível de Lisboa, na parte em que condenou a R. nos presentes autos a indemnizar solidariamente com o R. PM os AA. LL, BL e DL, a quantia que se vier a liquidar, pela perda de chance resultante no falecimento de CP, dentro dos limites do capital seguro e tendo em conta as respetivas franquias contratuais;
II. Entende a ora Recorrente que a Sentença a quo não poderá manter-se, pois parte de uma incorreta decisão de facto, culminando – aliás independentemente da impugnação da matéria de direito - numa errónea aplicação do Direito à situação sub judice;
III. A ora Recorrente dá por integralmente reproduzida, com a devida vénia à Ilustre Colega signatária, a impugnação da matéria de facto constante das Doutas Alegações de recurso apresentadas pelo Réu PM;
IV. Essa impugnação acentua as razões da discordância da Interveniente com a Decisão sob recurso mas esta é independente dessa impugnação, na medida em que, mesmo mantendo-se a matéria de facto, a solução jurídica a dar ao pleito é diversa, como se procurará demonstrar;
V. O R. PM, não praticou, no exercício da sua profissão, qualquer ação ou omissão suscetível de o responsabilizar por qualquer pretensa “perda de chance”;
VI. É necessário ter como pano de fundo do presente recurso que na Sentença se entendeu que o Dr. PM não praticou qualquer ato ilícito durante as cirurgias a que procedeu. Pode, de resto, ler-se na Sentença: “Mais concretamente, constata-se que não se demonstrou que o falecimento de CP se tenha devido à existência de erro médico (violação da legis artis) nas intervenções cirúrgicas ou tratamentos a que CP foi submetida.”
VII. A sentença ora em crise afirma que o Réu Dr. PM omitiu obrigações de informação (pressuposto da obtenção de consentimento informado por parte da paciente) e que essa pretensa falta de consentimento informado por parte da de cuius era meio apto a provocar a perda de chance, afirmação que, no entendimento da Interveniente, não corresponde à realidade provada nos autos e à adequada distribuição das tarefas – e deveres – inerentes à situação dos autos;
VIII. Quanto à primeira cirurgia, é preciso ter em atenção que a informação foi prestada em consulta, como de resto reconheceu o Autor;
IX. Acresce que o formulário subscrito pela de cuius no qual esta atesta que foi informada das implicações, riscos e consequências mais frequentes e previsíveis do procedimento cirúrgico que realizou, constitui procedimento normal, complementar da informação prestada em consulta e a que os profissionais de saúde, dada o elevado número de pacientes com que lidam, procedem, por motivos essencialmente probatórios (cfr. resposta ao quesito 3 do relatório pericial), mas que faz prova plena das declarações atribuídas ao seu autor, nos termos do número 1 do artigo 376.º do Código Civil, atenta a não impugnação da sua assinatura pelos AA., nos termos do número 1 do artigo 374.º do Código Civil;
X. Todavia, mesmo que se admita que o facto do R. PM, por não ter deixado clara a possibilidade da morte como consequência da primeira cirurgia consubstancia uma situação de cumprimento defeituoso do dever de informação, tal omissão não reveste a dignidade de facto constitutivo de obrigação de indemnizar;
XI. No caso concreto, e quanto à primeira das cirurgias, revelam, sobretudo, os pontos 133 a 136 da matéria de facto dada como provada e que revelam que o contexto médico em causa era um contexto de elevada preocupação com o bem-estar da paciente, cujo estado de saúde estava ensombrado com o risco de morte;
XII. Essa circunstância torna particularmente descabida, no caso concreto, a exigência específica de referência ao risco morte que, por outro lado, resulta liminarmente do bom senso: se a operação consistia em “cortar o intestino para remover a parte afetada e voltar a juntar os mesmos” (ponto 136 da matéria dada como provada) é apodítico considerar que havia risco de “descolagem” e que esse risco implica o risco de morte;
XIII. Aliás, também, resulta do depoimento de parte - que nessa parte terá de ter-se como confessório, porque afirmando facto desfavorável ao depoente – que “estando a esposa em risco de vida, nunca iriam recusar a operação pelos eventuais riscos da mesma”;
XIV. Entende-se, portanto, que do contexto pré e cirúrgico se retira, inequivocamente, a inutilidade da referência expressa ao risco de morte, pois “estando a esposa em risco de vida, nunca iriam recusar a operação pelos eventuais riscos da mesma.”;
XV. Será, pois, preciso retirar deste contexto as devidas consequências jurídicas, para mais num caso que, de acordo com a Sentença em crise, se subsume ao instituto da responsabilidade civil por perda de chance;
XVI. Na realidade, mesmo aceitando – a benefício de raciocínio e sem conceder - que a informação prestada foi deficiente, sempre se teria de ter em conta que, de acordo com o próprio depoimento de parte, a informação adicional seria inútil, i.e., não teria tido o condão de levar a Paciente a recusar a intervenção cirúrgica que para si era vital;
XVII. Isso acarreta, na conceção da interveniente, uma só consequência jurídica: se o pretenso comportamento devido não teria implicado um comportamento diferente por parte da Paciente, então não pode afirmar-se que a omissão daquele comportamento determinou uma perda de oportunidade, porque esta, na realidade, não existia;
XVIII. Inexistiu, in casu, qualquer ligação entre pretenso cumprimento defeituoso do dever de informar o paciente e o trágico desfecho que afligiu a de cuius;
XIX. Necessário seria que entre o facto e o dano – seja a morte tout court ou uma mera perda de chance de sobreviver – exista um vínculo causal, pois que o primeiro pressuposto da verificação do nexo de causalidade é a conditio sine qua non;
XX. Gizando-se agora a sequência factual que teria ocorrido caso a de cuius não tivesse sido operada, certo é que a falta de intervenção cirúrgica teria conduzido à morte da de cuius;
XXI. Devendo sublinhar-se que a prova pericial carreada para os autos fez nota da necessidade clínica e da adequação técnico-científica do procedimento cirúrgico realizado (cfr. Respostas aos quesitos 1 e 2 do Relatório Pericial);
XXII. Assim, falta, desde logo e do presente modo, a conditio sine qua non sempre necessária para imputar um dano para fins indemnizatórios;
XXIII. Mais, mesmo que o pressuposto supra se tivesse por verificado, certo seria que qualquer “causalidade” estabelecida entre a morte ou a perda de chance de sobreviver e o cumprimento defeituoso do dever de informar não seria adequada nem tampouco consentânea com a teleologia da norma violada;
XXIV. Não se consegue, com efeito, descortinar de que modo a omissão de menção ao risco de morte numa cirurgia que, como visto, era necessária à sobrevivência da de cuius seja um meio apto a provocar os danos que a douta sentença a quo tomou por verificados;
XXV. Quanto à segunda cirurgia, são relevantes os pontos 73 a 99 e 210 da matéria de facto, que se dão por integralmente reproduzidos;
XXVI. Ao referir que “Quanto à segunda intervenção cirúrgica, provou-se que nenhuma informação foi prestada.”;
XXVII. Com efeito, o Tribunal procede a uma análise eminentemente formalista da situação que desatende ao contexto concreto, o único relevante para determinar a existência e o grau de violação das pretensas obrigações do Réu;
XXVIII. Dá-se, pois, por integralmente reproduzido tudo o que se afirmou supra sobre o contexto da primeira cirurgia, mas sublinhando-se que, nesta cirurgia em particular, não há dúvidas para ninguém de que a operação era life saving;
XXIX. Esse contexto é, uma vez mais, absolutamente determinante para apurar a existência de violação de deveres por parte do Réu que sejam de molde a consubstanciar uma condenação por perda de chance;
XXX. No contexto de uma cirurgia life saving era absolutamente inútil alertar (mais) para o risco de morte, sendo de presumir que a Autora (até pelas suas caraterísticas pessoais) aceitaria (continuar, mas reduzir) o risco de morte através da segunda cirurgia, certa de que, sem ela, morreria;
XXXI. O Tribunal parte do princípio de que a pretensa omissão de informação foi determinante da opção da paciente, quando é claro que essa opção foi tomada perante o risco de morte que já corria e não perante o risco em que a segunda cirurgia a colocaria;
XXXII. Não já, portanto, nenhuma razão para considerar que a pretensa omissão informativa tenha sido causal fosse do que fosse, pois, a consequência da opção da paciente de recusar a cirurgia seria exatamente a mesma da verificada: a morte;
XXXIII. A chance relevante para uma pretensa condenação por violação dos deveres de informação médicas que são sinalagma do consentimento informado é a chance de recusar a cirurgia, mas, no caso concreto esta recusa conduziria, inevitavelmente, ao mesmo desfecho;
XXXIV. Deve ser considerado, assim, que na realidade contextual aplicável, não existia verdadeira chance de evitar o resultado danoso, nem ela era conferida por uma prestação de informação mais completa;
XXXV. O âmbito da omissão que seria pretensamente imputável ao R. PM - que foi célere na atuação … que dele dependia, demonstrando, assim, que procurou seriamente evitar o resultado trágico entretanto verificado - é francamente inferior ao que foi tido em consideração pela douta sentença a quo;
XXXVI. No domínio da perda de chance avulta, desde logo, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2022, proferido no processo n.º 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A, e publicado no Diário da República, I Série, n.º 18, de 26 de Janeiro, o qual uniformizou jurisprudência no sentido de que: O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade;
XXXVII. Os AA., enquanto lesados, foram incapazes de provar a consistência e seriedade da chance de sobrevivência da de cuiús, ónus que obviamente lhes pertencia;
XXXVIII. A Sentença em crise nos presentes autos parte do princípio de que haveria probabilidade (chance) apesar de nela mesma se afirmar que essa probabilidade não está demonstrada. E esse segmento do decisório bem ilustra, na opinião da Interveniente, que a Sentença em crise aplica erradamente o Direito;
XXXIX. Com efeito, se:
i) era aos Autores que cabia demonstrar a chance perdida,
ii) esta só se demonstra com a alta – “séria, real e credível” – probabilidade e
iii) se o Tribunal não dispõe destes elementos,
XL. Então deveria ter resolvido o litígio contra a parte onerada com o ónus da prova, ao contrário do que fez;
XLI. Ao decidir assim, o Tribunal violou o disposto nos artigos 342º, 343º, 562º e 563º, todos do Código Civil.
Pede assim que seja concedido provimento ao recurso, alterando-se a sentença em conformidade com o preconizado.
O 1.º R. respondeu ao recurso de apelação apresentado pelos A.A., sobrelevando das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
I. Pretendem os AA./Recorrentes que dos factos provados 168 e 169 da sentença sob recurso decorre uma violação das legis artis por parte do ora contra-alegante, mas sem razão.
II. De tais factos decorre linearmente que houve uma deiscência da sutura, cuja abertura pode ter origem em diversas causas – tensão sobre a anastomose pelo facto de o cólon a montante não ter sido convenientemente mobilizado, defeito da sutura mecânica, hemorragia ou infeção.
III. A tensão sobre a anastomose não se verificou na medida em que ficou demonstrado que o 1.º R., ora recorrido, se certificou que aquela não se encontrava sob tensão, tal como uma atuação diligente impõe.
IV. Assim, a causa pode ter sido uma das outras que foram indicadas ou, ainda, outra qualquer não identificada, que não têm conexão com falta de zelo ou imperícia, como de resto ressalta do facto provado 171, do qual resulta que a deiscência é um risco próprio e descrito no tipo de intervenção a que CP foi sujeita, que pode ocorrer mesmo após a confirmação da estanquicidade da anastomose.
V. Significa isto que os AA. não lograram demonstrar que a deiscência da anastomose teve como causa uma qualquer violação das leges artis por parte do aqui Recorrido, seja imperícia ou falta de diligência.
VI. E cabia-lhes fazer essa prova, sem que tal consubstancie uma inversão do ónus da prova, como os recorrentes pretendem.
VII. Os elementos constitutivos da responsabilidade civil são os mesmos, provenha ela de um facto ilícito ou de um contrato, a saber: (i) a existência de um facto objetivo (ação ou omissão) controlável pela vontade do homem; (ii) a sua ilicitude; (iii) a culpa; (iv) o dano/prejuízo e (v) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
VIII. Assim, a responsabilidade contratual distingue-se da responsabilidade extracontratual, sobretudo, pela natureza do facto ilícito que, naquela constitui a violação de uma obrigação, e pelas regras de distribuição do ónus da prova já que na responsabilidade contratual funciona o princípio da inversão do ónus da prova (em face da presunção de culpa a que alude o artigo 799.º do Código Civil), segundo o qual incumbe ao devedor a prova de que agiu sem culpa no incumprimento ou no cumprimento defeituoso da obrigação (artigo 799.º, nº. 1 do Código Civil), enquanto que na responsabilidade aquiliana cabe ao lesado/credor a alegação e prova da culpa do lesante (artigo 487.º, n.º 1 do Código Civil).
IX. Sucede que os factos que os AA. invocam como estando juridicamente mal-enquadrados (168 e 169 do elenco dos factos provados) não são aptos a comprovar nenhum daqueles elementos, antes explicitam as causas possíveis para a ocorrência da deiscência da anastomose, afastando precisamente aquela que poderia, em tese, ser devida a um comportamento inadequado do recorrido.
X. Ou seja, os AA. não lograram fazer a prova que lhes cabia, como de resto a sentença afirma a pág. 43.
XI. Assim e nesta parte deve a sentença manter-se, indeferindo-se o recurso sob resposta.
XII. Os AA., nas suas alegações, referem que o ora recorrido não diligenciou no sentido de apressar a realização da TAC, cujo resultado apenas foi conhecido pelas 18:03h. E continuam dizendo que não tratou de solicitar atempadamente bloco operatório para a realização de cirurgia emergente, a qual lhe seria disponibilizada.
XIII. Da matéria de facto dada como provada temos:
80. E ainda, que “vai fazer Tac abd e pélvico às 16h. Não tolerou gastrografina. Imagiologia e Dr. PM informados”.
81. Embora a indicação de que a TAC seria realizada às 16h00, apenas pelas 17h15 a falecida foi encaminhada para realização do exame, conforme anotação da Enf.ª LB, feita às 18h03.
XIV. Ora a gastrografina é o contraste necessário à realização da TAC, que é administrado por via oral.
XV. Resulta do registo de enfermagem transcrito no facto 80 que CP não tolerou a gastrografina, sendo este o contraste necessário à realização da TAC, esta intolerância à gastrografina levou a um retardamento na realização do exame imagiológico, já que tal como se lê do registo, a mesma foi comunicada à Imagiologia e ao ora recorrido.
XVI. Por outro lado, não houve qualquer falta de diligência por parte do recorrido no sentido de apressar a realização da TAC.
XVII. Do mesmo modo também não houve nenhum atraso na marcação de sala do bloco operatório, pois que ficou demonstrado que a gestão do bloco operatório não lhe incumbia e ficou também provado que, por registo de enfermagem no processo clínico, o recorrido informou a doente que seria operada pelas 23h.
XVIII. Donde, por volta das 18h o ora alegante já havia contactado o bloco operatório, sendo tal incompatível com a afirmação de que só o fez às 20h.
XIX. Certo é que não estão reunidos os requisitos para que se mantenha a condenação do recorrido pela perda de chance.
XX. Conforme refere Rute Teixeira Pedro, no artigo publicado no e-book intitulado “Novos Olhares sobre a Responsabilidade Civil” (páginas 183 e seguintes), publicado pelo CEJ em 2018 e disponível na respetiva página da internet: (…) Cumpre, desde já, sublinhar que, para que o dano da perda de chance possa relevar para efeitos ressarcitórios, é necessário que, por um lado, a pessoa que se apresenta como lesado demonstre que era detentora de reais chances de alcançar o resultado final pretendido e, por outro lado, que as mesmas se perderam por causa do ato daquele que entende dever ser responsabilizado
XXI. Não resulta da factualidade considerada provada pelo Tribunal a quo qualquer facto que lhe permita sustentar que a falecida CP teria a possibilidade (a chance) de vencer ou não o adenocarcinoma que lhe foi diagnosticado e a deiscência da anastomose que surgiu na sequência da primeira cirurgia.
XXII. No domínio da perda de chance avulta, ainda, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2022, proferido no processo n.º 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A, e publicado no Diário da República, I Série, n.º 18, de 26 de Janeiro, o qual uniformizou jurisprudência no sentido de que: O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade.
XXIII. Não obstante se tratar de Acórdão relativo à perda de chance processual, é aplicável à presente situação, com as devidas adaptações.
XXIV. Assim, temos que os AA. foram incapazes de provar a consistência e seriedade da chance de sobrevivência de CP, sendo que não há dúvida que tal ónus impendia sobre si.
XXV. Recorde-se que, como diz Rute Teixeira Pedro, “O reconhecimento do direito à indemnização pelo dano assim autonomizado pressupõe a reunião de um conjunto de pressupostos que impedirão um excessivo alargamento da tutela reparatória que a figura propicia. Assim, é, como vimos, indispensável a existência de uma chance, quid cuja perda será ressarcida. Acresce que, para que o seu desaparecimento mereça reparação, necessário se torna que essa chance se revele séria, consistente, pessoal e merecedora de tutela jurídica, o que só, à luz do caso particular, poderá ser averiguado. Para que um tal dano seja ressarcido deverão, também, estar verificados os demais requisitos de que depende o nascimento de uma obrigação de indemnizar.”
XXVI. A sentença em crise parte do princípio de que haveria probabilidade (chance) apesar de nela mesma se afirmar que essa probabilidade não está demonstrada.
XXVII. Era aos Autores que cabia demonstrar a chance perdida, sendo que esta só se demonstra com a alta – “séria, real e credível” – probabilidade, elementos de que o Tribunal não dispõe.
XXVIII. Por conseguinte, impõe-se que o presente recurso seja indeferido, já que se impõe que o litígio seja decidido contra a parte onerada com o ónus da prova, ao contrário do que fez, erro que certamente agora será corrigido.
Pede assim que seja indeferido o recurso dos A.A., modificando-se a sentença no sentido da absolvição do Recorrido.
O 2.º R., Hospital …, também respondeu ao recurso dos A.A. e, mesmo não apresentando conclusões, pugnou pela improcedência desse recurso.
O 3.º R., na sua resposta ao recurso dos A.A. apresentou as seguintes conclusões:
I. No que respeita à matéria de facto o recorrido perfilha a posição defendida pelo recorrido CUF Descobertas, reafirmando-se que nenhuma razão assiste aos recorrentes.
II. Na realidade, poderão aceitar-se pequenos acertos quanto a alguns pormenores, como sejam as horas, mas a verdade é que tais modificações em nada alteram a decisão tomada.
III. Decorre clara e indubitavelmente dos diários clínicos e de enfermagem que o 3.º Réu observou a doente nos dias 22, 23 e 24 de abril, ou seja, em todos os dias que se seguiram à cirurgia.
IV. Até ao final do dia 23.04.2015, a doente manteve-se sem queixas significativas e hemodinamicamente estável, como registou o ora Recorrido pelas 11:31h (página 100 do Doc.1 da contestação da 2.º Ré) e como decorre dos registos de enfermagem desse dia (página 112 do mesmo documento).
V. Só pelas 19:12h há um registo que refere “muito queixosa, pálida e sudorética (…) fez analgesia que fez efeito (…)”.
VI. Também os valores analíticos de CP se encontravam dentro de parâmetros considerados normais, no dia 23 de abril (como se retira de fls. 102 do Doc.1 da contestação da 2.ª Ré).
VII. Só na noite de 23.04.2015 a doente começou a apresentar sintomatologia significativa, que motivou o contacto por parte da Enf. MC ao 3.º Réu.
VIII. E perante a sintomatologia relatada, que, esta sim, deveria ser valorizada e investigada, como de resto foi, o 3.º Réu deu imediatamente indicação terapêutica, e logo que lhe foi possível, observou a doente e requisitou análises.
IX. Ou seja, até às 01:06h de dia 24.04.2015 o recorrido observou a doente.
X. Na manhã do dia 24.04.2015, os valores das análises revelaram leucopénia (leucócitos baixos), neutrofilia relativa e Proteína C Reativa elevada.
XI. Mais uma vez, o recorrido atuou corretamente e como lhe era exigido, requisitando TAC abdomino-pélvica. E precisamente neste sentido vai a resposta ao quesito 12 da Consulta Técnico-Científica do INMLCF, sublinhando e reforçando que a atuação do médico foi correta.
XII. Não foi, pois, produzida prova de que existisse no dia 23 de abril, qualquer indício ou suspeita de uma infeção.
XIII. Ao médico cabe fazer o que está ao seu alcance e o que é sua obrigação de acordo com as leges artis a que está obrigado, e neste caso a responsabilidade do recorrido era observar a doente, interpretar os resultados analíticos e prescrever o exame adequado a encontrar a origem da infeção detetada nesses resultados, o que fez.
XIV. Em suma, nenhum facto gerador de responsabilidade civil é, ou pode ser, imputável ao recorrido, pois ficou demonstrado que, em cada momento, atuou como lhe era exigido: acompanhou a doente e observou-a diariamente no pós-operatório, e valorizou os sintomas apresentados prescrevendo os adequados exames complementares de diagnóstico.
XV. E cabia aos recorrentes fazer essa prova, sem que tal consubstancie uma inversão do ónus da prova.
XVI. Os elementos constitutivos da responsabilidade civil são os mesmos, provenha ela de um facto ilícito ou de um contrato, a saber: (i) a existência de um facto objetivo (ação ou omissão) controlável pela vontade do homem; (ii) a sua ilicitude; (iii) a culpa; (iv) o dano/prejuízo e (v) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
XVII. Assim, a responsabilidade contratual distingue-se da responsabilidade extracontratual, sobretudo, pela natureza do facto ilícito que, naquela constitui a violação de uma obrigação, e pelas regras de distribuição do ónus da prova já que na responsabilidade contratual funciona o princípio da inversão do ónus da prova (em face da presunção de culpa a que alude o artigo 799.º do Código Civil), segundo o qual incumbe ao devedor a prova de que agiu sem culpa no incumprimento ou no cumprimento defeituoso da obrigação (artigo 799.º, nº. 1 do Código Civil), enquanto que na responsabilidade aquiliana cabe ao lesado/credor a alegação e prova da culpa do lesante (artigo 487.º, n.º 1 do Código Civil).
XVIII. Ou seja, os AA. não lograram fazer a prova que lhes cabia, como de resto a sentença afirma a pág. 43 e 44, pelo que esta se deve manter.
XIX. Por outro lado, não estão reunidos os requisitos para que o recorrido seja condenado pela perda de chance.
XX. Conforme refere Rute Teixeira Pedro, no artigo publicado no e-book intitulado “Novos Olhares sobre a Responsabilidade Civil” (páginas 183 e seguintes), publicado pelo CEJ em 2018 e disponível na respetiva página da internet: (…) Cumpre, desde já, sublinhar que, para que o dano da perda de chance possa relevar para efeitos ressarcitórios, é necessário que, por um lado, a pessoa que se apresenta como lesado demonstre que era detentora de reais chances de alcançar o resultado final pretendido e, por outro lado, que as mesmas se perderam por causa do ato daquele que entende dever ser responsabilizado
XXI. Não resulta da factualidade considerada provada pelo Tribunal a quo qualquer facto que lhe permita sustentar que a falecida CP teria a possibilidade (a chance) de vencer ou não o adenocarcinoma que lhe foi diagnosticado e a deiscência da anastomose que surgiu na sequência da primeira cirurgia.
XXII. No domínio da perda de chance avulta, ainda, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2022, proferido no processo n.º 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A, e publicado no Diário da República, I Série, n.º 18, de 26 de Janeiro, o qual uniformizou jurisprudência no sentido de que: O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade.
XXIII. Não obstante se tratar de Acórdão relativo à perda de chance processual, é aplicável à presente situação, com as devidas adaptações.
XXIV. Assim, temos que os AA. foram incapazes de provar a consistência e seriedade da chance de sobrevivência de CP, sendo que não há dúvida que tal ónus impendia sobre si.
XXV. Era aos Autores que cabia demonstrar a chance perdida, sendo que esta só se demonstra com a alta – “séria, real e credível” – probabilidade, elementos de que o Tribunal não dispõe.
XXVI. Por último e sem conceder quanto ao entendimento preconizado e que conduz à manutenção da absolvição do R. do pedido, releva ainda dizer que embora os AA. peticionem a condenação dos RR. em juros contados desde a data da citação sobre o montante de danos não patrimoniais, na eventualidade de ser atribuída aos Autores uma indemnização por tais danos (o que apenas se admite por mero dever de patrocínio) estes só poderão ser contabilizados a partir do trânsito em julgado da decisão e não da citação, como requerido.
XXVII. Como é doutrina e jurisprudência assente, a existência de danos não patrimoniais (tutelados pelo direito) só se fixa com a decisão que os reconheceu e daí que o devedor só fique constituído em mora após o trânsito em julgado da referida decisão, devendo os juros ser contados a partir do dia da constituição da mora (art.º 806º nº1 do CC).
XXVIII. O montante dos eventuais danos só é fixado na decisão que os reconhece, pelo que os juros de mora só se vencem a partir daí, não podendo, pois, em qualquer caso, proceder este pedido dos AA.
XXIX. Impõe-se, pois que o presente recurso seja indeferido.
Pede assim o indeferimento do recurso, devendo manter-se a sentença no sentido da absolvição do Recorrido.
De referir ainda apenas que os A.A. não responderam aos recursos apresentados por qualquer dos R.R..
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art.º 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A impugnação da matéria de facto;
b) A verificação dos pressupostos da responsabilidade civil por ato médico do 1.º R.;
c) A verificação dos pressupostos da responsabilidade civil relativamente ao 3.º R.;
d) A imputação de responsabilidade ao 2.º R.; e
e) A responsabilidade das seguradoras intervenientes.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
*

