Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
724/13.2YRLSB-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: TRIBUNAL ARBITRAL
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
COMPETÊNCIA
FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I) A legitimidade dos tribunais arbitrais advém da vontade das partes ou da disposição legal que os estabelece, em determinado domínio, como necessários.
II) Os tribunais arbitrais estão desprovidos de potestas e a coercibilidade das suas decisões apenas decorre do apoio dos tribunais estaduais.

III) A entrega do julgamento a árbitros não implica a atribuição de funções jurisdicionais; os árbitros integram o tribunal arbitral, mas não agem, como órgãos do Estado, não dispõem de poderes de autoridade, inerentes ao exercício da função jurisdicional, e a decisão que sela o seu juízo, o laudo, não tem a eficácia da sentença dos tribunais estaduais.

IV) A sanção pecuniária compulsória visa uma dupla funcionalidade de moralidade e de eficácia - reforço da soberania dos tribunais e do prestígio da justiça, respeito pelas suas decisões e favorecimento da execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis – e reveste um carácter bifronte, misto de prevenção e de repressão.

V) Não existindo disposição expressa que reconheça a competência do Tribunal Arbitral para condenar numa sanção pecuniária compulsória, estando presente na figura uma funcionalidade acrescida de reforço da soberania, de que estão desprovidos os tribunais arbitrais, a pedra angular de todo o funcionamento do mecanismo da sanção pecuniária compulsória é o juiz estadual, única entidade que a pode ordenar.
VI) Deve ser anulada a decisão arbitral que omita a explicitação dos factos relevantes, pois tal inviabiliza o controle interno da decisão e a reponderação do juízo de facto; a ausência de decisão sobre a matéria de facto é a situação limite da decisão deficiente.
(AAC)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

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M… Inc. instaurou, no Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, acção arbitral contra C…Lda, G…, SA, K…, Lda, Me… Lda, S…, Lda, e  W…, SA, pedindo que as demandadas sejam condenadas a :

-abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, importar, fabricar armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer os medicamentos genéricos que tenham como princípio activo o M…, enquanto a patente europeia PT … ou o CCP … se encontrarem em vigor, ou seja até 17 de Agosto de 2014.

-com vista a garantir o exercício dos direitos da Demandante, a não transmitir a terceiros as AIMs identificadas no artigos 74.º a 80.º da petição inicial até à referida data de caducidade dos direitos ora exercidos;

-pagar uma sanção pecuniária compulsória de valor de, pelo menos, € 70.000,00 (sesenta mil euros) por cada dia de incumprimento da sentença que venha a ser proferida nos termos do antes requerido.

No Saneador W…, entre outas, foi condenada a:

-não iniciar a exploração industrial ou comercial de qualquer medicamento que tenha como substância activa o M… até à caducidade da patente n.º PT … e do Certificado Complementar de Protecção n.º …;

-até à mesma caducidade, a não transmitir a terceiros a autorização de introdução no mercado de que seja titular em virtude dos pedidos formulados ao Infarmed;

-a pagar à demandante uma sanção pecuniária compulsória no montante de € 25.000 (vinte e cinco mil euros) por cada dia em que verifique a violação da condenação na não exploração comercial ou industrial de qualquer medicamento genérico que tenha como substância activa o M….

Inconformada interpôs W… competente recurso, cuja minuta concluiu da seguinte forma:

1. O presente recurso vem interposto da decisão arbitral proferida no despacho saneador, na parte em que condenou a Recorrente a não transmitir a terceiros as autorizações de introdução no mercado, doravante designadas, apenas por AIM, até 17 de Agosto de 2014, data da caducidade dos direitos de propriedade industrial da Recorrida, e na parte em que condenou a Recorrente a pagar à Recorrida uma sanção pecuniária compulsória de € 25.000 (vinte e cinco mil euros) por cada dia em que verifique a violação da condenação na não exploração comercial ou industrial de qualquer medicamento genérico que tenha como substância activa o M….

2. O pedido de não transmissão das AIM a terceiros não é uma consequência lógica e jurídica do pedido de não exploração industrial e comercial dos medicamentos genéricos contendo M… como substância activa, porque a não transmissão das AIM a terceiros não se encontra compreendida na exploração industrial e comercial dos medicamentos genéricos contendo M… como substância activa.

3. A concessão da AIM não é contrária aos direitos de propriedade industrial, de acordo com o artigo 19.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, na redacção introduzida pela Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, pelo que, por maioria de razão também a sua transmissão a terceiros não é contrária aos direitos de propriedade industrial.

4. O pedido de não transmissão das AIM a terceiros não pode ter como finalidade garantir a tutela efectiva do direito de propriedade industrial da Recorrida, pois, esta é garantida, por um lado, pela sujeição a arbitragem necessária dos litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com medicamentos de referência e medicamentos genéricos, nos termos do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, e por outro lado, pela exequibilidade que é conferida às decisões arbitrais pelo artigo 48.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

5. A Recorrente, por não ter deduzido contestação na presenta acção arbitral, foi condenada a não a não iniciar a exploração industrial ou comercial dos medicamentos genéricos contendo M… como substância activa, na vigência dos direitos de propriedade industrial da Recorrida, a qual compreende a sua comercialização, a sua importação, o seu fabrico, o seu armazenamento, a sua introdução no comércio, a sua venda ou a sua oferta.