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. A 26 de Abril de 2015, pelas 21 horas e 40 minutos, faleceu CP, no Hospital ….
2. A falecida era esposa de LL, aqui 1.º A..
3. E mãe de BL e DL, aqui respetivamente 2.º e 3.º A.A., ambos com 9 anos de idade, sendo reconhecida como mãe atenta e dedicada.
4. Os A.A. são únicos e universais herdeiros da falecida.
5. A falecida nasceu a 28 de janeiro de 1972, contando, à data do óbito, com 43 anos.
6. Exercia profissionalmente as funções de Técnica Analista na Caixa Geral de Depósitos Central - Sede, sita em Avenida João XXI, n.º 63, 1000 - 300 Lisboa.
7. CP era pessoa ativa e dinâmica, assim sendo reconhecida como tal por todos reconhecida.
8. Na madrugada do dia 18 de março de 2015, a falecida CP teve vários episódios de rectorragias, ou seja, perda de sangue vivo pelo ânus.
9. Face a tais sintomas, dirigiu-se, nesse mesmo dia, às instalações da 2.ª R., sitas na Rua …, Lisboa.
10. Ainda nesse dia, e nos que se lhe seguiram, a falecida realizou diversos exames nas instalações da 2.ª R., tendo-lhe sido diagnosticado um Adenocarcinoma bem diferenciado na porção distal do intestino.
11. Tal diagnóstico revelou ser premente a sujeição da falecida CP a intervenção cirúrgica, com vista à remoção da parte do cólon afetada pela presença do carcinoma.
12. Foi agendada, para o dia 11 de abril de 2015, uma consulta de cirurgia geral, com o aqui 1.º R., com vista à elaboração de proposta operatória.
13. A falecida CP demonstrou preferência pela assistência do Dr. PM, por ter sido o responsável pela colecistectomia a que havia sido submetida a 11 de fevereiro de 2010.
14. CP estava perante um clínico reconhecido na praça não só pela sua excelência profissional como cirurgião geral, como também pela vasta experiência em cirurgias de remoção de tumor colon-retal.
15. Tendo, aliás, escrito alguns artigos em matéria de tratamento do cancro do colon rectal, dos quais se destaca “Quimioterapia pré-operatória nas metástases hepáticas de carcinoma colo-rectal ressecáveis: uma estratégia consensual?” (et. al.), publicado na Revista Portuguesa de Cirurgia, II Série, n.º 14, setembro de 2010, pág. 9 a 19.
16. A falecida estava convicta de que a cirurgia e o pós-operatório iriam decorrer sem complicações.
17. Nesta confluência, foi CP submetida a primeira intervenção cirúrgica no dia 21 de abril de 2015, cujo procedimento adotado foi a ressecção anterior do reto com anastomose colon-retal, tendo como médico cirurgião o aqui 1.º R., e como médico anestesiologista o aqui 4.º R..
18. A técnica utilizada visava a remoção cirúrgica da zona afetada pelo tumor e a posterior reconstrução do trânsito intestinal regular, através de suturas realizadas entre os dois segmentos intestinais (anastomose).
19. Após esta primeira cirurgia, o 1.º R. saiu das instalações da 2.ª R., dando conta ao 1.º A. de que não estaria nos dois dias seguintes, por motivos pessoais e que a falecida CP seria acompanhada no pós-operatório pelo médico-cirurgião Dr. CN, aqui 3.º R..
20. O 1.º R. havia tido conhecimento do falecimento da sogra, tendo sido esse o motivo da sua saída das instalações do Hospital …, deixando o acompanhamento pós-cirúrgico a cargo de um clínico que nunca acompanhara a falecida.
21. No dia 23 de abril de 2015, segundo dia de pós-operatório, a falecida começou a manifestar dores, desconforto e indisposição, que se intensificaram no dia seguinte.
22. O que motivou o contacto do 3.º R. na madrugada do dia 24 de abril de 2015.
23. Em razão de tal quadro, a falecida CP foi submetida, com urgência, a uma nova intervenção cirúrgica, no dia 24 de abril de 2015, realizada pelo 1.º R., que havia regressado nesse mesmo dia, e assumindo a aqui 5.ª R. as funções de médica anestesiologista, em que o procedimento adotado foi a Operação Tipo Hartmann.
24. CP entrou em choque séptico, do qual resultou o seu decesso, a 26 de abril de 2015.
25. No dia 18 de março de 2015, a falecida CP deu entrada no serviço de urgência geral da 2.ª R., na sequência de episódios de rectorragias ocorridos nessa madrugada.
26. Na triagem de prioridades, a falecida foi avaliada como uma situação urgente.
27. Pelas 9 horas e 26 minutos, a mesma foi atendida pelo Dr. AA, Especialista em Medicina Geral e Familiar, tendo o referido clínico prescrito, como meios complementares de diagnóstico, a realização de análises ao sangue e ainda tomografia computorizada (TC) pélvica e ao abdómen.
28. A tomografia computorizada pélvica e do abdómen revelou “antecedentes de colecistecomia” (retirada cirúrgica da vesícula biliar), uma “imagem quística não suspeita na área anexial esquerda com cerca de 3 cm provavelmente de natureza funcional a merecer controlo ecográfico”, bem como “abundantes resíduos fecais no cólon até à sigmoide”.
29. Diante desse quadro, e por forma a confirmar o diagnóstico, foram ainda agendados RX Tórax, Pulmões e Coração (1 incidência), Eletrocardiograma Simples e Colonoscopia Total com anestesia, todos para o dia 6 de abril de 2015.
30. No que concerne à colonoscopia total com anestesia, a preparação revelou-se deficiente, permitindo apenas a progressão até “à sigmoideia proximal, não se avançando pela presença de resíduos fecais sólidos, sem sangue”.
31. Apesar disso, foi possível detetar “Dos 10 aos 18 cms, lesão vegetante, friável, dura ao toque da pinça”.
32. E ainda realizar “biópsias múltiplas”, com vista a avaliar a existência de células malignas.
33. Nessa sequência, foi agendada consulta de gastroenterologia, com o Dr. PR, para o dia 09 de abril de 2015, pelas 19h00.
34. Consulta em que CP, teve conhecimento do resultado da colonoscopia, que revelou a existência de um “Adenocarcinoma, bem diferenciado (baixo grau)”.
35. Tendo ainda o Dr. PR feito constar do processo clínico que a falecida CP havia perdido 3 Kg na última semana.
36. Perante a gravidade do caso, a falecida foi encaminhada para consulta na especialidade de cirurgia geral com o Dr. PM (1.º R.), agendada para o dia 11 de abril de 2015.
37. Nessa consulta, o 1.º R. procedeu à elaboração da proposta operatória e agendamento da cirurgia para dia 21 de abril de 2015, tendo solicitado a marcação de consulta de anestesiologia urgente com o aqui 4.º R..
38. Na mesma data, o 1.º R. solicitou, por escrito, aos Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos a emissão do termo de responsabilidade.
39. A 19 de abril de 2015, pelas 17 horas e 27 minutos, foi a falecida admitida nos serviços da 2.ª R., para internamento, tendo-lhe sido atribuído o número HCD 343665 e, posteriormente, encaminhada para o Internamento Geral, sito no piso 6, sendo acomodada no quarto 6.25 daquela unidade hospitalar.
40. CP iniciou, então, a preparação para a colonoscopia total, agendada para o dia seguinte, 20 de abril de 2015.
41. Tendo o referido exame sido realizado, entre as 12h00 e as 1h.00horas desse dia, pelo médico-gastrenterologista Dr. PR, com assistência da médica anestesista Dra. AH e da enfermeira PN.
42. Contrariamente ao que havia sucedido com a colonoscopia realizada no dia 6 de abril de 2015, esta última revelou uma boa preparação, demonstrando a existência “na sigmoideia, dos 14 aos 8 cms, lesão neoplásica”, tendo-se procedido à “marcação do limite distal com tinta da china”.
43. No dia 20 de abril de 2015, pelas 11 horas e 43 minutos, a Enf. APA faz constar do resumo de informação clínica que CP “Deverá ser intervencionada amanhã ao final da tarde (?) de acordo com o que o Dr. PM disse à doente”.
44. Do mesmo modo, consta ainda do Processo Clínico referente ao período de 21 de abril até 23 de abril, em sede de notas e observações que a “cliente dá entrada no IG6 6.25. não consta do plano cirúrgico de amanhã, portanto a data da cirurgia não é conhecida”.
45. Em anotação da Enf. MG, pelas 23h29 do dia 20 de abril, consta: “vai ao BO amanhã às 20h”.
46. O 1.º R., para além de médico-cirurgião no Hospital …, desempenha as mesmas funções no Hospital … Cascais e no Hospital …  Lisboa.
47. Para além de acumular as funções de Diretor do Departamento de Especialidades Cirúrgicas do Hospital … Cascais.
48. No dia 21 de abril, em determinada hora, CP foi encaminhada para o Bloco Operatório.
49. A intervenção cirúrgica ocorreu nas instalações da 2º R., tendo como cirurgião o 1º R., e como médico anestesiologista o Dr. CK.
50. Para levar a cabo a intervenção cirúrgica, a falecida foi objeto de administração de anestesia combinada (epidural/geral).
51. Do processo clínico, trazido das instalações da 2.ª R., não consta a identificação dos enfermeiros instrumentistas e circulantes, bem como a lista de verificação pré-cirúrgica.
52. O mesmo processo clínico não contem qualquer declaração de prestação de consentimento informado, por parte da falecida CP, ou sequer indicação de que o mesmo tenha sido recolhido.
53. O procedimento cirúrgico utilizado não era o único possível no tratamento do cancro colo-rectal, tendo o cirurgião, a possibilidade de optar por diversas técnicas cirúrgicas, consoante aquela que melhor se adapte ao estado clínico do paciente.
54. No decurso do procedimento, constatou-se a “ausência de adenopatias visíveis loco-regionais, metáteses noutros órgãos e/ou sistemas bem como tumores síncronos do cólon”.
55. Tendo a intervenção cirúrgica decorrido “sem complicações intraoperatórias”, de tendo o 1.º R. feito constar tal do diário clínico.
56. Terminada a intervenção médico-cirúrgica, a falecida foi, por volta das 23 horas e 5 minutos, encaminhada para a Unidade de Cuidados Intensivos Polivalentes da 2.ª R., para vigilância pós-operatória.
57. Onde foi assistida por médicos e enfermeiros ao serviço da 2.ª R..
58. Após a cirurgia, e antes do 1º R. ter saído das instalações da 2.ª R., informou o 1.º A. que não estaria nos dois dias seguintes por motivos pessoais, e que a falecida seria acompanhada no pós-operatório pelo 3.º R..
59. À admissão na Unidade de Cuidados Intensivos, a falecida apresentava-se “sonolenta mas despertável, sem referir algias”, segundo anotação da Enfermeira SG, efetuada pela 01h08 minutos.
60. Pelas 11h24 do primeiro dia de pós-operatório (22 de abril), a Enfermeira SF, relata que a paciente apresentava “queixas álgicas ligeiras à palpação da fossa ilíaca esq. Abdómen mole, não distendido. Penso operatório repassado, foi refeito. Teve dejeção de hematoquesias [presença de sangue misturado com as fezes] em pequena quantidade. Refere sensação de dormência e diminuição da força muscular do Minf dto, discreta sensação de dormência no Minf esq…”.
61. Tendo o referido clínico, feito constar do processo que a paciente se encontrava “s/ qx significativas. Hemodinamicam/ estável. DNG pouco funcionante”.
62. Pelas 11h51, a falecida CP recebeu ainda visita da Dra. MR, funcionária da 2.ª R., tendo esta encontrado uma paciente aparentemente “lúcida, colaborante” e “sem dor”.
63. A referida clínica ordenou a transferência da falecida para os serviços de Internamento Geral, onde deu entrada pelas 15h00, conforme registo de enfermagem efetuado, às 18h21, pela Enf. C.
64. Ao início do segundo dia de pós-operatório (23 de abril), pelas 00h17, a doente apresentava-se “calma. Sem queixas.”, conforme anotação da Enf. PD.
65. A mesma enfermeira relata que a falecida “Ao levantar cabeceira da cama começou a sentir-se nauseada, pelo que se adiou o levante. Conseguiu fazer levante para o cadeirão cerca das 12 h, tendo tolerado apenas cerca de 1 h, alegando desconforto”.
66. Ao final da tarde, a falecida revelou-se “muito queixosa, pálida e sudorética”, tendo feito “analgesia que fez efeito (19h)”, conforme anotação efetuada, às 19H12, pela Enf.ª MG.
67. Segundo registo da Enf. MC, pela 01h06 do terceiro dia de pós-operatório (24 de abril), a falecida encontrava-se “queixosa e febril no início do turno. Dejeção de melenas em moderada quantidade. Foi dado conhecimento telefónico ao Dr. CN que pediu para administrar petidina 30 mg Ev à doente (eficaz)”.
68. De acordo com o que consta em https://www.cuf.pt/servicos-cuf/servicos-clinicos/cuidados-intensivos “As Unidades de Cuidados Intensivos da 2ª R., dispõem de uma equipa médica, de enfermagem e de auxiliares de ação médica, com formação específica, em completa coordenação e que prestam assistência aos clientes 24 horas por dia, 365 dias por ano”.
69. Pelas 04h11, observada pela Enf. SF, CP “referiu sensação de sudorese e dor. Fez Petidina 2 cc. Trocado o soro em curso para LR por hipotensão”.
70. Às 07h56, o quadro mantinha-se igualmente instável, fazendo a Enf. MC constar do diário clínico que a paciente “manteve-se queixosa ao longo do turno. Fez na totalidade petidina 8 cc. não dormiu. Dor mais localizada nos quadrantes inferiores do abdómen”.
71. A Petidina é um analgésico indicado para o tratamento da dor moderada a intensa nomeadamente em neoplasias, enfarte do miocárdio e cirurgia.
72. O referido fármaco apresenta como contraindicações frequentes náuseas, vómitos e obstipação, podendo ainda ocorrer secura da boca, espasmos biliares e mesmo insuficiência respiratória, podendo ainda desencadear efeitos colaterais como a hipotensão.
73. Pelas 11h38, a falecida recebeu visita-médica do Dr. CN, 3.º R..
74. Aquando da visita – o 3.º R. registou em sede de diário clínico “febre e 2 episódios de vómito. Leucopénia [redução do número de leucócitos brancos no sangue]; Neutrofilia relativa [aumento do número de neutrófilos]. PCR: 15.”.
75. Tendo solicitado Tomografia Computorizada abdomino-pélvica (TAC).
76. Pelas 13h41 minutos deste terceiro dia de pós-operatório, CP recebe a primeira visita do 1.º R., que havia então regressado ao serviço.
77. Nesta visita, o 1.º R. relata a ocorrência de “terceiro episódio de vómito bilioso. Abdómen livre”.
78. Tendo ainda mencionado que a paciente “Aguarda TAC Abdominopélvica”.
79. A Enf. APA, pelas 14H42, regista “doente pálida, prostrada e nauseada. Também um pouco queixosa. Teve durante o turno 3 vómitos de líquido bilioso em moderada quantidade. Não tolera água”.
80. E ainda, que “vai fazer Tac abd e pélvico às 16h. Não tolerou gastrografina. Imagiologia e Dr. PM informados”.
81. Embora a indicação de que a TAC seria realizada às 16h00, apenas pelas 17h15 a falecida foi encaminhada para realização do exame, conforme anotação da Enf.ª LB, feita às 18h03.
82. Tendo o exame sido realizado entre as 17h15 e 18h00.
83. Do relatório de imagiologia consta 18h11, das notas de enfermagem resulta que a falecida regressou ao quarto pelas 18h00, conforme anotação da Enf.ª LB, feita às 18h03 minutos.
84. A CP manifestava não tolerância à água.
85. Ao mesmo tempo, a paciente apresentava, às 08H19 minutos deste terceiro dia de pós-operatório, sinais patentes de infeção, com valores de PCR (Proteína C- reativa) de 15,49, valores que foram subindo de forma exponencial à medida que as horas iam passando.
86. A tomografia computorizada (TAC) imprescindível para o diagnóstico.
87. Segundo indicações da Sociedade Portuguesa de Cirurgia, em “casos de suspeita clínica de deiscência anastomótica há necessidade de confirmação radiológica através de estudo contrastado e ou TAC associado a contraste”.
88. A septicemia – que, acabou por ser a causa de morte de CP – é uma infeção que pode ter, e geralmente tem, um desenvolvimento muito rápido, sendo fatal se não for tratada a tempo.
89. Sendo o diagnóstico atempado um dos principais fatores para o tratamento deste tipo de infeção.
90. A possibilidade de sobrevivência a uma sépsis é suscetível de diminuir com o tardar o diagnóstico.
91. A tomografia computorizada revelou “extravasamento do contraste rectal pela face posterior da anastomose, com contraste continuado superiormente anterior ao psoas esquerdo”, bem como que “coexiste volumoso hidro-pneumoperitoneo, com ascite em diferentes recessos peritoneais, descrevendo também faixa de líquido com múltiplas bolhas de ar envolvendo espaço perirrectal”.
92. A Tomografia Computorizada (TAC) veio confirmar as suspeitas de deiscência anastomótica, ou seja, de uma complicação pós-operatória que consiste na abertura das suturas da anastomose, com consequente “fuga de conteúdo entérico através da anastomose manifestando-se no local do dreno, na ferida operatória ou perianastomótica conduzindo a quadro séptico cuja gravidade pode conduzir à insuficiência multiorgânica”.
93. Tal diagnóstico tornava inevitável a realização de uma segunda cirurgia, tendo sido essa a indicação do 1.º R., conforme apontamento da Enf. LB, feito pelas 18 horas e 03 minutos, “Observada pelo Dr. PM, apresenta deiscência da anastomose, volta ao Bo hoje às 23 horas, cliente informada pelo médico”.
94. O 1.º R. comunicou então a CP: “CP, tenho más notícias para si, o intestino rebentou, descoseu. As coisas foram bem feitas, temos que operar já. Não é já, porque não há vaga”.
95. Esta “notícia” foi transmitida na presença do marido e filhos da falecida, aqui A.A., e ainda dos pais da mesma.
96. Para além, desta comunicação, não foram transmitidos os riscos desta intervenção médico-cirúrgica a que iria ser sujeita, tal como a natureza ou o procedimento da mesma.
97. Não foi também recolhido qualquer consentimento expresso para esta segunda cirurgia.
98. Cerca das 20h30, CP foi novamente encaminhada para o Bloco Operatório, conforme anotação da Enf.ª MM “À entrada no Bloco, doente cianosada SpO2 90%, ligeiramente polipneica (Fr 25 cp), hipotensa (TAM 50 mmHg) e taquicárdica (FC 138bpm)”, conforme anotação, às 23h46, da Dra. FR, especialista em Anestesiologia.
99. A intervenção cirúrgica ocorreu, mais uma vez, nas instalações da 2ª R., tendo como cirurgião o 1º R., e como médica anestesiologista a Dra. FR, aqui 5.ª R., ambos profissionais dos quadros da 2.ª R..
100. Para levar a cabo a intervenção cirúrgica, à falecida foi administrada anestesia geral, conforme anotação do 1.º R., pelas 22h36.
101. Do processo clínico, trazido das instalações da 2.ª R., não constam nem a lista de verificação pré-cirúrgica, nem a identificação dos enfermeiros instrumentistas e circulantes.
102. A falecida foi então “submetida a laparotomia exploradora que confirma deiscência da anastomose colo-rectal”.
103. Perante tal confirmação de diagnóstico, foi sujeita a Operação Tipo Hartmann.
104. Os clínicos depararam-se, ao longo da intervenção, com uma “provável pneumonia de aspiração durante a permanência no IG”.
105. Tendo a paciente, após a administração de EOT (Entubação OroTraqueal) revelado um “agravamento da insuficiência respiratória, com aspiração de líquido bilioso, espumoso em grande quantidade”.
106. Verificando-se um “quadro respiratório possivelmente agravado por choque séptico com ARDS [síndrome de insuficiência respiratória aguda]”.
107. Uma vez terminada a intervenção médico-cirúrgica, por volta das 23h00, a falecida foi encaminhada para a Unidade de Cuidados Intensivos Polivalentes da 2.ª R., para vigilância pós-operatória.
108. O 1.º R. comunicou aos familiares que a cirurgia havia corrido bem, mas que CP teria tido uma complicação pulmonar (não frontal) e que, por isso, nada podia assegurar quanto à reação do seu organismo, tendo esta sido reencaminhada para a Unidade de Cuidados Intensivos.
109. À chegada à Unidade de Cuidados Intensivos Polivalentes, a falecida “vinha EOT com tubo 7, nível 22, ventilada com ambu sato2 de 50%”, tendo sido “feita aspiração traqueobroquica com saída de conteúdo bilioso esposo em abundante quantidade. taquicardia sinusal com FC entre os 140 e 150/min”.
110. Havendo a “necessidade de ventilação agressiva com peep progressivamente mais elevado”, conforme anotação do Enf. LML, às 01h07 do dia 25 de abril.
111. Cerca das 04h55, CP Pereira recebe visita da Dra. SL que regista um “agravamento hemodinâmico com hipotensão sem resposta à fluídoterapia”.
112. Observada pela mesma médica, pelas 07h09, concluiu-se que a falecida “mantem agravamento clínico com acidemia respiratória grave”.
113. Como resulta da anotação ao diário médico efetuada pela Dra. MR, às 11h19 – verificou-se um agravamento do quadro clínico da falecida, apresentando “má perfusão periférica, livores, extremidades frias e cianosadas”.
114. Tendo sido contactado o Dr. HR, do Hospital de Santa Maria, a fim de avaliar a possibilidade de ECMO, que foi contraindicado por choque séptico.
115. Foram ainda efetuadas medidas de suporte avançado de vida (200 joules) diante de um estado de assistolia, havendo uma recuperação do ritmo cardíaco após o 2.º ciclo.
116. Ao início da manhã do dia 26 de abril, pelas 07h52, a Enf.ª AM, regista uma paciente “hemodinamicamente mais estável”.
117. Ao longo da tarde do dia 26 de abril de 2015, verificou-se um “agravamento da acidemia com difícil regressão”, conforme registo da Dra. MB, às 21h44.
118. Ao que se seguiu a entrada da paciente em braquicardia, sem resposta à atropina.
119. Na sequência da qual vem a ser confirmado o óbito de CP, ocorrido pelas 21h40 minutos, tendo como causa “(a) choque séptico, (b) peritonite fecal e (c) neoplasia colon operada”.
120. O 1.º A. foi informado telefonicamente do falecimento da esposa, pelas 22h10 minutos.
121. O 1.º A. dirigiu-se então às instalações da 2.ª R., para se despedir de CP.
122. Seguindo, posteriormente, ao encontro dos pais da falecida, dando-lhes a notícia.
123. Cabendo-lhe ainda o encargo de comunicar aos filhos menores, aqui 2.º e 3.º A.A., o decesso da figura materna.
124. Desde o falecimento de CP, os A.A. têm passado por momentos penosos, uma vez que esta era o pilar de toda a vida familiar.
125. A falecida era ainda o maior rendimento do agregado familiar.
126. Por contato celebrado com a “A… – Companhia de Seguros” SA., os R.R. PM, CN, CK e AR, transferiram para esta a responsabilidade por eventual indemnização civil em que pudesse incorrer em consequência de atos, omissões e erros profissionais, cometidos em diagnósticos, prescrições ou aplicações terapêuticas e no decurso de tratamentos ou intervenções cirúrgicas.
127. Estes seguros têm um limite de capital seguro de €300.000,00, uma franquia de 10% dos danos resultantes de lesões materiais, no mínimo de €125,00.
128. PM (1º R.) é médico-cirurgião, há 21 anos á data dos factos, trabalhando para o Hospital … desde 2004.
129. No dia 18 de março de 2015, CP deu entrada no serviço de Atendimento Permanente, por episódios de rectorragias, tendo sido observada e avaliada pelo Dr. AA, que prescreveu análises e vários exames complementares de diagnóstico.
130. Já com os resultados dos exames, a CP foi consultada pelo Dr. PR, em 09/04/2015, tendo-lhe sido diagnosticado um Adenocarcinoma.
131. Foi então encaminhada para a consulta de cirurgia geral do 1º R., para avaliação da situação clínica, com base nos exames previamente realizados, e definição da estratégia terapêutica a seguir, consulta que ocorreu em 11/04/2015.
132. Este, já havia operado a CP em 2010, tendo realizado uma colecistectomia, com sucesso, existindo um conhecimento prévio entre médico e doente desde essa altura.
133. No final dessa consulta, foi pedido a CP que lesse e assinasse do documento cuja cópia consta de fls. 772 dos autos, o que esta fez.
134. Nesta altura, o R. PM forneceu o seu contacto telefónico (telemóvel) para quaisquer esclarecimentos ou dúvidas que pudessem surgir até ao momento da intervenção.
135. O 1.º R. conversou com CP na presença do marido, tendo esta consentido e na realização da intervenção.
136. Nessa conversa, o 1º R. explicou o que iria fazer na operação, designadamente, cortar o intestino para remover a parte afetada e voltar a juntar os mesmos.
137. O 1.º R. procede normalmente à análise dos resultados antes da proposta operatória, solicitando ainda a realização da consulta pré-anestésica, onde os referidos exames voltam a ser analisados.
138. Foi efetuado estudo laboratorial para despiste da eventual anemia e da coagulação sanguínea.
139. Por rotina, o 1º R. solicita unidades de sangue de reserva para a data da intervenção cirúrgica, independentemente de haver ou não necessidade de as utilizar, não tendo existido tal necessidade neste caso.
140. CP apresentava cerca de 11,5g/l de hemoglobina pré e pós-operatória.
141. A anestesia é uma condição para a realização da operação em causa.
142. O 1º R. solicitou a realização de consulta pré-anestésica ao ora 4º R..
143. Na cirurgia realizada a CP no dia 21 de abril de 2015, a equipa cirúrgica foi constituída pelo 1.º R. (Cirurgião), pelo Dr. JA (Ajudante), pelo Dr. CK (Anestesista), pela Enf. MC (Enf. Instrumentista) e pela Enf. MF (Enf. De Anestesiologia).
144. A técnica utilizada visava a realização da ressecção anterior do reto, com excisão do mesorreto com margens adequadas, ou seja, a remoção do tumor e respetivas margens de segurança.
145. Tendo em conta que havia sido realizada a devida preparação intestinal prévia e o tumor não se encontrava em oclusão, procedeu-se à confeção de anastomose do colo rectal que, no caso, foi efetuada com sutura mecânica circular agrafada.
146. No final, o 1.º R. procedeu à realização de dois testes que confirmaram a estanquicidade da mesma anastomose: teste de insuflação do intestino com ar, por via rectal, com clampagem do cólon a montante da anastomose e preenchimento da pequena bacia (cavidade pélvica) com soro.
147. Ambos os testes confirmaram não haver qualquer fuga da anastomose.
148. Toda a cirurgia decorreu sem qualquer intercorrência, quer do ponto de vista cirúrgico, quer anestésico.
149. Terminada a cirurgia, CP foi encaminhada para a Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), de forma eletiva e previamente agendada.
150. A razão da transferência da doente para a UCI foi, a de proporcionar a maior vigilância e acompanhamento que aquela unidade permite.
151. No “Processo clínico” referente a CP lê-se, na sua pg. 2 (fls. 130 dos autos), entre o mais “À admissão na UCIP, sonolenta mas despertável, sem referir algias (…) Sem sinais de dificuldade respiratória com boas oximetrias em ar ambiente (…) calma, sem referir algias. Dormiu por curtos períodos (…)”.
152. O 1.º R. recebeu a notícia do falecimento da sua sogra pelas 17h00, tendo contactado de imediato a sua mulher, no sentido de planear os dias seguintes.
153. A sua sogra vivia na Figueira da Foz, e o seu óbito ocorreu no domicílio, estando presentes no local um dos cunhados do aqui R., bem como a funcionária que residia com sua sogra.
154. Foi decidido que a sua mulher seguiria para a Figueira da Foz nesse próprio dia, e o 1.º R. iria apenas no dia seguinte acompanhado dos filhos.
155. O 1.º R. sentia-se apto para realizar a cirurgia.
156. Contactou, por isso, o Dr. CN, Coordenador da Cirurgia geral do Hospital …, onde se encontra diariamente como médico residente, visto ser neste hospital o seu principal local de trabalho.
157. O Dr. CN aceitou assegurar o acompanhamento de CP até ao regresso do 1.º R., tendo o marido daquela sido informado desta situação, sem manifestar discordância ou alegar qualquer inconveniente.
158. No final da intervenção, como sempre faz, o 1.º R. conduziu a doente à UCI, juntamente com o anestesista e a equipa de enfermagem da sala operatória tendo reportado as ocorrências intraoperatórias.
159. As ocorrências intra-operatórias foram reportadas pelo 1.º R. ao 3º R. Dr. CN.
160. Durante o seu período de ausência, dias 22 e 23 de abril, o 1.º R. esteve em contacto telefónico com o hospital, e inteirado da evolução da doente.
161. No dia 24 de abril, após ter tido conhecimento telefónico do agravamento da situação clínica, o 1.º R., que se encontrava a caminho de Lisboa, foi diretamente para o hospital, onde chegou pelas 13h30, informando de tal o Dr. CN.
162. Informou, nessa altura, o Dr. CN do seu regresso, assumindo a partir desse momento todas as responsabilidades e o rumo das ocorrências.
163. Quando chegou ao quarto de CP, esta apresentava-se com um quadro de vómitos e dores abdominais, encontrando-se acompanhada pelos familiares.
164. Nesta altura, CP havia já sido observada pelo Dr. CN, que solicitara, pelas 11h38m, a realização de Tomografia Axial Computorizada, Abdomino-pélvica (TAC).
165. O 1º R. deu ainda indicação para a entubação naso-gástrica em SOS da mesma, no caso de persistência dos vómitos, pela 13h41.
166. Perante o quadro clínico descrito às 11h38, do dia 24 de abril de 2015 (3º dia do pós-operatório) “febre e 2 episódios de vómitos. Leucopenia, neutrofilia. PCR de 15”, era mandatório uma observação clínica rigorosa e eventual solicitação de vários exames complementares de diagnóstico, como por exemplo, uma TAC abdomino-pélvica.
167. O exame confirmou a deiscência da face posterior da anastomose colo-rectal, ou seja, a abertura da “costura”, com extravasão de conteúdo entérico para a pequena bacia, e presença de líquido e ar na cavidade abdominal, ou seja, deu-se a abertura da face posterior da linha de agrafes que assegurava a ligação entre o cólon e o reto, com saída de conteúdo intestinal para a cavidade pélvica e presença de líquido e ar na cavidade abdominal.
168. A abertura da linha de agrafes pode ser provocada por várias causas, nomeadamente, a tensão sobre a anastomose pelo facto de o cólon a montante não ter sido convenientemente mobilizado, tendo o 1.º R., no final da anastomose, verificado não se encontrar esta sob tensão.
169. Pode ainda ter origem em defeito da sutura mecânica, hemorragia ou infeção da anastomose.
170. A Sociedade Portuguesa de Cirurgia, na sua publicação em https://www.spcir.com/rncr/definicao, define a “Deiscência da anastomose: sempre que haja fuga de conteúdo entérico através da anastomose manifestando-se no local do dreno, na ferida operatória ou perianastomótica conduzindo a quadro séptico cuja gravidade pode conduzir à insuficiência multiorgânica; nos casos de suspeita clínica de deiscência anastomótica há necessidade de confirmação radiológica através de estudo contrastado e ou TAC associado a contraste”.
171. A deiscência da anastomose é um risco próprio e descrito neste tipo de intervenção, que pode ocorrer mesmo após a confirmação da estanquicidade da anastomose.
172. O 1º R solicitou a sala do bloco operatório para realização desta operação, poucos minutos após as 20h00.
173. O 1º R. dirigiu-se ao quarto de CP, onde estavam também familiares.
174. A cirurgia agora realizada, foi uma operação Tipo Hartmann, que consiste em desmontar a anastomose, encerrar o topo distal – rectal – e confecionar uma colostomia terminal com o topo proximal, saindo através da parede lateral esquerda do abdómen.
175. A anestesista de Urgência escalada para esse dia, era a Dra. FR, ora 5ª R..
176. O que se praticou nesta segunda intervenção foi o encerramento rectal a jusante da anastomose deiscente, a confeção de uma sigmoidostomia terminal ao nível do flanco / fossa ilíaca esquerdos (colostomia de cólon sigmoideu) e a lavagem abundante da cavidade abdominal.
177. A aspiração é uma complicação comum do vómito, que se dá quando este é redistribuído às passagens de ar, entrando nos pulmões, uma vez que, devido à sua acidez, este pode causar uma infeção/inflamação nos pulmões, desenvolvendo uma pneumonia.
178. Aquando do último registo clínico do 1.º R., efetuado às 13h41, perante um quadro de vómitos biliosos, este deu indicação expressa para entubação naso-gástrica em SOS, precisamente como forma de evitar uma eventual aspiração de vómito.
179. Não consta dos respetivos registos que o 1º R. tenha sido contactado pela enfermagem, nem consta que tenha ocorrido agravamento respiratório, aspiração de vómito, e consequente pneumonia, ou de necessidade de intubação de CP.
180. Aquando do contacto do 1º R. com CP pelas 17h45, esta encontrava-se prostrada, mas lúcida e colaborante.
181. A aspiração do vómito, a ter ocorrido, era adequada a provocar em CP uma infeção respiratória potenciadora do quadro de sépsis.
182. A segunda intervenção teve como equipa cirúrgica o 1.º R. (Cirurgião), a Dra. FR (Anestesiologista), a Enf. MR (Enf. de Anestesia), o Enf. JR (Enf. Instrumentista), a Enf. IB (Enf. Circulante).
183. Não foi elaborado consentimento escrito para esta intervenção.
184. Este segundo ato cirúrgico praticado pelo 1º R. durou cerca de 30 minutos, tendo-se confirmado a presença de conteúdo entérico na pequena bacia e a deiscência da face posterior da anastomose colo-rectal.
185. Ao nível da restante cavidade abdominal, o grau de disseminação não era generalizado, tendo-se procedido à intervenção proposta e à abundante lavagem da cavidade pélvica e abdominal.
186. Finda esta intervenção, CP foi transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos, em choque séptico.
187. O 1.º R. comunicou ao marido de CP que tinha havido uma complicação respiratória, a qual iria condicionar a evolução no pós-operatório, sendo as horas seguintes determinantes para o seu prognóstico.
188. O quadro de choque séptico agravou-se, com “síndrome de Dificuldade Respiratória do Adulto” (ARDS) e falência respiratória.
189. Quando o 1º R. regressou ao Hospital, após o falecimento da sua sogra, já CP apresentava manifestações clínicas de deiscência.
190. Embora o tumor estivesse localizado e com margens de recessão livres, tendo um bom prognóstico, CP tinha antecedentes de outras intervenções e de anemia crónica.
191. A R. “Hospital …”, transferiu para a “F… companhia de Seguros” SA., “a cobertura da responsabilidade civil extracontratual imputável ao Segurado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros pela exploração do Hospital …”, (…) Garante ainda a responsabilidade civil profissional de todos os profissionais com atuação no Hospital …, independentemente do vínculo laboral que possa existir, no exercício de funções” na mesma unidade hospitalar.
192. Este seguro tem como limite máximo de capital seguro de um milhão de euros por anuidade e €250.000,00 por sinistro e lesado, prevendo ainda uma franquia de €1.250,00 por sinistro, no caso de responsabilidade civil profissional e €250,00 por sinistro no caso de responsabilidade civil de exploração.
193. O R. CN, observou CP e, entre outros exames, solicitou pelas 11h38 do dia 24/04/2015, a realização de TAC abdominal e pélvica à mesma, por suspeita de deiscência da anastomose.
194. Na manhã de dia 22 de abril o mesmo R. foi chamado pela Enfermeira SF para observar a doente, que se apresentava com “queixas álgicas ligeiras à palpação da fossa ilíaca esq. Abdómen mole, não distendido. Penso operatório repassado, foi refeito. Teve dejeção de hematoquesias [presença de sangue misturado com as fezes] em pequena quantidade. Refere sensação de dormência e diminuição da força muscular do Minf dto, discreta sensação de dormência no Minf esq…”.
195. No dia 23/04/2015, este R. visitou CP, tendo feito constar no diário clínico: “mantém-se s/qx significativas e hemodinamicam/ estável. Cicatriz c/bom aspeto. Abdómem mole e depressível.”.
196. Pelas 12h22, a Enfermeira APA regista: “Teve visita do Dr. CN, que deu indicação para iniciar levante, retirar algália e iniciar água + chá aos golos.”.
197. O R. CN voltou a ser contactado pela Enfermeira MC pelas 01h06, pelo facto de CP se apresentar “queixosa e febril no início do turno. Dejeção de melenas em moderada quantidade.”.
198. Em face da descrição feita pela referida Enf.ª quanto às queixas de CP, o R. prescreveu a administração de Petidina 30 mg, pela via Endovenosa, que foi realizada às 03h00 e que, conforme resulta do registo da enfermagem, se revelou “(eficaz)”.
199. O R. volta a observar a doente antes das 04h00, tendo então solicitado análises, tendo tal sido escrito no registo de enfermagem: “Foi posteriormente observada. Fica com análises pedidas”.
200. Pelas 08h19 é efetuada a colheita para realização das análises pedidas.
201. A maioria dos casos de melena tem origem proximal ao ângulo de Treitz (esófago), estômago e duodeno), embora também possa ter origem na orofatinge, intestino delgado ou cólon direito, podendo ainda resultar da perda de quantidades variáveis de sangue, ocorrendo c/ apenas 50 ml.
202. A maioria das deiscências anastomóticas após uma ressecção anterior do reto ocorrem ou são diagnosticadas após o 5º dia dos pós-operatório. Raramente são diagnosticadas ou surgem nos 2º ou 3º dias após uma ressecção anterior do reto.
203. Pelas 11h38, este R. fez nova observação da doente e registou no diário clínico os valores resultantes das análises anteriormente solicitadas por si.
204. Das referidas análises resultou a existência de uma leucopenia, neutrofilia relativa e PCR 15, pelo que o R. CN pediu a realização da TAC para despistar ou confirmar a suspeita de deiscência da anastomose.
205. Este TAC confirmou a suspeita clínica de deiscência da face posterior da anastomose colo-rectal, ou seja, verifica-se uma abertura da “costura”, com extravasão de conteúdo entérico para a pequena bacia, e presença de líquido e ar na cavidade abdominal.
206. Na consulta pré-anestésica realizada pelo R. CK (4º R.), com CP, em 17/04/2015, este explicou a CP e seu marido, a estratégia anestética planeada (anestesia combinada, com anestesia geral e epidural), esclarecendo os prós e contras da mesma, bem como os riscos inerentes.
207. CP deu o seu consentimento na medida em que, após todas as explicações deste R. relativa à via de abordagem e respetivos riscos, manteve a marcação e a pretensão da intervenção, tendo comparecido no dia e hora definidos, anuindo assim à respetiva realização.
208. O 4º R. efetuou várias questões à falecida sobre o seu estado de saúde e antecedentes, nomeadamente, se já tinha tido algum problema com a anestesia, e outras, respondendo a todas as questões que lhe foram colocadas pelo A. e sua esposa.
209. Para a intervenção cirúrgica realizada no dia 24/04/2015, a R. FV (5ª R.), não recolheu o consentimento expresso de CP para administração da anestesia.
210. Á entrada do bloco operatório, CP não estava capaz de prestar o seu consentimento informado para a anestesia.
*
A sentença recorrida consignou ainda que julgou por não provados:
Da petição inicial: os factos 20, 27, 49, 67, 75, 86, 100/101, 103, 104, 112, 114, 129 (sem prejuízo da parte relativa à prova considerada, alegada pelos próprios 1º e 3º R., de que o TAC já tinha sido pedido por suspeita de deiscência da anastomose), 137 (com exceção do já provados noutros factos), 143, 156, 179, 244, 246, 314 e 316.
Das contestações: os factos 21, 22 (até sempre”), 40, 50 (desde “Al Kadri”), 80 (desde “e confirmou”), 81, 90, 92, 93 (até “requisição”), 97, 99, (com exceção do já se considerou provado da alegação dos AA.), 105, 107, 108, 109, 110, 111, (quanto ao “de imediato”), 113 (desde “a informou”), 117, 118, 119, 120 (até “pela mesma”), 123 (desde “a doente” – restante, conclusivo), 136, 137, 155, 156, 157, 160 a 163 e 221 (contestação do 1º R.).

Tudo visto, cumpre apreciar.
*

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Da impugnação da matéria de facto.
A primeira questão suscitada neste processo em via de recurso tem a ver com a correção do julgamento sobre a matéria de facto.
Estabelece o Art.º 662º n.º 1 do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Nos termos do Art.º 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Sendo que, ao Recorrido, por contraposição, caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
No caso concreto os Recorrentes, A.A. na ação, pretendem a alteração da matéria de facto relativamente aos factos provados nos pontos 22, 85,166, 197 a 200, sugerindo novas redações para os mesmos, bem como aditamentos à matéria dos pontos 85 e 166, tendentes à concretização de factualidade tida por pertinente, visando ainda que fossem eliminados dos factos não provados a matéria relativa ao por si alegado nos artigos 100.º, 101.º, 112.º e 114.º da petição inicial, sugerindo a redação que deveria ficar consagrada como provada, indicando para tanto a prova documental tida por relevante e transcrevendo os depoimentos testemunhais que, no seu entender, deveriam conduzir a decisão diversa.
Por sua vez, o 1.º R., PM, no que foi acompanhado pela interveniente Ageas, pugnou pela eliminação dos factos constantes dos pontos 16, 96, 97 e 172 dos factos provados e da matéria do artigo 22.º da sua contestação dos factos não provados, sustentando o aditamento de nova matéria, alegadamente omissa, e alterações aos factos 133 e 135, transcrevendo algumas passagens de declarações de parte do A., do próprio R. e de testemunhas, para além de prova documental, que sustentariam a impugnação assim apresentada.
Finalmente, a interveniente Fidelidade, pugna pela eliminação dos factos provados 16 e 96, em face das declarações de parte do A., dos depoimentos testemunhais que transcreveu, da sua coerência com a demais matéria de facto dada por provada e com a fundamentação da própria sentença recorrida, passando também grande parte das alegações a discorrer sobre a valoração feita dos factos provados, mas sem precisar, quanto ao mais, se pretenderia qualquer alteração, pois não o chegou a concretizar.
Diremos assim que, genericamente, foram cumpridos os ónus de impugnação estabelecidos no Art. 640.º do C.P.C., pelo que importa apreciar cada uma das situações factuais individualmente consideradas, sendo certo que a interveniente F… lança mão de um método ambíguo de impugnação que, em alguns casos, deixa dúvidas sobre o exato sentido do que por si é pretendido, como mais à frente iremos apreciar de forma mais circunstanciada.
Comecemos então, por razões de método, pela impugnação dos A.A..

1.1.1. Dos pontos 22 e 197 dos factos provados.
A sentença recorrida deu como provado que:
«21. No dia 23 de abril de 2015, segundo dia de pós-operatório, a falecida começou a manifestar dores, desconforto e indisposição, que se intensificaram no dia seguinte».
«22. O que motivou o contacto do 3.º R. na madrugada do dia 24 de abril de 2015».
«197. O R. CN voltou a ser contactado pela Enfermeira MC pelas 01h06, pelo facto de CP se apresentar “queixosa e febril no início do turno. Dejeção de melenas em moderada quantidade.”».
Ora, os Recorrentes, A.A., pretendem que fique explicitado na redação dos pontos 22 e 197 que o 3.º R., Dr. CN, foi contactado um pouco antes das 22horas do dia 23 de abril de 2015 pela enfermeira MC por motivo das queixas aí referidas.
Sustentam que isso decorre das notas de enfermagem da madrugada do dia 24 de abril de 2015, juntas a fls. 112 (reportado ao doc. n.º 1 da contestação da 2.ª R.) e do depoimento da testemunha MC, enfermeira do hospital que acompanhou a situação nessa noite e confirmou as notas aí constantes, nomeadamente que contactou telefonicamente o Dr. CN (cfr. gravação aos minutos 48:17 a 49:24). Esta testemunha, sem precisar a hora desse contacto, terá reconhecido que o Dr. CN estaria a operar no momento do contacto telefónico, mas depois passou pela enfermaria para observar a paciente e pediu para administrar àquela “petidina”, bem como que fossem realizadas análises, tal como ficou registado nas notas de enfermagem relativas ao dia 24 de abril de 2015 pelas 1h06m (cfr. gravação aos minutos 49:30).
Sustentam os Recorrentes que, confrontado esse depoimento (v.g. gravação aos minutos 51:25 a 51:40) com o facto de no relatório de registo de enfermagem poder ter sido administrada a “petidina” às 22h00m, seria de admitir que o contacto telefónico tivesse ocorrido um pouco antes das 22h00m do dia 23 de abril. O que estaria em coerência com a data de prescrição da “petidina” (cfr. doc. n.º 1 junto com o “Requerimento” de 18-10-2021 da 2.ª R. – Ref.ª n.º 30557765 – p.e.) e com o relatório de enfermagem do dia 23 de abril de 2015, constante de fls. 185.
O 2.º R., nas suas contra-alegações, chegou a admitir que o contacto telefónico da enfermeira com o médico em consideração pudesse ter sido um pouco antes das 22h00m. Mas o 3.º R. contrapõe que não é possível saber a hora a que ocorreu a sua visita à paciente, mesmo em função das transcrições feitas do depoimento testemunhal de MC e dos documentos mencionados pelos Recorrentes A.A..
Apreciando, realçamos que não se contestou o que a testemunha disse em audiência de julgamento e que se mostra transcrito nas alegações de recurso, ainda que a gravação relativa ao seu depoimento seja de muito difícil audição. Em todo o caso, do seu depoimento só resulta a admissão duma certa coerência lógica sobre a sequência temporal dos factos, pois a testemunha, na verdade, não soube situar com precisão no tempo estas ocorrências.
Em primeiro lugar, há que dizer que a fls. 112, ao contrário do que é alegado pelos A.A., consta um “resumo da informação clínica” relativo à falecida CP, integrado no doc. n.º 6, junto pelos próprios A.A. (cfr. fls.  95 e ss.), que nada tem a ver com a intervenção cirúrgica a que se reporta a presente ação, nem com as datas aqui em discussão.
A contestação da 2.ª R. consta de fls. 429 e ss. e o documento n.º 1, junto com essa contestação, consta de fls. 446 e ss., sendo que é a fls. 564 do processo (em formato papel) que aparece o “Resumo da Informação Clínica” relativo aos dias 23 e 24 de abril de 2015, onde está a inserção feita pela Enf.ª MC, à 1h06m do dia 24, em que se mostra mencionado ter sido dado conhecimento telefónico ao Dr. CN, que pediu para administrar “petidina 30 mg Ev à doente”.
Também a fls. 185 não consta o facto mencionado pelos A.A. Recorrentes. É a fls. 624 (página 164 do documento n.º 1 junto com o requerimento da 2.ª R. de 6/10/2016 – cfr. fls. 620 e ss.) que aparece a menção à data de “23-04-2015 22:00” e à “Petidina 100 mg/2 ml sol inj Amp 2 ml Ev”, mas não podemos deixar de fazer notar que, logo à frente, aparecem ainda as menções a: “30 MG (MICOSME), 24-04-2015 01:00)”. Pelo que, não é assim tão claro quando foi ministrado o medicamento, se às 22horas do dia 23 de abril, se à 1hora do dia 24 de abril de 2015.
Nesse mesmo documento, na parte relativa ao “Resumo do Diário”, a fls. 646, consta apenas que às 22:00, do dia 23 de abril, foram medidos os sinais vitais (tensão arterial, frequência cardíaca, temperatura, escala de dor e apalpação abdominal), não se fazendo aí qualquer menção a administração de medicamentos.
Com o requerimento da 2.ª R. de 18-10-2021 (Ref.ª n.º 30557765 - p.e.), que se mostra impresso no processo, em versão papel, a fls. 1270 a 1272, é junto um documento relativo a “Pedido de exames para Patologia Clínica” (doc. de fls. 1272), no qual aparece de facto que a data de requisição dos exames de “Hemograma” e “Proteínas” é de “2015-04-23”, sendo a data pretendida seria de “2015-04-24” e hora pretendida de “23:33”. Também é claro desse documento que essa “requisição” foi feita pelo Dr. CN e refere-se à falecida CP. Agora, o que não é evidente é que essa requisição tenha sido feita às 22horas ou às 23h59m do dia 23 de abril, não sendo de excluir, em absoluto, que possa ter sido feita nas primeiras horas do dia 24 e, por qualquer razão, que se desconhece, tenha ficado consignado que foi feita ainda no dia 23.
A verdade é que não temos como ter por certa essa data. Embora se admita que a requisição tenha sido feita no contexto da visita presencial à doente pelo Dr. CN, porque isso resulta indiretamente do contexto do depoimento prestado pela testemunha MC, na medida em que confirmou o que ficou consignado a fls. 564, no dia 24 de abril de 2015, à 1h06m, onde se pode ler: “Fica com análises pedidas”.
Em suma, existe alguma ambiguidade da prova documental, que não é desfeita pelo resultado do depoimento testemunhal considerado e que não nos permite ter por certo que todos esses factos ocorreram efetivamente às 22h00m do dia 23 de abril de 2015, tal como os Recorrentes A.A. pretendem fazer crer.
O máximo que se pode dizer é que, em hora não concretamente apurada, na noite da passagem do dia 23 para o dia 24 de abril de 2015, o Dr. CN foi contactado telefonicamente pela enfermeira, pelas razões que já constavam provadas no ponto 197, sendo certo que o contacto parece ter sido único, não se demonstrando que “voltou a ser contactado” nesses termos, tal como o 3.º R. vinca nas suas contra-alegações.
Desse modo, os pontos 22 e 197 dos factos provados na sentença recorrida devem ser corrigidos e passarão a ter a seguinte redação:
«22. O que motivou o contacto do 3.º R., a hora não concretamente apurada, na noite da passagem do dia 23 de abril para o dia 24 de abril de 2015».
«197. O R. CN foi contactado pela Enfermeira MC, a hora não concretamente apurada, mas certamente anterior à 1h06m do dia 24 de abril de 2015, pelo facto de CP se apresentar “queixosa e febril no início do turno. Dejeção de melenas em moderada quantidade.”».

1.1.2. Do ponto 198 dos factos provados.
Os Recorrentes A.A. pretendem ainda alterar a redação do ponto 198, basicamente com base na mesma prova que acabámos de considerar, com vista a precisar que a administração da “petidina” ocorreu às 22h00m do dia 23 de abril de 2015.
Nesse ponto 198 ficou provado que o R. prescreveu esse medicamento, mas a sua administração ocorreu às 3h00m, tendo resultado do registo de enfermagem que a mesma se revelou eficaz.
Apreciando, temos de reconhecer que a sentença recorrida, neste ponto, como em muitos outros, nem por sombras justificou o motivo por que chegou à sua convicção sobre esse concreto pormenor da hora da administração desse medicamento, ainda que tenha feito um “resumo” do depoimento da testemunha MC, que pouco esclarece sobre esse concreto assunto (cfr. fls. 1401).
Uma vez mais, temos de dizer que não se evidencia claro, nem da prova documental mencionada nas alegações de recurso, nem do depoimento da testemunha MC, pelas razões que já deixámos expedidas, que o medicamento em causa tenha sido ministrado efetivamente às 22h00m do dia 23 de abril de 2015.
Por um lado, a testemunha em menção não o afirmou com convicção, limitando-se a dizer que só poderia confirmar o que deixou consignado no “resumo de informação clínica”. Por outro, como vimos, a fls. 624 (página 164 do documento n.º 1 junto com o requerimento da 2.ª R. de 6/10/2016) aparece a menção à data de “23-04-2015 22:00”, mas logo à frente também aparece também a de “24-04-2015 01:00”.
Diga-se, a este propósito, que, no decurso da audiência de julgamento, a título meramente informal, foram aventadas eventuais explicações para essa disparidade, mas a verdade é que nada nos diz que não tenha sido essa última a hora efetiva da ministração do medicamento, ou outra qualquer entre as 22h00m do dia 23 e a 1h06m do dia 24 de abril de 2015.
Finalmente, no “Resumo do Diário”, a fls. 646, não consta a ministração do medicamento, mas sim as medições dos sinais vitais.
Certo é que, a fls. 564, no “Resumo da Informação Clínica”, a Enf.ª MC, à 1h06m do dia 24 de abril de 2015, anotou que o médico pediu para ministrar esse medicamento, logo de seguida dizendo que foi “eficaz”. O que significa que a ministração foi certamente muito anterior às 3 horas do dia 24 de abril, que foi o que ficou provado no ponto 198 da sentença recorrida.
Por isso, julgamos dever alterar a redação desse ponto 198, que passará a ser a seguinte:
«198. Em face da descrição feita pela referida Enf.ª quanto às queixas de CP, o R. prescreveu a administração de Petidina 30 mg, pela via Endovenosa, que foi realizada a hora não concretamente apurada, mas certamente anterior à 1h06m do dia 24 de abril de 2015, e que, conforme resulta do registo da enfermagem, se revelou “(eficaz)”».

1.1.3. Do ponto 199 dos factos provados.
De seguida, os Recorrentes A.A. põem em causa o facto provado no ponto 199, uma vez mais com base no mesmo conjunto de prova que temos vindo a mencionar nos pontos 1.1.1. e 1.1.2., pretendendo alterar a sua redação por forma a que fique consignado que o 3.º R. observou a doente antes das 24 horas do dia 23 de abril de 2015.
Só que tudo o que deixámos consignado no ponto 1.1.1. tem aqui plena aplicação, nomeadamente no que se refere ao documento junto pela 2.ª R. como o requerimento de 18-10-2021 (Ref.ª n.º 30557765 - p.e.) relativo a “Pedido de exames para Patologia Clínica” (cfr. doc. de fls. 1272).
É certo que esse documento aparece como tendo data de requisição de exames de “Hemograma” e “proteínas” a de “2015-04-23”, sendo a data pretendida “2015-04-24” e hora pretendida “23:33”. Mas não temos como ter por certo, em face da ambiguidade verificada e já realçada, se essa “requisição” foi feita às 22horas ou às 23h59m do dia 23 de abril, não sendo de excluir, em absoluto, que possa ter sido feita na primeira hora do dia 24.
Apesar do exposto, tudo leve a crer que a requisição tenha sido feita no contexto da visita à doente pelo Dr. CN, porque isso resulta indiretamente do depoimento da testemunha MC, que confirmou o que ficou consignado a fls. 564, no dia 24 de abril de 2015, à 1h06m, onde se pode ler “Fica com análises pedidas”.
Portanto, em função do exposto, não teríamos razões para acolher a redação proposta pelos A.A., aqui Recorrentes. Ainda assim, a redação dada por provada fornece uma margem temporal mais alargada que, não estando absolutamente incorreta, em face da prova produzida, parece excessiva, em face da anotação feita a fls. 564.
Tudo nos leva a crer que o 3.º R. observou a doente antes da 1h06m do dia 24 de abril de 2015 e, em face do depoimento da testemunha MC e do por si consignado a fls. 564, ficou demonstrado que foi então que foram pedidos os exames (cfr. gravação dos minutos 48:30 a 51:25).
No dia 24 de abril de 2015 aparece apenas uma outra inserção da mesma enfermeira, às 14h42 (cfr. fls. 563), em que menciona a observação médica, primeiro pelo Dr. CN e, posteriormente, pelo Dr. PM, mas não é feita qualquer menção a novas análises. Portanto, as análises foram pedidas certamente antes das 4horas, como havia sido dado provado pela sentença recorrida, só que a prova permite concluir que as análises foram solicitadas antes da 1h06m do dia 24 de abril de 2015, até porque é isso que ficou consignado a fls. 564 pela citada enfermeira, MC.
Em conformidade com o exposto, deve o ponto 199 passar a ter a seguinte redação:
«199. O 3.º R. observou a doente antes da 1h06m do dia 24 de abril de 2015, tendo então solicitado análises, o que ficou escrito no registo de enfermagem, onde se pode ler: “Foi posteriormente observada. Fica com análises pedidas”».

1.1.4. Do ponto 200 dos factos provados.
Os Recorrentes impugnam o ponto 200 dos factos provados, porque a sentença dá por provada a colheita para as análises ocorreu pelas 8h19m, quando o que resulta da prova é que nessa hora estavam disponíveis os resultados das análises.
O 2.º R., nas suas contra-alegações, sustenta precisamente o contrário, referindo que a hora que consta da prova documental pretendida relevar é a do momento em que a amostra entra no laboratório.
Apreciando, o documento que está em causa é o que consta a fls. 554 do processo formato papel, onde se fazem menção a várias datas e horas de análises, sendo uma delas o dia “24-Abr-15” pelas “8:19”.
Na verdade, só do teor desse documento nada nos diz, nem os Recorrentes o demonstram, que essa não corresponda à data e hora da colheita das amostras para análise, tal como dado por provado. Por isso, não vemos qualquer motivo para alterar a redação do facto em causa, improcedendo nesta parte a impugnação apresentada.

1.1.5. Dos pontos 85 e 166 dos factos provados.
Impugnam os Recorrentes A.A. de seguida a matéria que ficou provada nos pontos 85 e 166, donde constam provados os alegados sinais de infeção reportados às 8h19m (facto 85) e quadro clínico verificado às 11h38m do dia 24 de abril de 2015, especificando-se as exigências que eram impostas pela legis artis (facto 166).
Apelam, nesta parte, ao que foi dito no depoimento do Dr. JA, que especificou a que sinais se deveria no caso estar atento, nomeadamente “febre, mais dores, atrasos no início do trânsito intestinal, agravamento das análises, dos parâmetros analíticos” (cfr. gravação aos minutos 17:15 a 17:52); ao depoimento da Dr.ª MR, que também mencionou a necessidade de controlo da dor, hemorragia e a parte hemodinâmica que deveriam ser vigiados (cfr. gravação aos minutos 24:40 a 26:27); ao depoimento da testemunha Enfermeira MC, que considerou que a existência de dejeções de melenas era suficiente para requerer uma avaliação médica (cfr. gravação aos minutos 55:20 a 56:00); e ao depoimento da Dr.ª APA, que adiante-se já, em face das transcrições reproduzidas nas alegações de recurso, em bom rigor, nesta parte, não revela conhecimento direto dos factos, limitou-se a falar de procedimentos normais para um médico tomar uma decisão.
Em todo o caso, pretendem ainda os Recorrentes relevar o que resulta da prova documental, nomeadamente das notas de enfermagem escritas na madrugada do dia 24 de abril, à 1h06m, às 4h11 e às 7:56, onde se faz menção à dejeção de melenas e estado febril, dores e sensação de sudorese, manutenção de queixas e dores localizadas aos quadrantes inferiores do abdómen; e ainda os resultados das análises nos dias 22, 23 e 24 de abril, com constante degradação do estado de saúde, com diminuição dos leucócitos, aumento das proteínas, que consideram típicas de um quadro infecioso.
Deste conjunto de prova entendem que resulta que os factos provados em 85 e 166 retratam uma realidade incompleta que deve ficar não provada, sugerindo a adição de novos factos em substituição, nomeadamente que às 22h00m do dia 23 a paciente já apresentava sinais típicos de anastomose relacionados com os valores decrescentes de leucócitos e crescentes de Proteína C Reativa, acompanhados de sinais de instabilidade hemodinâmica como dor, febre e hemorragia (facto a) a aditar); que perante esses sintomas era mandatória observação clínica rigorosa, a realização de análises e exames complementares, como uma TAC (facto b) a aditar); que às 8h19m esses sinais eram mais patentes em face da subida dos valores de Proteína C Reativa para 15,49, os quais se iam agravando com o decurso do tempo (facto c) a aditar); e que às 11h38m verificaram-se 2 episódios de vómitos e febre, leucemia, neutrofilia, PCR 15, continuando a exigir-se a observação clínica da doente (facto d) a aditar). Tudo conforme melhor enunciado na conclusão 29 das suas conclusões de recurso.
O 2.º R., nas suas contra-alegações, chamou a atenção para o facto de que as melenas registadas não criam suspeita de deiscência da anastomose, nem implicavam qualquer outra obrigação, para o 3.º R., que avaliar a situação presencialmente, como o fez, e prescrever analgésicos e pedir análises. Reforça esta argumentação com os resultados da consulta técnico-científica, que no quesito 8 explicitou que não consta do processo a ocorrência de hematoquésias (hemorragia retal), ou presença de sangue vermelho no ânus, indicativas de hemorragia digestiva baixa, sendo que as melenas se referem a sangue nas fezes, de cor negra e com forte cheiro pútrido, indicativo de hemorragia digestiva alta. Tal como foi igualmente explicado no depoimento da Dr.ª MR, que também referiu que a cor do sangue, vivo ou negro, depende do tempo que permaneça no intestino antes de sair (cfr. gravação aos minutos 27:34 a 30:32).
Ainda conforme a consulta técnico-científica realizada nos autos, realça este Recorrido que, no quesito 9, ficou explicitado que o diagnóstico e tratamento exigido depende do volume da hemorragia e do quadro clínico. Se forem de pequena quantidade, podem as melenas ser tratadas com inibição da secreção do ácido gástrico. Se forem em maior volume podem implicar estudos endoscópicos do tubo digestivo. No quesito 12, relativo à questão de ser exigida a realização da TAC perante um quadro de vómitos e dores abdominais no pós operatório imediato de uma ressecção anterior do reto com anastomose colon-retal primária, a resposta pericial foi no sentido de que era perante o quadro clínico verificado às 11h30m do dia 24 de abril que era mandatório uma observação clínica rigorosa e solicitação de novos exames complementares de diagnóstico, como uma TAC. E, no quesito 13, relativo a saber se, atento os registos clínicos e de enfermagem, seria correto dizer que a paciente apresentava sintomas típicos de deiscência da anastomose ou estes já estavam presentes 23 horas antes da realização do TAC, a resposta foi negativa, referindo-se claramente que de acordo com os registos clínicos, no dia 23 de abril de 2015, não era correto dizer que a doente já apresentava sinais típicos da deiscência da anastomose.
Pelo que, tudo isto considerado, entende o 2.º R., aqui Recorrido, que devem ser mantidos provados os factos 85 e 166, não se tendo provado o que é pretendido aditar aos factos provados pelos Recorrentes A.A..
O 3.º R., nas suas contra-alegações, também refere que não se provou a situação de degradação continua que é alegada pelos Recorrentes, nem que ela foi ignorada. O que se passou foi que não se verificavam queixas significativas e a paciente estava hemodinamicamente estável, tal como o mesmo registou pelas 11h31m (cfr. doc. a fls. 552) e tal como decorre dos registos de enfermagem (cfr. fls. 564 e ss.). No dia 23 de abril a paciente encontrava-se dentro dos parâmetros normais e só no início da madrugada de 24 de abril de 2015 se iniciou um agravamento da sintomatologia da doente. Também este R., aqui Recorrido, relembrou as respostas os quesitos 8, 9, 10 e 13 da consulta técnico-científica, onde explicitamente se diz que raramente ao 2.º ou 3.º dia surgem discências anastomásicas após uma resseção anterior do reto. Recordou igualmente o depoimento da Dr.ª MR, quando a mesma referiu que seria difícil a opção pela operação imediata sem ter indícios razoáveis, não se podendo operar só por se desconfiar que o intestino está rôto, nem fazer TAC de 5 em 5 minutos. Em suma, sustentou que, perante a observação da paciente no dia 24 de abril de 2015, à 1h06m, as análises revelavam leucócitos baixos, neutrófila relativa e Proteína C Reativa elevada, tendo o R. agido como era exigido, pedindo exames e, depois, requisitando uma TAC.
Apreciando, não podemos deixar de relevar, num caso como o presente, muito particularmente o resultado da consulta técnico-científica realizada pelo INMLCF, junta de fls. 1129 a 1132, onde é feita uma apreciação objetiva, independente e, pensamos nós, que também muito rigorosa da informação clínica já então disponível nos autos.
Dito isto, pretender extrapolar da verificação de dejeção de melenas “em moderada quantidade” e início de estado febril, tal como registado às 1h06m do dia 24 de abril (cfr. fls. 564) para a conclusão de que no dia 23 pelas 22h00m a paciente já apresentava sinais típicos de deiscência da anastomose, relacionados com os valores decrescentes de leucócitos e crescentes de Proteína C Reativa, acompanhados de sinais de instabilidade hemodinâmica como dor, febre e hemorragia, parece-nos completamente abusivo, por não ter respaldo na análise feita pelo INMLCF, nomeadamente nas respostas aos quesitos 8 a 13, tal como os Recorridos tiveram oportunidade de realçar.
A necessidade de realização da TAC, objetivamente não se colocava no dia 23 de abril, como resulta coerentemente da resposta pericial ao quesito 13 (cfr. fls. 1132), sendo certo que esse exame veio a ser realizado, conforme se mostra provado nos pontos 92 e 164 da matéria de facto provada na sentença, e por iniciativa da requisição do 3.º R., no dia 24. Sendo que a regularidade das análises feitas está demonstrada a fls. 554.
Não se nega que no dia 24, pelas 8h19m, os valores de PCR eram 15,49 (cfr. doc. a fls. 554) e que os mesmo se agravam para 28,7 no dia 25 às 8h11m, para 29,48 às 14h47m, tendo baixado para 28,72 às 22h26m (cfr. cit. doc. a fls. 554), mas a resposta aos quesitos dadas pelo INMLCF foram perentórias, nomeadamente na resposta ao quesito 12, no sentido de que seria o quadro clínico descrito às 11h38m, do dia 24 de abril, o mandatório para a realização da TAC e observação clínica rigorosa (cfr. fls. 1131). O que, evidentemente, justifica o que ficou provado no ponto 85 da sentença recorrida.
Finalmente, quanto ao facto pretendido aditar na alínea d) da conclusão 29 do recurso dos Recorrentes A.A., essa matéria não está omissa nos factos provados, constando precisamente do ponto 166 dos factos provados.
Em suma, por todo o exposto, julgamos que improcede nesta parte a impugnação apresentada pelos Recorrentes A.A..

1.1.6. Dos factos omissos alegados nos artigos 100.º e 101.º da petição inicial.
Os Recorrentes-A.A. pretendem ainda que sejam aditados aos factos provados o que por si foi alegado nos artigos 100.º e 101.º da petição inicial, no primeiro dos quais se menciona a dejeção de melenas, sua descrição e conclusão de que a mesma indicia hemorragia do estomago ou intestino delgado (artigo 100.º); e ainda que a mesma merecia uma atuação médica imediata (artigo 101.º); ao que deveria acrescer que deveria ficar provado que, perante esse quadro clínico, o 3.º R. deveria assegurar uma monitorização próxima, ou por clínico qualificado, transferindo a paciente para a UCI.
A prova pretendida relevar decorre novamente do depoimento da testemunha MR (gravação aos minutos 24:40 a 26:27) onde são descritos quais os sintomas aos quais se deveria estar atento e que deveriam ser vigiados; e o depoimento da testemunha MC (gravação aos minutos 55:20 a 55:55), de onde resulta que a dejeção de melenas era sinal suficiente para requerer uma avaliação médica. Tudo alegadamente demonstrativo da urgência duma atuação médica imediata.
Os Recorridos, 2.º e 3.º R.R., responderam a estas alegações essencialmente com o resultado da consulta técnico-científica e com a evidência que o 3.º R. agiu como lhe era exigível.
Apreciando, diremos que já consta dos factos provados o que era observável no dia 24 de abril de 2015 pelas 1h06m.  Aliás, essa matéria de facto apresenta-se repetida nos pontos 67 e 197 da sentença recorrida.
A descrição do que são melenas e do que elas podem ser indiciárias afigura-se despicienda na redação proposta, até porque a sua presença, só por si, não é absolutamente decisiva para os efeitos pretendidos demonstrar, como decorre da resposta ao quesito 9 da consulta técnico-científica. O que relevaria seria a quantidade (volume) e tipo de melenas, que conduzem a tratamentos e reações médicas exigíveis completamente diversas (cfr. fls. 1131), sendo que, no caso, a enfermeira consignou que a dejeção de melenas verificada era em “moderada quantidade” (cfr. fls. 564), tal como ficou provado nos pontos 67 e 197.
Depois temos ainda de relevar a resposta pericial aos quesitos 12 e 13. Do segundo deles (quesito 13) resulta que não é correta a afirmação de que em 23 de abril de 2015 a paciente já apresentava sintomas típicos de deiscência de anastomose (cfr. fls. 1132). E, do primeiro (quesito 12), que só no dia 24 pelas 11h38m é que era mandatória a observação clínica rigorosa e solicitação de exames complementares de diagnóstico, como uma TAC (cfr. fls. 1131). Ao exposto, acresce que, nenhuma testemunha ouvida em audiência, pôs verdadeiramente em causa a resposta a qualquer dessas questões por parte do INMLCF e, portanto, não vemos motivos para nos afastarmos das conclusões aí expressas de forma tão perentória e objetiva.
Em conformidade, julgamos que também nesta parte improcede a impugnação, por não se justificarem os aditamentos propostos aos factos provados e até por serem contrários, em alguns pormenores, à perícia científica produzida nos autos.
Em todo o caso, os factos alegados no artigo 100.º da petição inicial não podem propriamente ficar como “não provados”, tal como consta da sentença, porque isso seria algo contraditório com os factos provados em 67 e 197. Por isso, entendemos dever eliminar a referência ao artigo 100.º da petição inicial como “factos não provados”, sem prejuízo de deixarmos claro que o que se provou sobre essa concreta matéria, de relevante para o conhecimento do mérito da causa, já consta dos factos provados, nomeadamente dos pontos 67, 166 e 197.

1.1.7. Dos factos omissos alegados no artigo 112.º da petição inicial.
Visam ainda os mesmos Recorrentes que seja aditado aos factos provados o por si alegado no artigo 112.º da petição inicial, no qual se alega ser prática assente em todos os hospitais, por parte de qualquer enfermeiro, solicitar o auxílio de um médico apenas e só em situações de urgência. O que, segundo alegam, foi confirmado pelo depoimento da testemunha APA (gravação aos minutos 15:55 a 20:17). Ao que deveria acrescer o facto de que a 2.ª R. não dispõe de procedimentos padronizados em matéria de contacto noturno dos médicos responsáveis pelo doente, tudo sendo gerido de acordo com o “bom senso” da equipa de enfermagem.
Apreciando, quanto a este último pretendido aditamento, em primeiro lugar, temos de referir que esta factualidade pretendida assim aditar não foi alegada pelos A.A., nem por nenhuma outra parte, nem os A.A., ou o juiz do processo, requereu a sua inclusão nos factos provados, por força do seu alegado apuramento no decurso da instrução do processo, nos termos do Art. 5.º n.º 2 al. b) do C.P.C.. Trata-se, portanto, de matéria nova, sobre a qual não tiveram os R.R. oportunidade de exercer contraditório e arrolar outras provas para a contraditar, constituindo a sua eventual inclusão nos factos provados uma decisão surpresa, com a qual não estariam legitimamente a contar já nesta fase adiantada do processo.
A introdução desses factos no processo só poderia ser feita no decurso do julgamento, em primeira instância, por iniciativa das partes ou oficiosamente, cabendo ao juiz anunciar às partes que equacionava utilizar o mecanismo de ampliação da matéria de facto, sob pena de, não o fazendo, proferir uma decisão surpresa (cfr. acórdãos do S.T.J. de 7/2/2017 – Proc. n.º 1758/10 – Relator: Pinto de Almeida; de 6/9/2022 – Proc. n.º 3714/15 – Relatora: Graça Amaral; de 30/11/2022 – Proc. n.º 23994/16 – Relator: Barateiro Martins; acórdãos do T.R.C. de 11/12/2018 – Proc. n.º 2053/14 – e de 13/9/2022 – Proc. n.º 3713/16 – ambos relatados por Moreira do Carmo; e acórdão do T.R.L. de 19/12/2019 – Proc. n.º 1160518 – Relator: Carlos Castelo Branco). Não tendo as partes desencadeado o mecanismo de ampliação fáctica, nem tendo o mesmo sido utilizado oficiosamente pelo tribunal, está precludida a possibilidade de ampliação da matéria de facto com tal fundamento em sede de apelação, porquanto o conteúdo da decisão seria excessivo por envolver a consideração de factos essenciais complementares e concretizadores fora das condições previstas no Art. 5.º do C.P.C. (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 3.ª ed., pág. 32).
Quanto à matéria concretamente alegada no artigo 112.º da petição inicial, julgamos que a mesma é em si irrelevante, na estrita medida em que essa alegada prática nos hospitais, só por si, não determina que houvesse qualquer incumprimento do 2.º R., que, no caso, comprovadamente, tinha uma enfermeira de serviço, no turno da noite, e contactou o médico numa situação que, segundo a própria referiu, seria justificável, tendo o 3.º R. comparecido ao chamamento para observar a paciente. Trata-se, portanto, de matéria de facto em si mesmo inócua e irrelevante para o caso dos autos, porque dela não resulta qualquer incumprimento ou comportamento censurável imputável ao 2.º R..
Na verdade, temos de o dizer, os depoimentos testemunhais produzidos em audiência a este respeito foram todos no sentido de que se trataria duma boa prática do Hospital …, que assegurava assim boas soluções para os pacientes internados e em situações de emergência.
Acrescente-se ainda que o depoimento testemunhal pretendido relevar pelos Recorrentes não se reportava à prática doutros hospitais, tal como alegado no artigo 112.º da petição inicial, mas aos procedimentos da própria “…”. Pelo que, daí não resulta o que seja a prática normal nos outros hospitais.
Em suma, nada há a alterar aos factos não provados, nem a aditar aos factos provados, improcedendo nesta parte a impugnação.

1.1.8. Dos factos omissos alegados no artigo 114.º da petição inicial.
Entendem ainda os Recorrentes, A.A. na ação, que se fez prova do por si alegado no artigo 114.º da petição inicial, donde resultava que o clínico (3.º R.) visitou a paciente à mesma hora dos dias precedentes, não relevando a importância dos sintomas apresentados, num pós-operatório de cirurgia de resseção anterior do reto, com anastomose.
Relevam, para o efeito as notas do resumo de informação clínica (a fls. 110), que mostram a passagem do médico em causa às 11h34m do dia 22, ás 11h31m do dia 23 e 11h38m do dia 24 de abril de 2015; a contestação do 3.º R., que alega ter efetuado 4 cirurgias nesse dia entre as 10h02m e as 13h05m, tendo no intervalo duma delas observado a doente (artigos 37.º e 38.º); o depoimento da testemunha APA (gravação aos minutos 26:55 a 29:52 – que, em rigor, adianta-se desde já, nas partes transcritas nas alegações não demonstrou saber o que se passou no caso concreto); e as notas ao relatório de registo de enfermagem (a fls. 181) donde resultam intervenções às 9h00m.
Apreciando, não podemos deixar de realçar que o que está em causa neste facto, alegadamente omisso, não é as intervenções realizadas pela enfermagem, mas sim as visitas do 3.º R. à paciente. Por outro lado, a redação do artigo 114.º da petição inicial, na sua parte final, comporta um juízo de valor, conclusivo, sobre o comportamento do 3.º R. que não pode ser afirmado, portanto, como um facto. Finalmente, sendo certo que a fls. 562 (processo em formato papel) constam apenas registos de 3 visitas, em 3 dias seguidos, sempre sensivelmente à mesma hora (por volta das 11h30m), também é evidente que essa informação não está conforme com os registos clínicos da enfermagem, que no dia 24 de abril, à 1h06m, dão nota que essa doente foi observada pelo médico, depois do 3.º R. ter sido contactado telefonicamente, numa situação que foi tida como suficientemente relevante para o efeito pela enfermeira de turno (cfr. doc. a fls. 564), tal como foi confirmado pela testemunha MC. Por isso, julgamos que se fez prova de factos que demonstram o contrário do assim alegado, que, por isso mesmo, deve continuar a figurar nos factos não provados, na parte que dele pudesse resultar uma alegação estritamente factual.

1.2.1. Do ponto 133 dos factos provados e dos factos alegados no artigo 22.º da contestação do 1.º R.
Passando agora à impugnação da decisão sobre a matéria de facto apresentada pelo 1.º R., pretende o mesmo que seja alterada a redação do ponto 133.º, eliminando a matéria do artigo 22.º da sua contestação do rol dos factos não provados, pretendendo que fique aí agora a constar que: «Após a prestação dos esclarecimentos necessários para a compreensão da doente, solicitou que fosse assinado o documento de “Consentimento Informado”».
No ponto 133 da sentença recorrida ficou provado que: «133. No final dessa consulta, foi pedido a CP que lesse e assinasse do documento cuja cópia consta de fls. 772 dos autos, o que esta fez».
Pretende assim o 1.º R., aqui também Recorrente, que fique provado que foi após a prestação dos esclarecimentos necessários para a compreensão da doente que o R. solicitou que fosse assinado o documento referente ao “Consentimento Informado”.
Recorda que o 1.º A., nas suas declarações de parte, reconheceu a assinatura da sua esposa, constante do “Consentimento Informado”, junto a fls. 772, e que esteve presente nesse momento, referindo que a mesma esteve a “responder a coisas”, tendo explicitado que a operação, como lhe foi explicada, seria “corte, cola e une” (cfr. gravação aos minutos 12:17 e 13:13 da sessão de 27 de outubro de 2021). Por outro lado, o 1.º R., em declarações de parte, também teria confirmado que prestou esclarecimentos sobre o diagnóstico, adequação da cirurgia, riscos, consequências previsíveis e alternativas existentes, tendo a paciente ficado perfeitamente esclarecida e tendo aceitado a realização da operação, tal como ficou consignado no documento que assinou.
Nessa medida, conclui, os factos por si alegados no artigo 22.º da contestação não podem subsistir nos factos não provados, devendo o ponto 133 dos factos provados ficar com a redação por si proposta.
Reforça ainda os fundamentos expostos com os depoimentos doutras testemunhas que referem que a esposa do A. era muito cuidadosa com a sua saúde e com a descrição que foram fazendo dos termos da operação que ia ser feita.
Como vimos, não foram apresentadas contra-alegações relativamente a este recurso por parte dos A.A., logo não houve resposta à correspondente impugnação da matéria de facto. Sem prejuízo, fomos obrigados, por dever de ofício, a ouvir integralmente a gravação dos depoimentos em causa.
O único documento relevante para este efeito é o que consta de fls. 772, que foi assinado pela esposa do 1.º A., tal como este último reconheceu (cfr. gravação aos minutos 31:25 da sessão de 14/01/2021).
Constatamos que esse documento se encontra largamente pré-impresso, sendo que os dizeres manuscritos (v.g. números da ”etiqueta identificativa do doente”; nome da declarante; nome do médico; identificação do diagnóstico, especialidade da Unidade responsável; aposição da cruz à frente da palavras “Aceito”, bem como as assinaturas e data), com exceção da assinatura imputada a CP, não foram feitos pela mão desta última, segundo foi referido, muito de passagem, pelo 1.º A. (cfr. gravação aos minutos 34:29 da sessão de 14/01/2021).
Em resumo, temos de dizer que, quer o depoimento de parte do 1.º A., produzido em 14/1/2021, bem como as declarações de parte, produzidas em 27/10/2021, foram seguramente um exercício de “resistência” à admissão de que o 1.º R. alguma vez tivesse esclarecido o que quer que fosse à sua esposa. A ideia geral que o 1.º A. pretendeu transmitir foi que tudo foi muito rápido, que não tiveram tempo para “digerir” a informação, perante a constatação inesperada, informada 2 dias antes pelo Dr. PR, de que tinha sido verificada a existência de um cancro maligno no intestino à sua esposa. Assim, para o 1.º A., o que o 1.º R. fez, nessa primeira consulta, a que chegou atrasado, foi preencher papéis e fazer perguntas relativas aos papéis que tinha de preencher, sendo nesse contexto que referiu que a “CP respondia a perguntas” (cfr. gravação aos minutos 25:10 da sessão do dia 14/01/2021).
Ainda assim, evidentemente contrariado, lá foi admitindo que o 1.º R. lhe forneceu o contacto telefónico (cfr. gravação aos minutos 27:00 da sessão de 14/01/2021) e que “não reteve nada da explicação da operação” (cfr. gravação aos minutos 28:10). O que, naturalmente, pressupõe que teriam havido explicações sobre a operação, prestadas pelo 1.º R., ainda que sobre elas nada tivesse retido.
Depois, quando confrontado com o documento de fls. 772, reafirmou que o R. não lhe explicou “técnica” nenhuma de operação, embora reconheça que a esposa aceitou fazer a operação e que estavam cientes que ia ser feita uma intervenção cirúrgica que era necessária (cfr. gravação aos minutos 31:55 a 36:33 da sessão de 14/01/2021).
O tom geral do seu depoimento não se alterou na sessão de 27/10/2021. Aí voltou a admitir que tinham a noção que a operação era cortar a parte afetada do intestino e depois colar, “ficando por aí” (cfr. gravação aos minutos 14:55). Não reconheceu que lhes tivessem sido comunicado o risco de morte (cfr. gravação aos minutos 17:16), nem nesse dia sequer tivessem pensado sobre essa possibilidade (cfr. gravação aos minutos 17:31), pois a ideia transmitida era que seria uma operação fácil (cfr. gravação aos minutos 18:20). Em todo o caso, reconheceu que a operação tinha de ser feita (cfr. gravação aos minutos 22:18).
Diremos assim que resulta do seu depoimento que, no mínimo, foram prestadas informações de caráter genérico sobre em que consistia a operação pretendida realizar.
Já o 1.º R., em declarações de parte prestadas no dia 27/10/2021, pelo contrário, disse que explicou à paciente em que consistia a operação que tinha de ser feita, seu seguimento e o que era esperado (cfr. gravação aos minutos 7:56 a 10:10), embora não se recordasse especificamente sobre o facto de ter informado sobre o “risco de morte” (cfr. gravação aos minutos 10:35). Referiu que deu o “consentimento informado” à esposa do 1.º A., o qual foi assinado por esta e pelo R., na presença do 1.º A., sendo que eles não lhes fizeram quaisquer perguntas ou pediram esclarecimentos, tendo dado o seu contacto telefónico para eles pedirem qualquer esclarecimento que entendessem necessário (cfr. gravação aos minutos 12:27 a 14:36).
As restantes testemunhas, familiares ou amigos da falecida CP, em bom rigor, não estiveram presentes nesta consulta e, portanto, nada sabiam sobre este concreto facto, a não ser a descrição genérica que lhe foi transmitida pela esposa ao 1.º A. sobre a “facilidade” da operação, que consistiria no “corte e cola” do intestino. O que, de algum modo, corresponde ao que foi reconhecido pelo 1.º A..
Ou seja, tudo leva a crer que o 1.º A. e a sua esposa tinham conhecimento do diagnóstico, desde logo através da consulta anterior com o Dr. PR, bem como da necessidade de se fazer uma intervenção cirúrgica relativamente célere para debelar o problema de saúde verificado, tendo também ficado cientes, em termos aparentemente muito genéricos, sobre o que consistia a operação que o 1.º R. se propunha fazer, sendo inequívoco que, no final da consulta havida com esse médico, foi aceito pela paciente realizar essa intervenção cirúrgica (cfr. factos provados 133 e 135), ficando também com o contacto telefónico deste, para eventualmente pedirem qualquer esclarecimento complementar que entendessem ser necessário (cfr. facto provado 134).
Julgamos assim que o 1.º R. terá certamente prestado alguns esclarecimentos e informações sobre a operação pretendida realizar no quadro da consulta em menção. No mínimo, explicou o que ficou provado no ponto 136 da matéria de facto provada da sentença recorrida. O que não ficou claro é se foram logo explicitados à paciente os riscos dessa operação, muito particularmente o risco de morte, nem as consequências mais previsíveis e frequentes, porque isso não foi sequer referido explicitamente pelo 1.º R., no seu depoimento, e não foi confirmado pelo 1.º A.. Logo, não pode ser dado por assente que foram prestados “os esclarecimentos necessários”, tal como é pretendido pelo 1.º R., aqui Recorrente.
Tudo resumido, a prova produzida permite alguma margem de certeza para alterar a redação do ponto 133 dos factos provados, mas em termos muito mitigados pelas contingências efetivas da prova produzida, que só permitem afirmar o que ficou a constar do ponto 136 dos factos provados. O que não permite certamente é a pretendida eliminação da matéria do artigo 22.º da contestação do 1.º R. dos factos não provados, na medida em que aí era suposto que haviam sido prestados “todos os esclarecimentos necessários” à doente, “facto” que efetivamente não se provou.
Assim, o facto 133 passará a ter a seguinte redação:
«133. Após a prestação de alguns esclarecimentos gerais sobre a operação que era pretendida realizar, nos termos constantes do ponto 136, no final da consulta o 1.º R. pediu a CP para ler e assinar o documento cuja cópia consta de fls. 772 dos autos, o que esta fez».

1.2.2. Do ponto 135 dos factos provados.
Fundamentalmente com base na mesma prova supra considerada, pretende ainda o 1.º R., aqui Recorrente, que seja alterada a redação do ponto 135, por forma a que aí passe a constar que o consentimento à realização da operação foi dado “após as informações sobre a cirurgia proposta e os riscos mais comuns inerentes à mesma que aquele lhe prestou”.
Ora, pelas razões que já deixámos consignadas no ponto anterior (1..2.1. do presente acórdão), não se fez prova suficiente sobre os esclarecimentos prestados pelo 1.º R. relativamente aos “riscos mais comuns” inerentes a este tipo de operação. Pelo que, sem necessidade de maior fundamentação, julgamos que o ponto 135 não pode ser alterado nos termos propostos, não se vislumbrando qualquer fundamento para alterar a redação assente na sentença recorrida.

1.2.3. Da eliminação dos pontos 16, 96 e 97 dos factos provados.
Relacionado ainda com o mesmo tema, do cumprimento dos deveres de informação, quer o 1.º R., sempre acompanhado pela interveniente A…, quer a interveniente F…, aqui também Recorrente, vieram sustentar a eliminação dos factos provados constantes dos pontos 16 e 96 da sentença recorrida, aos quais o 1.º R. acrescenta ainda a eliminação do ponto n.º 97.
Do ponto 16 dos factos provados ficou a constar que a falecida estava convicta de que a cirurgia e o pós operatório iriam decorrer sem complicações, reportando-se essencialmente à 1.ª intervenção cirúrgica.
Já no ponto 96, estamos a referir-nos à 2.ª intervenção cirúrgica, realizada de emergência, aí constando que para além do que ficou consignado em 94 e 95, não foram transmitidos os riscos dessa concreta intervenção, nem sobre a natureza ou procedimentos da mesma. Concluindo-se ainda, no ponto 97, que não foi obtido qualquer consentimento expresso para essa 2.ª operação.
O 1.º R. sustentou que assim não poderia ser, porque do depoimento do Dr. JA resultaria que o diagnóstico de um adenocarcinoma, ou seja de um cancro maligno no intestino, seria, nas suas palavras, “catastrófico”, e se nada se fizesse a esposa do 1.º A. teria uma esperança de vida na ordem dos 25 meses, sendo que a operação poderia permitir estar viva por mais 5 ou 10 anos. Por outro lado, do depoimento do 1.º A. também resultaria que ambos estavam conscientes que a CP tinha de ser operada e que “riscos há sempre”.
A interveniente F… preferiu, na sua impugnação, a abordagem da coerência dos factos provados em 12 a 15, 36, 37 e 130 a 137 e da fundamentação da sentença recorrida a seu respeito, para sustentar que o ponto 16 teria de necessariamente ser eliminado dos factos provados. Por outro lado, o facto provado n.º 94 determina igualmente que a esposa do 1.º A. foi informada que a situação era grave, não podendo pôr-se em causa que a intervenção era necessária. Finalmente, realçou que o 1.º A., em declarações de parte, também teria reconhecido que a sua esposa tinha de ser operada e que sempre haveria riscos. Acrescentou ainda que existiria uma contradição entre o ponto 96 e 95.
Apreciando, quanto ao ponto 16, a prova não oferece dúvidas. Todas as testemunhas ouvidas, amigos ou familiares da falecida, ouviram da boca desta última qual era o seu sentir sobre a complexidade e riscos da operação. O que não diverge, no essencial, sobre o que foi transmitido pelo 1.º A., quer na sessão de 14/1/2021, quer na sessão de 27/10/2021.
Todas as testemunhas foram unânimes em veicular que a imagem que lhes foi transmitida pela falecida, antes da 1.ª operação, era a de que seria uma operação fácil, de “corte e cola”, esperando regressar tão rápido quanto possível a casa, sem necessidade de quimioterapia ou “saco”. Foi isso que disse a testemunha JP, irmão da falecida (cfr. gravação aos minutos 5:00 a 7:22); MS, amiga e colega de trabalho da falecida (cfr. gravação aos minutos 8:50 a 9:50); JAP, pai da falecida (cfr. gravação aos minutos 5:25 a 7.50); PS, amigo da família (cfr. gravação aos minutos 3:23 a 6:55); e MS, amiga da família (cfr. gravação aos minutos 5:03 a 5:30).
O 1.º A. também transmitiu essa mesma ideia, vincando sempre muito a ideia de que a operação seria fácil, de “corte, cola e une” (cfr. gravação aos minutos 8:01 e 14:55 da sessão de 27/10/2021), que estavam confiantes que a operação ia ser normal (cfr. idem gravação aos minutos 13:49), que não se colocou a questão do perigo de morte, nem pensaram nisso, até porque lhes diziam que a operação ia ser fácil, mesmo reconhecendo que a operação era necessária (cfr. idem gravação aos minutos 17:16 a 22:18).
Visto isto, o ponto 16 deve necessariamente continuar a figurar nos factos provados.
Quanto ao ponto 96, também a prova produzida não oferece quaisquer dúvidas, nem contradições, sendo dela evidente que as coisas se passaram tal como consta da sequência de factos provados nos pontos 94 a 97.
É isso que resulta do depoimento da testemunha JAP, pai da falecida, que estava presente nesse concreto momento (cfr. gravação aos minutos 11:16 a 16:26); das declarações de parte do 1.º A., LL (cfr. gravação aos minutos 41:54 a 46:45 da sessão de 27/10/2021); e das declarações de parte do 1.º R., PM (cfr. gravação aos minutos 50:00 a 55:00, 1:03:12, 1:09:10 a 1:18:27, 1:29:41 a 1:30:24, 1:53:20). Muito em particular, foi o próprio R. que reconheceu o que disse nesse momento, que se resume, no essencial, ao que consta do ponto 94, mesmo sendo certo que indiciado que não haveria muito mais a explicar nesse contexto, para além de se tratar duma situação de emergência e intervenção cirúrgica rápida e necessária.
O máximo que se pode dizer é que as pessoas presentes e, naturalmente, esposa do 1º A., ficaram alarmadas, percebendo a urgência que lhes era transmitida pelo médico, mas objetivamente nada mais foi dito que o que ficou provado em 94. Ora, é isso mesmo o que ficou provado em 96 e, da nossa apreciação da prova, muito corretamente, nada havendo a alterar aos factos provados.
Finalmente, no que se refere ao ponto 97, ficou claro, quer das declarações de parte do 1.º A., quer das declarações de parte do 1.º R., que não foi obtido qualquer consentimento por escrito quanto a essa 2.ª intervenção cirúrgica. Aliás, esse documento não veio a ser junto aos autos, podendo é discutir-se se o de fls. 772, relativo à 1.ª intervenção, compreenderia igualmente esta 2.ª situação em concreto.
Certo é que, neste contexto, não podemos deixar de fazer notar que o 1.º R., em declarações de parte, acabou por confessar que era sua intenção obter um novo “Consentimento Informado” assinado pela doente, imediatamente antes dessa 2.ª intervenção, mas na altura em que a mesma chegou ao piso da sala de operações, já não estaria em condições para esse efeito, sendo a situação verificada mais de “consentimento presumido” (cfr. gravação aos minutos 1:29:41 a 1:30:52).
O que se passou antes desse momento foi mais um relato duma situação de pânico, ou de confronto da paciente com uma realidade nova e inesperada que lhe estava a ser transmitida “in extremis”. Nesse concreto contexto, não se pode falar duma afirmação consciente, ou de manifestação duma vontade expressa, no sentido de consentir numa nova operação. Em suma, o que se passou foi que foi apresentado à doente um cenário sem opções, que não se discute que fosse verdadeiro, mas ao que não correspondeu verdadeiramente qualquer expressão de vontade livre e consciente da paciente. Esta última simplesmente foi conduzida para a 2.ª intervenção cirúrgica, sem qualquer outra possibilidade de escolha.
Em face do exposto, razões não existem para eliminar o ponto 97 dos factos provados.
Resta dizer que não vislumbramos qualquer contradição entre o ponto 96 e 95, pois os dois segmentos de facto são coerentes entre si e traduzem a realidade dos factos, em conformidade com o que resulta da prova que sobre eles foi produzida.
Em suma, improcede também nesta parte a impugnação dos R.R. Recorrentes.