6. A transmissão a terceiros da AIM dos medicamentos genéricos contendo M... como substância activa e, por isso, ocorrendo na vigência dos direitos de propriedade intelectual da Recorrida, não é contrária aos seus direitos de propriedade industrial.

7.O artigo 37.º, n.º 1, do decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, permite expressamente a transferência de titularidade de AIM , a qual, de acordo com o disposto no artigo 33.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, é uma alteração dos termos de uma AIM.

8. A AIM não pode ser alterada pelo INFARMED, com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial, por força do disposto no artigo 179.º, n.º 2, do Decreto_lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, na redacção introduzida pela Lei n.º n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, pelo que, por identidade de razão não pode também deixar de ser alterada pelo INFARMED, nomeadamente, no caso de transferência do seu titular com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial.

9. A AIM em causa na presente acção arbitral é uma posição activa na esfera jurídica da Recorrente, é um bem com que está, como é regra geral, no comércio jurídico, e que pode, por isso, ser objecto de negócios, permitindo expressamente o artigo 37.º , n.º 1, do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, a transferência de titularidade de AIM.

10. A AIM de que a Recorrente é titular, ou seja, o direito que tem na sua esfera jurídica, resultante da decisão recorrida, apenas pode ser objecto de transmissão, nas exactas condições em que a mesma se encontra na esfera jurídica da Recorrente, como decorre das regras jurídicas gerais , nomeadamente do artigo 579.º do CC, pelo que, se a mesma não lhe permite iniciar a exploração industrial ou comercial dos medicamentes genéricos contendo M... como substância activa, na vigência dos direitos de propriedade industrial da Recorrida, então, o seu eventual adquirente ficará também sujeito à mesma proibição de exploração industrial ou comercial dos medicamentos genéricos contendo M... como substância activa, na vigência dos direitos de propriedade industrial da Recorrida.

11. O Tribunal arbitral não dispunha de quaisquer indícios de que a Recorrente se estava a preparar para ou se encontrava a fazer diligências junto de terceiros no sentido de transferir a AIM de que é titular, porque tais factos não foram alegados pela Recorrida.

12. A decisão recorrida, na parte em que condenou a Recorrente a não transmitir a terceiros as autorizações de introdução no mercado, até 17 de Agosto de 2014, data da caducidade dos direitos de propriedade industrial da Recorrida, violou o disposto no artigo 101.º, do Código de Propriedade Industrial, nos artigos 37.º, n.º 1, e 179.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 179/2006, de 30 de Agosto, e o artigo 579.º do Código Civil, padecendo, assim, de erro de julgamento da matéria de direito.

13. A aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 829.º-A, n.º 3, do Código Civil, é por definição uma condenação acessória da condenação principal do devedor no cumprimento da prestação decretada por sentença judicial, proferida por um tribunal estadual, sendo apenas possível em sede judicial (estadual), e não em sede arbitral.

14. A repartição do montante da sanção pecuniária compulsória imposta por um Tribunal Arbitral, em partes iguais, pelo credor e o Tribunal Arbitral, em vez do Estado, tal como sustenta a decisão recorrida, violaria flagrantemente o disposto no artigo 829.º-A, n.º 3, do Código Civil.

15. A decisão recorrida condenou a Recorrente numa prestação de fato negativo, infungível e instantânea (não iniciar a exploração comercial ou industrial dos medicamentos genéricos contendo M... como substância activa até à caducidade dos direitos de propriedade industrial da Recorrida), pelo que não se encontram reunidos os pressupostos da aplicação de uma sanção pecuniária compulsória.

16. A aplicação de uma sanção pecuniária compulsória constitui um meio de intimidação ou de pressão sobre o devedor, levando-o a cumprir a obrigação a que foi condenado, vencendo a resistência da sua oposição ou do seu desleixo, indiferença ou negligência, pelo que a procedência do pedido formulado pala Recorrida, encontrar-se-ia dependente da alegação e da prova pela mesma de um actual ou iminente incumprimento da Recorrente na execução da obrigação em que foi condenada na decisão recorrida.

17. A Recorrida não alegou quaisquer circunstâncias factuais das quais pudesse resultar a formação, pelo Tribunal Arbitral, da existência de uma violação actual ou a ameaça de uma violação iminente dos seus direitos de propriedade industrial, por parte da Recorrente, pelo que esta não poderia ter sido condenada no pagamento de qualquer sanção pecuniária compulsória.

18. A decisão recorrida, na parte em que condenou a Recorrente a pagar à Recorrida uma sanção pecuniária compulsória de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) por cada dia em que se verifique a violação da condenação na não exploração comercial ou industrial de qualquer medicamente genérico que tenha como substância activa o M..., violou o disposto no artigo 829.º - A, do Código Civil padecendo, assim, de erro.

Nestes termos, e nos demais de Direito, cujo douto suprimento expressamente se requer deve ser concedido integral provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida na parte em que condenou a Recorrente a não transmitir a terceiros as autorizações de introdução no mercado, doravante designadas, apenas por AIM, até 17 de Agosto de 2014, data da caducidade dos direitos de propriedade industrial da Recorrida, e na parte em que condenou a Recorrente a pagar à Recorrida uma sanção pecuniária compulsória de € 25.000 (vinte e cinco mil euros) por cada dia em que se verifique a violação da condenação na não exploração comercial ou industrial de qualquer medicamento genérico que tenha como substância activa o M...’’.