1.2.4. Do aditamento aos pontos 80 e 81 dos factos provados.
O 1.º R., enquanto Recorrente, veio ainda chamar a atenção para o facto de que os pontos 80 e 81 retratam uma situação incompleta, que não reflete inteiramente a prova produzida a esse respeito, pretendendo que seja aditado um ponto 80-A, com a seguinte redação: «A doente não tolerou a gastrografina, contraste necessário à realização do TAC, o que retardou o exame, tendo sido necessário administrar contraste endovenoso e contraste rectal».
Sustenta que isso foi dito pela testemunha APA, Enfermeira do Hospital …, e pelo próprio R., em declarações de parte, resultando ainda da página 48 do processo clínico junto aos autos pelo 2.º R..
A interveniente F… também ressalva que deveria ser reponderada a questão do atraso na realização do TAC, mas não precisou que alteração à matéria de facto era por si pretendida, limitando-se a concluir que o facto 80 deveria ser “desatendido” (cfr. conclusão K). O que não corresponde ao cumprimento do ónus de impugnação estabelecido no Art.º 640.º n.º 1 al. c) do C.P.C., determinando a consequente rejeição do seu recurso quanto à impugnação da matéria de facto relativa ao ponto 80, se é que o seu propósito era efetivamente impugnar esse facto.
Diga-se ainda, que, também quanto a este ponto, não houve resposta aos recursos dos R.R. por parte dos A.A., que nesta parte são Recorridos.
Apreciando, verificamos que o documento mencionado nas alegações de recurso consta de fls. 493, e, só por si, nada prova, para além de que, foi feito “contraste endovenoso e contraste rectal”, com menção à hora de: “18h11m” do dia 24 de abril de 2015 (cfr. cit. doc.).
A testemunha APA, enfermeira desse hospital, confirmou que a paciente, ou não conseguiu beber, ou vomitou o líquido (gastrografina) destinado a fazer a TAC, por facilitar o contraste (cfr. gravação aos minutos 6:36 a 9:27). Também confirmou a inserção do dia 24 de abril, pelas 14:42, onde se menciona “Vai fazer tac abd pélvico às 16h. Não tolerou gastrografina. Imagiologia e Dr. PM informados” (cfr. doc. de fls. 563 infra) - (cfr. gravação aos minutos 15:23). O que corresponde precisamente ao que ficou provado no ponto 80 dos factos provados da sentença recorrida.
O 1.º R., em declarações de parte, para além de reconhecer a premência da TAC (cfr. gravação aos minutos 54:00) e que esse exame já tinha sido pedido pelo Dr. CN (cfr. gravação aos minutos 52:20), referiu ter insistindo na realização desse exame, por não se ter conseguido fazer o “contraste”, dado que a paciente não conseguia ingerir o líquido, querendo que esse exame fosse feito “fosse como fosse” (cfr. gravação aos minutos 2:00:04 a 2:01:15).
Daqui decorre que houve efetivamente algum atraso relacionado com a intolerância da paciente à “gastrografina”. Pelo que, não custa admitir, em face desta prova, que seja aditado à redação do ponto 81 o motivo pelo qual apenas às 17h15 a falecida foi encaminhada para a realização do exame (TAC).
Assim, o ponto 81 dos factos provados passa a ter a seguinte redação:
«81. Embora a indicação de que a TAC seria realizada às 16h00, apenas pelas 17h15 a falecida foi encaminhada para a realização do exame, conforme anotação da Enf.ª LB, feita às 18H03, o que se ficou a dever à intolerância da paciente à gastrografina, não permitindo desse modo a realização da TAC com o contraste necessário, tendo sido necessário, em alternativa, administrar contraste endovenoso e contraste retal».

1.2.5. Da eliminação do ponto 172 dos factos provados.
Finalmente, o 1.º R. pretende ainda que seja eliminado o ponto 172 dos factos provados, do qual resulta que esse R. solicitou a sala para a realização da operação “poucos minutos após as 20h00”.
Essencialmente pretende relevar que das suas declarações de parte consta que solicitou sala antes e que esse pedido foi formulado a um “enfermeiro”, portanto, do sexo masculino, que lhe informou que não tinha salas disponíveis, sendo que decorridos todos estes anos não seria possível saber se haveria sala disponível ou não.
Apreciando, temos de dizer que, sobre este ponto, a prova produzida foi muito clara e consistiu num desmontar completo e inequívoco das justificações apresentadas pelo 1.º R. nas declarações de parte prestadas no dia 27 de outubro de 2021.
Ficou claríssimo do depoimento das testemunhas FR e MA, que eram as pessoas responsáveis pela organização das salas do bloco operatório do hospital no dia 24 de abril de 2021, a primeira no horário das 8h00m às 16h00m, e a segunda das 16h00m em diante. Desses dois depoimentos resultou que o 1.º R. não contactou a primeira dessas testemunhas, nesse dia, a solicitar sala para operação, mas contactou a segunda das referidas testemunhas, pouco depois das 20h00m. Mais resultou, desses depoimentos, que durante o dia 24 verificaram-se as seguintes disponibilidades de salas: das 8h às 10h: a sala 4; das 11h às 15h: a sala 3; das 14h30 às 18h30m: a sala 4; e das 16h30m às 17h30m: a sala 3. Em suma, das 11h00m às 18h30m houve sempre uma sala disponível para realização desta cirurgia, sendo certo que só se provou que o 1.º R. tenha solicitado uma sala depois das 20h00 do dia 24, a qual lhe foi imediatamente disponibilizada.
Qualquer outro contacto anterior às 20h00m, fosse lá com quem fosse, foi apenas referido pelo 1.º R. e não tem qualquer outro suporte, testemunhal ou documental, sendo evidente que se alguém disse a esse R. que não havia sala disponível – o que não se sabe se é verdade –, certo seria sempre que essa hipotética informação, que alegadamente lhe foi transmitida, não corresponderia à verdade.
Assim sendo, nada há a alterar ao que ficou provado no ponto 172.

1.3. Da conclusão das impugnações apresentadas.
Em face de todo o exposto, procedendo parcialmente as impugnações apresentadas, são determinadas as seguintes alterações à matéria de facto:
I- Os factos provados 22, 81, 133, 197, 198 e 199 da sentença recorrida passam a ter a seguinte redação:
«22. O que motivou o contacto do 3.º R., a hora não concretamente apurada, na noite da passagem do dia 23 de abril para o dia 24 de abril de 2015».
«81. Embora a indicação de que a TAC seria realizada às 16h00, apenas pelas 17h15 a falecida foi encaminhada para a realização do exame, conforme anotação da Enf.ª LB, feita às 18h03, o que se ficou a dever à intolerância da paciente à gastrografina, não permitindo desse modo a realização da TAC com o contraste necessário, tendo sido necessário, em alternativa, administrar contraste endovenoso e contraste rectal».
«133. Após a prestação de alguns esclarecimentos gerais sobre a operação que era pretendida realizar, nos termos constantes do ponto 136, no final da consulta o 1.º R. pediu a CP para ler e assinar o documento cuja cópia consta de fls. 772 dos autos, o que esta fez».
«197. O R. CN foi contactado pela Enfermeira MC, a hora não concretamente apurada, mas certamente anterior à 1h06m do dia 24 de abril de 2015, pelo facto de CP se apresentar “queixosa e febril no início do turno. Dejeção de melenas em moderada quantidade.”».
«198. Em face da descrição feita pela referida Enf.ª quanto às queixas de CP, o R. prescreveu a administração de Petidina 30 mg, pela via Endovenosa, que foi realizada a hora não concretamente apurada, mas certamente anterior à 1h06m do dia 24 de abril de 2015, e que, conforme resulta do registo da enfermagem, se revelou “(eficaz)”».
«199. O 3.º R. observou a doente antes da 1h06m do dia 24 de abril de 2015, tendo então solicitado análises, o que ficou escrito no registo de enfermagem, onde se pode ler: “Foi posteriormente observada. Fica com análises pedidas”».
II- É eliminada, nos factos não provados, a menção ao articulado em 100.º da petição inicial.

2. Da responsabilidade civil por ato médico do 1.º R..
Fixada a factualidade relevante para o conhecimento do mérito da causa, cumpre agora debruçando-nos sobre o mérito da causa.
Recordemos que a presente ação tem por fim o exercício do direito a indemnização por factos ilícitos e culposos relativos a atos médicos, vulgo por “negligência médica”.
Os A.A., por si e enquanto herdeiros da falecida, CP, pretendiam ser indemnizados por danos não patrimoniais, no valor total de €270.000,00, sendo €30.000 pela agonia e sofrimento que a falecida suportou com as intervenções cirúrgicas, exames, dores e extremo sofrimento; €120.000,00 pela morte prematura da vítima, aos 43 anos de idade, que perdeu a possibilidade de ver os seus filhos crescerem; €40.000,00 para cada um dos filhos, pelos traumas psicológicos, por terem ficado órfãos de mãe, sem o seu apoio no estudo, educação, atividades de tempos livres, alimentação e despojados desse ser essencial à sua vida; e €40.000,00 por danos causados ao marido, que perdeu a sua companheira, mãe dos seus filhos, com 9 anos de idade, tendo agora que os educar sem o apoio da sua esposa, com destruição do seu projeto de vida, sofrendo graves traumas psicológicos pela viuvez precoce. Mas, caso se entendesse que não houve erro médico da parte dos R.R., sempre o falecimento precoce da esposa e mãe dos A.A. deveria ser ressarcido com base na “perda de chance”, por perda da oportunidade de sobreviver à doença, o que constituiria um dano autónomo de valor cuja determinação concreta deveria ser relegada para liquidação de sentença.
Sustentavam os A.A. a responsabilidade dos R.R. na violação das legis artis, por não terem cumprido aquilo a que se tinham vinculado, não tendo agido com os cuidados médicos devidos e a urgência que a situação de doença impunha, o que conduziu à morte da paciente. Mas também alegaram a ausência de prestação de informação relevante sobre as intervenções cirúrgicas realizadas, o que obstaria a um consentimento informado pleno para a materialização das mesmas.
A sentença recorrida absolveu do pedido os 3.º a 5.ºs R.R., mas condenou os 1.º e 2.ºs R.R., bem como as respetivas seguradoras, aqui chamadas a intervir, na quantia que se vier a liquidar “pela perda de chace resultante do falecimento de CP, quanto a danos não apurados”. Decisão que é agora posta em causa, quer pelos A.A., quer pelos 1.º e 2.º R.R., quer pelas suas respetivas seguradoras.
Começaremos por considerar a responsabilidade civil do 1.º R., já que da verificação da mesma dependerá inevitavelmente, em grande parte, a responsabilidade do 2.º R. e, consequentemente, das duas seguradoras chamadas a intervir.
Em primeiro lugar, poderemos desde já adiantar que, relativamente ao 1.º R., está em causa uma alegada situação de responsabilidade civil de natureza contratual, ainda que não se exclua a possibilidade de cumulação de mais de um tipo de responsabilidade civil.
De facto, os A.A. partiram fundamentalmente da existência duma relação contratual de base, ainda que reconhecendo que os regimes de responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, se possam sobrepor no caso concreto, porque a fonte da obrigação de indemnização tanto se reporta ao incumprimento contratual, como à lesão de direitos absolutos.
Efetivamente, a responsabilidade civil, da qual emerge a obrigação de indemnização, tanto pode resultar da falta de cumprimento de obrigações emergentes de contratos, negócios jurídicos unilaterais ou de obrigações emergentes da lei – fala-se então de responsabilidade contratual ou obrigacional –, como da violação de direitos absolutos ou da prática de certos atos que, embora lícitos, causem prejuízos a outrem – fala-se então em responsabilidade extracontratual (Vide: Antunes Varela in “Das Obrigações Em Geral”, Vol. I, 10ª Ed., pág. 519 a 520).
Na verdade os pressupostos de ambos os tipos de responsabilidade civil acabam por ser muito semelhantes, sendo que a doutrina tem vindo a defender maioritariamente que se podem cumular ambos os regimes, que concorrem para a solução do caso concreto (neste sentido, entre muitos outros: Rui Alarcão in “Direito das Obrigações”, 1983, Ed. Policopiada, pág. 211 a 212; Carlos Mota Pinto in “Cessão da Posição Contratual, 1982, pág. 411; João Álvaro Dias in “Procriação Medicamente Assistida e Responsabilidade Médica”, 1996, pág. 231; Miguel Teixeira de Sousa in “Concurso de Títulos de Aquisição da Prestação – Estudos Sobre a Dogmática da Pretensão e do Concurso de Pretensões”, 1988, pág.s 136 e ss. e 313 e ss.; e Menezes Cordeiro in “Da responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais”, LEX, 1999, pág. 491 e 492).
Neste contexto, o Supremo Tribunal de Justiça vem defendendo a aplicação prevalente da responsabilidade contratual por ser mais favorável ao lesado.
Assim, no acórdão de 22/3/2018 (Proc. n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1 – Relatora: Maria Graça Trigo, disponível em www.dgsi.pt) sustenta-se que: «I- Em sede de responsabilidade civil por atos médicos ocorre frequentemente uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, sendo orientação reiterada da jurisprudência do STJ a opção pelo regime da responsabilidade contratual, tanto por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada, como por ser, em regra, mais favorável à tutela efetiva do lesado».
Na mesma linha de raciocínio, no acórdão de 2/6/2015 (Proc. n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1 – Relatora: Maria Clara Sottomayor – disponível no mesmo sítio), é dito que: «I – Em matéria de responsabilidade médica, deve aplicar-se o regime da responsabilidade contratual por ser mais favorável ao lesado e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada».
Com a mesma solução prática, embora defendendo a existência duma relação de consunção, no acórdão do S.T.J de 7/3/2017 (Proc. n.º 6669/11.3TBVNG.S1 – Relator: Gabriel Catarino, também disponível no mesmo sítio) é dito: «IV- A responsabilidade civil médica pode ter, simultaneamente, natureza extracontratual e contratual, pois o mesmo facto pode constituir, a um tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física. V- Em regra, a jurisprudência aplica o princípio da consunção, de acordo com o qual o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual, solução mais ajustada aos interesses do lesado e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada». O que é igualmente sustentado no acórdão do S.T.J. de 26/4/2016 (Proc. n.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1 – Relator: Silva Salazar), conforme se pode ler no seguinte extrato do seu sumário: «I- A responsabilidade civil médica tem natureza contratual quando assenta num contrato de prestação de serviços. II - Configura um contrato de prestação de serviços o acordo pelo qual o réu médico se obrigou a realizar uma intervenção cirúrgica, que consistiu numa artroplastia com prótese total da anca de longa duração, a que a autora decidiu sujeitar-se. (…) X - O regime da responsabilidade contratual, aplicável à invocação da violação de uma obrigação contratual de que resultam danos para as partes, é globalmente mais favorável ao lesado e conforme ao princípio da autonomia privada, pelo que consome o regime da responsabilidade extracontratual, incluindo o invocado art.º 493.º do CC».
Partiremos, portanto, da consideração da responsabilidade contratual, por comodidade de apresentação e por se nos afigurar mais favorável à pretensão dos A.A., nomeadamente por dela resultar a facilidade, para o credor, resultante da circunstância de a culpa do devedor se presumir (cfr. Art.º 799.º do C.C.).
A responsabilidade contratual tem o seu quadro legal essencialmente nos Art.ºs 798º e ss. do C.C., onde se estabelece desde logo a regra geral de que «o devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causar ao credor» (Art.º 798º do C.C).
Portanto, a responsabilidade civil contratual pressupõe sempre uma relação jurídica de natureza creditícia, resultando a obrigação de indemnização da violação de deveres específicos decorrentes desse vínculo obrigacional originário.
Os pressupostos da responsabilidade civil contratual ou obrigacional, que importam sempre verificar-se, são assim:
a) A falta de cumprimento duma obrigação emergente de contrato, negócio jurídico unilateral ou imposta por lei, seja por incumprimento absoluto e definitivo, seja por mera mora, seja por cumprimento defeituoso;
b) A ilicitude, que resulta da constatação da desconformidade objetiva entre a conduta devida e o comportamento observado pelo devedor, por não ser correspondente ao exercício legítimo de um direito, ou ao cumprimento de um dever imposto por lei ou negócio jurídico, nem a comportamento cuja ilicitude a lei tenha por excluída ou justificada;
c) A culpa, que resulta de um juízo de censurabilidade e reprovabilidade sobre a conduta do lesante, baseado no reconhecimento de que o devedor, não só deveria, como poderia agir doutro modo, sendo este o único pressuposto que a lei presume, em atenção ao disposto no Art.º 799.º do C.C.;
d) O dano, correspondente ao prejuízo, ou prejuízos, sofridos; e
e) O nexo causal entre o comportamento ilícito e culposo e os danos considerados (Vide: Antunes Varela in “Das Obrigações Em Geral”, Vol. II, 7ª Ed. pág.s 91 e ss.).
Esta é a abordagem mais tradicional aos pressupostos da responsabilidade civil que nós também perfilhamos, por se nos afigurar a mais conforme com a letra e o espírito da lei, ainda que reconheçamos que existe uma parte da doutrina, que supomos ser minoritária, que sustenta que a nossa lei consagrou um sistema de responsabilidade contratual semelhante ao estabelecido no direito francês, também conhecido como o sistema da “faute napoleónica”.
Sucintamente, diremos que essa parte da doutrina defende que o Art. 799º do C.C. não se traduz numa mera presunção de culpa, mas sim numa presunção de ilicitude, de culpa e de causalidade, à semelhança da “faute” do direito francês, bastando ao credor invocar um incumprimento e provar que houve danos, pois é ao devedor que depois compete provar o cumprimento e que se verificou qualquer causa de justificação, ou de excusa, para não cumprir (Vide, a propósito: Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil Português – II Direito das Obrigações – Tomo III Gestão de negócios, enriquecimento sem causa, responsabilidade civil”, Ed. do ano 2010, pág. 391 a 392).
Quer-nos parecer que o Código Civil português de 1966 terá sido muito mais sensível às influências do BGB alemão e do Código Civil Italiano, tendo preconizado desde logo uma conformação geral em rotura com o anterior Código Civil de 1867, também conhecido por Código de Seabra. Esse sim, mais claramente influenciado pelo Código de Napoleão.
O Código Civil português de 1966 vem na esteira da introdução paulatina em Portugal da pandectística alemã, pela mão de Guilherme Moreira, no início do século XX, sendo o regime da responsabilidade civil claramente influenciado pela evolução doutrinária alemã, cuja origem alguns apontam ter tido início em Jhering, no que se refere à sistemática e rigor analítico dos comportamentos delituais, nomeadamente distinguindo, de forma muito vincada, as matérias próprias da ilicitude, daquelas que se reportam apenas à culpa, funcionando cada uma delas como pressupostos distintos da responsabilidade civil (vide, a propósito: Antunes Varela in “Das Obrigações Em Geral”, Vol. I, 10.ª Ed., pág.s 585 e ss.).
É com base na evolução desses estudos doutrinários que imputam à ilicitude os elementos de natureza mais objetiva dos comportamentos delituais, reservando os elementos de natureza mais subjetiva para a culpa, que permitiram chegar à conclusão de que a apreciação da licitude é prévia à consideração da culpa, porque para factos lícitos a questão da censurabilidade nem sequer se coloca. Sendo que existem factos ilícitos que não determinam a obrigação de indemnização, precisamente por se excluir a culpa, nomeadamente pela verificação duma causa de excusa ou de desculpação.
Portanto, no quadro legal estabelecido no Código Civil vigente continua a fazer sentido, como sempre fez, presumir a culpa, como o Art.º 799.º do C.C. ou, noutras sedes, os Art.ºs 491.º, 492.º e 493.º do C.C. fazem, sem que tal implique, lógica e necessariamente, uma presunção simultânea de ilicitude ou da causalidade, que são pressupostos da responsabilidade civil perfeitamente distintos e subordinados às regras gerais do ónus de prova (cfr. Art. 342.º n.º 1 do C.C.).
Poderemos admitir que numa simples ação de dívida, a invocação e prova do não pagamento praticamente resume o ónus de prova do credor, para os efeitos do funcionamento da responsabilidade contratual estabelecida no Art.º 798.º do C.C., dando assim a aparência dum sistema de responsabilidade civil muito simplificado semelhante à “faute napoleónica”. Mas, tal resulta da própria simplicidade da causa, em que a responsabilidade civil quase se confunde com a mera exigência do cumprimento da obrigação incumprida. Para outros casos, mais complexos, como sejam as situações de responsabilidade contratual por cumprimento defeituoso, esse sistema já não se justifica, podendo levar a soluções injustas de “cripto responsabilidade” que não respeitam as regras gerais do ónus de prova que constam do Art.º 342º n.º 1 do C.C., nem o sentido exato com que foi estabelecida a presunção de culpa no Art. 799.º do C.C. (vide, entre outros, a este propósito: Menezes Leitão in “Direito das Obrigações - Vol. II – Transmissão e extinção das obrigações, não cumprimento e garantias do crédito”, 3.ª Ed., pág.s 243 a 246 e anotação n.º 480).
Foi aliás este entendimento que veio a prevalecer no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 8/2022, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do Proc. n.º 1479/16.4T8LRA.C2.S1-A (publicado em Diário da República, I .ª Série, n.º 212, 03-11-2022, pp. 10 e ss., posteriormente retificado pela Declaração de Retificação n.º 31/2022 do D.R. - I.ª Série de 21-11-2022), ainda que apenas no contexto dos contratos de intermediação financeira, onde existia um Art.º 314.º no Código dos Valores Imobiliários, que consagrava princípio em tudo semelhante ao Art.º 799.º do C.C..
Ficou aí estabelecida a seguinte orientação interpretativa:
«1- No âmbito da responsabilidade civil pré -contratual ou contratual do intermediário financeiro, nos termos dos artigos 7.º, n.º 1, 312.º, n.º 1, alínea a), e 314.º do Código dos Valores Mobiliários, na redação anterior à introduzida pelo Decreto -Lei n.º 357 -A/2007, de 31 de outubro, e 342.º, n.º 1, do Código Civil, incumbe ao investidor, mesmo quando seja não qualificado, o ónus de provar a violação pelo intermediário financeiro dos deveres de informação que a este são legalmente impostos e o nexo de causalidade entre a violação do dever de informação e o dano. (…) 3- O nexo de causalidade deve ser determinado com base na falta ou inexatidão, imputável ao intermediário financeiro, da informação necessária para a decisão de investir. 4 — Para estabelecer o nexo de causalidade entre a violação dos deveres de informação, por parte do intermediário financeiro, e o dano decorrente da decisão de investir, incumbe ao investidor provar que a prestação da informação devida o levaria a não tomar a decisão de investir».
Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo sucessivamente a sustentar de forma uniforme este entendimento especificamente quanto ao disposto no Art.º 799.º do C.C..
Assim, por exemplo, no acórdão do S.T.J. de 11/06/2013 (Revista n.º 544/10.6TBSTS.P1.S1 - 6.ª Secção - Salreta Pereira (Relator), João Camilo e Fonseca Ramos, disponível em “jurisprudência temática” do sítio STJ) é dito no respetivo sumário que: «V- A presunção de culpa prevista no Art.º 799.º do C.C. só funcionará no caso de prova do incumprimento pelo réu da obrigação assumida. VI- Não tendo ficado demonstrado que o réu tenha incumprido a sua obrigação de meios, não há ilícito contratual e, consequentemente, não há obrigação de indemnizar».
No mesmo sentido o sumário do acórdão do STJ de 22/05/2003 (Revista n.º 912/03 - 7.ª Secção - Neves Ribeiro (Relator), Araújo de Barros e Oliveira Barros, disponível no mesmo sítio), onde se pode ler o seguinte: «IV- Contudo, exigir ao médico fazer a prova da inexistência de culpa, não significa que ao doente se baste fazer a prova de que não lhe foram prestados outros cuidados possíveis, residindo aí o incumprimento do médico, porque piorou a sua situação patológica em relação ao passado que precedeu o ato médico. V- O doente tem que provar que um certo diagnóstico, tratamento ou intervenção foi omitido e, por assim ser, conduziu ao dano, pois se outro ato médico tivesse sido (ou não tivesse sido) praticado teria levado à cura, atenuado a doença, evitado o seu agravamento, ou mesmo a morte».
Do acórdão do STJ de 18/09/2007 (Revista n.º 2334/07 - 1.ª Secção - Alves Velho (Relator), Moreira Camilo e Urbano Dias – idem) consta igualmente que: «V - O que se presume é a culpa do cumprimento defeituoso, mas não o cumprimento defeituoso (ato ilícito), ele mesmo».
E ainda do acórdão do STJ de 16/06/2009 (Revista n.º 287/09.3YFLSB - 6.ª Secção - João Camilo (Relator), Fonseca Ramos e Cardoso de Albuquerque – idem): «VII- Não estando em causa a prestação de um resultado, quando se invoca o cumprimento defeituoso é necessário provar a desconformidade objetiva entre o ato prestado e as leges artis, só depois funcionando a presunção de culpa a ilidir mediante a prova de que a desconformidade não se deveu a culpa do agente, dado que o que se presume é a culpa do cumprimento defeituoso, mas não o cumprimento defeituoso em si mesmo. VIII- Desta forma, teria o autor de alegar e provar, para este efeito, que a intervenção dos agentes da ré - equipa médica que realizou o parto - omitiu os atos adequados à obtenção do resultado, ou realizou de forma deficiente ou errada e por tal ter acontecido se produziu o dano, ou seja, que este se não verificaria se outro fosse o ato médico efetivamente praticado».
Julgamos que esta jurisprudência se encontra perfeitamente consolidada e não permite outra interpretação do Art.º 799.º do C.C., que sintomaticamente tem por epígrafe “presunção de culpa” e não “presunção de ilicitude” ou “presunção de causalidade”.
O máximo que o Supremo Tribunal de Justiça tem admitido, a este propósito, é apenas que se podem ter em particular atenção as dificuldades de prova por parte do doente lesado.
Neste sentido damos realce particular ao sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/10/2009, que curiosamente teve 2 votos de vencido (Revista n.º 1800/08 - 2.ª Secção - Rodrigues dos Santos (Relator), João Bernardo (vencido), Oliveira Rocha, Oliveira Vasconcelos (vencido) e Serra Baptista – também disponível no mesmo sítio), onde se afirma que: «I- Em regra, a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual preenchem integralmente o campo da responsabilidade civil do médico no exercício da sua profissão, sendo irrelevante que o mesmo tenha a seu cargo uma obrigação de meios ou de resultado. II- Ao médico, seja qual for a sua obrigação, esteja ou não vinculado por contrato, exige-se que cumpra as “leges artis” com a diligência normal de um médico médio (reasonable doctor). III- Aplica-se à responsabilidade contratual médica a presunção de culpa contida no Art.º 799.º, n.º 1, do CC, presunção esta que fica ilidida com a demonstração pelo médico do cumprimento diligente das leges artis. IV- Recai sobre o paciente o ónus da prova do vínculo contratual, da existência de factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso do médico, dos danos (e sua extensão), do nexo causal entre a violação das regras da arte e tais danos e da preterição do dever de informação, por parte do médico, ao paciente com vista à obtenção do seu consentimento esclarecido. V- Perante a dificuldade natural da prova de um facto por parte do paciente, o mais que pode acontecer é fazer-se uso da máxima “iis quae dificcillioris sunt probationis, levioris probationes admittuntur” (para maiores dificuldades na prova, menos exigência na sua aceitação). VI - Contributo relevante para a compreensão e solução desta problemática, é o Estatuto do Paciente, que, no passado recente se consolidou, nas vertentes de dignidade, visibilidade e parceiro total e igual, no binómio paciente - médico, sobretudo após o estabelecimento da doutrina do consentimento informado ou informed consent, donde resultou a vinculação do paciente ao dever de colaboração com o médico e o direito de obter deste o dever de prestar toda a informação sobre a natureza, características, técnicas a usar no exercício do ato médico, alternativas e riscos. VII - A tese que advoga uma alteração das regras legais gerais do regime da efetivação da responsabilidade civil, designadamente, no segmento da repartição do ónus da prova, em caso de responsabilidade civil médica, para além de carência de apoio legal, de falta de suporte na realidade hodierna do exercício da medicina e no atual estado de elevação do estatuto do paciente tem, pelo menos, duas principais consequências negativas: um forte abalo na confiança e certeza do direito e uma sequente e quase inevitável prática de uma medicina defensiva».
Dito isto, importa fazer um esforço analítico dos comportamentos delituais relevantes para efeitos da consideração da responsabilidade civil contratual ou obrigacional, distinguindo a ilicitude da culpa e ponderando o nexo causal, imputando aos A.A., por regra, o ónus de prova de todos os factos constitutivos do seu direito, tal como estabelece o Art.º 342.º n.º 1 do C.C., com exceção do pressuposto da culpa, que se presume, nos termos do Art.º 799.º do C.C..
Vejamos então, “per se”, todos os pressupostos da responsabilidade civil contratual com vista a verificarmos se assiste à A. o direito que se arroga.

2.1. Do incumprimento duma obrigação:
Como vimos o primeiro pressuposto da responsabilidade civil em causa nos autos é o que dá corpo e justifica a diferença base de aplicação do regime da responsabilidade contratual, ou obrigacional, relativamente à responsabilidade extracontratual.
A responsabilidade obrigacional pressupõe sempre a existência de uma relação jurídica creditória, em que se verifica uma concreta obrigação emergente de um contrato, de um negócio jurídico unilateral ou duma disposição legal, de que resulta que alguém está na posição de credor relativamente a outrem, que por sua vez fica na posição de devedor de certa prestação específica.
No caso concreto esse vínculo obrigacional resulta de um contrato de prestação de serviços médicos, mais especificamente de serviços de cirurgia e consequente assistência médica, tendo sido para esse efeito que a esposa do 1.º A., e mãe dos restantes A.A., marcou uma consulta com o 1.º R., com vista à elaboração duma proposta operatória (cfr. facto provado 12).
Trata-se de um contrato sinalagmático e oneroso (cfr. Art.ºs 1154.º, 1156.º e 1158.º n.º 1 do C.C.), pelo qual o médico se dispõe a prestar assistência médica, mediante uma determinada retribuição, que corresponde ao valor da prestação por si disponibilizada. Sendo que, normalmente, como aconteceu no caso dos autos, é um contrato intuitus personae, pois a escolha pessoalizada do médico suporta-se numa relação de confiança que se estabelece e influencia decisivamente o programa obrigacional estabelecido (vide, a propósito: Rute Teixeira Pedro in “A Responsabilidade Civil do Médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado” – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Centro de Estudos Biomédicos, n.º 15, Coimbra Editora, págs. 70 a 73).
Como já se foi adiantando, este contrato não tem uma regulamentação legal própria típica no Código Civil, reconduzindo-se à categoria genérica dos contratos de prestação de serviços (Art. 1154.º do C.C.), subordinada às regras supletivas do contrato de mandato, com as devidas adaptações (Art.º 1156.º do C.C.), para além das regras de natureza mais administrativa e deontológica, próprias do ramo de atividade considerado.
Acresce que esse contrato é consensual, não estando sujeito a forma legal, embora seja comum a exigência de algumas declarações de vontade ou de ciência sob a forma escrita, como sejam a obtenção do consentimento para determinadas intervenções ou o reconhecimento de que foram prestadas determinadas informações e esclarecimentos (Vide: Rute Teixeira Pedro in Ob. Loc. Cit., pág. 72).
Relativamente à prestação específica que foi contratada pela falecida CP, está claro que o propósito assumido, desde o início, por força do resultado de exames anteriores, todos realizados nas instalações do 2.º R., e do diagnóstico de um adenocarcinoma na porção distal do intestino (cfr. factos provados 10 e 11), consistia na “premência” duma intervenção cirúrgica com vista à remoção da parte do cólon afetada pela presença desse foco cancerígeno (cfr. factos provados 11 e 12).
Na verdade, nesta ação, nunca foi posto em causa que o diagnóstico não fosse o certo, nem que a intervenção cirúrgica não fosse necessária, nem sequer que a 1.ª operação realizada e proposta pelo 1.º R. não fosse a adequada a alcançar o propósito visado pela esposa e mãe dos A.A.. É isso que resulta, desde logo, da prova pericial junta aos autos, na resposta aos quesitos 1.º e 2.º (cfr. fls. 1130).
Embora a matéria de facto não seja muito expressiva sobre os concretos fundamentos desta realidade, ficou pelo menos assente que o diagnóstico relevou a “premência” da sujeição a intervenção cirúrgica (cfr. facto provado 11). Mas, para complementar o assim exposto, não podemos aqui deixar de recordar, até porque isso foi repetido várias vezes em várias das alegações de recurso aqui apresentadas, que a testemunha, Dr. JA, colocou a questão de forma muito impressiva: 1.º Com este diagnóstico, se não se fizesse nada, seria “catastrófico” e a paciente teria cerca de 15 meses de vida; 2.º A operação proposta era adequada e faria aumentar a esperança de vida em mais 5 ou 10 anos (cfr. gravação aos minutos 10:48 e ss.). Supomos que assim fica bem mais claro em que é que consistia a “premência” da intervenção cirúrgica necessária e proposta pelo 1.º R..
Em suma, o objeto dos serviços médicos solicitados prendia-se com a proposta de tratamento, através duma intervenção cirúrgica, tida por premente, necessária e adequada, consequente de um diagnóstico duma grave situação de saúde, relativa à constatação da existência de um cancro no intestino, a qual passava pela remoção da parte afetada e, esperançosamente, pela possível cura da doente.
Foi para isto que, em termos sucintos, a esposa do 1.º A. procurou os serviços médico-cirúrgicos do 1.º R., no quadro geral dos serviços oferecidos no estabelecimento hospitalar explorado pelo 2.º R., sendo nesse sentido que o 1.º R. aceitou prestar esses serviços, de acordo com os seus conhecimentos técnicos e as melhores práticas que eram devidas no caso.
Em todo o caso, o objetivo da “cura”, não deixando de ser um propósito querido – quer pela paciente, por razões evidentes, quer pelo médico, pelo menos por razões de brio profissional –, não é finalidade que pudesse efetivamente ser assegurada de forma absoluta pelo cirurgião em causa, pois é do conhecimento geral que todas as intervenções cirúrgicas envolvem sempre riscos e contingências que muitas vezes escapam ao controlo humano, mesmo do médico mais rigoroso, exigente e escrupuloso.
Reconhecidamente que os atos médicos, para mais as intervenções cirúrgicas do género da que estava em causa nestes autos, caem na categoria das obrigações de meios e não se resultado, como já Demogue fazia distinguir (v.g. “Traité des Obligations” Tomo V, pág. 1237 e Tomo VI, pág. 599).
É certo que autores há que sustentam, a propósito, que não faz qualquer sentido a distinção entre obrigações de meios e obrigações de resultado (Vide, a propósito: Calvão da Silva in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 4.ª Ed., pág. 78), considerando que todas as obrigações supõe sempre um certo resultado, sendo a distinção feita na prática em função da natureza do resultado procurado, que conhece sempre infinitas graduações (Vide: Menezes Cordeiro in “Direito das Obrigações”, pág. 359).
Neste contexto, é comum nestes autores fazer-se apenas a distinção entre o resultado mediato – que corresponderá à cura, à sobrevivência, à não consumação duma deficiência ou incapacidade – que é de verificação incerta, e o resultado imediato, que resultaria só da adoção das regras técnicas adequadas que permitissem não afetar a possibilidade de cura, de sobrevivência ou de não consumação duma deficiência ou incapacidade.
Em todo o caso, a distinção entre “obrigação de meios” e “obrigação de resultados” é reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência desde há longa data, a qual é de apreensão quase intuitiva, sendo as suas consequências jurídicas bem distintas.
Assim, na obrigação de resultado, a satisfação do credor só pode ser alcançada pelo cumprimento pontual e integral da prestação devida (Art.º 762º e 763º do C.C.), a qual é definida em função do fim que com ela se pretende realizar, que deve ser efetivamente alcançado. Em consequência, nas obrigações de resultado, bastaria a verificação de que o fim da prestação não ocorreu para se concluir necessariamente pela verificação objetiva do incumprimento.
Na obrigação de meios, diferentemente, o devedor está apenas obrigado a desenvolver todos os esforços que legitimamente lhe sejam exigíveis e que estão ao seu alcance, com vista a obter um determinado resultado, sem que a verificação desse resultado lhe seja exigível.
Reconhece-se aqui a aleatoriedade do resultado final, consistindo o cumprimento da obrigação apenas na realização de todos os esforços exigíveis e devidos para favorecer a sua ocorrência, que não é de verificação necessária, nem garantida pelo devedor.
Neste caso, o credor, para provar o incumprimento, não basta demonstrar que o resultado final não se verificou, tendo de alegar e provar que não foram cumpridas as regras de diligência impostas realizar para que esse resultado pudesse ser alcançado.
O critério substantivo da distinção entre obrigações de meios e obrigação de resultado encontra-se na consideração da aleatoriedade própria da verificação do resultado. Assim, se o resultado desejado for alcançável, em regra, pela mera atuação diligente do devedor, através da adoção da técnica apropriada, não jogando a álea qualquer papel de relevo, dada a sua quase certa eficiência para a produção do resultado final, estaremos perante uma obrigação de resultado. Mas se o resultado almejado for de consecução incerta, pela intervenção de fatores vários e duma carga elevada de aleatoriedade, mesmo que o devedor empregue todo o cuidado e competências exigíveis, então a obrigação é somente de meios (Vide, a propósito: Rute Teixeira Pedro in Ob. Cit., “A Responsabilidade Civil do Médico…”, pág.s 95 e 96).
Na maior parte dos casos, o médico compromete-se apenas a empregar os esforços, a utilizar o seu saber e as técnicas que a ciência coloca à sua disposição, respeitando a “legis artis”, em ordem a alcançar a recuperação do doente, não sendo essa finalidade garantida. Pelo que a obrigação assim assumida constitui uma obrigação de diligência e de cuidado, que se incluiu na categoria das obrigações de meios e não de resultado (Vide: Rute Teixeira Pedro in Ob. Loc. Cit., pág. 90; Figueiredo Dias e Sinde Monteiro in BMJ n.º 332 - “Responsabilidade Médica em Portugal”, pág. 21 e ss.; e Teixeira de Sousa in “Direito da Saúde e Biomédica “ AAFDL 1996 – “Sobre o Ónus da Prova nas Ações de Responsabilidade Civil Médica”, pág.s 125 a 126).
Já Manuel de Andrade (in “Teoria Geral das Obrigações”, 3.ª Ed., pág. 414) exemplificava como típica “obrigação de meios” a obrigação contratual do médico, escrevendo a este propósito que: «Embora o doente busque naturalmente, ao recorrer ao médico, a sua cura, a sua saúde perdida – ou que ele lhe evite um estado de doença –, o médico não se obriga à produção de tal resultado, mas apenas a empregar uma certa diligência para tentar curar o doente e evitar-lhe um mal que ele receia; somente se vincula – por outras palavras – a prestar-lhe assistência, mediante uma série de cuidados ou tratamentos aptos a curar. (…) Só a isso se obriga, só por isso responde».
Efetivamente, a “cura”, no caso dos autos, como já se viu, era um resultado de verificação muito discutível, porque poderia consistir apenas num aumento, embora não negligenciável, da esperança de vida relativamente à eventualidade de nada ser feito. Isto, a ter por certo o que foi dito em audiência final pelo Dr. JA e que atrás deixámos consignado. O que não invalida que existissem naturais expectativas de que a cirurgia corresse bem e dela não decorressem complicações (cfr. facto provado 16).
Dito isto, não basta a demonstração de que a paciente veio a falecer na sequência das intervenções médicas realizadas pelo 1.º R. para se concluir, sem mais, que houve um incumprimento. A questão do incumprimento coloca-se, portanto, necessariamente a montante. Há que demonstrar que se verificou um qualquer erro médico anterior, que justificou a consumação do resultado danoso, ou que não permitiu evitar essa consumação.
Como explica o Sr. Juiz Conselheiro Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues (in “Responsabilidade Civil por Erro Médico: Esclarecimento / Consentimento do doente” – texto de base de exposição de intervenção no CEJ, de 12 de novembro de 2010), por detrás duma situação de acidente ou complicação decorrente de ato médico pode estar um erro de perceção ou cognitivo (erro de diagnóstico, de profilaxia ou de terapêutica decorrente da ausência de conhecimentos técnico científicos), a errada interpretação da sintomatologia do paciente e dos dados laboratoriais, imagiológicos ou clínicos (representação deformada ou distorcida da realidade) ou erro de execução (manejo indevido de instrumentos na realização do ato clínico ou cirúrgico ou a troca de produtos farmacológicos no tratamento do paciente).
No caso concreto, a questão colocou-se, logo no princípio, em termos de alegada violação das legis artis. Não propriamente em termos de erro no diagnóstico ou da solução terapêutica preconizada, mas eventualmente de erros na execução das operações e não cumprimento de regras de cuidado e diligência.
No entanto, o que resulta da matéria de facto foi que a primeira operação até terá decorrido bem, sem complicações iniciais (cfr. factos provados 54, 55 e 144 a 148). Pelo que, relativamente a ela não existem nos autos indícios mínimos de qualquer incumprimento relevante da prestação a que o 1.º R. se havia obrigado.
Sucede que, no pós-operatório, e necessariamente em resultado dessa primeira intervenção cirúrgica, vieram a verificar-se subsequentes complicações de saúde (cfr. factos provados 87 a 94 e 161 a 172), o que veio a culminar na morte da paciente, apesar duma segunda intervenção médico-cirúrgica consequente, realizada já em situação de verdadeira emergência.
De referir que a sentença recorrida expressou o entendimento de que não haveria qualquer incumprimento, nem ato ilícito, imputável ao 1.º R., por ter agido, dessas duas vezes, de acordo com as regras das “legis artis”.
Não negamos que a matéria de facto não permita concluir que os procedimentos cirúrgicos não foram os adequados e necessários, tudo indiciando que tenham sido cumpridos todos os protocolos de segurança e cuidados exigidos pela legis artis, em termos estritamente cirúrgicos (cfr. factos provados 144 a 148). A prova, quanto a esse ponto foi abundante, quer em termos documentais, quer em termos testemunhais e até por declarações de parte do 1.º R.. A competência técnica do médico cirurgião no decurso dos atos operatórios não ofereceu qualquer reparo, nem a matéria de facto provada permite qualquer outra conclusão a esse respeito.
Em todo o caso, também se evidencia da prova produzida em audiência, e mesmo através da perícia junta aos autos, que o período pós-operatório era, no caso, particularmente importante, porque era nesse momento que se poderiam, e deveriam, controlar os riscos típicos deste tipo de operações.
Entre esses riscos encontrava-se a deiscência da anastomose (cfr. resposta pericial ao quesito 5.º – fls. 1130). A qual pode surgir, mesmo que tenha sido feita a confirmação de estanquicidade da anastomose no final da cirurgia (cfr. resposta pericial ao quesito 6.º – fls. 1130).
Trata-se, nada mais nada menos, que a complicação mais importante, e mais temida, da cirurgia relativa a câncer do colo retal, responsável pelo aumento da morbimortalidade no pós-operatório da colectomia, sendo o seu diagnóstico tardio causa mais relevante do aumento do risco de mortalidade (vide, a título exemplificativo: “Jornal Português de Gastrenterologia”, texto com o título “Tratamento de deiscência cirúrgica grave com sistema «Over-the-scope clip», da autoria de Tito Correia, Pedro Amaro e Carlos Sofia - disponível para consulta no sítio: www.elsevier.pt/ge).
O diagnóstico desta complicação é particularmente complexo, dependendo da verificação de vários fatores indiciários, que dependem de avaliação e acompanhamento, como dores localizadas, vómitos, hemorragias ou aparecimento de melenas, sendo necessário ir fazendo o controlo dos sinais vitais, análises dos parâmetros de infeção e, eventualmente, o exame por TAC. Foi isso que resultou de toda a prova testemunhal (e até por declarações de parte do 1.º R.), que foi produzida em audiência final e que tivemos oportunidade de realçar no segmento deste acórdão relativo à impugnação da matéria de facto.
Releva, em particular, em face da matéria de facto provada, que às 11h38m do dia 24 de abril de 2015, perante os episódios de vómitos, leucopia, neutrofilia relativa, PCR a 15, que era mandatório fazer uma observação clínica rigorosa e solicitar exames complementares, como uma TAC (cfr. facto provado 166 e resposta pericial ao quesito 12.º – fls. 1131), sendo que o dito exame (TAC), foi logo pedido nesse exato momento pelo Dr. José Neves (cfr. facto provado 193).
Mais ficou provado que essa TAC era imprescindível para o diagnóstico (cfr. facto provado 86), sendo o fator tempo um dos principais e mais relevantes fatores para o tratamento deste tipo de infeção (cfr. facto provado 89), pois a possibilidade de sobreviver a uma sépsis diminui com o tardar do diagnóstico (cfr. facto provado 90). Aliás, no caso, a TAC que foi realizada veio a confirmar as suspeitas, bem como a necessidade de uma segunda intervenção cirúrgica imediata (cfr. factos provados 91 a 93).
Sucede que, por razões que não foram explicadas, a TAC ficou marcada apenas para as 16h00m e a paciente apenas foi encaminhada para a sua realização pelas 17h15m. Sendo certo que se verificou então um atraso que se ficou a dever à intolerância da paciente à gastrografina, não permitindo assim que fosse realizado logo o exame, por não ter o contraste necessário à nitidez da imagem pretendida obter (cfr. facto provado 81 - com a nova redação constante do ponto 1.3. do presente acórdão).
Ao 1.º R., médico-cirurgião, que não era evidentemente o responsável pela realização material da TAC, não pode ser imputado o atraso na realização desse exame, o qual até já havia sido pedido pelo seu colega, o Dr. CN (3.º R.), logo às 11h38m (cfr. factos provados 73 a 75 193). Portanto, o 1.º R. foi confrontado com um atraso na realização da TAC, imprescindível ao diagnóstico para aferir da necessidade duma segunda intervenção cirúrgica (cfr. facto provado 86), que se deveu, por um lado, à marcação da hora para realização do exame e, por outro, a complicações relacionadas com a própria paciente, que não tolerou a ingestão de gastrografina, necessária a garantir a qualidade da imagem para esse exame (cfr. facto provado 81). Consequentemente, não se vislumbra também aqui qualquer situação objetiva de incumprimento imputável ao 1.º R., no período pós-operatório.
Há ainda a referir que, após a 1.ª operação, o 1.º R. teve de se ausentar do hospital, por motivo do falecimento e consequente deslocação ao funeral da sua sogra (cfr. factos provados 58, 153 e 154). Mas, não deixou de ter o cuidado de contactar com o Dr. CN (3.º R.), para assegurar o acompanhamento médico da doente, tendo essa substituição (provisória), durante a sua ausência por 2 dias, sido aceita, quer pelo médico substituto, quer pela própria paciente (cfr. facto provado 157).
Essa substituição, encontra-se perfeitamente justificada pelas razões expostas, e não constitui nenhuma forma de incumprimento da prestação por parte do 1.º R., não sendo sequer motivo de reprovação ética, ou motivo para concluir que houve descuido ou má prática médica, conforme resulta de forma explícita da resposta ao quesito 7.º pela perícia realizada nos autos (cfr. fls. 1130).
Efetivamente, não pode deixar de ser considerado o facto de o 1.º R. ter tido o cuidado de se manter em contacto e ter telefonado várias vezes para ser informado do estado da sua paciente (cfr. facto provado 160). Sendo que, logo que teve conhecimento do agravamento da sua situação clínica, regressou de imediato para Lisboa, para o hospital, onde chegou pelas 13h30m (cfr. facto provado 161).
Em suma, nada aqui faz vislumbrar um incumprimento de deveres de diligência e cuidado por parte do 1.º R..
Ainda assim, decorre dos autos que a questão da urgência e celeridade nos procedimentos para obtenção do diagnóstico e consequente necessidade de realização imediata duma 2.ª intervenção cirúrgica, era o ponto chave para a aferição do cumprimento dos deveres médicos por parte do 1.º R. (cfr. factos provados 86, 89 e 90). Ora, esse R. teve acesso ao resultado da TAC às 18h11m (cfr. facto provado 83), mas apenas solicitou sala do bloco operatório poucos minutos após as 20h00m (cfr. facto provado 172) e só às 20h30m é que a paciente foi para aí encaminhada (cfr. facto provado 98). Logo, há aqui um espaço de tempo, de pouco mais de 2 horas, da aparente responsabilidade principal do 1.º R., traduzido num atraso, que não se mostra objetivamente justificado e que pode bem ser tido como relevante para efeitos de se ter como um comportamento voluntário que indiciariamente se traduz num incumprimento da prestação devida no tempo mais célere possível, na estrita medida em que a rapidez dos procedimentos médicos corresponderia objetivamente ao comportamento devido de acordo com as legis artis.
Resta ainda apreciar a questão do incumprimento na vertente da alegada violação dos deveres de informação e documentação dos atos médicos realizados.
Evidentemente que o 1.º R. não é responsável pela documentação de todos atos médicos realizados no contexto hospitalar, sendo certo que facilmente se pode constatar na documentação clínica junta aos autos existem várias entradas no processo clínico que são da sua responsabilidade (v.g. fls. 97 infra). Seja como for, será essencialmente o 2.º R. quem poderá responder pelas situações a que se reportam os factos descritos nos pontos 51 e 52 dos factos provados da sentença recorrida.
Certo é apenas que foi o 1.º R. quem ficou objetivamente responsável, no quadro das suas competências funcionais, enquanto médico-cirurgião, pelo cumprimento dos deveres de informação relacionados com a intervenção cirúrgica e a obtenção do “consentimento informado” (cfr. factos provados 133 a 136).
É do conhecimento geral que existe normalmente uma grande assimetria entre os conhecimentos técnicos do médico e o mais comum dos cidadãos que se encontrem em situação de doença, relativamente às questões relacionadas com a área da medicina, o que pode formar um terreno propício aos abusos.
Normalmente a atuação médica propende para um desiderato positivo, sustentado na bondade das motivações técnico-profissionais do médico. Mas tudo pode estar condicionado pela necessidade de quem se encontra fora das condições físico-psíquicas normais, o que pode pressionar o paciente a aceitar qualquer intervenção médica que lhe seja proposta (vide, a propósito: João Vaz Rodrigues in “Economia e Sociologia – Modelos e Perspetivas de relacionamento na Saúde” n.º 83, Évora, 2007, pág. 86).
Por isso, conforme escreve Rute Teixeira Pedro (in “A Responsabilidade Civil do Médico…”, pág.s 77 a 79): «O dever de informação parece, desde logo, como um meio de combater – sem aniquilar –, a já assinalada característica de desequilíbrio que é apanágio das relações médico-paciente. Para tal, a informação deve ser prestada em quantidade e qualidade suficiente. / O dever informativo perdura ao longo de toda a relação, ganhando conteúdo variável no seu decurso. Deve ser cumprido de forma eficaz, o que significa que a linguagem utilizada deve ser clara e compreensível para o doente, por forma a que o processo comunicativo se realize e a mensagem se torne acessível ao destinatário. / Constituindo, sobretudo, um pressuposto do exercício do direito do paciente decidir e optar, é, em última análise, um instrumento para cumprimento de outro dever do médico: o de obtenção de um consentimento esclarecido. Este dever assenta no princípio da autonomia da pessoa humana e no valor da autodeterminação do doente» - (sublinhados nossos).
Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues (in “Responsabilidade Civil por erro médico: Esclarecimento/consentimento do doente”, pág. 19) não deixa de precisar que: «A informação do médico deve ser encaminhada de forma a dissipar dúvidas e formular oportunas explicações sobre o diagnóstico, prognóstico e alternativas de tratamento (processo, riscos, consequências acessórias, diagnóstico, prognóstico e alternativas de tratamento)». E mais adiante (pág. 20) escreve ainda que: «é fundamental esclarecer o paciente acerca do diagnóstico, dos riscos de atraso ou da falta de tratamento, das possibilidades de cura ou de melhoria, dos riscos habituais (não meramente acidentais) do tratamento e outros aspetos que o doente pretenda saber para se decidir de forma livre e esclarecida».
Uma correta e cabal informação engloba igualmente os meios alternativos de diagnóstico e de tratamento, a respetiva índole, alcance, envergadura e possíveis consequências (vide: Sinde Monteiro in “Aspetos Particulares da Responsabilidade Médica” - Direito da Saúde e Biomédica, Lex, 1991, págs. 133 a 152).
Neste contexto, realça-se o que a Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina, no seu Art. 5.º estabelece. Aí se pode ver que:
«Qualquer intervenção no domínio da saúde apenas pode ser efetuada depois da pessoa em causa dar o seu consentimento, de forma livre e esclarecida.
«A esta pessoa deve ser dada previamente uma informação adequada quanto ao objetivo e à natureza da intervenção, bem como à sua natureza e aos seus riscos».
Em conformidade, nos termos do Art.º 31.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (CDOM, na versão vigente à data dos factos, constante do Regulamento n.º 14/2009 de 13/1), estabelecia-se que: «O médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se por esse facto à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo com correção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, no pleno respeito pela dignidade do ser humano». Mas, no Art.º 44.º acrescentava-se que: «1 - O doente tem o direito a receber e o médico o dever de prestar o esclarecimento sobre o diagnóstico, a terapêutica e o prognóstico da sua doença. 2 - O esclarecimento deve ser prestado previamente e incidir sobre os aspetos relevantes de atos e práticas, dos seus objetivos e consequências funcionais, permitindo que o doente possa consentir em consciência. 3 - O esclarecimento deve ser prestado pelo médico com palavras adequadas, em termos compreensíveis, adaptados a cada doente, realçando o que tem importância ou o que, sendo menos importante, preocupa o doente. 4 - O esclarecimento deve ter em conta o estado emocional do doente, a sua capacidade de compreensão e o seu nível cultural. 5 - O esclarecimento deve ser feito, sempre que possível, em função dos dados probabilísticos e dando ao doente as informações necessárias para que possa ter uma visão clara da situação clínica e optar com decisão consciente». Finalmente, o Art.º 45.º complementava este regime, esclarecendo que: «1 - Só é válido o consentimento do doente se este tiver capacidade de decidir livremente, se estiver na posse da informação relevante e se for dado na ausência de coações físicas ou morais. 2 - Sempre que possível, entre o esclarecimento e o consentimento deverá existir intervalo de tempo que permita ao doente refletir e aconselhar-se. 3 - O médico deve aceitar e pode sugerir que o doente procure outra opinião médica, particularmente se a decisão envolver grandes riscos ou graves consequências».
Cumpre ainda referir que, no Código Penal, estabelece-se no Art.º 150.º n.º 1, que as intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrem adequados e forem levados a cabo, de acordo com a legis artis, por um médico, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física. Mas o Art.º 156.º n.º 1 do C.P. refere depois que, as pessoas indicadas no Art.º 150.º que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente, são punidas com pena de prisão.
Para se compreender a real diferença de bens jurídicos em causa e que justifica a tutela das duas previsões normativas mencionadas, basta verificar que o Art.º 150.º do C.P. está inserido no capítulo III, relativo aos “crimes contra a integridade física”, enquanto que o Art. 156º do C.P. está no capítulo IV, que se reporta aos “crimes contra a liberdade pessoal”.
De facto, tem de se reconhecer que uma intervenção médica, de natureza cirúrgica, como aquela a que os atos se reportam, implica necessariamente uma invasão do corpo humano, que põe em causa a integridade física do paciente a ela sujeito. De tal modo que, a pessoa assim intervencionada, tem o direito de não permitir que outrem opere lesão no seu corpo sem o seu consentimento (Art.º 70.º n.º 1 e 340.º n.º 1 do C.C.).
Evidentemente que, para haver consentimento do lesado a ato médico desta natureza, esse consentimento tem de ser pessoal, livre e esclarecido. O que tem como pressuposto que o médico, por ser o possuidor dos conhecimentos técnicos e científicos que permitem a conclusão sobre a adequação do ato proposto ao fim pretendido alcançar, cumpra o seu dever de esclarecimento prévio do paciente de forma efetiva, adequada e eficaz.
Para tanto, o Código Penal vem esclarecer, no seu Art.º 157.º, que: «o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou tratamento, salvo se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seria suscetíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica».
A informação que assim incumbe ao médico prestar, deve ser o mais clara e completa possível, por forma a que o paciente possa tomar conhecimento dos procedimentos essenciais de que vai ser alvo, ficando plenamente ciente dos riscos que corre, dos objetivos e necessidade da intervenção, bem como das suas consequências mais comuns e prováveis. Só desse modo, o paciente, que normalmente não possui conhecimentos médicos bastantes, pode tomar uma decisão verdadeiramente livre, esclarecida e consciente.
São estes os normativos penais relevantes, que se deverão conjugar com os Art.ºs 44.º e 45.º do CDOM, então em vigor (aprovado pelo Regulamento n.º 14/2009 de 13/1), e que atrás reproduzimos. Esclarecendo-se que, atualmente, todas essas matérias são reguladas, e do mesmo modo, pelo Código Deontológico hoje em vigor, aprovado pelo Regulamento n.º 707/2016 (publicado no Diário da República n.º 139/2016, Série II de 2016-07-21), nomeadamente nos seus artigos 19.º a 23.º.

Ora, no caso concreto dos autos, o que resulta da matéria de facto provada é que houve efetivamente uma consulta médica prévia, na qual esteve presente o 1.º R., o 1.º A. e a sua esposa, sendo que o primeiro explicou a estes, em termos muito genéricos, em que consistia a operação que se propunha fazer. Designadamente explicou que essa intervenção consistia no corte do intestino, para remoção da parte afetada e depois voltar a juntar as partes (cfr. factos provados 133 a 136 – o primeiro deles com nova redação explicitada no ponto 1.3. do presente acórdão).
Sucede que, apesar da intervenção proposta realizar pelo 1.º R. ser adequada ao tratamento da doença diagnosticada, como resultou logo da resposta pericial ao quesito 1.º (cfr. fls. 1130), também se provou que não era a única terapêutica possível para o tratamento do cancro colo-rectal, podendo o cirurgião optar por diversas técnicas cirúrgicas consoante aquela que melhor se adaptasse ao estado clínico da paciente (cfr. facto provado 53).
Ora, em função da factualidade provada, nada disso foi efetivamente explicado à paciente, que assim foi colocada perante uma opção única, escolhida unilateralmente pelo médico, sem sequer ser devidamente informada dos riscos dessa operação, nem dos das outras, igualmente possíveis, que poderiam ser feitas em alternativa.
Neste contexto, perante a ausência de informação completa e suficiente, a paciente limitou-se a aceitar fazer a operação que lhe foi proposta, sem estar na posse de todos os elementos que lhe permitiriam fazer uma escolha livre e consciente, não bastando para cumprir o dever de informação que o médico tenha disponibilizado o seu contacto telefónico para qualquer esclarecimento que fosse tido por necessário (cfr. facto provado 134).
A assinatura, nestas condições, do documento que formaliza o “Consentimento Informado”, constante de fls. 772, não cumpre minimamente as exigências impostas pelos Art.ºs 44.º e 45.º do CDOM, então vigente, para ser tido como válido. Nem a constatação de que a paciente consentiu efetivamente na 1.ª intervenção, porque compareceu no hospital na hora e data agendada (cfr. facto provado 207), pode levar a qualquer outra conclusão.
Conforme se decidiu no Acórdão do S.T.J. de 22/3/2018 (Proc. n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1 – Relatora: Maria Graça Trigo, disponível em www.dgsi.pt): «III - O consentimento do paciente prestado de forma genérica não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado, sendo, além disso, necessário, em caso de repetição de intervenções, que tais esclarecimentos sejam atualizados, tendo em conta, designadamente, que os riscos se podem agravar com a passagem do tempo (…) V - A circunstância de se ter provado que a A., paciente, antes da realização do exame feito pelo R. médico assinou um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», contendo uma declaração em que afirma estar “perfeitamente informada e consciente dos riscos, complicações ou sequelas que possam surgir”, e ainda que conhecia os riscos inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração, não é suficiente para preencher as exigências do consentimento devidamente informado uma vez que, no caso, sendo os riscos de perfuração superiores ao normal devido à idade e aos antecedentes clínicos da A., era imperativo que o R. fizesse prova de que a A. fora informada de tais riscos acrescidos. VI - Tendo havido violação do dever de esclarecimento do paciente, com consequências laterais desvantajosas, isto é, a perfuração do colon, e com agravamento do estado de saúde, os bens jurídicos protegidos são a liberdade e a integridade física e moral, e os danos ressarcíveis tanto são os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais».
No mesmo sentido, no acórdão do S.T.J. de 2/6/2015 (Proc. n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1 – Relatora: Maria Clara Sottomayor, disponível no mesmo sítio) se defendeu que: «III - O consentimento do paciente é um dos requisitos da licitude da atividade médica (artigos 5.º da CEDHBioMed e 3.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) e tem que ser livre e esclarecido para gozar de eficácia: se o consentimento não existe ou é ineficaz, a atuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada».
Pelo que, verificou-se este apontado incumprimento do dever de informação, que incumbia ao 1.º R. realizar junto da sua paciente, o que inquina a conclusão sobre a existência de um consentimento verdadeiramente livre e esclarecido.
No que se refere à 2.ª intervenção cirúrgica, também se pode colocar a questão de não ter sido cumprido o dever de informação, nem de ter sido obtido o consentimento expresso e válido por parte da paciente.
É certo que, quanto a esta segunda intervenção, a imagem que nos é transmitida pela matéria de facto provada é de uma pura situação de emergência “in extremis”.
Também não se põe em causa a adequação dessa segunda cirurgia, nem que a mesma tenha sido feita de forma tecnicamente correta. A matéria de facto não permite tecer conclusões a este respeito (cfr. factos provados 174 e 176), apesar do desfecho consequente, que uma vez mais se traduziu, ao que tudo indicia, numa contingência operatória, ou mais propriamente de um risco próprio da situação clínica em que a paciente já se encontrava.
Não houve assim propriamente uma violação das “legis artis”, no que estritamente se refere à execução técnica da operação. Mas, o que é certo é que essa segunda operação foi realizada sem qualquer “consentimento informado” escrito, ao contrário do que ocorreu com a 1.ª intervenção (cfr. doc. de fls. 772). É isso mesmo que resulta dos factos provados nos pontos 183 e 209 da sentença recorrida.
Ainda assim, temos de reconhecer que esta segunda intervenção decorreu num contexto muito específico.
É certo que a paciente se encontrava lúcida e colaborante às 17h45m, apesar de prostrada (cfr. facto provado 180), devendo ter sido nessas condições que recebeu a notícia de que havia rompido o intestino na zona da primeira intervenção cirúrgica (cfr. factos provados 94 a 96). Sucede que, quando entrou no bloco operatório, já não se encontrava em condições para prestar o seu consentimento informado, seja para a anestesia (cfr. facto provado 210), seja para a cirurgia, como é evidente.
Assim, houve uma situação objetiva de incumprimento de um dever de informação e de prestação de consentimento livre e informado, porque não foram transmitidos os riscos desta 2.ª intervenção (cfr. facto provado 96) e também não foi recolhido consentimento informado, por escrito (cfr. facto provado 97), embora, em sede própria, se possa vir a colocar, oportunamente, a questão da exclusão da sua ilicitude em face do contexto em que esta operação veio a decorrer.

2.2 Da ilicitude.
Passemos então ao segundo pressuposto da responsabilidade civil, relativo à ilicitude.
A ilicitude traduz-se na verificação de um comportamento violador dos direitos de outrem, por se agir de maneira desconforme ao que era objetivamente devido nos termos da lei, sem que se verifique qualquer causa justificativa da ilicitude, nem esteja em causa o exercício regular de um direito ou o cumprimento de um dever (Vide: Pessoa Jorge in “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1999, pág. 62 e ss.).
Estando em causa uma alegada situação de negligência médica, a ilicitude deveria resultar da constatação da desconformidade objetiva dos atos efetivamente realizados com os que eram devidos, considerados de acordo com os conhecimentos técnicos da Ciência Médica (legis artis) existentes à data.
No caso, em função do exposto no ponto anterior deste acórdão (2.1.), existem apenas 3 situações indiciárias de incumprimento do 1.º R. que podem justificar a apreciação da sua ilicitude:
1.º O tempo que demorou entre o conhecimento do resultado da TAC (18h11m – cfr. facto provado 83), a solicitação duma sala do bloco operatório para realizar a 2.ª intervenção cirúrgica (pouco depois das 20h00m – cfr. facto provado 172) e o início efetivo dessa 2.ª operação (cerca das 20h30m – cfr. facto provado 98);
2.º A falta de informação sobre outros procedimentos cirúrgicos possíveis (cfr. facto provado 53) e dos riscos da 1.ª operação proposta, bem como dos relativos aos outros procedimentos cirúrgicos possíveis e alternativos (cfr. factos 16, 133 (com a nova redação dada no ponto 1.3. do presente acórdão) e 136), com a consequente invalidade do consentimento informado assinado pela paciente e junto a fls. 772; e
3.º A falta de informação sobre os riscos da 2.ª intervenção cirúrgica, tal como a natureza e procedimento da mesma (cfr. facto provado 96) e falta de consentimento expresso para essa 2.ª operação (cfr. facto provado 97).
Começando pela questão da ilicitude relativa ao incumprimento dos deveres de informação e obtenção do consentimento esclarecido do paciente, recordamos que a licitude de um ato médico não se resume à correção técnica da intervenção verificada, porquanto implicando esse ato a invasão e lesão do corpo do paciente, ainda que com finalidade curativa, a mesma não pode afetar a integridade física alheia sem o consentimento do lesado (Art.ºs 70.º n.º 1 e 340.º n.º 1 do C.C. e Art.º 156.º n.º 1 do C.P.).
Evidentemente que existem situações em que se pode recorrer ao instituto do “consentimento presumido”, estabelecido no Art.º 340.º n.º 3 do C.C., o que exclui a ilicitude do ato.
Efetivamente, nos termos do Art.º 340.º n.º 1 do C.C., estabelece-se que o ato lesivo de direitos de outrem é lícito, desde que o lesado tenha consentido na lesão, tendo-se a lesão por consentida quando foi realizada no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade presumível (cfr. Art.º 340.º n.º 3 do C.C.). No entanto, o consentimento não excluirá a ilicitude quando o ato for contrário a proibição legal ou aos bons costumes (cfr. Art.º 340.º n.º 2 do C.C.).
Como já vimos, no Código Penal também se estabelece igualmente que o ato médico destinado ao tratamento do paciente, realizado sem consentimento do lesado, não é punível se não se verificarem circunstâncias que permitem concluir com segurança que o consentimento seria recusado (Art.º 156.º n.º 2 do C.P.).
Importa também considerar que o Art.º 39.º n.º 1 do C.P. equipara o consentimento presumido ao consentimento efetivo, mas condiciona-o às situações em que o agente atua em condições que permitam razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente protegido teria eficazmente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que este foi praticado (cfr. n.º 2 do mesmo preceito).
O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, em vigor ao tempo dos factos (aprovado pelo Regulamento 14/2009 de 13/1), também regulava o “consentimento implícito” para ato médico no Art.º 47.º, estabelecendo o seguinte:
«O médico deve presumir o consentimento dos doentes nos seguintes casos:
«a) Em situações de urgência, quando não for possível obter o consentimento do doente e desde que não haja qualquer indicação segura de que o doente recusaria a intervenção se tivesse a possibilidade de manifestar a sua vontade;
«b) Quando só puder ser obtido com adiamento que implique perigo para a vida ou perigo grave para a saúde;
«c) Quando tiver sido dado para certa intervenção ou tratamento, tendo vindo a realizar-se outro diferente, por se ter revelado imposto como meio para evitar perigo para a vida ou perigo grave para a saúde, na impossibilidade de obter outro consentimento».
Já o Art.º 340.º n.º 3 do C.C., como referido, refere apenas que a lesão se tem por consentida quando esta se deu no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade presumível.
Menezes Leitão (in “Direito das Obrigações”, Vol. I, 5.ª Ed., pág. 310) entende que este normativo remete para o instituto da gestão de negócios (Art.º 464.º e ss. do C.C.), havendo que considerar uma situação de assunção da gestão de negócio em termos de respeito pelo interesse do lesado e de acordo com a sua presumível vontade, o que exclui a ilicitude da conduta do gestor.
No mesmo sentido Antunes Varela (in “Das Obrigações Em Geral”, vol. I, 10.ª Ed., pág. 561) acrescenta ainda que: «esta presunção tem um especial campo de aplicação no caso das intervenções cirúrgicas em que o doente não está em condições (de discernimento ou de livre determinação) de dar o seu consentimento ou de permitir o alargamento da intervenção a outros órgãos afetados».
Julgamos assim que o consentimento presumido só funciona nos casos em que o lesado não está presente, ou não está em condições de pessoal, livre e conscientemente poder prestar o seu consentimento no caso concreto.
Ora, isso só se verificou na situação da 2.ª intervenção cirúrgica (cfr. facto provado 210 - ainda que aí só se refira ao consentimento informado para o ato de anestesia).
Como já realçamos, a matéria de facto relativa à 2.ª intervenção transmite-nos uma imagem duma situação de emergência, “in extremis”. Transparece dos factos provados que, de repente, perante o resultado da TAC, o mundo desabou. Os piores receios verificaram-se e foram confirmados (cfr. factos provados 167 e 205). Impunha-se uma intervenção de emergência, sendo que o 1.º R. pouco mais fez que veicular isso mesmo à paciente, na presença dos seus familiares (cfr. factos provados 173).
Já o dissemos antes, e voltamos aqui a repeti-lo, não se põe em causa a adequação dessa segunda cirurgia, nem que a mesma tenha sido feita de forma tecnicamente correta, pois a matéria de facto não permite outras conclusões a este respeito (cfr. factos provados 174 e 176).
Houve um desfecho particularmente gravoso, mas que se traduziu, ao que tudo indicia, numa contingência operatória incontrolável ou um risco próprio da situação clínica em que a paciente já se encontrava. Não houve assim propriamente uma violação das “legis artis”, no que estritamente se refere à técnica operatória.
Certo é que essa segunda operação foi realizada sem qualquer “consentimento informado” escrito e expresso, ao contrário do que ocorreu com a 1.ª intervenção (cfr. doc. de fls. 772), tal como decorre dos pontos 183 e 209 da sentença recorrida.
Admite-se que a paciente, às 17h45m, se encontrasse lúcida e colaborante às 17h45m, apesar de prostrada (cfr. facto provado 180) e que foi nessas condições que recebeu a notícia que o intestino se “descoseu” (cfr. factos provados 94 a 96). Só que, quando entrou no bloco operatório, já não se encontrava em condições para prestar o seu consentimento informado, seja para o ato médico de anestesia (cfr. facto provado 210), seja para a cirurgia.
Para mais, como foi feito notar nas alegações de recurso, tratava-se já duma operação absolutamente necessária, numa situação de vida ou de morte, com o propósito de tentar salvar a doente, tendo-se tudo precipitado num relativo curto espaço de tempo. O que, a nosso ver, só por si, já preenche a situação do consentimento presumido (cfr. Art.º 340.º n.º 3 do C.C., Art.ºs 39.º e 156.º n.º 2 do C.P. e Art.º 47.º do CDOM, na versão ao tempo em vigor).
Dito isto, julgamos que está excluída a ilicitude relativa ao não cumprimento específico de deveres de informação e de obtenção de consentimento informado expresso relativo à 2.ª intervenção cirúrgica.
Em todo o caso, quanto ao incumprimento dos deveres de informação e validade do consentimento prestado relativo à 1.ª operação, concordamos com a sentença recorrida.
Impunha-se ao 1.º R. comunicar os riscos dessa operação, o que objetivamente não fez, nem explicitou a existência de qualquer outra alternativa e dos seus riscos, por forma a que a paciente pudesse formar a sua vontade de forma efetivamente livre e esclarecida.
Na prática, a assinatura da declaração de fls. 772 pela paciente não passou do mero cumprimento burocrático duma formalidade interna do hospital, a que não correspondeu o cumprimento efetivo e eficaz dos deveres de informação que as regras deontológicas impunham ao médico (cfr. Art.º 44.º do CDOM, então em vigor), o que consequentemente põe em causa a validade do consentimento assim obtido (cfr. Art.º 45.º n.º 1 do CDOM, idem).
Não se nega que a doente queria fazer essa operação, porque foi a que lhe foi proposta, sabendo da “premência” duma intervenção cirúrgica necessária a debelar a doença diagnosticada. Também acreditamos que tenha confiado plenamente na proposta operatória que, em termos muito genéricos, lhe foi explicada pelo seu médico, aqui 1.º R., porque confiou neste médico. Nessa medida, até poderia suceder que, se o 1.º R. lhe tivesse explicado os riscos dessa operação, bem como das outras possíveis alternativas, a paciente tivesse de todo o modo optado pela que lhe foi assim proposta – nunca o saberemos –, mas não pode é deixar de se considerar que sempre subsistirá a eterna dúvida sobre a possibilidade de, perante uma informação mais completa e capaz por parte do 1.º R., a paciente não tivesse sentido a necessidade de pedir uma segunda opinião ou procurado outras soluções terapêuticas igualmente possíveis e eficazes, eventualmente com um desfecho não tão dramático, como o que acabou por se verificar. O que, oportunamente, não poderá deixar de ser relevado.
Em todo o caso, o ilícito relativo à constatação da desconformidade objetiva entre o comportamento devido e o efetivamente realizado pelo 1.º R., quanto ao (in)cumprimento – ou cumprimento defeituoso – dos deveres de informação é claro.
O R., ao proceder desse modo, não estava no exercício de um direito, nem estava a cumprir com proficiência um dever imposto pela lei, nem se verificou, quanto à falta da informação devida para essa 1.ª operação, qualquer causa de justificação da ilicitude.
O mesmo se deve dizer relativamente ao tempo de demora na solicitação duma sala para a 2.ª intervenção cirúrgica.
Recorde-se que estávamos perante uma clara situação de emergência, que o próprio R. fez sentir à paciente e demais familiares então presentes.
Como os ingleses costumam dizer: “Time is of the essence”. Todo o tempo de demora poderia ser relevante, por poder acarretar consequências cada vez mais gravosas e, eventualmente, irreversíveis.
Evidentemente que não sabemos se a intervenção tivesse decorrido cerca de 2 horas antes, se se teria conseguido poupar a vida desta doente. Seja como for, essa dúvida não afasta o indício relativo à conclusão sobre a existência de um incumprimento, por não se ter agido de forma mais célere na realização dos comportamentos médicos que eram devidos.
O que é claro é que havia urgência na imediata realização da cirurgia e o 1.º R. demorou cerca de 2 horas a solicitar uma sala para a realização da operação, sem que essa demora tenha sido objetivamente justificada. Nessa medida, há uma diferença entre o comportamento objetivamente devido e o verificado, o que nos permite concluir pela ilicitude dessa ação.
Saber se essa concreta demora era suficiente para determinar a verificação da fatalidade que sobreveio já nada tem a ver com o pressuposto da ilicitude, mas sim com o estabelecimento do nexo de causalidade, que será apreciada no momento próprio.