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Constituem questões decidendas saber se:

i) O Tribunal Arbitrário necessário é competente para decretar uma sanção pecuniária compulsória:

ii) Na ausência de qualquer impedimento legal, deve ou não a recorrente ser condenada a não transmitir a terceiros as autorizações de introdução no mercado, até 17 de Agosto de 2014, data da caducidade dos direitos de propriedade industrial da Recorrida.


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Do mérito do Recurso
1. O Tribunal Arbitrário necessário é competente para decretar uma sanção pecuniária compulsória?
i) Pode definir-se arbitragem como um instrumento jurídico-processual, através do qual, os titulares de direitos subjectivos livremente disponíveis podem dirimir as controvérsias relativas a esses direitos sem recurso aos tribunais do Estado.
ii) A história do instituto da arbitragem tem sido a história, tantas vezes conflituante, entre este instituto e a concepção e exercício da função jurisdicional.
Iii) Todos sabemos que com a revolução francesa a Lei passou a ser a ‘’expressão da vontade geral’’ (artigo 6.º da Déclaration des droits de l`homme et du citoyen de 26.08.1789) convertendo-se na única fonte de Direito e na referência exclusiva dos juízes. A justiça passou a ser vista não como poder (o terceiro poder), mas sim como uma ‘’ função lógica’’ predominante técnica.
iv) São conhecidas as afirmações de Robespierre de querer suprimir a palavra jurisprudência dos dicionários e a posição de Montesquieu de que os juízes  não seriam mais do que a boca que pronuncia as palavras da lei.
v) Não admira assim que, por via de Rousseau ou outros, à denegação de um terceiro poder do Estado esteja consequentemente ligada uma ainda maior desconfiança relativamente à arbitragem.
vi) Costuma afirmar-se que, na base de outros princípios fundamentais enformadores do processo, o direito de se comprometer através de árbitros encontrou na época moderna  definitiva consagração com a revolução francesa, e em particular com a lei orgânica sobre o ordenamento judiciário 16-24 de agosto 1790.
vii) A verdade é que no decurso dos trabalhos preparatórios do Código Napoleónico de 1806 houve uma viva oposição ao instituto da arbitragem.
viii) Sustentou-se então, que o Código, ao consagrar o monopólio estadual da jurisdição, deveria ter estabelecido que os cidadãos estivessem obrigados a recorrer ao juiz, único ministro da lei.
ix) Sabemos que esta tese não prevaleceu, mas sim outra segundo a qual, sem prejuízo de reconhecer que a jurisdição é uma emanação da soberania, não deixa de pôr em destaque e de defender que o respeito devido aos tribunais do Estado deve ser temperado com a autonomia contratual das partes, mantendo assim a arbitragem.
x) Também assim aconteceu entre nós. Sem nos querermos alongar num excurso histórico despropositado, lembremos alguns marcos normativos fundamentais da  evolução do instituto da arbitragem, entre nós.
xi) A nossa Constituição de 1822 acrescenta ao artigo 176.º, que preceitua que ‘’o poder judicial pertence exclusivamente aos Juízes. Nem as Cortes nem o Rei o poderão exercitar em caso algum’’, um artigo 194.º que dispõe que ‘’nas causas cíveis e nas penas civilmente intentadas é permitido às partes nomear Juízos Árbitros, para as decidirem’’
viii) A Carta Constitucional de 1826, justapõe ao artigo 118.º -‘’O Poder Judicial é independente, e será composto de Juízes, e Jurados, os quais terão lugar, assim no Cível como no Crime, nos casos, e pelo modo que os Códigos determinarem’’- um artigo 127.º segundo o qual ‘’Nas Cíveis, e nas Penais civilmente intentadas poderão as partes nomear juízes Árbitros. Suas sentenças serão executadas sem recurso, se assim o convencionarem as mesmas partes ‘’.
xii)  A Constituição de 1838 afirma, no artigo 123.º, que ‘’o Poder Judiciário é exercido pelos Juízes e Jurados ‘’; ‘’ § 3.º Nas causas cíveis, e nas criminais civilmente intentadas, poderão as Partes nomear Juízes árbitros’’.
xiii)  A Reforma Judiciária, aprovada pelo Decreto de 16 de Maio de 1832, contém  uma norma – o artigo 30.º - do seguinte teor: ’’Os Juízes Árbitros serão sempre escolhidos pelas Partes. Nos casos, em que estas são livres de recorrer aos mesmos, a força dos seus julgados será dependente do Compromisso das Partes; mas quanto à forma do Processo, deverão em tudo dirigir-se pelas Leis, que estiverem em vigor’’.
xiv) A Nova Reforma Judiciária (Decretos de 29 de Setembro de 1836 e de 13 de Janeiro de 1837) dedica um título reservado aos árbitros, encimado pelo artigo 28.º, que reza que ‘’Todas as Causas Cíveis sobre direitos, de que as partes interessadas tiverem a livre disposição, e em que não houver lugar à intervenção do Ministério Público, podem ser decididas por Árbitro ou Árbitros, nomeados voluntariamente pelas mesmas Partes’’, consagrando o que hoje se designaria por arbitragem ritual ((artigo 38.º).
xv) Não sendo diferente o regime da arbitragem consagrado na Novíssima Reforma Judiciária (Decreto de 21 de Maio de 1841, artigos 150.º e ss).
xvi)O Código de Processo Civil de 1876 consagrou toda uma secção ao Juízo Arbitral (Secção IIII, do Capítulo II do Título Único do Livro I – Do Processo em Geral) .