2.3 Da imputação subjetiva (culpa):
Quanto à imputação subjetiva dos factos ao 1.º R., começaremos por dizer que não há qualquer dúvida sobre a autoria material dos atos médicos que tivemos oportunidade de considerar ilícitos.
Foi o 1.º R. quem, material e objetivamente, cumpriu os deveres de informação tendentes à obtenção do consentimento informado da sua paciente, sendo também este R. quem solicitou uma sala do bloco operatório do hospital para a realização da 2.ª intervenção cirúrgica de emergência com o atraso notado.
O 1.º R. agiu pessoalmente, com presumível discernimento e liberdade de determinação na sua conduta (Art.º 488º do C.C.), pelo que o seu comportamento pode ser objeto de um juízo de censura.
No caso concreto, considerando que estamos perante responsabilidade contratual, a culpa até se presume (Art.º 799.º do C.C.), mesmo sendo certo que os critérios de fixação da culpa são os mesmos que os estabelecidos na responsabilidade extracontratual, nos termos do Art.º 487.º n.º 2 e 488.º do C.C..
Distinguido o pressuposto da ilicitude do pressuposto da culpa, diremos que, enquanto na primeira – ilicitude –  está em causa a divergência objetiva entre o comportamento devido, por exigência da lei, e aquele que efetivamente foi realizado, na segunda – culpa – importará apreciar se era possível e exigível ao agente agir doutro modo.
A diligência de um “bom pai de família” é o critério legal que serve de parâmetro de conformidade da exigibilidade do comportamento com o direito (Art.º 487º n.º 2 do C.C.), embora aqui necessariamente corrigido pelas particularidades que resultam do exercício específico da profissão de médico, que importam para o agente conhecimentos científicos e técnicos muito particulares, que doutro modo não se imporiam ao cidadão comum, agravados pela necessidade de observância de um conjunto de regras deontológicas específicas que são do seu conhecimento necessário.
A presunção de culpa estabelecida no Art.º 799.º do C.C. tem como consequência que, perante o indício dum incumprimento contratual ilícito, competirá ao devedor demonstrar que agiu com toda a diligência que lhe era exigida e que mais não lhe era possível fazer.
Competia assim ao 1.º R. o especial ónus de demonstrar que não era possível agir doutro modo, nem lhe era exigível outro comportamento nas concretas condições verificadas.
Ora, é evidente que, quanto ao cumprimento dos deveres de informação e obtenção do consentimento informado válido, era exigível ao R. mais que os esclarecimentos genéricos que prestou, não bastando só descrever em que consistia a 1.ª operação que pretendia fazer, tal como se limitou a fazer.
Já quanto ao atraso verificado na solicitação da sala de operações, poderiam ter-se verificado várias situações objetivas que poderiam justificar a demora. Por exemplo, poderia não conseguir obter uma sala disponível em tão pouco tempo; poderia não conseguir reunir os demais meios técnicos necessários à operação; ou poderia não conseguir garantir a presença dos enfermeiros, anestesistas ou auxiliares que fosse precisos intervir.
No caso, o 1.º R. limitou-se a alegar que se deslocou pessoalmente ao bloco operatório, onde falou com a enfermeira-chefe para solicitar a sala, convocar uma equipa de enfermagem e anestesista de urgência, mas foi informado que só teria sala após as 20h00m, pois antes não havia sala disponível, sendo necessário aguardar (cfr. Artigos 107.º a 111.º da sua contestação). Só que, esses factos foram todos julgamos por não provados, como resulta da sentença recorrida (cfr. fls. 1390). Logo, não logrou cumpriu o seu ónus de prova (Art. 344.º do C.C.) consequente da presunção de culpa constante da lei (v.g. Art.º 799.º do C.C.).
Em suma, só resta concluir que o 1.º R. agiu com culpa, porque se presume que lhe era exigível e possível agir mais rapidamente na 2.ª intervenção cirúrgica, para além de dever ter cumprido o dever de informação e respeitar o direito da sua paciente a formar a sua vontade de forma livre e esclarecida, mesmo que o R. tenha agido com as melhores intenções, por considerar que a operação por si proposta fosse a mais adequada a prevenir mal maior e eventualmente debelar a doença da sua paciente.

2.4. Os danos.
Como é claro, a obrigação de indemnização depende necessariamente da existência de danos ou prejuízos decorrentes de factos ilícitos culposos.
Os danos constituem a perda “in natura” que o lesado sofreu nos seus interesses materiais, espirituais ou morais em consequência do facto lesante e que o direito tutela.
No caso dos autos, foram alegados apenas danos não patrimoniais, relacionados com o sofrimento e dores da falecida, com todos os exames e tratamentos (€30.000); a morte da paciente (€120.000); os traumas dos filhos e a falta que a mãe lhes provoca (€40.000, cada um); e a perda causada ao marido, que ficou sozinho, com 2 filhos de 9 anos de idade por criar e com graves traumas psicológicos derivados da viuvez (€40.000).
Tem que se dizer que a petição inicial é particularmente parca na alegação da factualidade relativa aos danos, que se resumem praticamente às conclusões constantes dos artigos 290.º a 295.º da petição inicial, muito fundadas numa pretensa “auto evidência” de que a situação dos autos necessariamente conduziria à conclusão de que os danos aí quantificados se verificavam efetivamente e justificavam, por si só, o pedido. O que teve consequências inevitáveis ao nível da matéria provada na sentença recorrida.
Ainda assim, o que decorre da matéria de facto provada, relativamente aos sofrimentos e dores da vítima antes do falecimento, é que:
- CP foi admita para internamento hospitalar no dia 19 de abril (cfr. factos provados 39);
- Foi sujeita a uma colonoscopia total agendada para 20 de abril de 2015 (cfr. factos provados 40, 41);
- No dia 21 foi encaminhada para o bloco operatório e fez a 1.ª operação, com anestesia geral e preparação prévia intestinal, a qual não teve complicações (cfr. factos provados 48 a 50, 54 e 55, 143 a 148); sendo depois encaminhada para a UCI (cfr. factos provados 56, 149 e 150); ficando sonolenta e sem algias (cfr. facto provado 59, 150 e 151, 158);
- No dia 22, pelas 11h24m, apresentava queixas álgicas ligeiras e dejeção de hematoquesias, encontrando-se lúcida, colaborante e sem dor (cfr. factos provados 60, 61 e 62, 194);
- No dia 23 foi transferida para os serviços de internamento geral, calma e sem queixas (cfr. factos provados 63, 64, 195, 198, 199); tendo tentado levantar-se, mas alegando desconforto (cfr. factos provados 65); mas na parte de tarde já se apresentou queixosa, pálida e sudorética (cfr. factos provados 66);
- No dia 24, à 1h06m, estava queixosa e febril, com dejeção de melenas em moderada quantidade (cfr. factos provados 67, 197); às 7h56m continuava estável, queixosa, sem dormir e com dor localizada (cfr. factos provados 70); apresentou sinais de infeção ás 8h19m e foram pedidas análises (cfr. factos provados 85 e 200); às 14h11m referiu sensação de sudorese e dor, fazendo analgésico e soro (cfr. factos provados 69, 71); às 11h38m teve febre, dois episódios de vómitos, redução de glóbulos brancos e 15 no resultado da proteína reativa, com indicação para entubação naso-gástrica em caso de SOS, repetida  ás 13h41m, aí já com sinais clínicos de deiscência (cfr. factos provados 74, 165, 166, 178, 189); às 14h42 estava pálida, prostrada e nauseada, um pouco queixosa, teve 3 vómitos de líquido bilioso de moderada quantidade, não tolerando água, nem gastrografina (cfr. factos provados 79, 80, 84); às 17h45m encontrava-se lúcida e colaborante, mas prostrada (cfr. facto provado 180); depois fez TAC que revelou fuga de conteúdo através da anastomose, ou deiscência da anastomose (cfr. factos provados 81 a 83, 93, 94, 167, 193); foi avisada das más-notícias e que teria de ser operada de imediato (cfr. factos provados 94 e 173);
- De seguida foi encaminhada para o bloco operatório às 20h30m, onde foi intervencionada, com anestesia geral, que confirmou a deiscência da anastomose (cfr. factos provados 98 a 100, 102, 172, 184, 185); tendo-se então deparado com uma situação de pneumonia de aspiração; foi entubada, verificando-se um agravamento da insuficiência respiratória, agravada por choque séptico  (cfr. factos provados 104 a 106 e 174 a 177, 181, 186, 188);
- Foi levada para a UCI, por volta das 23h00m, fortemente ventilada (cfr. factos provados 107, 109, 110); tendo-se a situação agravado em termos hemodinâmicos, com acidemia respiratória grave, que se veio a agravar (cfr. factos provados 111 a 118);
- Veio a falecer dia 26 de abril pelas 21h40 (cfr. factos provados 1 e 119); porque sofreu septicémia, que foi a causa da sua morte (cfr. factos provados 88).
Quanto ao dano morte, ficou provado que:
- A paciente faleceu no dia 26 de abril de 2015 (cfr. factos provados 1 e 119), com 43 anos de idade (cfr. facto provado 5);
- Exercia funções de técnica analista na CGD (cfr. facto provado 6); e
- Era uma pessoa ativa e dinâmica, assim sendo reconhecida por todos (cfr. facto provado 7).
Quanto aos sofrimentos dos A.A., ficou apenas provado que:
- A falecida era esposa do 1.º A. (cfr. facto provado 2);
- Era mãe dos 2.º e 3.º A.A., ambos com 9 anos de idade, sendo uma mãe atenta e dedicada (cfr. factos provados 3);
- O 1.º A. recebeu a notícia do falecimento às 22h10m (cfr. facto provado 120) e teve de comunicar o óbito aos filhos e pais da falecida (cfr. factos provados 122 e 123);
- Passou por momento penosos, porque a sua esposa era o pilar de toda a vida familiar (cfr. factos provados 124), sendo aquela quem tinha maior rendimento no agregado familiar (cfr. factos provados 125).
Ao assim exposto, poderemos acrescentar que só poderemos presumir, nos termos do Art. 349.º e 351.º do C.C., do facto de a falecida ter sido uma mãe atenta e dedicada (cfr. facto provado 3), que os seus filhos, que apenas tinham 9 anos de idade à data do óbito, sintam agora, naturalmente, a sua falta no processo de crescimento, desenvolvimento e educação, numa fase tão importante das suas vidas, em que se molda definitivamente a sua personalidade e em que a presença duma mãe se afigura da maior importância para o seu equilíbrio emocional.
Visto isto, estando em causa apenas danos de natureza não patrimonial, existe uma natural maior dificuldade em achar o seu quantitativo, precisamente porque estes se caracterizam pelo facto de não serem suscetíveis de avaliação pecuniária, na medida em que atingem bens que não integram o património dos lesados. Assim, os lesados apenas podem ser compensados pelo estabelecimento duma obrigação pecuniária imposta ao lesante, que corresponde mais uma satisfação do que propriamente uma indemnização em sentido próprio (Antunes Varela - Ob. cit. - Vol. I, pág. 603 e ss.).
Nos termos do Art.º 496º n.º 1 do C.C. na fixação dessa indemnização deve atender-se somente aos danos que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Estabelece ainda o n.º 2 do Art. 496.º do C.C. que: «2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes (…)».
Para efeitos da fixação do montante da indemnização, decorre do Art. 496º n.º 3 do C.C. que se deve atender à equidade, ao grau de culpabilidade do agente, à sua situação económica e do lesado e demais circunstâncias que o justifiquem.
Acresce que, nos termos do Art. 496.º n.º 4, 2.ª parte, do C.C., em caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.
Não existem dúvidas sobre o enquadramento legal e atendibilidade dos danos não patrimoniais invocados, que têm vindo a ser reconhecidos recorrentemente na jurisprudência dos tribunais superiores, sem prejuízo doutras formas de concretização que igualmente podem ser relevadas.
Assim, no acórdão do S.T.J. de 7/10/2021 (Revista n.º 14810/15.0T8LRS.L2.S1 - 1.ª Secção  António Magalhães (Relator)  Jorge Dias e Maria Clara Sottomayor – disponível no sítio do STJ relativo a “sumários de acórdãos”), é dito que: «VIII - A tradicional tripartição do quantum indemnizatório por danos não patrimoniais em caso de morte da vítima direta (de forma a atender-se à perda da vida, aos sofrimentos da vítima que antecederam a morte e ao sofrimento próprio dos familiares/unido de facto elencados nos n.ºs 2 e 3 do art.º 496.º do CC) corresponde apenas a uma orientação jurisprudencial, ainda que consolidada, no intuito de alcançar uma maior objetivação do juízo equitativo em matéria de danos não patrimoniais, e não a categorias legais. Assim sendo, tal orientação não impede que se considerem as circunstâncias específicas de cada caso concreto (…)».
Quanto à dificuldade da determinação do “quantum” indemnizatório deste tipo de danos, também foi reconhecida, por várias vezes, pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Veja-se, exemplarmente, o que ficou dito no sumário do acórdão do S.T.J. de 7/12/2016 (Revista n.º 1348/10.1TVLSB.L1.S1 - 7.ª Secção -  Silva Gonçalves (Relator)  António Joaquim Piçarra e Fernanda Isabel Pereira, disponível no sítio do STJ relativo a “sumários de acórdãos”), onde se pode ler: «IX - Na impossibilidade de se apurar o valor exato dos danos não patrimoniais, designadamente os que se prendem com o valor da vida humana e com a valoração do sofrimento que a sua perda acarreta para os familiares mais chegados, o montante indemnizatório deverá ser fixado pelo tribunal segundo critérios de equidade, não devendo nortear-se por critérios minimalistas e revestir carácter meramente simbólico, antes devendo traduzir uma efetiva possibilidade compensatória para os danos suportados e, se for o caso, a suportar (Art.ºs 496.º, n.º 4, e 566.º, n.º 3, do CC)». 
De igual modo, no acórdão do STJ de 27-09-2016 (Revista n.º 7559/12.8TBMAI.P1.S1 - 6.ª Secção  Fernandes do Vale (Relator),  Ana Paula Boularot  e Pinto de Almeida) é dito que: «I- O quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser apurado, em qualquer caso, segundo critérios de equidade, sempre de acordo com as regras da boa prudência, do bom senso prático, da criteriosa ponderação dos interesses da vida.  II - No caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza, acentuadamente, mista, porquanto, não obstante visar reparar, de algum modo, mais do que indemnizar, também não se alheia da ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico, e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente».
O que é ainda repetido no acórdão do S.T.J. de 27-09-2016 (Revista n.º 245/11.8T2AND.P1.S1 - 1.ª Secção  Hélder Roque (Relator),  Gabriel Catarino e Roque Nogueira), em cujo sumário se pode ler: «I- Numa ação de responsabilidade civil (…) em que ocorre o falecimento de um familiar dos demandantes, a quantificação do dano não patrimonial à luz dos critérios insertos no art. 496.º, n.º 1, do CC, é sempre difícil por envolver a valoração do sofrimento com a rutura de laços afetivos devido à morte de um ente querido».
Como é evidente, dano da vida, mais que qualquer outro, pela sua própria natureza, é o de mais difícil quantificação, não podendo ser estabelecido um preço para a violação da vida humana, como direito fundamental e inviolável que é.
Tão difícil é atribuir um valor pela violação desse direito, quanto é o risco de afinal o podermos comparar com o de outros bens materiais, que no comércio corrente, aparecem extremamente valorizados, como seja o valor de um veículo automóvel ou de uma casa para habitação.
De facto, nós não poderemos cair nesta tentação de referir o valor do direito à vida aos desses bens materiais, porque são realidades que não se podem comparar. No entanto, parece legítimo valorar de maneira diversa o ceifar da vida de um jovem de 20 anos por contraposição a uma pessoa que à data do seu falecimento já tinha 43 anos de idade e, portanto, teria uma menor esperança de vida, sendo certo que não pode ser deixado de valorizar a circunstância de no caso estarmos a falar duma pessoa ativa, trabalhadora, útil à comunidade, casada e com 2 filhos, de 9 anos de idade.
Não entraremos aqui na discussão doutrinária, que nos parece fútil, de saber se os A.A., como marido e filhos da falecida, têm direito a essa indemnização por mera determinação legal do Art.º 496º nº 2 do C.C. ou por via sucessória, já que seriam os sucessores legais da falecida (Art.º 2131º, 2.133º nº 1 al. a) e 2.139º nº 1 do C.C. ).
É um gasto de inteligência desnecessário especular se a morte é o último momento da vida, ou se só quando o lesado morre é que nasce o direito a indemnização e, consequentemente, nesse momento, o titular ativo desse direito já não existe, logo não pode haver sucessão (vide, a propósito, entre outros: Antunes Varela, Ob. cit. pág.s 608 e ss.; Menezes Leitão in “Direito das Obrigações”, Vol. I, 5.ª Ed., pág.s 336 e ss.; Galvão Telles in “Direito das Sucessões. Noções Fundamentais”, 6.ª Ed., pág.s 96 e ss.; ou Almeida Costa in “Direito das Obrigações”, 9.ª Ed., notação 3, pág. 552).  O que interessa é que aos A.A. que a lei atribuí o direito a essa indemnização, seja por via sucessória, seja por direito próprio. Embora não nos pareça que possa estar aqui em causa uma típica situação de transmissão sucessória, não fazendo sentido, por exemplo, sujeitar estas indemnizações à tributação fiscal a que anteriormente correspondia o já extinto “Imposto Sucessório”.
Relativamente aos concretos valores das indemnizações peticionadas, deveremos ter de recorrer à jurisprudência de referência que tem vindo a ser produzida, nomeadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Assim, quanto às dores físicas e sofrimentos com cirurgias, hospitalizações, internamentos e tratamentos, num caso em que a lesada tinha 81 anos, foi tido como adequada uma indemnização de €40.000,00 no acórdão do STJ de 12/1/2022 (Proc. n.º 1616/11.5TVLSB.L1.S1, Relator: António Barateiro Martins, disponível em www.dgsi.pt). No acórdão do STJ de 22/3/2018 (Proc. n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1 – Relatora: Maria da Graça Trigo, disponível no mesmo sítio), num caso de perfuração cólica, na sequência de colonoscopia, pelo mesmo tipo de danos julgou-se adequada uma indemnização de €28.000,00. No acórdão do STJ de 7/3/2017 (Proc. n.º 6669/11.3TBVNG.S1 – Relator: Gabriel Catarino, disponível no mesmo sítio), num caso de operação à bexiga, numa pessoa com 33 anos, com consequências gravosas, no plano da auto estima e da estabilidade físico-psíquica, resultantes da necessidade de auto algaliação e colostomia, fixou-se uma indemnização, no valor verdadeiramente extraordinário, de €120.000,00, por danos não patrimoniais. No acórdão do STJ de 2/2/2017 (Revista n.º 658/07.0TBBRR.L2.S1 - 2.ª Secção  Abrantes Geraldes (Relator),  Tomé Gomes e Maria da Graça Trigo – disponível em “Sumários de Acórdãos” do STJ), fixou-se a indemnização por danos não patrimoniais decorrentes de graves lesões e fortes dores, registados pela vítima em €20.000,00. No acórdão de 10/10/2017 (Revista n.º 1537/15.2T8SNT.L1.S1 - 1.ª Secção  Pedro Lima Gonçalves (Relator), Cabral Tavares (vencido), Maria de Fátima Gomes - idem), fixou em €15.000 a compensação pela consciência, sofrida e angustiada, da morte iminente por parte da vítima. No acórdão do STJ de 6/12/2018 (Revista n.º 1685/15.9T8CBR.C1.S1 - 7.ª Secção  - Hélder Almeida (Relator), Oliveira Abreu  e Ilídio Sacarrão Martins) fixou-se em €10.000,00 de indemnização pelos danos sofridos pela vítima antes de falecer, considerando a intensidade das dores físicas e morais sofridas, aquilatadas pelos elementos disponíveis, tendo sofrido enorme pânico e aflição com o aproximar iminente da morte. No acórdão do STJ de 28/02/2019 (Revista n.º 1940/14.5T8CSC.L1.S1 - 7.ª Secção  Nuno Pinto Oliveira (Relator – com declaração de voto), Maria dos Prazeres Beleza e  Olindo Geraldes) fixou em €20.000,00 a indemnização devida pelos sofrimentos da vítima que antecederam a morte, reconhecendo-se a sua variabilidade em função de cada caso concreto e que nesse caso a morte teria sido quase imediata. No acórdão do STJ de 11-04-2019 (Revista n.º 465/11.5TBAMR.G1.S1 - 7.ª Secção  Oliveira Abreu (Relator),  Ilídio Sacarrão Martins e Nuno Pinto Oliveira), fixou a compensação do dano não patrimonial sofrido pela vítima entre o evento lesivo e até à data da sua morte, em €30.000,00, ponderando o sofrimento causa pelas lesões, as dores intensas, desconforto, medo e angústia, o facto de se ter apercebido do seu grave estado de saúde e da probabilidade da morte e o quantum doloris fixado no grau 5/7. No acórdão do STJ de 11/2/2021 (Revista n.º 625/18.8T8AGH.L1.S1 - 2.ª Secção Abrantes Geraldes (Relator), Tomé Gomes e Maria da Graça Trigo) fixou a compensação pelas lesões sofridas e demonstrativas de que a vítima, durante as horas em que sobreviveu, teve sofrimento físico, em €20.000,00.
Quanto ao dano vida (seguindo aqui a publicação: “O dano morte na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça - Sumários de Acórdãos de 2016 a dezembro de 2021) - disponível no sítio do STJ e que temos vindo a citar), tem-se vindo a definir indemnizações que oscilam entre €50.000,00 e os €80.000,00, chegando em casos excecionais, mais recentes, aos €100.000 (cfr. Ac. do STJ de 14-07-2016 - Revista n.º 2069/13.9TBFLG.P1.S1- 2.ª Secção Oliveira Vasconcelos (Relator),  Fernando Bento e João Trindade; Ac. STJ de 01-06-2017  Revista n.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1 - 7.ª Secção  Lopes do Rego (Relator),  Távora Victor António Joaquim Piçarra; Ac. STJ de 1-03-2018  Revista n.º 1608/15.5T8LRA.C1.S1 - 7.ª Secção Távora Vítor (Relator),  António Joaquim Piçarra e Fernanda Isabel Pereira; Ac. STJ de 5-06-2018  Revista n.º 370/12.8TBOFR.C1.S2 - 6.ª Secção  Salreta Pereira (Relator)  João Camilo e Fonseca Ramos; Ac. do STJ de 29-10-2020 (Revista n.º 5/05.5TBPTS.L1.S1 - 7.ª Secção  Olindo Geraldes (Relator), Maria do Rosário Morgado e Oliveira Abreu).
Exemplificativamente, no acórdão do STJ de 27-09-2016 (Revista n.º 7559/12.8TBMAI.P1.S1 - 6.ª Secção  Fernandes do Vale (Relator),  Ana Paula Boularot e Pinto de Almeida) fixou-se essa indemnização em €75.000,00. No acórdão de 07-12-2016 (Revista n.º 1348/10.1TVLSB.L1.S1 - 7.ª Secção  Silva Gonçalves (Relator),  António Joaquim Piçarra  e Fernanda Isabel Pereira) fixou-se em €60.000,00. No acórdão de 14-12-2016 (Revista n.º 619/04.0TCSNT.L1.S1 - 7.ª Secção  Fernanda Isabel Pereira (Relatora),  Olindo Geraldes e Nunes Ribeiro) fixou-se a indemnização pelo dano morte em €80.000,00, relativamente ao falecimento duma esposa e mãe, com 32 anos de idade. No acórdão de 28-09-2017 (Revista n.º 1181/05.2TBFND.C2.S1 - 7.ª Secção  Távora Victor (Relator),  António Joaquim Piçarra e Fernanda Isabel Pereira) fixou-se a indemnização pelo dano morte em €70.000,00, num caso em que a vítima tinha 32 anos (idem no acórdão de 03-10-2017  Revista n.º 1270/15.5T8PNF.P1.S1 - 1.ª Secção  Garcia Calejo (Relator),  Hélder Roque e Roque Nogueira). No acórdão de 12-01-2017 (Revista n.º 6990/06.2TCLRS.L1.S1 - 2.ª Secção  Abrantes Geraldes (Relator), Tomé Gomes e Maria Graça Trigo) fixou-se a indemnização pelo dano morte em €30.000,00, considerando a idade da vítima (81 anos) e a circunstância de a mesma ser responsável em 50% pelo dano. No acórdão do STJ de 02-02-2017 (Revista n.º 658/07.0TBBRR.L2.S1 - 2.ª Secção  Abrantes Geraldes (Relator),  Tomé Gomes e Maria da Graça Trigo) fixou-se a indemnização pelo dano morte em €40.000,00, considerando que a vítima tinha 78 anos.  No acórdão de 2/3/2017 (Revista n.º 36/12.9TBVVD.G1.S1 - 7.ª Secção  Távora Vítor (Relator), Silva Gonçalves e Fernanda Isabel Pereira), num caso em que o lesado foi submetido a várias intervenções cirúrgicas e a inúmeros tratamentos, tendo sofrido vários internamentos hospitalares e dores deveras significativas, tendo estado completamente imobilizado no leito e por tempo apreciável, tendo ficado afetado na sua funcionalidade somática a vários níveis, tendo ficado afetado esteticamente, tendo ficado afetado na sua sexualidade, e tendo sofrido ainda outros danos não patrimoniais, fixou-se a indemnização em €80.000,00. No acórdão do STJ de 17-12-2020 (Revista n.º 5306/16.4T8GMR.G2.S1 - 1.ª Secção Jorge Dias (Relator), Maria Clara Sottomayor e Alexandre Reis), fixou-se essa indemnização em €100.000,00, mas a vítima tinha 7 anos de idade. No acórdão do STJ de 06-12-2018 (Revista n.º 1685/15.9T8CBR.C1.S1 - 7.ª Secção - Hélder Almeida (Relator), Oliveira Abreu e Ilídio Sacarrão Martins) fixou-se a indemnização pelo dano vida em €60.000,00. No acórdão do STJ de 28-02-2019 (Revista n.º 1940/14.5T8CSC.L1.S1 - 7.ª Secção  Nuno Pinto Oliveira (Relator – com declaração de voto), Maria dos Prazeres Beleza e Olindo Geraldes), fixou o valor da indemnização pelo dano morte em €80.000,00. No acórdão do STJ de 11-04-2019 (Revista n.º 465/11.5TBAMR.G1.S1 - 7.ª Secção  Oliveira Abreu (Relator),  Ilídio Sacarrão Martins e Nuno Pinto Oliveira) o dano morte foi ressarcido pela de €70.000, porque a vítima, apesar de ter 72 anos, era uma pessoa ativa, gozava de boa saúde, era sociável e alegre, dedicado a uma agricultura para consumo familiar, sendo estimado e considerado no meio onde vivia, fazendo parte de uma tuna, e era bom marido, pai e avô. No acórdão de 04-06-2020 (Revista n.º 2732/17.5T8VCT.G1.S1 - 2.ª Secção  Tomé Gomes (Relator), Maria da Graça Trigo e Rosa Tching), não censurou a fixação em €54.000,00 de indemnização pela perda do direito à vida relativa à morte de indivíduo com 75 anos que foi sujeito a várias hospitalizações. No acórdão do STJ de 11-02-2021 (Revista n.º 625/18.8T8AGH.L1.S1 - 2.ª Secção Abrantes Geraldes (Relator), Tomé Gomes e Maria da Graça Trigo) fixou a indemnização pela perda do direito à vida duma vítima que tinha 53 anos, em €80.000,00. Também em €80.000,00 se fixou a indemnização pelo direito à vida no acórdão do STJ de 25-02-2021 (Revista n.º 4086/18.3T8FAR.E1.S1 - 2.ª Secção  Rosa Tching (Relatora), Catarina Serra e Rijo Ferreira) e no Acórdão do STJ de 03-03-2021 (Revista n.º 3710/18.2T8FAR.E1.S1 - 7.ª Secção  Maria do Rosário Morgado (Relatora), Oliveira Abreu e Ilídio Sacarrão Martins), sendo que neste último caso a vítima tinha 45 anos de idade e um bom relacionamento com o seu único filho.
Quanto aos danos sofridos por familiares com a perda pela morte da vítima, já se fixaram indemnizações de €30.000,00 a favor dos pais da vítima de 32 anos de idade, numa situação em que a vítima era filha única (cfr. Ac. do STJ de 15-09-2016 - Revista n.º 492/10.0TBBAO.P1.S1 - 7.ª Secção  António Joaquim Piçarra (Relator),  Fernanda Isabel Pereira e Olindo Geraldes). No acórdão do STJ de 27-09-2016 (Revista n.º 7559/12.8TBMAI.P1.S1 - 6.ª Secção  Fernandes do Vale (Relator), Ana Paula Boularot  e Pinto de Almeida) o sofrimento com a morte de um pai, não obstante este já não viver, fisicamente, com os filhos, um de dez e outro de cinco anos de idade, numa fase de alguma autonomia pessoal da figura paterna, devido à sua falta e à privação dos seus carinhos, determinou uma compensação, por danos não patrimoniais próprios, de €25.000,00. No acórdão do STJ de 27-09-2016 (Revista n.º 245/11.8T2AND.P1.S1 - 1.ª Secção Hélder Roque (Relator),  Gabriel Catarino Roque Nogueira) o sofrimento consequente da morte do seu marido e pai dos A.A., o choque emocional, determinou a atribuição de uma indemnização de €25.000 ao cônjuge sobrevivo e à filha, que viviam com o falecido, e de €20.000 a um outro filho. No acórdão de 14-12-2016 (Revista n.º 619/04.0TCSNT.L1.S1 - 7.ª Secção  Fernanda Isabel Pereira (Relatora),  Olindo Geraldes e Nunes Ribeiro) fixou-se a indemnização, ponderado a idade da vítima (32 anos), a natureza das relações familiares, de harmonia e afetividade, o convívio marital que perdurava há 8 anos e a idade dos filhos menores (de 2 e 5 anos), fixando os montantes indemnizatórios em €25.000,00 para o marido e de €20.000 para cada um dos filhos, a título de danos não patrimoniais sofridos por via da morte. No acórdão do STJ de 02-02-2017  (Revista n.º 658/07.0TBBRR.L2.S1 - 2.ª Secção  Abrantes Geraldes (Relator),  Tomé Gomes e Maria da Graça Trigo) atribuiu-se aos familiares uma indemnização de 15.000,00, cada. No acórdão de 08-06-2017 (Revista n.º 1524/10.7TBOAZ.P1.S1 - 2.ª Secção   Tomé Gomes (Relator),    Maria da Graça Trigo e João Bernardo) reconheceu-se ao viúvo, pelos danos não patrimoniais por ele sofridos com a morte da sua mulher, com quem mantinha um saudável e próximo relacionamento, uma indemnização de €25.000,00. No acórdão de 03-10-2017 (Revista n.º 2147/12.1TBAMT.P1.S1 - 6.ª Secção  Salreta Pereira (Relator),  João Camilo  e Fonseca Ramos) fixou-se a indemnização, a título de danos não patrimoniais, em €30.000 para a viúva, e €25.000, para cada um dos dois filhos da vítima, dado que aquela viu, com o perecimento do marido, destruído o seu plano de vida em comum, ao passo que os filhos, considerando a sua idade (18 anos, um, e outro ainda menor), previsivelmente, veriam o seu projeto de vida futura afetado pelo desaparecimento de seu pai, sendo o sofrimento e desgosto do cônjuge sobrevivo, normalmente, mais intenso e de maior duração do que aquele de que padecem os filhos. No acórdão de 10-10-2017 (Revista n.º 1537/15.2T8SNT.L1.S1 - 1.ª Secção  Pedro Lima Gonçalves (Relator),  Cabral Tavares (vencido) e Maria de Fátima Gomes) ficou em €30.000 a compensação devida pelo sofrimento, por cada um dos pais que, com a morte do filho de 17 anos, com eles convivente, entraram em colapso psicológico, deixaram de sair com amigos, isolaram-se em casa, recordam-no a toda hora e choram todos os dias. No acórdão de 13-03-2018 (Revista n.º 940/14.0TBCBR.C1.S1 - 1.ª Secção  Pedro Lima Gonçalves (Relator)  Cabral Tavares e Fátima Gomes) fixou-se em €30.000 a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um dos filhos da vítima que faleceu. No acórdão de 05-06-2018 (Revista n.º 370/12.8TBOFR.C1.S2 - 6.ª Secção  Salreta Pereira (Relator), João Camilo e Fonseca Ramos) fixou em €20.000,00 pelo prolongado estado de dor e tristeza provocado na filha da vítima. No acórdão de 13-03-2018 (Revista n.º 940/14.0TBCBR.C1.S1 - 1.ª Secção Pedro Lima Gonçalves (Relator), Cabral Tavares e Fátima Gomes) ficou em €30.000 fixados a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um dos filhos da vítima. No acórdão do STJ de 28-02-2019  Revista n.º 1940/14.5T8CSC.L1.S1 - 7.ª Secção - Nuno Pinto Oliveira (Relator – com declaração de voto), Maria dos Prazeres Beleza e Olindo Geraldes), fixou-se a indemnização pelos sofrimentos próprios dos filhos devidos à morte da vítima em €30.000,00. No acórdão do STJ de 11-04-2019 (Revista n.º 465/11.5TBAMR.G1.S1 - 7.ª Secção -  Oliveira Abreu (Relator),  Ilídio Sacarrão Martins e Nuno Pinto Oliveira), fixou-se os danos não patrimoniais próprios sofridos pela mulher e filha do falecido em €25.000,00, para cada. No Acórdão do STJ de 17-12-2020 (Revista n.º 5306/16.4T8GMR.G2.S1 - 1.ª Secção Jorge Dias (Relator), Maria Clara Sottomayor e Alexandre Reis), fixou em €40.000,00 a indemnização arbitrada a cada um dos progenitores pelos danos morais decorrentes da morte da única filha. No acórdão do SRJ de 11-02-2021 (Revista n.º 625/18.8T8AGH.L1.S1 - 2.ª Secção  Abrantes Geraldes (Relator), Tomé Gomes e Maria da Graça Trigo) considerou-se justo e adequado fixar o valor base da compensação pelos sofrimentos próprios do filho da vítima e da pessoa com quem esta vivia em união de facto desde há 6 anos, em €35.000,00 para cada um, considerando que todos mantinham com a vítima laços de afetividade e convivência no âmbito de um mesmo consolidado agregado familiar, admitindo-se, por isso, que terão ficado psicologicamente afetados, em igual medida, pela perda da vítima. E, no acórdão do STJ de 07-10-2021 (Revista n.º 14810/15.0T8LRS.L2.S1 - 1.ª Secção António Magalhães (Relator), Jorge Dias e Maria Clara Sottomayor) fixou-se em €35.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela própria A. pela morte de seu pai. 
Perante esta panóplia de decisões, referências da nossa jurisprudência, e considerando as particularidades do caso dos autos, julgamos que a indemnização devida pelos danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima, relativa ao período de 5 dias anteriores ao seu falecimento, portanto, entre o dia 21 de abril de 2015 (data da 1.ª operação) e o dia 26 de abril (data do falecimento), sendo que só a partir do dia 24 é que a sua situação médica se agudizou, com acrescentes dores, vómitos, febres e instabilidade física e emocional, admitindo-se que tenha existido alguma sensação de pânico quando o 1.º R. dramaticamente lhe anunciou a necessidade da 2.ª intervenção cirúrgica, julgamos que a reparação desses danos deveria ser fixada em €20.000,00.
Quanto ao dano morte, considerando os parâmetros da jurisprudência atrás citada, a indemnização deveria ser fixada em €80.000,00.
Finalmente, quanto aos danos sofridos pelos A.A., quer relativamente à morte da esposa e mãe, quer ao estado emocional de sofrimento que esse facto lhes causou e irá causar para o resto das suas vidas, julgamos adequada uma compensação no valor de €30.000,00 para cada um dos A.A..
De todo o exposto decorre que a indemnização total deveria corresponder ao somatório de €190.000,00 (€20.000,00 + €80.000,00 + €30.000,00 + €30.000,00 + €30.000,00).
Assim, em função dos critérios de fixação da indemnização estabelecidos no Art. 496.º n.º 4 e 494.º do C.C., julgamos que seria adequado ao caso a fixação equitativa da indemnização devida pelos danos não patrimoniais considerados em €190.000,00.

2.5. Nexo de causalidade entre facto e dano.
Chegamos agora ao último dos pressupostos da responsabilidade civil, reconhecendo-se que, no caso, é efetivamente o de mais difícil demonstração.
Logo em sede de apreciação da ilicitude dos incumprimentos objetivos apontados ao comportamento do 1.º R. deixámos antever algumas dúvidas que, em sede de apreciação do pressuposto relativo do nexo causal, não poderão deixar de ser consideradas.
De um lado importa aqui recordar que foram apenas relevados, relativamente ao 1.º R., dois comportamentos relevantes para efeitos da consideração da ilicitude e que sobreviveram à passagem pelo crivo da culpa:
1.º O tempo que demorou entre o conhecimento do resultado da TAC (18h11m – cfr. facto provado 83) e a solicitação duma sala do bloco operatório para realizar a 2.ª intervenção cirúrgica (pouco depois das 20h00m – cfr. facto provado 172), sendo que essa operação só teve início cerca das 20h30m (cfr. facto provado 98); e
2.º A falta de informação sobre outros procedimentos cirúrgicos possíveis (cfr. facto provado 53) e sobre os riscos da 1.ª operação proposta, bem como dos relativos aos outros procedimentos cirúrgicos possíveis e alternativos (cfr. factos 16, 133 (com a nova redação dada no ponto 1.3. do presente acórdão) e 136), com a consequente invalidade do consentimento informado assinado pela paciente a fls. 772.
Por outro lado, os danos verificados, tidos em consideração para efeitos indemnizatórios, em função do alegado pelos A.A. na sua petição inicial e da matéria de facto efetivamente provada, reportam-se apenas a danos não patrimoniais sofridos pela paciente antes do seu falecimento, à perda de vida e às consequências dessa perda relativamente aos próprios A.A., únicos herdeiros da falecida.
São estes dois conjuntos de realidades (factos ilícitos relevantes e danos) que devem ser ligadas entre si pelo pressuposto do nexo causal.
Nos termos do Art.º 563.º do C.C., que tem por epígrafe, precisamente “nexo de causalidade”, estabelece-se que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Para determinação dessa probabilidade (causal), relevante para a verificação deste pressuposto da responsabilidade civil, a doutrina tem prefigurado várias abordagens metódicas distintas.
É hoje uniforme o entendimento da desadequação da teoria da “condictio sine qua non”, também conhecida por “teoria das condições equivalentes”, que propõe a premissa básica de que todas as causas de dano são equivalentes entre si, devendo proceder-se apenas ao raciocínio de retirar o facto lesante considerado e depois perguntarmos se ainda assim subsistiria a lesão do bem jurídico. Em consequência o nexo causal só se estabeleceria se concluíssemos que, subtraindo o facto praticado pelo lesante, o resultado jamais se verificaria.
Em face das insuficiências patentes desse tipo de abordagem, vieram a defender-se outros métodos sustentados na necessidade de restringir os resultados emergentes da aplicação cega da teoria das condições equivalente.
Por exemplo, Menezes Leitão (in “Direito das Obrigações”, Vol. I, 5.ª Ed., pág. 340 e ss.), identifica pelo menos mais 4 teorias doutrinais possíveis: a teoria da última condição, a teoria da condição eficiente, a teoria da causalidade adequada e a teoria do fim da norma violada.
De longe, a abordagem metodológica mais seguida é certamente a pugnada pela teoria da causalidade adequada (vide: Almeida Costa in “Direitos das Obrigações”, 9.ª Ed., pág. 711; Galvão Teles in “Direito das Obrigações”, 6.ª Ed., pág.s 404 a 411; e Antunes Varela in “Das Obrigações Em Geral”, Vol. I, 10.ª Ed., pág. 887 a 901).
Esta teoria, que tem várias cambiantes, propõe um raciocínio de prognose póstuma, que obriga o julgador a colocar a questão da causalidade na suposição de se encontrar no lugar do autor facto lesante e perguntar se nessa altura seria normal ou adequado que essa conduta poderia vir a provocar um determinado resultado.
Assim, a questão da causalidade é colocada no domínio da “previsibilidade” do curso causal do dano pelo lesante como fator determinante da conclusão de que, se não fosse a lesão, o lesado não teria provavelmente sofrido os danos (cfr. Art.º 563.º do C.C.).
Entretanto, na nossa doutrina, fundamentalmente na sequência da publicação em Portugal de estudos da autoria de Claus Roxin (vide: in “Problema Fundamentais de Direito Penal”, páginas 145 e ss.), começou a desenhar-se aquilo que se convencionou chamar como a “moderna teoria da imputação objetiva”, ou mais propriamente a “Teoria do Risco” (vide, por exemplo: Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa in “Responsabilidade Civil Extracontratual – Novas perspetivas em matéria de nexo de causalidade”).
Esta nova teoria propunha criar explicações para o estabelecimento de nexos causais relativamente a situações em que a teoria da causalidade adequada chegaria a resultados menos satisfatórios.
O ponto de partida desta teoria funda-se na conclusão de que a possibilidade objetiva de originar um processo causal danoso depende de a conduta do agente concreto criar, ou não, um risco juridicamente relevante de lesão típica de um bem jurídico (Vide: Claus Roxin in Ob. Loc. Cit. pág. 148). Assim, entre outras soluções propostas, consegue-se estabelecer um nexo causal quando o agente cria um risco juridicamente relevante, ou aumenta um risco permitido para além de certos limites legal e socialmente aceites, ou quando o resultado danoso se traduz a concretização normativa desse risco assim criado ou aumentado.
Ora, a dificuldade do estabelecimento do nexo causal resulta inevitavelmente da necessidade de haver um processo valorativo de seleção de cursos naturalístico de causa-efeito, tendo em atenção a natural apetência lesiva de determinado comportamento voluntário tido por ilícito, na medida em que isso corresponda ao âmbito de proteção da norma que tutela o concreto bem jurídico lesado.
Enfim, não há soluções teóricas perfeitas que consigam compreender em si todas as complexas realidades que, em cada caso concreto, importam considerar, sendo que os casos de alegada “negligência médica”, em que o comportamento ilícito considerado pode ser tido como adequado para diminuir ou evitar um resultado danoso mais grave, dificulta inevitavelmente o estabelecimento do nexo causal, nomeadamente quando estão apenas em causa típicas obrigações de meios e o resultado é uma contingência de verificação aleatória, que escapa ao domínio do médico.
Dito isto, sem necessidade de teorizar aprofundadamente sobre as várias teses que a doutrina apresenta para a apreciação do pressuposto do estabelecimento do nexo causal entre o facto e o dano, facilmente se compreende que, quanto ao incumprimento dos deveres de informação, sobreleva logo a evidência de que o não cumprimento dos deveres de informação e a consequente invalidade do consentimento prestado (2.º tipo de ilícito supra identificado), só por si, não é causa direta e necessária do óbito da paciente ou dos sofrimentos por esta suportados após a 1.ª intervenção cirúrgica.
Por regra, a finalidade do dever de informação esgota-se no esclarecimento do credor dessa prestação, havendo necessidade de estabelecer um outro raciocínio de causa-efeito relativamente aos atos consequentes dessa informação e os danos posteriormente sofridos.
Ocorre que, como já vimos, a operação proposta realizar pelo 1.º R. – mesmo não tendo este cumprido pontualmente os deveres de informação devidos à paciente, nem obtido desta um consentimento livre, consciente e esclarecido de forma válida – era adequada ao tratamento da doença, que havia sido corretamente diagnosticada (vide a resposta aos quesitos 1.º e 2.º da consulta técnico-científica junta de fls. 1129 a 1132).
Por outro lado, nada se provou no sentido de que os procedimentos técnicos operatórios não tenham sido realizados de forma tecnicamente correta. Pelo contrário, conforme já fomos deixando consignado, qualquer das operações realizadas pelo 1.º R. correram bem, do ponto de vista estrito da técnica operatória.
Mais, a 1.ª intervenção cirúrgica decorreu sem ocorrências ou incidências a assinalar (cfr. facto provado 55), tendo sido então observados todos os cuidados de segurança para verificar a estanquicidade do intestino, nomeadamente na zona intervencionada pelo 1.º R. (cfr. factos provados 146 e 147). No entanto, apesar disso, tal não garante que não pudesse vir a sobrevir, no pós-operatório, uma deiscência da anastomose, que é um risco próprio deste tipo de intervenção cirúrgica (cfr. resposta ao quesito 5.º do relatório pericial – fls. 1130). Na verdade, o defeito da sutura mecânica, as hemorragias ou as infeções da anastomose são riscos deste tipo de cirurgia, reconhecidos na literatura médica, que são alheios à atuação do cirurgião (cfr. resposta ao quesito 6.º da perícia – fls. 1130). E foram esses riscos que vieram efetivamente a ocorrer, culminando na morte da paciente.
Assume aqui assim uma relevância decisiva tudo o que dissemos a propósito de estarmos perante uma obrigação de meios, e não de resultado, pois o 1.º R. não podia garantir a cura, tal como não podia garantir que, mesmo que observasse todas as regras de cuidado operatórias impostas pela legis artis, ainda assim não poderiam sobrevir as complicações que se vieram a verificar no período pós-operatório.
Evidentemente que esse risco verificado, consequente da intervenção cirúrgica, era um dos riscos possíveis e previsíveis para o 1.º R., ou por qualquer outro médico com os mesmos conhecimentos técnicos que estivesse no seu lugar, tal como é metodicamente proposto pela teoria da causalidade adequada (a mais seguida, como vimos) para se julgar como verificado o pressuposto do estabelecimento do nexo causal. Simplesmente, tratava-se de um “risco permitido”, tal como é condição pressuposta pela “Teoria do Risco”, que aqui se revela mais avisadamente restritiva para se poder operar a imputação objetiva dos danos aos factos ilícitos considerados.
Efetivamente, na valoração normativa sobre a possibilidade do estabelecimento do nexo causal entre o facto e o dano, deve necessariamente ser relevado que a opção de não fazer qualquer intervenção cirúrgica não era aceitável no caso. Daí que ao médico fosse sempre imposta a ponderação entre o risco de morte consequente de nada se fazer e o risco de morte de intervir medicamente, mas com algum grau de probabilidade suficientemente relevante de lograr obter, pelo menos, um aumento do tempo de esperança de vida. Ora, nestas condições e no caso concreto, impunha-se ao médico inequivocamente intervir cirurgicamente. Por isso estávamos perante um “risco permitido”, porque era um risco que era necessário correr. Havia que agir no sentido de se tentar evitar mal maior que se previa inevitável se nada fosse feito. O que 1.º R. fez, através de intervenção cirúrgica que era objetivamente adequada a obter esse resultado, ainda que não tendo cumprido o dever de informação nos termos devidos.
Nestas condições, para se estabelecer o nexo causal, haveria sempre de se concluir que a ação lesiva considerada (a concreta realização da intervenção cirúrgica) aumentou para lá do razoável o risco permitido de dano. Ora, não é possível tirar essa conclusão só em face dos factos provados nesta ação.
Seja como for, há que admitir que não é possível estabelecer um nexo causal direto entre o não cumprimento do dever de informação, com a consequente invalidade do consentimento obtido, e o resultado fatal que posteriormente se veio a verificar.
Sobra, no entanto, sempre a dúvida relativa à ponderação da eventualidade de, se a paciente tivesse sido informada dos riscos efetivos deste tipo de intervenção, bem como das demais possibilidades terapêutico-cirúrgicas, e dos seus respetivos riscos, se não teria optado por outra solução, ou solicitado uma segunda opinião, de onde poderia resultar um desfecho diferente e, talvez, mais positivo.
De igual modo, quanto ao tempo de demora verificado entre o conhecimento do resultado da TAC e a solicitação duma sala do bloco operatório para realizar a 2.ª intervenção cirúrgica, a questão da causalidade também se pode colocar praticamente nos mesmos termos.
Efetivamente, é para nós muito difícil, só com base na objetividade da matéria de facto provada, concluir, sem mais, que foram as pouco mais de 2 horas de demora no início da 2.ª operação, imputáveis ao 1.º R., que levaram à efetiva evolução da infeção que levou à morte da paciente.
De facto, apesar de ser evidente que estávamos perante uma situação de emergência, em que o tempo tinha um papel importante, nada nos permite afastar a conclusão, de forma inequívoca e segura, de que a situação clínica, que já era grave, não fosse já irreversível, não se podendo assim evitar a eventualidade do dano morte, mesmo que essa intervenção tivesse sido iniciada cerca de 2 horas antes.
De facto, resulta demonstrado que cerca de 2 horas antes já havia um “quadro séptico de gravidade que poderia conduzir à insuficiência multiorgânica” (cfr. facto provado 92). Logo a situação de infeção grave, que no final causou a morte, já estava instalada. A dúvida que pode subsistir é sobre a eventual irreversibilidade do processo causal em curso. Sendo certo que estávamos já numa fase muito adiantada do processo infecioso, que tornava inevitável a segunda intervenção cirúrgica (cfr. facto provado 93).
Aqui, não só não temos elementos para dizer que era previsível para o 1.º R. que a demora em causa iria determinar a irreversibilidade da infeção, que veio a causar a morte, como não sabemos se houve um aumento efetivo do risco de dano (morte) só nesse curto espaço de tempo considerado. Isto, porque, já estávamos perante uma fase adiantada do processo infecioso e a diligência operatória necessária já foi realizada in extremis.
Todas estas razões jogam contra os A.A., a quem compete o ónus de prova dos factos constitutivos do seu direito (cfr. Art.º 342.º n.º 1 do C.C.), nomeadamente quanto ao pressuposto da responsabilidade civil relativo ao estabelecimento do nexo causal.
Contornando esta dificuldade, a sentença recorrida apelou à aplicação do instituto da “perda de chace”, ainda que restrito à situação do incumprimento dos deveres de informação pelo 1.º R..

2.6. Da perda de chance.
Reconhecido é que existem dificuldades no estabelecimento do nexo causal entre os comportamentos tidos por relevantes e ilícitos, por parte do 1.º R., e os danos cujo ressarcimento os A.A. pretendem, nomeadamente os danos não patrimoniais sofridos pela doente antes do seu óbito, a posterior perda do direito à vida e os sofrimentos dos próprios A.A., consequentes do decesso da vítima, sua esposa e mãe.
É que, para além do mais já exposto, sempre seria também de considerar que os sofrimentos anteriores ao óbito são contingências naturais da concreta situação de saúde da doente em causa e da necessidade duma intervenção cirúrgica premente. Igualmente o óbito é uma fatalidade que, mesmo não sendo querida, é um risco possível e estatisticamente determinado e conhecido na literatura e estudos publicados de Medicina. Finalmente, o sofrimento dos familiares da doente e consequências pessoais para estes do seu óbito são igualmente inerentes a todas as contingências da situação clínica da paciente, que veio a falecer.
É no quadro duma tentativa de suprimento deste tipo de dificuldades, nomeadamente em sede de estabelecimento do nexo causal, que a doutrina vem lançando mão do instituto da “perda de chance”.
Veja-se o que, muito a propósito, é reconhecido no sumário do acórdão do S.T.J. de 23/6/2022 (Proc. n.º 6112/15.9T8VIS.L1.S1 – Relator: Vieira e Cunha, disponível em www.dgsi.pt): «III- O que o dano de perda de chance permite é a antecipação da localização do dano, posto que o nexo de causalidade não se estabelece entre a conduta ilícita e culposa e o dano final sofrido, mas antes entre a referida conduta e a perda de uma possibilidade - existe nexo causal na hipótese de um dano intermédio, diferente do dano final. IV- A extensão das lesões geradas pelo tratamento tardio, com causa no atraso no diagnóstico, constitui um dano indemnizável. V- Não sendo possível fixar a probabilidade da chance, o tribunal deve julgar com recurso à equidade, em conformidade com o disposto no art.º 566.º n.º 3 CCiv».
Evidentemente, nos casos de responsabilidade médica em que se tenha apurado em termos factivos e normativos o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo e a morte, fica prejudicada a necessidade de recorrer ao instituto jurídico da “perda de chance” (cfr. acórdão do S.T.J. de 9/12/2021 (Proc. n.º 3634/15.5T8AVR.P1.S1 – Relatora: Fátima Gomes, disponível no mesmo sítio). Nos demais, haverá sempre de ponderar se existe possibilidade de se relevar uma situação de perda de chance e a ressarcibilidade desse dano autónomo, tal como foi explicitamente peticionado pelos A.A..
A ressarcibilidade do dano pela perda de chace tem como pressupostos:
1.º A probabilidade – ou seja, que exista um determinado resultado positivo futuro que poderia vir a verificar-se, mas cuja verificação não se apresenta como certa, traduzida na obtenção duma vantagem ou não concretização duma desvantagem;
2.º A possibilidade – é necessário que, apesar da incerteza, a pessoa se encontre numa situação de poder vir a alcançar esse resultado, porque reúne o conjunto de condições de que depende a sua verificação, não se verificando qualquer facto impeditivo que a inviabilize; e
3.º A irreversibilidade – é indispensável que se verifique um comportamento imputável a pessoa diversa do lesado, suscetível de gerar a responsabilidade do agente e que elimina de forma definitiva ou algumas das possibilidades existentes do resultado se vir a produzir - (vide: Rute Teixeira Pedro in “A Responsabilidade Civil do Médico – Reflexões sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado”, pág.s 198 a 203).
Explicitando ainda melhor a questão, escreve Rute Teixeira Pedro (in Ob. Loc. Cit., pág. 203): «A problemática surge (…) porque, de um só golpe, o facto do agente destrói as expectativas existentes e inviabiliza a obtenção do resultado esperado. O desaparecimento do elemento intermédio traz, por arrastamento, o desaparecimento do resultado final que eventualmente se viria a verificar. (…) Todo o problema está em que, em virtude da aleatoriedade do resultado final, não se pode afirmar que o comportamento do terceiro seja a condictio sine qua non da sua perda. Não se sabe se, retirado que fosse o facto do terceiro, a vantagem seria alcançada (ou perdida) ou a desvantagem seria efetivamente evitada (ou se se consumaria). Então, dado o não estabelecimento deste nexo causal – um dos requisitos de que depende a responsabilidade civil – não se pode reconhecer uma indemnização pela perda do resultado.
«Porém, se se mudar o ângulo de visão e se tomar como objeto de análise, não o resultado final, mas as possibilidades existentes de ele ser atingido, a resposta quanto ao nexo causal será distinto. Sendo o prejuízo considerado, a frustração das chances presentes, pode entender-se que o comportamento de terceiro é a causa jurídica da verificação desse prejuízo, desde que se formulem duas questões e elas mereçam resposta afirmativa: São elas, parafraseando François Chabas:
«a) la vittima avveva delle chances? (Ma è necessário che non ciano che delle possilità; che abbiano un`aleatorietà;
«b) è dimostrato che per colpa dell`agente e in conseguenza di essa, la vitima non aveva più alcuna chance?».
O objeto do ressarcimento, no dano da perda de chance, é a esperança perdida de obter uma vantagem ou a impossibilidade frustrada de evitar um dano. Trata-se de dano autónomo, em si mesmo considerado, distinto do resultado aleatório final, que era pretendido e ficou definitivamente frustrado por força da ação do agente.
Como escreve Rute Teixeira Pedro (in Ob. Loc. Cit., pág. 210 a 211): «a chance representa não uma vantagem possível, mas uma possibilidade de uma vantagem. Possibilidade essa que aparece como uma “entidade economicamente viável”, dotada de existência atual. Nas palavras de Savatier, a chance é uma espécie de “propriedade anterior” da pessoa que sofre o dano».
Mas a reparabilidade do dano autónomo de perda de chance tem de assentar na verificação de uma certa seriedade desse tipo de dano, não bastando referir-se a uma possibilidade meramente hipotética e consequentemente irreparável. Não basta assim, uma mera probabilidade, pois a frustração de meros sonhos ou meras expectativas irrealistas, não serão certamente ressarcíveis. É necessária uma perda de chance substancial ou significativa. Não é necessário que a possibilidade de evitar a perda seja superior a 50%, basta que seja séria e tenha uma existência real (cfr. Rute Teixeira Pedro in Ob. Loc. Cit., pág.s 215 a 216).
Para Vera Raposo (in “O Dano da Perda de Chance em Especial na Responsabilidade Médica”, Revista do Ministério Público, n.º 138, pág.s 16 a 18 e 3) basta verifica-se os dois componentes base da “perda de chance”:
- a perda atual e efetiva; e
- a possibilidade favorável, real e séria de que o dano não tivesse assumido a extensão que se consumou.
Paulo Mota Pinto (in “Perda de Chance Processual”, pág. 799/802) não deixa de realçar que: «mesmo no direito francês, não obstante a larga projeção que a figura da perda de chance aí alcançou, para que a respetiva indemnização seja admitida, impõem -se determinados requisitos. Além da verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, incluindo a existência do dano e de um nexo de causalidade entre o facto lesivo e o dano exige-se, designadamente, que a chance a indemnizar seja real e séria. Não basta, assim, a constatação da prévia existência, numa qualquer medida, de uma oportunidade ou possibilidade de obtenção de um resultado favorável de uma vantagem pelo lesado, que tenham sido destruídas. É ainda necessário que a concretização da chance se apresente com um grau de probabilidade ou verosimilhança razoável e não com carácter meramente hipotético».
Patrícia Cordeiro da Costa (in “A perda de chance - dez anos depois”, in Julgar, Set -Dez, 2020, pág. 168/9 e 167), na mesma linha de raciocínio, refere que: «a chance indemnizável não é (…) uma chance abstrata e filosófica, no campo das possibilidades gerais, mas uma chance séria, concreta e consistente, apoiada numa probabilidade igualmente séria e consistente de ocorrência da vantagem perdida não fora o facto ilícito. Sob pena de se transformar a perda de chance num mecanismo de atribuição irrestrita de indemnizações, bastando a presença de uma mera suspeita de probabilidade, a ação de indemnização deve ser preparada, em termos de alegação de facto e de produção de prova, de forma a que o tribunal, na decisão a tomar, tenha dados de facto suficientes para, desde logo, concluir pela existência duma chance séria. (…) A indemnização pela chance perdida depende da prova efetiva da existência de uma chance séria».
Foi nesta esteira que o Supremo Tribunal de Justiça veio a produzir o Acórdão Uniformizador de jurisprudência n.º 2/2022 (Proc. n.º 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A) com o seguinte teor: «O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado a prova de tal consistência e seriedade» (publicado do D.R. n.º 18 – I.ª Série, de 26 de janeiro de 2022, pág. 20).
Aqui chegados, impõem-se saber se, no caso concreto, os A.A. lograram demonstrar que havia uma possibilidade real e séria de não se ter verificar o resultado danoso, nomeadamente a morte da sua esposa e mãe, caso o 1.º R. tivesse iniciado os procedimentos operatórios de emergência cerca de 2 horas antes, ou caso o 1.º R. tivesse cumprido os deveres de informação de forma adequada, antes mesmo da 1.ª intervenção cirúrgica, possibilitando assim que a paciente pudesse eventualmente escolher outra solução terapêutico-cirúrgica.
Quanto à primeira hipótese, a nosso ver, a resposta a essa dúvida não varia substancialmente daquela que considerámos quanto ao estabelecimento do nexo causal relativamente à imputação objetiva do dano, porque na verdade, aí a questão da “perda de chance” parece perder a sua autonomia, quando estamos já numa fase muito adiantada do desenvolvimento do processo danoso.
No quadro duma intervenção cirúrgica de emergência, a realizar num relativo curto espaço de tempo, em que está em causa uma demora de apenas cerca de 2 horas, em que já existe uma infeção grave instalada e em adiantado estado (cfr. facto provado 92), a solução jurídica dada quanto ao não estabelecimento do nexo causal relativamente ao dano (morte) é praticamente igual à consideração das possibilidades reais alternativas de o conseguir evitar, se se agisse poucos momentos antes. Não conseguimos, nestas condições, autonomizar a “perda de chance”, por não ser seguro, nem evidente, em face dos factos provados que, em tão pouco espaço de tempo, se conseguisse identificar uma possibilidade (chance perdida) diferente daquela que se verificou no momento da intervenção efetivamente realizada pelo 1.º R..
Quanto à segunda hipótese, relacionada com o incumprimento dos deveres de informação, a questão é bem mais complexa, porque ela comporta uma miríade de possibilidades, cujos contornos e consequências, na verdade, desconhecemos por completo.
Entramos aqui no puro domínio da especulação.
Desde logo, não pode ser excluída a possibilidade de, se a paciente tivesse sido devidamente esclarecida pelo 1.º R. sobre as consequências da 1.ª intervenção cirúrgica, bem como das demais soluções terapêutico-cirúrgicas, possíveis e alternativas, e dos seus respetivos riscos, não acabasse por escolher a proposta operatória que, no final, veio a desembocar num fim tão dramático.
Mas vamos admitir a possibilidade de a opção, após o cumprimento adequado dos deveres de informação, poder ter sido outra. Como adivinhar que essas outras soluções não envolveriam riscos similares ou até mais gravosos que os decorrentes da 1.ª operação efetivamente realizada pelo 1.º R.?
De facto, a matéria de facto provada apenas permite concluir que existiam outras soluções possíveis (cfr. facto provado 53). Mas, na verdade, no facto provado no ponto 53 da sentença recorrida, também ficou implícito que existia uma opção que seria a mais adequada em função do estado clínico da paciente. Ora, nós não temos elementos de facto, nem isso foi alegado pelos A.A., que nos permitam dizer que a opção tomada pelo 1.º R. não era a mais adequada. Sendo certo que se provou pelo menos que ela era adequada, necessária e premente (cfr. resposta aos quesitos 1.º e 2.º, dada pela perícia do INMLCF a fls. 1130, e facto provado 11).
Só com base na matéria de facto provada, seria puramente especulativo admitir que outras soluções terapêuticas teriam menos riscos e provavelmente não determinariam qualquer possibilidade de desenlace fatídico, tal como aquele que se veio a verificar. Na verdade não temos elementos que nos permitam concluir que os riscos dessas hipotéticas intervenções alternativas seriam menores e, portanto, não podemos julgar que se verificou uma perda de chance séria, real e efetiva, tal como exigido pela jurisprudência estabelecida pelo já citado AUJ n.º 2/2022 do STJ (publicado do DR-Iª Série de 26 de janeiro de 2022, pág. 20).
Em face de todo o exposto, a sentença recorrida não pode subsistir, devendo o 1.º R. ser absolvido dos pedidos formulados pelos A.A. na sua petição inicial, quer quanto às indemnizações por danos não patrimoniais, por não terem cumprido o ónus de prova dos factos constitutivos de seu direito relativamente a todos os pressupostos substantivos da responsabilidade civil (cfr. Art. 342.º n.º 1 do C.C.), quer quanto à indemnização, em valor ilíquido, pela perda de chance.

3. Da responsabilidade civil do 3.º R.
A sentença recorrida absolveu o 3.º R. de todos os pedidos contra si formulados. No entanto, os A.A., com base, em parte, numa pretendida alteração da matéria de facto provada, que oportunamente impugnaram, pretenderam reverter essa decisão, considerando que aquele R. também teria sido responsável por factos ilícitos que culminaram no falecimento de CP.
Em bom rigor, a apreciação que fizemos da impugnação da matéria de facto apresentada pelos A.A., aqui Apelantes, não teve o efeito pretendido, no sentido de demonstrar que os indícios de deiscência da anastomose já fossem patentes e implicassem intervenção diversa e mais célere, desde as 22h00m do dia 23 de abril de 2015.
Não ficou assim provado que, no período pós-operatório, tivesse havido qualquer desconsideração dos indícios dessa possível contingência, por parte do 3.º R., ainda no dia 23 de abril (v.g. resposta ao quesito 13 da perícia a fls. 1132).
De facto, a prova pericial considerou que o momento relevante, que obrigaria à observação clínica rigorosa e solicitação de exames complementares de diagnóstico, como por exemplo a realização duma TAC, seria o quadro clínico descrito às 11h38m do dia 24 de Abril de 2015 (cfr. resposto ao quesito 12 e facto provado no ponto 166 da sentença recorrida). Nesta parte, não se alterou a matéria de facto provada e será certamente com base nessa realidade que será agora apreciada a conduta do 3.º R..
Tal como considerámos para o 1.º R., a responsabilidade civil em causa, no que tange à intervenção do 3.º R., recorta-se igualmente, e principalmente, no seio da responsabilidade contratual (cfr. Art.ºs 798.º e ss. do C.C.).
Os pressupostos legais da sua responsabilidade civil são assim os mesmos que considerámos anteriormente para o 1.º R. (cfr. parte 2 do presente acórdão).
O 3.º R. interveio no processo de assistência médica devida a CP na sequência do 1.º R. ter sido obrigado a ausentar-se, após a primeira intervenção cirúrgica, por motivo do óbito e funeral da sua sogra (cfr. factos provados 58, 152 a 157).
O 3.º R. foi contactado pelo 1.º R. para o substituir durante a sua ausência por 2 dias, o que foi aceite, quer pela paciente, quer pelo médico substituto (cfr. facto provado 157).
Em consequência, no quadro da relação contratual de prestação de serviços médicos, o 3.º R. assumiu, temporariamente, o cumprimento dos deveres a que o 1.º R. estava contratualmente vinculado para com a sua paciente. O que era perfeitamente legítimo, nos termos do Art.º 791.º do C.C., apesar do contrato de prestação de serviços em causa ter uma natureza intuitus personae, pois não houve oposição a essa substituição, meramente temporária, que também não constituía situação identificável como deontologicamente repreensível (cfr. resposta ao quesito 7.º da perícia a fls. 1130).
A sentença recorrida absolveu o 3.º R. dos pedidos contra si formulados por não ter apurado qualquer má prática médica durante o período de tempo em que aquele substituiu o 1.º R. (cfr. fls. 1410 a 1411).
Efetivamente, da matéria de facto não resulta que o mesmo tenha incumprido qualquer dever de assistência devida à paciente, não sendo por isso de considerar que agiu de forma ilícita e culposa.
O 3.º R. visitou presencialmente a paciente, aparentemente com uma regularidade que se encontrava pré-estabelecida (cfr. fls. 97 do “resumo da informação clínica” junto), sendo que a vez que uma enfermeira de serviço o convocou para verificar pessoalmente a doente, o mesmo fê-lo, nomeadamente no episódio relatado à 1h06m do dia 24 de abril (cfr. fls. 99 do mesmo “resumo da informação clínica”).
No momento que a perícia teve como crítico – dia 24 de abril de 2015 pelas 11h38m –, que obrigava à observação clínica rigorosa e à solicitação de exames complementares de diagnóstico, como uma TAC (cfr. facto provado 166), foi precisamente isso que o 3.º R. fez, e de imediato (cfr. factos provados 164 e 193).
Entretanto, nesse mesmo dia, o 1.º R. regressou ao hospital pelas 13h30m, após ser informado do agravamento da situação clínica (cfr. facto provado 161), tendo visitado a paciente às 13h41m do dia 24 de abril de 2015 (cfr. facto provado 76), cessando assim a prestação de cuidados médicos, que o 3.º R. havia assumido, apenas a título temporário.
Em face do exposto, não decorre da matéria de facto provada a demonstração de qualquer incumprimento por parte do 3.º R., que se possa ter por ilícito ou culposo. Logo, só poderemos confirmar a sentença recorrida nesta parte.

4. Da responsabilidade civil do 2.º R.
Passemos agora à matéria relacionada com a responsabilidade civil do Hospital, aqui 2.º R., para o qual “trabalhavam” os 1.ª e 3.º R.R..
Cumpre realçar que resulta da matéria de facto que todos os serviços médicos prestados a CP, sejam exames, sejam consultas, sejam intervenções cirúrgicas, foram todos realizados no hospital explorado pelo 2.º R..
Nos pontos 46 e 128 dos factos provados, ficou a constar que o 1.º R. é médico-cirurgião do Hospital …, para o qual trabalha há 21 anos, embora não seja daí lá muito claro se é “trabalhador dependente” ou mero “prestador de serviços”, considerando que o mesmo desempenha as mesmas funções noutros estabelecimentos hospitalares (cfr. factos provados 46 e 47).
Já no ponto 156 consta que o 3.º R. se encontra diariamente nesse mesmo hospital, como “médico residente”, visto ser nesse hospital que tem o seu principal local de trabalho. O que também, só por si, não é conclusivo sobre a existência dum efetivo vínculo do tipo laboral, embora ele se adivinhe dos contornos factuais assim descritos.
Seja lá qual for o vínculo jurídico que liga esses médicos ao 2.º R., uma coisa é certa: a paciente recorreu aos serviços médicos que pretendia obter para tratamento da sua situação clínica no contexto da organização empresarial e hospitalar que pertence ao 2.º R..
Já referimos que a relação jurídica estabelecida entre CP e o 1.º R., que temporariamente nela foi substituído pelo 3.º R., tinha natureza contratual, fundando-se ela num contrato de prestação de serviços, tal como o mesmo é definido, em termos gerais, no Art.º 1154º do C.C., sujeito supletivamente ao regime jurídico do contrato de mandato (Art.º 1156º do C.C.).
O 2.º R. foi demandado por ser o titular do hospital onde foram prestados os serviços médicos realizados pelo 1.º e 3.º R.R., que poderiam obrigar ao pagamento de indemnização, no quadro legal do Art.º 798.º do C.C..
CP dirigiu-se às instalações do 2.º R. para realizar exames, na sequência da verificação de determinados indícios de doença, e para ser consultada por um médico do hospital explorado por esse R. (cfr. factos provados 8 a 11).
Foi no hospital do 2.º R. que foram prestados todos os cuidados de saúde subsequentes, que passaram pelo internamento, uso das instalações para exames e atos cirúrgicos, com a consequente logística administrativa e funcional que isso implica, incluindo os equipamentos, meios complementares de diagnóstico e pessoal médico, de enfermagem e demais auxiliares. Presumindo-se que todos esses serviços seriam pagos pela paciente, ou por qualquer sistema de saúde de que fosse beneficiária (cfr. Art.s 1154.º, 1156.º e 1158.º n.º 1 do C.C.).
Em suma, existia também aqui uma relação contratual entre a paciente e o 2.º R..
Mesmo que os 1.º e 3.º R.R. não fossem trabalhadores dependentes do 2.º R. e mesmo que, naturalmente, existisse autonomia técnica por parte desses médicos, estes nunca poderiam deixar de estar subordinados às orientações gerais da administração do 2.º R. e do respetivo Diretor Clínico, tendentes à uniformização e cumprimento das regras que regulam e tutelam a sua atividade nesse meio hospitalar.
Dito isto, o 2.º R., dono do hospital, não se limitava apenas a facultar um espaço para que os seus médicos prestem serviços a terceiros. Pelo que, mesmo que possa não haver uma relação jurídica de comitente - comissário, nos termos estabelecidos no Art.º 500.º do C.C., por eventualmente poder falhar o requisito da subordinação jurídica, não deixarão esses médicos de estar subordinados às orientações do Diretor Clínico do 2.º R..
Acresce que os pacientes que se dirijam a esse hospital, não se limitavam a ser doentes dos médicos a quem concretamente recorrem. Eram, simultânea e necessariamente, clientes do dono do hospital, já que os médicos, como o 1.º ou o 3.º R.R., não poderiam realizar a sua prestação, sem recurso aos equipamentos e meios técnicos que eram disponibilizados pelo 2.º R..
Em suma, os serviços prestados pelos médicos nunca seriam desgarrados dos que o 2.º R. pretendia proporcionar aos clientes do hospital de que era dono.
Concluímos assim que o 2.º R. pretendia, ele mesmo, proporcionar serviços médicos a quem os solicitasse, mediante o pagamento de um preço, que o próprio cobraria a quem fosse devedor. Neste quadro, os demais R.R. médicos agiam no exercício da sua profissão integrados nessa empresa, atuando como auxiliares da prestação que os clientes do hospital lhe solicitavam, no quadro legal do Art.º 800.º do C.C..
Conforme foi decidido no acórdão do STJ de 23/6/2022 (Proc. n.º 6112/15.9T8VIS.L1.S1 – Relator: Vieira e Cunha, disponível em www.dgsi.pt): «II – A responsabilidade da clínica e do seu colaborador médico não prescinde da conclusão que decorre da norma do art.º 800.º n.º 1 CCiv, quanto à responsabilidade do devedor perante o credor pelos atos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para cumprimento da obrigação (…)». No mesmo sentido o vai o acórdão do STJ de 9/12/2021 (Proc. n.º 3634/15.5T8AVR.P1.S1 – Relatora: Fátima Gomes, disponível no mesmo sítio), de cujo sumário se pode extrair que: «I. (…) “a clínica responde por todos os danos ocorridos, sejam eles de carácter médico, assistencial, de equipamento ou de hotelaria; e responde, nos termos do art.º 800.º do CCivil, pelos atos dos seus auxiliares, sejam estes médicos, enfermeiros ou auxiliares administrativos ou de limpeza (…)».
Nessa medida, o 2.º R. poderia responder pela eventual prestação defeituosa dos 1.º e 3.º R.R., no quadro da sua oferta ao público de serviços médicos, como se tais atos tivessem tido sido por si praticados (Art.º 800º n.º 1 do C.C.), mas responde igualmente por todos os demais factos que no quadro da sua organização empresarial sejam realizados, bem como por qualquer outra deficiência decorrente dos meios que disponibiliza aos seus clientes.
Se o comportamento dos seus médicos, e demais pessoal, no quadro do exercício das suas funções no hospital, for ilícito e culposo e causar danos suscetíveis de reparação indemnizatória, por força do Art.º 800º n.º 1 do C.C. a prestação hospitalar do 2.º R. é igualmente tida como correspondendo ao incumprimento objetivo e ilícito do contrato de prestação de serviços, para efeitos de responsabilidade civil (Art.ºs 798º e ss. do C.C.), se não se verificar qualquer causa de justificação da ilicitude ou da culpa a si exclusivamente relativa.
Nessa medida, há que demonstrar se se verificam os pressupostos da responsabilidade civil do 2.º R., que são precisamente os que descrevemos no ponto 2 do presente acórdão, sendo que relativamente ao mesmo também se presume a culpa, nos termos do Art.º 799º do C.C..
Cumpre assim verificar todos os pressupostos da sua responsabilidade civil.

4.1 Do incumprimento.
Como vimos não se verificam todos os pressupostos da obrigação de indemnização relativamente à prestação médica dos 1.º e 3.º R.R., sendo que os 4.º e 5.º R.R. também foram absolvidos pela sentença recorrida, que nessa parte transitou em julgado. Logo, na mesma medida, por esses mesmos factos, o 2.º R. não pode responder pela reparação dos danos peticionados.
Ainda assim, identificam-se potenciais incumprimentos contratuais que extravasam os meros atos imputáveis aos demais R.R..
Em primeiro lugar, temos que ficou provado que do processo clínico trazido nas instalações do 2.º R. não consta a identificação dos enfermeiros instrumentistas e circulantes, bem como a lista de verificação pré-cirúrgica (cfr. facto provado 51). Tal como se provou ainda que do mesmo processo clínico não constava a declaração de consentimento informado, por parte da falecida, nem que o mesmo tivesse sido recolhido (cfr. facto provado 52).
O Art.º 92.º do CDOM (ao tempo em vigor e já atrás citado), estabelecia os cuidados a ter com os dados médicos informatizados, numa perspetiva de segurança da informação assim guardada. Mas, é no Art.º 100.º do mesmo diploma que se estabelecia a obrigação de registo cuidadoso dos resultados considerados relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, devendo os mesmos ser conservados ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do segredo médico (cfr. n.º 1 do Art.º 100.º).
A finalidade dessas fichas clínicas é guardar para memória futura esses registos e facilitar a comunicação entre profissionais que tratam ou venham a tratar o mesmo doente, devendo ser suficientemente detalhada e clara, para cumprir essa finalidade (cfr. Art.º 100.º n.º 2 do CDOM).
Por outro lado, nos termos do n.º 4 do Art.º 100.º do CDOM, o doente tem direito a conhecer a informação registada no seu processo clínico, a qual lhe deve ser facultada por médico designado, no caso de se tratar duma instituição de saúde, como seria o caso do 2.º R..
Finalmente, os exames complementares de diagnóstico e terapêutica deveriam ser facultados ao paciente quando este os solicitasse, o que poderia ser feito por mera cópia, correspondente aos elementos constantes do processo clínico (cfr. Art.º 100.º n.º 5 do CDOM).
No caso, o que se verificou foi que a informação clínica que foi facultada aos A.A., tal como foi junta logo com a petição inicial (cfr. doc. de fls. 96 a 207), apresentava-se como incompleta relativa a determinados pormenores, que são os dados por provados nos pontos 51 e 52 da matéria de facto provada da sentença recorrida. No entanto, o 2.º R. veio a juntar a documentação que tinha disponível com a sua contestação (cfr. fls. 446 a 655), o mesmo tendo sido feito pelo 1.º R. que, com a sua contestação, juntou o “consentimento informado para procedimento invasivos” assinado pela paciente (cfr. fls. 772).
A isso acresce que a prova produzida em audiência foi suficiente para esclarecer todas essas situações omissas, relembrando-se que foram inquiridas como testemunhas: OC, médico anestesista que auxiliou a Dr.ª FR a estabilizar a paciente na 2.ª intervenção cirúrgica; IB, enfermeira na 2.ª operação; JR, enfermeiro instrumentista na 2.ª intervenção; JA, ajudante na 1.ª intervenção; MC, enfermeira instrumentista na 1.ª intervenção cirúrgica; MR, médica intensivista, que interveio após a 2.ª operação. Isto para além doutro pessoal de enfermagem que acompanhou a paciente no pós-operatório ou foi responsável pela gestão do bloco operatório.
Portanto, todos os factos omissos, relevantes, foram devidamente esclarecidos e, mesmo tendo havido indícios de um incumprimento pretérito, ele revelou-se inconsequente para a instrução da causa. Nessa medida, essa falta tornou-se completamente irrelevante, não dificultou o ónus probatório dos A.A., não se afigurando mais ser necessário ter esse comportamento em consideração.
Já pelo contrário, relevante será, sem dúvida, o atraso verificado na realização da TAC, na sequência do momento, definido nos autos como crítico, para o início das diligências médicas necessárias ao diagnóstico da deiscência da anastomose (cfr. facto provado 166). Sendo que esse facto não é imputável diretamente, nem ao 1.º R., nem ao 3.º R..
Efetivamente, às 11h38m do dia 24 de abril de 2015, o quadro clínico da paciente internada no hospital explorado pelo 2.º R., inspirava cuidados particulares, sendo mandatório realizar uma observação clínica rigorosa, com eventual solicitação de exames complementares de diagnóstico, como realização duma TAC (cfr. facto provado 166 e resposta ao quesito 12 da perícia a fls. 1131).
Por razões, que não se mostram justificadas nos autos, apesar desse exame ter sido logo solicitado às 11h38m, pelo 3.º R. (cfr. factos provados 164, 193, 203 e 204), ele só foi marcado para as 16h00m (cfr. factos provados 80 e 81, este último com nova redação dada no ponto 1.3. do presente acórdão).
É certo que, depois há um atraso imputável à própria paciente, que decorreu da sua intolerância à ingestão de gastrografina, essencial a obter o contraste necessário à nitidez da imagem da TAC (v.g. doc. a fls. 98, infra, do “resumo da informação clínica” e ponto 81 dos factos provados com nova redação mencionada). Mas, não podemos deixar de considerar que se o exame tivesse sido marcado para hora anterior, essa intolerância teria sido verificada antes e o diagnóstico teria sido obtido mais cedo.
Portanto, à demora do 1.º R. na reserva duma sala para realização da intervenção de emergência nesse dia 24 de abril de 2015 (pouco mais de 2 horas, como vimos), há a acrescentar as pouco mais de 4 horas que demorou entre a solicitação da TAC, pelo 3.º R., e a hora para que a mesma ficou agendada. Tudo num total superior a 6 horas, que se traduz numa demora que, no conjunto somada, não é de todo negligenciável.
Considerando que ficou estabelecida nos autos a urgência dos procedimentos destinados à obtenção de um diagnóstico célere (cfr. facto provado 90), da qual poderia estar dependente a sobrevivência da paciente (idem - facto 90), só poderemos concluir que houve aqui um incumprimento relevante.