xvii) O artigo 44.º desse Código dispõe que ‘’a todas as pessoas, que puderem livremente dispor dos seus bens,  é permitido fazer decidir por um ou mais árbitros da sua escolha as questões sobre que possa transigir-se, ainda que já estejam afectas aos tribunais ordinários’’.
xix) José Dias Ferreira referia, a propósito deste preceito, que ‘’o pensamento do legislador, estabelecendo a jurisdição arbitral, foi criar um juízo mais económico, e mais simples, que poupasse as partes a consideráveis despesas, que as fórmulas judiciárias importam, e que tornasse mais rápida a decisão dos negócios que por muito delicados, só com grandes delongas poderiam terminar nos tribunais ordinários’’ (Código de Processo Civil, Anotado, Vol I; 106).
xxi) Suprimiu-se a arbitragem ritual do direito antigo, passando a dizer-se  que ‘’as decisões  dos árbitros são exequíveis como as sentenças das justiças ordinárias’’(artigo 54.º).
xxii) Daremos agora um grande passo em frente até ao Código de Processo Civil de 1939.
xxiii) Como é sabido este Código está dividido em 4 Livros, a saber,  Acção, Competência , Processo e tribunal arbitral.
xxiv) O IV livro dedicado ao tribunal arbitral abrange dois Títulos, um dedicado ao tribunal arbitral voluntário (artigos 1561.º a 1576.º) e outro contemplando em 4 artigos (artigos 1577.º a 1580.º) o tribunal arbitral necessário: ‘’Se o julgamento arbitral for prescrito por lei especial, atender-se-á ao que nesta estiver determinado’’ (artigo 1577.º) .
xxv) Com meras modificações formais este regime manteve-se com a Reforma do Código de Processo Civil, operada pelo DL n.º 44.129, de 28 de Dezembro de 1961.
xxvi) Deposto o regime político anterior, foi aprovada e decretada, em 2 de Abril de 1976,  uma nova Constituição que não previu a instituição de tribunais arbitrais.
xxvii) Com efeito, o artigo 212.º reservado às categorias dos tribunais, dispõe o seguinte: ‘’1. Haverá tribunais judiciais de primeira instância, de segunda instância e o Supremo Tribunal de Justiça.
2. Haverá tribunais militares e um Tribunal de Contas.
3. Poderá haver tribunais administrativos e fiscais’’.
xxviii) Com a 1.ª Lei de Revisão Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, o n.º 3 do artigo 212.º passou a constituir o novo n.º 2 do mesmo artigo, sendo o seu texto substituído por:
‘’2. Podem existir tribunais administrativos e fiscais, tribunais marítimos e tribunais arbitrais’’.
xxix) Não demorou muito a que o legislador ordinário, aproveitando-se dos novos dados normativos, fizesse editar o Dec-Lei n.º 243/84, de 17 de Julho, sobre o enquadramento legal da arbitragem voluntária, em substituição do constante no Código de Processo Civil.
xxx) No entanto, o Acórdão n.º 230/86, de 8 de Julho, declarou com força obrigatória geral, e com referência ao disposto  no artigo 168.º , n.º 1, alínea q) , da Constituição, a inconstitucionalidade das normas do DL n.º 243/84, de 17 de Julho.
xxxi) Remediando a declarada inconstitucionalidade orgânica do Dec-Lei  n.º 243/84, o legislador fez aprovar em 29 de Agosto a Lei n.º 31/86, sobre a arbitragem voluntária, agora substituída pela Lei de Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, que entrou em vigor em 14 de Março de 20012.
xxxii) Resulta, pois, do exposto, que a configuração centralista do Estado, herdada do absolutismo e consolidada no Sec. XIX través da afirmação do monopólio do poder coercitivo do Estado teve de render-se, por circunstâncias várias, à sociedade civil, à vontade de os particulares não se deixarem propriamente comandar do alto conseguindo reservar para eles um espaço significativo de resolução alternativa de conflitos.
xxxiii) A nossa legislação consente, como vimos, há cerca de 200 anos que os particulares submetam a terceiros, árbitros da sua escolha, o poder de dirimirem litígios, surgidos ou passíveis de surgir entre eles, sem terem de recorrer aos órgão jurisdicionais do Estado.
xxxiv) A doutrina divide-se quanto à natureza jurídica da arbitragem voluntária.
xxxv) Para uns a arbitragem tem natureza contratual. Podemos tomar como exemplo desta orientação Girolamo Monteleone (Diritto Processuale Civile, terza ed., Cedam, Padova, 2002:818 ss).
xxxvi) Tentemos resumir o pensamento deste autor.
i) Os titulares de direitos disponíveis não vêem diminuída as suas faculdades jurídicas pelo facto de surgir uma contestação desses seus direitos , nem pelo facto de, com o fim de eliminar essa contestação terem de recorrer à justiça. Eles mantêm sempre o pleno e livre poder de disporem do seu direito com efeitos dirimentes sobre um eventual processo em curso: eles podem transigir, antes ou durante a acção judiciária, podem conciliar-se com o auxílio e intervenção do juiz (ou de outros órgãos com competência para isso),podem desistir do pedido ou da instância etc. pondo assim fim ao processo jurisdicional.
ii) Mesmo que tudo o que afirmamos não aconteça, o exercício concreto da jurisdição civil, sem dúvida expressão da soberania do Estado, está subordinada à condição da propositura da acção. Na falta de uma acção judicial instaurada por quem tiver legitimidade ad causam e interesse em agir não nasce processo algum, não existe jurisdição em concreto e nenhum juiz pode ingerir-se no direito dos cidadãos.
iii) Se tudo isto é verdadeiro e se até o exercício da soberana função jurisdicional está subordinada à autonomia das partes, parece normal que os sujeitos em conflito, valendo-se da mesma autonomia , decidam confiar a um árbitro da sua confiança a solução da controvérsia jurídica que os opõe em vez de recorrerem  aos tribunais do estado.
iv) Das suprarreferidas premissas se extrai  a convicção de que a arbitragem , que aprofunda as suas raízes no poder de disposição dos direitos subjectivos  pelos particulares, constitui a expressão da autonomia negocial  e não da jurisdição.
v) A arbitragem nunca tem natureza jurisdicional, nem mesmo quando com base na lei o laudo devia ser depositado na secretaria do tribunal para homologação. Isto porque o póstumo e formal selo judiciário não pode transformar ex abrupto em sentença um acto que não dimana de um órgão de soberania .
vi) Os árbitros não são magistrados da ordem judiciária, mas cidadãos privados, designados e nomeados pelas partes na lide, e portanto não podem ser investidos de jurisdição.
vii) Por outro lado, não é compatível sob o prisma do direito público, que os cidadãos a título privado possam por sua própria iniciativa e vontade delegar uma  fracção da soberania estadual a outros cidadãos . O que podem delegar é a faculdade  de aceitar e de dispor convencionalmente  dos direitos subjectivos, mas não certamente de um atributo do Estado e de um poder público.
xxviii) Uma segunda posição representada em Itália por Nicola Picardi (Manuale Del Processo Civile, Giuffrè, 2006:608 ss)  defende que os juízes investidos pelo Estado não são os únicos depositários da função jurisdicional.
xxxvii) O ordenamento reconhece também à arbitragem voluntária o poder de jus dicere e a sua decisão arbitral tem hoje o mesmo efeito (fora os de carácter executivo) das sentença dos juízes estaduais. Noutros termos o árbitrio acaba por ser um juiz privado investido pelas partes  cuja actividade constitui o exercício da actividade jurisdicional. Daí deriva que o laudo arbitral tem os mesmos efeitos da sentença proferida pelo juiz, com excepção da eficácia do título executivo.
xxxviii) Não deixa de ser interessante  que no preâmbulo do DL n.º 243/84, de 17 de Julho se afirme o seguinte: ‘’A arbitragem voluntária é definida em termos amplos. Por efeito da convenção de arbitragem, a jurisdição de direito comum aplica-se graças a uma prorrogação convencional de competência. Tal traduz uma completa substituição da jurisdição do Estado por uma outra jurisdição, criada pelas partes que vai ter a mesma eficácia que a substituída por virtude das disposições legais que a estatuem e regulamentam.
Não se pode falar aqui em jurisdições antagónicas, contraditórias, visto que são aceites e eficazes perante a lei. Trata-se antes de jurisdições complementares.
É certo que a arbitragem reveste uma componente essencial e determinantemente contratualista, que conforma a sua natureza jurídica. Mas é certo que reveste também uma componente jurisdicional quanto à sentença arbitral e sua equiparação á sentença judicial nos seus efeitos mais marcantes: eficácia do caso julgado e execução judicial’’.
xxxix) Quanto a nós perfilhamos a orientação clássica da arbitragem. A entrega do julgamento a árbitros não implica a atribuição de funções jurisdicionais, que exorbitariam dos limites da autonomia privada. Os árbitros integram o tribunal arbitral, mas não agem, como órgãos do Estado, não dispõem de poderes de autoridade, que são inerentes ao exercício da função jurisdicional, e a decisão que sela o seu juízo, o laudo, não tem a eficácia da sentença dos tribunais Estaduais.
xl) Não impressionam os argumentos daqueles que invocam o uso frequente da expressão ‘’sentença arbitral’’ feito na nLAV , nem os amplos poderes conferidos aos árbitros por esta lei, que podem inclusive decretar providências cautelares e ordens preliminares.
xli) As decisões judiciais são, em Portugal, de duas espécies: sentenças ou despachos.
Os acórdãos não têm autonomia, porquanto a lei utiliza esta designação não para caracterizar uma especial forma-conteúdo do acto, mas sim atendendo ao número de magistrados que o proferem.  
xlii) O Código de Processo Civil contém, no artigo 152º, n.º 2, uma definição de sentença: «Diz-se sentença o acto pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa».
xliii) As sentenças civis são, por conseguinte:
i) actos processuais;
ii) proferidos por juízes;
iii) no âmbito de uma causa principal ou de um incidente que apresente a estrutura de uma causa;
iv) que decidem essa causa ou esse incidente.
xliv) A sentença é, pois, antes de mais, um acto processual. Mas é também um acto do processo, ou pertencente ao processo, proferido por um juiz.
xlv) Os actos processuais são actos dos sujeitos processuais; no essencial, actos do órgão jurisdicional ou das partes.
Diferentemente do que ocorre com os actos das partes, que exercem o direito de acção e de defesa, os actos dos órgãos jurisdicionais são praticados no exercício de uma função pública.
xlvi) A prolação de uma decisão sobre matéria pendente e o cumprimento das decisões dos tribunais superiores são, entre outros, actos de realização da justiça e, por isso, obrigatórios ou devidos, constituindo a sua omissão denegação de justiça, possível fonte de responsabilidade civil, disciplinar e penal.