4.2 Da ilicitude.
Esse comportamento, que resulta pelo menos da forma como se encontravam organizados os serviços do 2.º R., deve ser tido por ilícito, por ser objetivamente desconforme ao que era devido em função da situação de emergência verificada.
O 2.º R., na sua contestação, limitou-se a sustentar, conclusivamente, que esse exame foi atempadamente pedido e realizado (cfr. artigo 58.º da contestação a fls. 439). Ora, sobre a tempestividade do pedido, não se nos oferecem dúvidas, conforme já deixámos consignado no ponto 3 do presente acórdão. Na verdade, o pedido da TAC foi imediato, como se impunha. Mas já quanto à tempestividade da sua realização efetiva, os autos não permitem exatamente essa conclusão.
Não foram assim alegadas, nem provadas, quaisquer circunstâncias que, eventualmente, pudessem justificar o motivo pelo qual esse exame tivesse sido marcado para as 16h00m, quando havia sido pedido às 11h38m.
Pelo que, verificou-se um incumprimento, relativo à celeridade dos procedimentos para realização de um exame complementar de diagnóstico importantíssimo para se apurar a verificação duma situação de deiscência da anastomose, que era o risco mais gravoso e mais temido por qualquer cirurgião, como consequência da intervenção que havia sido realizada. Esse incumprimento, pelas mesmas razões, é ilícito, até por não se mostrar justificado o atraso verificado.

4.3 Da culpa.
Esse incumprimento ilícito é igualmente culposo, considerando que a culpa se presume (cfr. Art.º 799.º do C.C.).
Competiria ao 2.º R. organizar o estabelecimento hospitalar de modo a gerir as situações de urgência com a celeridade de procedimentos que as mesmas justificam. Não o tendo feito, é responsável pelos atrasos que eventualmente se tenham verificado e pelos danos deles consequentes, por lhe ser exigível proceder doutro modo.

4.4. Os Danos.
Os danos relevantes são aqueles que já tivemos oportunidade de considerar no ponto 2.4 do presente acórdão, não existindo aqui qualquer especificidade. Embora sobreleve naturalmente, pela sua importância relativa, o dano morte.

4.5. O nexo casual.
O problema da responsabilidade civil do 2.º R. coloca-se principalmente, e uma vez mais, quanto à questão do pressuposto do estabelecimento do nexo causal entre o facto considerado como ilícito e culposo e os danos relevados, que são os mesmos considerados no ponto 2.4. do presente acórdão.
No entanto, aqui temos de reconhecer que a previsibilidade da sépsis se poder instalar em consequência da demora no diagnóstico da deiscência da anastomose, sendo a obtenção do diagnóstico atempado um dos fatores principais para o tratamento deste tipo de infeções, com influência na possibilidade de sobrevivência, está estabelecida de forma inequívoca na própria matéria de facto provada (cfr. factos 89 e 90).
Acresce que, ao contrário do que sucedeu com o comportamento ilícito analisado nos pontos 2.1 e 2.2 do presente acórdão, relativos ao atraso imputável ao 1.º R., situados já numa fase in extremis do processo infecioso, neste caso tudo indicia que estávamos numa fase ainda precoce do aparecimento dos sinais de alarme que justificariam a celeridade na obtenção do diagnóstico e da consequente intervenção médica (cfr. facto provado 166).
Ás 11h38m do dia 24 de abril de 2023, apesar do quadro clínico verificado – febre, vómitos, leucemia, neutrofilia relativa, PCR a 15 – não era ainda evidente que se tivesse instalado um quadro de sépsis, que foi a causa final de morte (cfr. factos provados 88 e 119) e que só veio a ser diagnosticado às 18h11m (cfr. factos provados 83), após a realização da TAC.
Não seria, portanto, de excluir por completo, embora isso não resulte da matéria de facto provada, que hipoteticamente, a intervenção médica necessária, até pudesse passar, eventualmente, por não ser realizada uma segunda intervenção cirúrgica, caso a situação fosse diagnosticada a tempo e a infeção conseguisse ser debelada, por mera intervenção medicamentosa competente e eficaz.
Seja como for, a única coisa que parece evidente, em face dos factos provados, para além da necessidade da realização duma TAC às 11h38m do dia 24 de abril de 2015 (cfr. factos 166, 89 e 90), é que às 18h11m, do mesmo dia, estava já devidamente diagnosticada a consumação da deiscência da anastomose, que conduziu a um quadro séptico cuja gravidade poderia conduzir a insuficiência multiorgânica (cfr. factos provados 91 e 92) e, nessa altura, já era necessária a realização duma segunda intervenção cirúrgica (cfr. facto provado 93).
Dito isto, a matéria de facto provada permite concluir, com relativa segurança, que o atraso verificado entre a solicitação da TAC (ás 11h38m) e a realização desse exame (inicialmente marcado só para as 16h00m), que foi atrasada por razões relacionadas com a intolerância à ingestão da gastrografina (cfr. facto provado 81 – com a nova redação constante do ponto 1.3 do presente acórdão), teve influência decisiva na consumação do quadro infecioso de sépsis.
Não só qualquer médico dos quadros do 2.º R. possuía os conhecimentos necessários a prever esse possível agravamento do risco, como sabiam que a demora no diagnóstico é um dos fatores principais no tratamento deste tipo de infeções e que a possibilidade de sobrevivência a uma sépsis diminui com o tardar do diagnóstico (cfr. factos provados 91 e 92).
Repita-se, competia ao 2.º R. organizar os seus serviços por forma a que, numa situação de emergência latente, pudessem ser feitos os exames complementares de diagnóstico com a maior celeridade possível, para que os médicos pudessem dispor da informação necessária a tempo de ainda poderem intervir de forma mais eficaz.
No caso, sem prejuízo de se ter verificado um contratempo, relacionado com a intolerância da paciente à gastrografina, só podemos admitir que se o exame tivesse sido marcado mais cedo, perto da hora que foi pedido pelo 3.º R. (às 11h38m), essa situação teria sido verificada mais rapidamente e a solução da administração de contraste por via endovenosa ou retal, tal como veio posteriormente a ser adotada (cfr. facto provado 81 com redação nova no ponto 1.3 do presente acórdão), teria permitido uma diagnóstico igualmente mais célere.
No final, houve um arrastamento no diagnóstico que permitiu a instalação da infeção de forma bastante mais gravosa que a indiciada às 11h38m e que propiciou as condições que levaram à sequência de eventos que culminaram na morte da vítima.
Pelo que, quer consideremos a abordagem metodológica da teoria da causalidade adequada, quer a mais restritiva da teoria do risco, quanto ao comportamento do 2.º R. que mediou entre as 11h38m (momento crítico que obrigava à intervenção médica hospitalar mais enérgica – cfr. facto provado 166) e as 20h30m (momento em que se iniciou a 2.ª intervenção cirúrgica – cfr. facto provado 98), poderemos pelo menos dizer que houve um conjunto de decisões, objetivamente imputáveis à organização dos serviços pelo 2.º R., que podem ser valorados como tendo contribuído, no seu conjunto, para o retardar do diagnóstico da deiscência da anastomose, agravando o progresso do processo infecioso e diminuído significativamente a possibilidade de intervenção médica mais célere e eficaz (cfr. factos provados 88 a 93), que eventualmente poderia ter evitado a morte.
Ainda assim não temos absoluta certeza, em face da factualidade provada, que a morte seria necessariamente evitada se esse conjunto de circunstâncias, em parte imputáveis à organização dos serviços do 2.º R., não tivessem ocorrido.
Mais uma vez, temos de ponderar, que estamos perante uma mera obrigação de meios e não de resultado, não sendo por isso possível concluir que a morte foi consequência direta e necessária desses comportamentos imputáveis ao 2.º R., porque ela era um risco contingente do tipo de intervenção cirúrgica a que a paciente havia sido sujeita, cuja evolução poderia perfeitamente escapar ao domínio da intervenção médica, mesmo da mais diligente (cfr. resposta aos quesitos 5.º e 6.º da perícia a fls. 1130).
No entanto, verificando-se estas dificuldades no estabelecimento do nexo causal, haverá sempre de considerar o instituto da perda de chance, como anteriormente já fizemos realçar.

4.6. Da perda de chance.
A nosso ver, ao contrário do que sucedeu com a apreciação feita relativamente ao 1.º R., porquanto o comportamento ilícito tido por relevante, que lhe era objetiva e subjetivamente imputável, se verificou numa situação de emergência in extremis, em que já não era identificável uma verdadeira chance diversa daquela que efetivamente se assumiu numa fase já tão adiantada do processo infecioso, quanto ao incumprimento ilícito relevante, autonomamente imputável ao 2.º R., é possível fazer uma valoração substancialmente diversa.
De facto, às 11h38m do dia 24 de abril de 2015, a situação clínica da paciente impunha a realização duma observação clínica rigorosa e a solicitação de exames complementares de diagnóstico, como uma TAC (cfr. facto Provado 166). Ora, a TAC era imprescindível para o diagnóstico (cfr. factos provados 86 e 87) e o diagnóstico atempado é um dos principais fatores para o tratamento duma septicémia (cfr. facto provado 89), que é uma infeção de desenvolvimento rápido, se não for tratada a tempo (cfr. facto provado 88), ficando a possibilidade de sobrevivência a esse tipo de infeção assim dependente da demora do seu diagnóstico (cfr. facto provado 90).
O que significa que a obtenção do diagnóstico o mais próximo possível do momento em que foi pedido (às 11h38m – cfr. facto provado 164), aumentava significativamente a probabilidade de sobrevivência da doente. Poderia eventualmente não evitar o processo infecioso rápido que no final foi a causa da morte (cfr. facto provado 88), mas também poderia determinar uma ação médica atempada, competente e eficaz, com maior probabilidade de êxito.
Verifica-se assim que havia uma probabilidade de resultado positivo futuro, ainda que não fosse certa. Verificava-se também uma possibilidade de obter esse resultado positivo, apesar da incerteza do mesmo. E verificou-se que o arrastar no tempo da realização da TAC, indispensável para a obtenção do diagnóstico atempado, por razões imputáveis à organização do 2.º R., que não estão justificadas, determinaram que a reação médica devida não tivesse sido tão tempestiva, não se conseguindo assim evitar os maiores receios havidos, que se consumaram. Em suma, verificaram- se todos os pressupostos da relevância da perda de chance (probabilidade, possibilidade e irreversibilidade).
Concluímos, pois, que se perdeu tempo precioso que doutro modo bem poderia ter conduzido a um resultado diverso.
Ainda que não houvesse garantias sobre o êxito duma intervenção médica mais precoce, o tempo perdido inviabilizou qualquer outra hipótese de afastar o evento mais gravoso. Sendo que, as chances perdidas eram reais e sérias, na estrita medida em que é medicamente reconhecido que a possibilidade de sobrevivência a uma sépsis diminui significativamente com o tardar do diagnóstico (cfr. facto provado 90).
Impõe-se assim ressarcir o dano da perda de chance, traduzido na impossibilidade frustrada de evitar um dano, que deve ser relevado como um dano autónomo, distinto do resultado aleatório final pretendido, que ficou definitivamente frustrado por força das decisões havidas no quadro organizacional do 2.º R..
A reparação justifica-se, porque a possibilidade perdida era mais que meramente hipotética. Era significativa e real, e foi provada pelos A.A. (v.g. ponto 90 dos factos provados), tal é exigido pelo AUJ do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2022 (Proc. n.º 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A, publicado do D.R. n.º 18 – I.ª Série, de 26 de janeiro de 2022, pág. 20).
O problema que se coloca de seguida tem a ver com o quantitativo a fixar para a reparação deste dano autónomo.
Os A.A., a título subsidiário, vieram a formular um pedido ilíquido, precisamente pela alegada “perda de chance”, caso se entendesse que o pedido de indemnização por danos não patrimoniais improcedesse.
Sustentaram a iliquidez desse pedido na circunstância de não ser determinável, no momento em que intentaram a ação, o valor em que se concretizava a perda de chance (cfr. artigo 323.º da petição inicial a fls. 72).
Foi assim que a sentença recorrida decidiu condenar os 1.º e 2.º R.R., em quantia que se viesse a liquidar, pela perda de chance resultante do falecimento de CP, embora a perda de chance aí relevada tivesse como fundamento apenas numa alegada violação dos deveres de informação por parte do 1.º R.. O que é completamente diferente a perda de chance por nós relevada no presente acórdão.
Sem prejuízo, sustentou-se ali a condenação ilíquida com base nos seguintes argumentos:
«Efetivamente, o apuramento da indemnização, no caso de perda de chance, não depende exclusivamente dos danos efetivamente ocorridos, mas terá que considerar ainda o valor da perda de chance, ou seja, a medida em que tal perda contribui para esses danos/prejuízos. É que estamos a falar de “possibilidades”. Efetivamente, “o dano da perda de chance deve ser avaliado em termos hábeis, de verosimilhança e não segundo critérios matemáticos, sendo o quantum indemnizatório fixado atendendo ás probabilidades de o lesado obter o benefício que poderia resultar da chance perdida. É precisamente o grau de probabilidade de obtenção da vantagem (perdida) que será decisivo para a determinação da indemnização [Armando Braga - A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Extracontratual, p. 125.]». (sublinhado original).
E depois acrescenta: «Ora, apesar de ser terem provado a existência de danos, não se demonstraram quaisquer probabilidades da sua verificação, não fosse a atitude dos RR. que cercearam a existência dessas possibilidades. Face a esta situação, conforme se constata, não existem elementos concretos nos autos que permitam desde já ao tribunal fixar o quantitativo indemnizatório, nem sequer com recurso à equidade. Assim, não sendo possível apurar um valor líquido da indemnização peticionada, o tribunal condenará no que se liquidar posteriormente (artigo 609.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), isto se as partes assim o vierem a entender como necessário, naturalmente». (aqui o sublinhado é nosso).
Em suma, a condenação ilíquida sustentou-se na falta de prova de qual o grau de probabilidade de obtenção da vantagem perdida, imputando essa falta aos R.R., considerando, no final, que com base na falta de elementos bastantes não seria possível fixar o valor da indemnização, nem sequer com recurso à equidade.
O problema é que, apesar de tudo, quem tem ónus de prova dos factos constitutivos do seu direito são os A.A. (cfr. Art.º 342.º n.º 1 do C.C.), sendo que relativamente ao dano de perda de chance isso compreende a prova da sua consistência e seriedade (cfr. AUJ do STJ n.º 2/2022 supra citado), das quais depende a ressarcibilidade do dano em causa. Portanto, os A.A. deveriam alegar e provar as circunstâncias em que se concretiza a perda de chance e, em função do assim alegado, indicar o valor que no seu entender seria devido.
Ainda assim o Art.º 556.º n.º 1 al. b) do C.P.C. permite a formulação de pedidos genéricos quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, ou quando o lesado pretenda usar da faculdade estabelecida no Art.º 569.º do C.C..
No caso os A.A. tiveram a oportunidade de logo alegar os danos cujo ressarcimento pretendiam, restringindo a sua pretensão aos danos não patrimoniais que já tivemos oportunidade de enunciar, não invocando qualquer impossibilidade de determinação dos danos efetivos.
Não alegaram quaisquer outros danos, nem que existissem danos futuros, ou ainda não verificados mas previsíveis, cujo montante não pudesse ainda ser fixado, porque não determinável (cfr. Art.º 564.º n.º 2 do C.C.). Logo, tiveram o cuidado de alegar e peticionar os danos conhecidos e efetivos, cujo ressarcimento pretendiam efetivamente, tendo até indicado o valor que atribuíam aos mesmos, afastando-se, nessa parte, da faculdade estabelecida no Art.º 569.º do C.C..
Nessa medida, tal como foi interpretado pela sentença recorrida, a não indicação do valor exato do dano da perda de chance, não se referia à concretização económica das utilidades dos danos sofridos, mas eventualmente à dificuldade do estabelecimento do critério indemnizatório decorrente da consideração das probabilidades em que a perda de chance se traduziria no caso concreto.
Conforme refere a este propósito Rute Teixeira Pedro (in Ob. Loc. Cit. “A responsabilidade Civil do Médico…”, págs. 227 a 232), no cálculo da indemnização não pode ser esquecida, nem a autonomia do dano a ressarcir, nem a sua íntima relação com a perda, em definitivo, do resultado que a chance, antes de ser pedida, poderia propiciar, havendo que fazer uma dupla avaliação: por um lado, a utilidade económica que seria alcançada com a verificação do resultado final; e por outro, a probabilidade de o alcançar. A utilidade económica do resultado final corresponde à avaliação do prejuízo efetivo, decorrente da perda de chance (ou seja, os valores que indicámos no ponto 2.4. do presente acórdão). A probabilidade de alcançar esse resultado, corresponderá a uma percentagem da probabilidade de êxito referente às chances perdidas.
Logo, o quantum indemnizatório resultará do seguinte raciocínio matemático base: se se verificaram danos no valor de N e, por exemplo, 30% de probabilidades de êxito de o evitar, a indemnização será igual a Nx30%.
Neste sentido, no Acórdão do STJ de 5 de maio de 2020 (Proc. n.º 27354/15.1T8LSB.L1.S2 – Relator: António Magalhães, disponível em www.dgsi.pt) decidiu: «IV. Para o cálculo do dano da perda de chance, deve fazer-se uma dupla avaliação: em primeiro lugar, a avaliação do dano do dano final para, em seguida, ser fixado o grau de probabilidade de obtenção da vantagem ou de evitamento do prejuízo, após o que, obtidos tais valores, se deverá aplicar o valor percentual que representa o grau de probabilidade ao valor correspondente à avaliação do dano final, sendo que o resultado de tal operação constituirá a indemnização a atribuir pela perda de chance. V. Só não sendo possível fixar a probabilidade da chance, o tribunal julgará com recurso à equidade em conformidade com o disposto no art.º 566º, nº 3 do CC».
No caso, foram provados os danos, que são quantificáveis, com recurso à equidade, em face da natureza específica dos danos alegados e sofridos (cfr. Art.º 496.º n.º 4 do C.C.), mas efetivamente não existem elementos para fixarmos um percentual relativo à probabilidade de êxito das chances perdidas.
Foi isso que foi reconhecido pela sentença recorrida, embora partindo dum contexto diverso do considerado neste acórdão.
Supomos nós também que foi essa dificuldade que justificou o facto de os A.A. terem optado por formular um pedido genérico, pois o problema não se referia à quantificação dos danos efetivos, mas ao potencial valor da “perda de chace”, considerando a amplitude de circunstâncias que alegaram poder ser relevadas para esse efeito e que só agora se mostram reduzidas, nos termos do presente acórdão, às chances perdidas pela demora na obtenção do diagnóstico, através da realização célere duma TAC, que reduziram de forma significativa a possibilidade de tratamento da infeção por sépsis, diminuindo assim as possibilidades de sobrevivência da paciente.
Não se pode negar que esse facto (percentagem relativa à probabilidade perdida, relevante para efeitos de determinação efetiva do valor da indemnização), estava compreendido no ónus de alegação e prova dos A.A., nos termos do Art.º 342.º n.º 1 do C.C.. Pelo que, poderá colocar-se o problema de se poder entender que não é permitido ao lesado discutir duas vezes a mesma questão, ou se não existe uma situação de preclusão emergente do não cumprimento originário do ónus de alegação, consequente do princípio do dispositivo (cfr. Art.ºs 260.º, 552.º n.º 1 al. d) e 609.º n.º 1 do C.P.C.).
Seguindo aqui de perto o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/4/2014 (Proc. n.º 593/09 – Relator: Mário Belo Morgado – disponível in “JusNet” 2602/2014), quanto à interpretação do Art.º 661.º n.º 2 do C.P.C. pretérito, são identificáveis a este propósito dois entendimentos distintos: Um entendimento mais restritivo, outrora dominante na jurisprudência, que considerava que esse preceito apenas permite remeter a condenação para “execução de sentença” quando não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, entendendo-se, porém, essa falta de elementos não como a consequência do fracasso da prova na ação declarativa, mas apenas como consequência de ainda se não conhecerem, com exatidão, as unidades componentes da universalidade ou de ainda se não terem revelado ou estarem em evolução algumas ou todas as consequências do facto ilícito no momento da propositura da ação declarativa (nesse sentido: Ac. STJ de 17/01/1995, P.085801, in www.dgsi.pt); e uma jurisprudência mais permissiva, que tem vindo a tomar o lugar da precedente, de que é exemplo o Ac. STJ de 19/05/2009 (P. 2684/04.1TBTVD.S1) publicado no mesmo sítio e com o seguinte sumário: «I - Sempre que o tribunal verificar o dano, mas não tiver elementos para fixar o seu valor, quer se tenha pedido um montante determinado ou formulado um pedido genérico, cumpre-lhe relegar a fixação do montante indemnizatório para liquidação em execução de sentença. II - Mesmo que se possa afirmar que se está a conceder uma nova oportunidade ao autor do deduzido pedido líquido de provar o quantitativo dos danos, não se vislumbra qualquer ofensa do caso julgado, material ou formal. III - É que a existência de danos já está provada e apenas não está determinado o seu exato valor. IV- Só no caso de se não ter provado a existência de danos é que se forma caso julgado material sobre tal objeto, impedindo nova prova do facto no posterior incidente de liquidação. Também no mesmo sentido o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 3/10/2006 (P. 497/2000.C1) com o seguinte sumário: «I - A aplicação do Art.º 661º, nº 2, do CPC, depende da verificação, em concreto, de uma indefinição de valores de prejuízos, mas como pressuposto primeiro da sua aplicação deverá ocorrer a prova da existência dos danos. II - Este preceito tanto se aplica no caso de se ter inicialmente formulado um pedido genérico e de não se ter logrado converter em pedido específico, como ao caso de ser formulado pedido específico sem que se tenha conseguido fazer prova da especificação, ou seja, quando não se tenha logrado coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, a quantidade de condenação. III - No caso de o autor ter deduzido um pedido específico (isto é, um pedido de conteúdo concreto), caso não logre fixar com precisão a extensão dos prejuízos poderá fazê-lo em liquidação em execução de sentença. IV - Uma vez interposto o incidente de liquidação dos danos (Art.º 378º CPC), ao demandado cabe a possibilidade de contestar a liquidação efetuada pela parte contrária, com o que fica assegurado o contraditório em relação a tal objetivo».
Deste modo, de acordo com o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/4/2014 (Proc. n.º 593/09 – Relator: Mário Belo Morgado – disponível in “JusNet” 2602/2014), o critério material que justifica a solução é: «a ideia de que razões de justiça e de equidade impedem se absolva o réu uma vez demonstrada a sua obrigação, mas impedem igualmente uma condenação arbitrária, sem obediência a limites correspondentes com a realidade.» Acrescentando ainda que: «não parece, à luz da justiça material, que se possa premiar aquele que formula "ab initio" um pedido genérico e penalizar o que apresenta, desde logo, um pedido específico, sendo, por isso, de condenar no que se liquidar em execução de sentença, tanto no caso de ter sido formulado pedido genérico, como no de ter sido formulado um pedido específico e não ter sido possível determinar o objeto ou a quantidade da condenação.» (citando aqui, nesta última parte, o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 6/3/2013 - Proc. 265/06.4TTVNG.L1-4).
Esta solução afigura-se assim mais justa nos casos em que se reconhece o direito em termos genéricos, mas não haja elementos para fixar o objeto ou a quantidade, por falta de concretização do alcance do mesmo. Prevalece assim o interesse de uma maior justiça material, que se sobrepõe ao inconveniente que daí resulta de se facultar aos A.A. duas oportunidades para fazer a prova dos factos em que estriba o seu pedido (neste sentido, também: Acórdão da Relação de Lisboa de 20/04/2010 – Proc. n.º 2998/04.0TVLSB.L1-7 – Relatora: Maria Amélia Ribeiro – também disponível em www.dgsi.pt).
A questão não é tanto a de permitir uma segunda possibilidade à parte de provar o objeto ou a quantidade do que pede, em termos de ofensa aos princípios que regem o ónus da prova. O que justifica esta solução é permitir ao tribunal superar uma situação de impasse, pois reconhece o direito aos A.A., mas fica na contingência de poder não o conceder, por não ter elementos bastantes para o concretizar.
Sem prejuízo do exposto, a faculdade concedida pelo n.º 2 do Art.º 609.º do C.P.C. não deverá ser permitida se se concluir que nenhuma utilidade se pode perspetivar como previsível da possibilidade dessa prova adicional relativamente à que foi já produzida no processo com vista à concretização do objeto ou quantidade.
Conforme decorre do Acórdão da Relação do Porto de 15/11/2012 (Proc. n.º 1622/10.7TBVNG.P1 – Relator: Aristides Rodrigues Almeida, disponível em www.dgsi.pt): “provando-se a existência de danos, mas não dos elementos necessários à sua quantificação, a fixação do montante indemnizatório deve ser relegada para ulterior liquidação, só sendo de dispensar esta nos casos em que, face à prova já produzida e à natureza dos factos, não seja previsível que no respetivo incidente se possa produzir outra, mais ou melhor prova”.
Também se poderia questionar se nestas situações não seria mais adequada a fixação do valor devido com recurso imediato à equidade, nos termos do Art.º 566.º n.º 3 do C.C.. Mas, quando em causa está o conflito entre o recurso à equidade e a remessa para liquidação de sentença, deve dar-se prevalência a este último, por forma a permitir às partes a possibilidade de recorrerem aos meios probatórios idóneos ao apuramento efetivo dos valores em causa (Neste sentido: Salvador da Costa in “Os Incidentes da Instância”, 9.ª Ed., 2017, pág. 234). Só esgotadas as possibilidades conferidas às partes de fazerem prova do valor devido é que será legítimo ao tribunal o recurso às regras de equidade para fixação do “quantum” da obrigação objeto da ação.
No caso concreto, compreensivelmente, não era determinável à data da propositura da ação qual a percentagem referente à chance perdida, relevante para efeitos de determinação efetiva do valor da indemnização, pois só agora, depois de fixada a factualidade provada relevante e de estabelecidos os exatos limites da responsabilidade a considerar (agora restrita do 2.º R.), é que se pode definir com precisão a que chance perdida concreta se pode reportar o pedido genérico formulado.
Provada que está a existência do dano, deve abrir-se a possibilidade de provar os concretos elementos de onde decorrerá a determinação do seu exato valor.
Acresce que estamos perante uma questão de facto e não de questão de direito, conforme é reconhecido no ponto III do sumário do já citado acórdão do STJ de 5 de maio de 2020 (Proc. n.º 27354/15.1T8LSB.L1.S2 – Relator: António Magalhães, disponível em www.dgsi.pt), devendo por isso ser permitido às partes, o exercício pleno dos seus direitos relativamente ao estabelecimento dessa factualidade no processo, competindo aos A.A. alegar o percentual em causa (Art.º 342.º n.º 1 do C.C.) e aos R.R. contraditar esse facto (cfr. Art.º 3.º n.º 3 do C.P.C.), no âmbito do incidente previsto nos Art.ºs 358.º e ss. do C.P.C..
Só no caso de não ser absolutamente possível determinar com exatidão esse facto, será legítimo ao tribunal o recurso oportuno à equidade, julgando dentro dos limites que tiver por provados (cfr. Art.º 566.º n.º 3 do C.C.).
Afigura-se por isso legítimo que, nos termos do Art.º 609.º n.º 2 do C.P.C., não existindo elementos para fixar o valor exato da indemnização devida, o tribunal condene no que vier a ser liquidado, tendo por limite máximo o valor de €190.000,00, fixado no ponto 2.4 do presente acórdão, ao qual se aplicará o percentual referente à perda de chance concretamente considerada, a determinar em incidente de liquidação de sentença (cfr. Art.ºs 358.º e ss. do C.P.C.).

5. Da responsabilidade das seguradoras intervenientes.
Resta ainda determinar a responsabilidades das seguradoras intervenientes pelo cumprimento da obrigação de indemnização que se pretende fixar a favor dos A.A..
A sentença condenou as R.R., chamadas, “A…, Companhia de Seguros”, S.A., e “F…, Companhia de Seguros” S. A., a primeira solidariamente com o 1.º R., PM, e a segunda, solidariamente com o 2.º R., “Hospital …” S.A., a pagarem aos A.A., a quantia que se vier a liquidar, quanto a estes R.R., dentro dos limites do capital seguro e tendo em conta as respetivas franquias contratuais.
Como é evidente, julgando-se que o 1.º R. deverá ser absolvido dos pedidos contra si formulados, consequentemente a seguradora A…, deve igualmente ser absolvida desses pedidos.
Quanto à F…, porque para ela foi transferida a responsabilidade civil do 2.º R. por danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais e materiais causados a terceiros pela exploração do Hospital …, garantido por contrato de seguro a responsabilidade civil de todos os profissionais, no exercício das suas funções, relativamente à sua atuação nesse hospital, independentemente do vínculo laboral que possa existir (cfr. facto provado 191), responderá a mesma pela obrigação daquele R. até ao limite de um milhão de euros por anuidade e €250.000,00 por sinistro e lesado, descontando-se a franquia de €1.250,00 por sinistro, no caso de responsabilidade civil profissional (que não se aplica ao caso) e €250,00 por sinistro, no caso de responsabilidade civil de exploração (que corresponde precisamente ao caso dos autos) – (cfr. facto provado 192).
Em face de todo o exposto, a sentença deverá ser alterada, concordando-se parcialmente com as conclusões de recurso conformes ao que fica dito e descordando-se com as apresentas em sentido diverso, sendo evidente que improcede a apelação apresentada pelos A.A. e são completamente procedentes as apelações apresentadas pelos R.R., PM e A…. A apelação da R. F… apenas procede parcialmente, na medida em que se fixa agora um teto para a indemnização ilíquida em que o 2.º R. já havia sido condenado.

6. Das Custas.
A decisão deste acórdão determina necessariamente uma alteração da responsabilidade por custas, tal como fixada na sentença recorrida, por inevitável arrastamento decorrente da alteração dos decaimentos finais a considerar.
Nessa sentença, as custas ficaram a cargo dos A.A. e dos R.R. PM, Hospital …, na proporção de metade para cada, a serem ditas em conta e acertadas em eventual liquidação, na proporção que aí se vier a determinar concretamente.
Ora, para além do mais, essa sentença é omissa relativamente à responsabilidade das R.R. Seguradoras. O que, evidentemente, não tem qualquer justificação.
Agora, por força do presente acórdão, os R.R. PM e a correspondente seguradora, A…, serão absolvidos dos pedidos, logo, não são responsáveis pelo pagamento de custas. Responderão apenas por elas as partes que deram causa à ação e na proporção em que foram vencidas (cfr. Art.º 527.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.).
Assim, a responsabilidade por custas, que compreendem todas as realidades previstas no Art.º 529.º n.º 1 do C.P.C., será, em primeiro lugar, pelos A.A., na proporção do decaimento efetivo, que corresponde à totalidade da diferença entre o valor da ação (€270.000,00) e o teto da indemnização fixada a liquidar em incidente oportunamente a deduzir (€190.000,00), e à proporção de metade quanto ao valor da ação até €190.000,00.
Em segundo lugar, a responsabilidade pelas custas será, na parte restante, quanto ao valor da ação até €190.000,00, na proporção de metade, pelo 2.º R. e pela seguradora interveniente F….
Em ambos esses casos, sem prejuízo de eventuais acertos na proporção assim fixada, a corrigir em função do que vier a ser decidido em incidente de liquidação de sentença.
Quanto à instância recursiva, as custas do recurso dos A.A. são por conta dos recorrentes, em face do seu decaimento total (Art.º 527.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.).
As custas dos recursos do 1.º R. e da interveniente A…, também serão igualmente pelos A.A., aí apelados, por serem quem a eles deu causa e por força do correspondente decaimento (cfr. Art.º 527.º n.º 1 e n. 2 do C.P.C.).
Quanto às custa do recurso da interveniente F…, será na proporção do respetivo decaimento, ficando a sua responsabilidade pelos A.A., aí Recorridos, por um lado, na parte correspondente à totalidade das custas referentes à diferença entre o valor do recurso (€270.000,00) e o teto da indemnização fixada a liquidar em execução de sentença (€190.000,00) e, por outro, a metade do valor do recurso até €190.000,00.
A parte restante, quanto a metade do valor do recurso até €190.000,00, será da responsabilidade da seguradora interveniente F… (cfr. Art.º 527.º nº 1 e n.º 2 do C.P.C.). Isto, sem prejuízo, quanto às responsabilidades por metade do valor dos recursos até €190.000,0, de eventual correção emergente do incidente de liquidação.
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V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar as apelações, nos seguintes termos:
a) Julgamos totalmente improcedente a apelação apresentada pelos A.A.;
b) Julgamos as apelações apresentadas pelo 1.º R., PM, e pela interveniente, Ag… – Companhia de Seguros, S.A., totalmente procedentes e, em consequência, revogamos a sentença recorrida na parte em que os condenou, solidariamente, ao pagamento de quantia que se viesse a liquidar pela perda de chance resultante do falecimento de CP, decisão que é substituída pela de absolver os mesmos dos pedidos contra si formulados;
c) Julgamos a apelação da interveniente F… – Companhia de Seguros, S.A., parcialmente procedente, determinando-se, em consequência, a revogação da sentença recorrida na parte dispositiva que condenou o 2.º R. e essa interveniente, substituindo essa decisão pela de julgar a ação parcialmente procedente, nos seguintes termos:
1. Condena-se o 2.º R., Hospital …, S.A., a pagar aos A.A. indemnização em quantia que se vier a liquidar, mas não superior a €190.000,00, conforme melhor discriminado no ponto 2.4 do presente acórdão, pela perda de chance relativa ao falecimento de CP, em montante a determinar em incidente de liquidação de sentença, nos termos explicitados no ponto 4.6. do presente acórdão;
2. Condena-se a interveniente F… – Companhia de Seguros, S.A., solidariamente com o 2.º R., a pagar a indemnização a que se reporta o ponto anterior, dentro dos limites do capital seguro, fixado em 1 milhão de euros por anuidade e €250.000 por sinistro, e da franquia de €250,00 por sinistro, aqui aplicável.
- As custas da ação serão pelos A.A., por um lado, e pelo 2.º R. e interveniente F…, por outro, na proporção dos respetivos decaimentos (cfr. Art.º 527.º n.º 1 e 2 do C.P.C.), que se fixam na totalidade, pelos A.A., quanto ao valor tributário correspondente à diferença entre o valor da ação (€270.000,00) e o teto da indemnização fixada a liquidar em incidente de liquidação de sentença (€190.000,00), e ainda na proporção de metade quanto ao valor da ação até €190.000,00, fixando-se concomitantemente o decaimento imputável ao 2.º R. e à interveniente F… no mais remanescente, correspondente à metade sobrante do valor tributário devido pelo valor da ação até €190.000,00. Em qualquer dos casos, quanto às responsabilidades por metade do valor tributário correspondentes ao valor da ação até €190.000,00, essas responsabilidades poderão ser objeto de acertos em função do que vier a ser determinado em incidente de liquidação de sentença.
- As custas do recurso dos Apelantes, A.A., são inteiramente da responsabilidade dos Recorrentes, os quais também serão responsáveis pelas custas dos recursos do 1.º R. e da interveniente A…., aí como recorridos (Art.º 527.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.).
- As custas do recurso da interveniente F…, serão na proporção do respetivo decaimento (cfr. Art. 527.º nº 1 e n.º 2 do C.P.C.), o qual é fixado a cargo dos A.A., aí Recorridos, na totalidade do valor tributário devido correspondente à diferença entre o valor do recurso (€270.000,00) e o teto da indemnização fixada a liquidar em incidente de liquidação de sentença (€190.000,00) e ainda relativamente a metade do valor do recurso até €190.000,00, sendo da responsabilidade da Recorrente Fidelidade quanto à metade restante do valor do recurso até €190.000,00, sem prejuízo, quanto às responsabilidades por metade do valor dos recursos até €190.000,00, de eventual correção emergente do incidente de liquidação.
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Lisboa, 12 de setembro de 2023
Carlos Oliveira
Cristina Coelho
Edgar Taborda Lopes