 xlvii) Ao falar genericamente em juiz, o Código quis referir-se aos magistrados judiciais, titulares do órgão de soberania tribunais, a quem compete o exercício da função jurisdicional.
xlviii) Porém, o nosso ordenamento reserva também a designação de sentença para as decisões arbitrais (e até para as decisões finais proferidas pelos juízes de paz).
xlix) Ora, não se pode conferir, em substância, o valor de sentença a uma decisão que não constitui expressão da jurisdição, entendida como poder inerente à soberania do Estado, antes retira vida e consistência da manifestação de uma vontade negocial, como é o caso, como vimos, do laudo dos árbitros.
l) Acresce que a qualificação legal não é vinculativa.
li) Por outro lado, os árbitros não detém poderes executórios que lhes permitam assegurar coercivamente o cumprimento da medida cautelar por si decretada, devendo, portanto, o requerente, se a providência não for cumprida voluntariamente, pedir ao juiz estadual a sua execução nos termos do artigo 27.º,, n.º1.
lii) Refira-se ainda que certas medidas cautelares, dado o facto de revestirem simultaneamente carácter declaratório e executivo, como é o caso do arresto, do embargo de obra nova ou da restituição da posse, não podem ser decretadas por tribunais arbitrais, precisamente por falta de poderes coercivos destes tribunais.
liv) Também é verdade que ‘’não é criminalizável a desobediência a uma medida cautelar arbitral, ao contrário do que pode acontecer no caso de uma medida cautelar emitida por um tribunal estadual.
Na verdade, para além da falta de tipificação legal do crime, também o tribunal arbitral não é uma entidade pública a quem seja devida obediência por um imperativo de natureza pública. É uma entidade privada constituída para dirimir litígios de natureza privada, tratando-se claro está de arbitragem voluntária. Que goza de autoridade para emitir uma ou mais decisões obrigatórias, mas que não é uma entidade pública’’ (Manuel Pereira Barrocas, Lei de Arbitragem Comentada, Almedina, Coimbra, 2013:94)
lv) Não se esqueça, por fim que, por falta de coercibilidade perante terceiros das decisões dos árbitros as partes têm de contar com o apoio do tribunal estadual para obtenção de provas  (artigo 38.º) e que cabe bem entendido ao tribunal estadual em regra a execução da sentença arbitral (artigo 47.º).
lvi) Em suma: ‘’Desprovidos de potestas, os tribunais arbitrais afirmam a sua legitimidade pela vontade das partes e a sua autoridade por disposição legal. A coercibilidade vai buscá-la ao apoio dos tribunais estaduais’’ (Barrocas, op. cit: 118).
lvii) Temos estado até agora a falar na arbitragem voluntária, cujo regime deixa totalmente em branco a questão que nos preocupa neste número.
lviii) Importa assim fazer uma deriva focando-nos – porém com brevidade -  sobre outra modalidade de arbitragem : a arbitragem necessária.
lxix) Na arbitragem necessária ‘’a controvérsia somente pode ser decidida por árbitros em atenção à natureza ou ao objecto  do concreto litígio, precisamente porque uma disposição legal, e não já a vontade das partes, impõem a obrigação de submeter a árbitros certos litígio’’ (J.P.Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, Coimbra, 2007:35/36)
lxx) A arbitragem necessária não foi criação do legislador de 39 do século passado.
lxxi) Já, pelo menos, no Sec. XIX  existiam casos de arbitragem forçada (v.g. artigos 452.º , 749 e 1032.º C. Comercial 1883, e artigo 1263.º CC de 67)
lxxii) Por isso o legislador de 1876 não teve qualquer relutância em regulamentar, nos artigos  56.º e 57.º, o julgamento arbitral quando este for determinado por lei especial, entendendo-se esta como a lei comercial e administrativa, e mesmo a lei civil nos casos especiais em que determina o julgamento arbitral.
lxxiii) Diga-se de passagem, e por mera curiosidade, que Dias Ferreira , considerava que ‘’o arbitramento forçado, além de contrário aos princípios , é inteiramente incompatível com os nossos hábitos e tendências.
É uma providência reacionária e anti-liberal, que devia ser banida das nossas leis’’ (op. cit: 118).  
lxxiv) O Código de Processo Civil de 39, apesar das várias reformas, e da aprovação das nossas duas leis de arbitragem voluntária sempre conservou, bem ou mal, o instituto.
lxxv) Hoje, o Livro VI do CPC, justamente dedicado ao tribunal arbitral necessário, contém quatro artigos – artigos 1082.º a 1085 – que no fundo reproduzem os correspondentes artigos do CPC revogado.
lxxvi) Lembremos o teor do primeiro e último desses artigos: artigo 1082:’’Se o julgamento arbitral for prescrito por lei especial, atende-se ao que nesta estiver determinado; na falta de determinação, observa-se o disposto nos artigos seguintes’’; artigo 1085.º ‘’Em tudo o que não vai especialmente regulado observa-se, na parte aplicável, o disposto na Lei de Arbitragem Voluntária’’.
lxxvii) A arbitragem necessária, por não assentar na autonomia negocial, suscita problemas delicados de compatibilização com a reserva de jurisdição, particularmente evidenciados quando não é claro o seu carácter e não se respeita convenientemente o contraditório (José Lebre de Freitas, ‘’A citação dos interessados como garantia de defesa no processo de expropriação’’, Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2002:58).
lxxviii) É na verdade problemática a questão de saber se a cobertura constitucional dos tribunais abrange os tribunais arbitrários necessários .’’visto que estes implicam que os litigantes fiquem impedidos de recorrer directamente a tribunais ordinários que normalmente seriam competentes podendo por isso pôr em causa, não apenas o direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º 2), mas também o princípio da igualdade (artigo 13.º)’’ (J.J.Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 2;ª ed., 2.º Vol.; 324), e, acrescentemos nós, o princípio do reconhecimento à capacidade civil (artigo 26.º).
lxxix) Não vamos, porém, seguir esta via. Interessa-nos sim referir que a Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, criou um regime de composição de litígios emergentes de direitos de propriedade industrial quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos (artigo 1.º), sendo certo que os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com os medicamentos de referência e medicamentos genéricos, independentemente de estarem em causa patentes de processo, de produto ou utilização, ou de certificados complementares de protecção, ficam sujeitos à arbitragem necessária, institucionalizada ou não institucionalizada.
lxxx) De acordo com o n.º 8. do artigo 3.º da referida Lei ‘’em tudo o que não se encontrar expressamente contrariado pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regulamento do centro de arbitragem , institucionalizado ou não institucionalizado, escolhido pelas partes e, subsidiariamente, o regime geral de arbitragem voluntária.
lxxxi) Ora, como a própria decisão arbitral reconhece, existe omissão de qualquer disposição expressa que reconheça a competência do Tribunal Arbitral para condenar numa sanção pecuniária compulsória.
lxxxii) Perante a posição anteriormente adoptada quanto à natureza jurídica da arbitragem não é difícil antever qual a posição que perfilhamos nesta matéria.
lxxxiii) Como é sabido, a sanção pecuniária compulsória foi introduzida no nosso ordenamento pelo DL n.º 262/83, de 16 de Junho.
lxxxiv) O novo artigo 829.º-A do CC passou a dispor, no n.º 1, que ‘’nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso’’.
lxxxv) Tem particular interesse recordar a motivação do Decreto-Lei na parte em que se refere a este novo instituto: ‘’5. Autêntica inovação, entre nós, constituem as sanções pecuniárias compulsórias reguladas no artigo 829.º-A. Inspira-se a do n.º 1 desse preceito no modelo francês das astreintes sem menosprezar alguns contributos de outras ordens jurídicas; ficando-se pela coerção patrimonial, evitou-se contudo atribuir-lhe um carácter de coerção pessoal (prisão) que poderia ser discutível face às garantias constitucionais.
A sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla funcionalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais e o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis’’.
lxxxvi) Não temos dúvidas em afirmar que o nova figura reveste um carácter bifronte, misto de prevenção e de repressão, ou, noutra perspectiva, ‘’pode dizer-se que a expressão ‘’sanção pecuniária compulsória’’ , com que o legislador baptizou este meio de coerção patrimonial que só o juiz pode decretar, reflecte imediatamente o carácter triplo da medida: compulsão (coerção ou ameaça) pecuniária que, se não atinge os seus fins, sanciona a ilícita violação da condenação principal proferida pelo juiz. O carácter coercitivo ou compulsório é pois, da essência do instituto, cujo fim imediato é induzir o devedor a cumprir, enquanto o elemento sanção é condicional, apenas ocorrendo se a coerção for ineficaz, como consequência e efeito dessa mesma ineficácia’’ (João Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória , Coimbra, 1987: 396).
lxxxvii) Se a única função do instituto fosse meramente preventiva não teríamos dúvidas em admitir que o Tribunal Arbitral pudesse decretar as sanções compulsórias. A verdade é que, como vimos, está presente na figura uma funcionalidade acrescida, de reforço da soberania, de que estão desprovidos os tribunais arbitrais, e do respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça (estadual).
lxxxviii) Parafraseando Calvão da Silva, a pedra angular de todo o funcionamento do mecanismo da sanção pecuniária compulsória é o juiz – a nosso ver estadual – única entidade que a pode ordenar  e à qual é reconhecida uma grande liberdade quanto aos vários aspectos do seu regime (op. cit: 415).
lxxxix) Entendemos , pois, em conclusão, que o Tribunal recorrido, em relação ao qual nunca se pôs em causa a sua importância, nem o prestigío dos árbitros que o integram, não tem na verdade competência para condenar numa sanção pecuniária compulsória.
xc) Não se compreende, de resto, como, estando ciente da problemática envolvendo a natureza e regime do instituto, o legislador tenha, pelo menos por duas vezes, perdido a oportunidade de esclarecer este tema.
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2. Deve ou não a recorrente ser condenada a não transmitir a terceiros as autorizações de introdução no mercado, até 17 de Agosto de 2014, data da caducidade dos direitos de propriedade industrial da Recorrida?

Formulámos esta questão na ausência de impedimentos legais que inviabilizassem a sua apreciação.

Ora verifica-se que na decisão arbitral recorrida omitiu-se totalmente a enunciação dos elementos de facto de que era suposto fazer radicar a sua motivação de direito.

Sabido é que a generalidade das decisões têm de ser fundamentadas de facto e de direito.

Trata-se de um importante corolário do princípio do Estado de Direito e do papel criador e aplicador do direito desempenhado pelos tribunais.

A garantia de que todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas tem, entre nós, assento constitucional (artigo 205.º, n.º 1 CRP), está configurada nos artigos 154.º e 615.º, n.º 1, alínea b), do nCPC (anteriores artigos 158.º e 668.º, n.º 1, alínea b)) e consta do artigo 6.º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, como uma componente essencial da garantia de um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4.º CRP).

No que se refere especificamente à arbitragem dispõe o artigo 42.º, n.º 3, da LAV que ‘’a sentença deve ser fundamentada salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das p+artes, nos termos do artigo 41.º’’

Costuma afirmar-se que esta obrigação de fundamentação  está orientada para permitir um controlo interno (partes e instâncias de recurso) do modo como o juiz exerceu os seus poderes.

Todavia, há uma outra razão, tão ou mais importante do que a referida.

Como refere Michele Taruffo «na motivação da sentença o juiz deve desenvolver uma argumentação justificativa da qual devem resultar as «boas razões» que fazem aceitar razoavelmente a decisão, numa base objectiva, não só para as partes, mas também – num plano mais geral – para a opinião pública. Na motivação, o juiz deve demonstrar a consistência dos vários aspectos da decisão, que vão desde a determinação da verdade dos factos na base das provas, até à correcta interpretação e aplicação da norma que se assume como critério do juízo. Da motivação deve resultar particularmente que a decisão foi tomada, em todos os seus aspectos, de facto e de direito, de maneira racional, seguindo critérios objectivos e controláveis de valoração, e, portanto, de forma imparcial» (Páginas sobre justicia civil, Marcial Pons, 2009: 53, o negrito é nosso).

Ou dito de outro modo: «a decisão não deve ser só justa, legal e razoável em si mesma: o juiz está obrigado a demonstrar que o seu raciocínio é justo e legal, e isto só pode fazer-se emitindo opiniões racionais que revelem as premissas e inferências que podem ser aduzidas como bons e aceitáveis fundamentos da decisão» (op. cit.: 36/37).

Manuel Barrocas emite a seguinte anotação em relação à fundamentação da decisão arbitral: ‘’A sentença, qualquer sentença, deve ser fundamentada. Se o não for, é nula conforme determina o artigo 46.º, n.º 3 , alínea a), subalínea vi).

Em que consiste a fundamentação?

Não é basicamente diferente do conceito de fundamentação judicial. Deverá dizer em que factos e razões de direito se baseia e que a justifica (cfr. artigo 659.º, n.º 2, do CPC). Se tiver sido proferida em equidade, deverá explicitar em que razões do seu domínio se fundamenta’’ (op. ci:154).      

No caso ocorrente, o tribunal arbitral não discriminou, pura e simplesmente, os factos que considerava provados e uq e o levou a condenar a recorrente.  

O que o referido tribunal se limitou a fazer foi uma análise de mérito, sem suporte factual, e sem, como se disse, discriminar devidamente os pertinentes factos onde deveria ter feito radicar o conhecimento do pedido em causa.

Omitiu-se, em termos suficientes e adequados a explicitação dos factos relevantes, o que inviabiliza o controle interno da decisão, a reponderação a esse respeito do juízo de facto.

Como se refere no Ac. RL, de 21.05.2009, www.dgsi.pt, «a ausência de decisão sobre a matéria de facto não pode deixar de se entender como a situação - limite da decisão deficiente a que alude o n.º 4 do artigo 712.º do CPC» (hoje artigo 662.º, n.º 2, alínea c)).

Impõe-se, pois, anular a decisão, no capítulo questionado, ficando prejudicada a apreciação da questão suscitada (cfr. Ac. RE, de 12.11.92, BMJ 421: 520; Ac. RE, de 03.12.92, BMJ 422: 452; Ac. RP, de 14.03.95, BMJ 445: 620; Ac. RL, de 01.07.99, CJ, T 4: 90).


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Pelo exposto, acordamos em julgar parcialmente procedente o recurso, e, consequentemente:

a) Em revogar a decisão recorrida na parte em que condenou a recorrente ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória;

b) Em anular a decisão recorrida na parte em que condenou a recorrente a  não transmitir a terceiros as autorizações de introdução no mercado, até 17 de Agosto de 2014, data da caducidade dos direitos de propriedade industrial da Recorrida, devendo o tribunal arbitral emitir decisão com cabal discriminação dos factos provados.
Custas pela parte vencida a final e na proporção em que o for.

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13.02.2014

(Luís Correia de Mendonça)

(Maria Amélia Ameixoeira)

(A. Ferreira de Almeida)