Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
67224/22.5YIPRT.L2-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: COMPENSAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANOS PATRIMONIAIS
EQUIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O recurso à equidade na quantificação de danos patrimoniais apenas pode operar quando se tenha provado a existência de danos e, caso não se tenha apurado o seu montante preciso, após liquidação em execução de sentença.
II. Sendo invocado pela ré para efeitos de compensação, um contra-crédito assente em responsabilidade civil, está em causa uma obrigação de indemnizar e não uma obrigação contratual de prestar, pelo que não podemos considerar esse contra-crédito como exigível no momento em que a compensação é invocada, já que essa obrigação de indemnizar não tem real existência enquanto não for proferida decisão judicial que reconheça a existência da responsabilidade civil, o que implica a apreciação e análise de diversos factos que constituem o pressuposto dessa responsabilidade.
 (Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. O relatório
A
interpôs requerimento de injunção, contra
B, LDA.,
peticionando a condenação da ré no pagamento da quantia global de 5.832,72€, sendo a quantia de 5.372,18€ a título de capital devido, acrescida de 358,84€ de juros de mora e 102,00€ relativos à taxa de justiça paga pela requerente.
Em sede de oposição à injunção, a ré deduziu pedido reconvencional alegando que a autora desviou 3 consultores da sua empresa, o que a impediu de faturar a quantia de 15.000,00€. Desta feita pede a condenação da autora no pagamento de 15.000€, assim como a extinção do crédito reclamado pela autora por intermédio da compensação.
A autora respondeu, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.
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Em 22/11/2022, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
Por todo o exposto, indefere-se liminarmente a reconvenção apresentada, por ser legalmente inadmissível.
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Realizada audiência final, foi proferida sentença, em 13/12/2022, com o seguinte dispositivo:
Por todo o exposto, julga-se a presente ação totalmente procedente e, em consequência decide-se condenar a ré., a pagar à autora a quantia de 5.372,18€ (cinco mil trezentos e setenta e dois euros e dezoito cêntimos), acrescida de juros de mora calculados à taxa comercial em vigor, desde 6 de agosto de 2021 até efetivo e integral pagamento, e que à data da prolação da presente sentença, totalizam 508,96€ (quinhentos e oito euros e oitenta e seis cêntimos).
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Tendo sido interposto recurso contra o despacho proferido em 22/11/2022, de não admissão da demanda reconvencional, foi, com data de 14/6/2023, proferida decisão singular neste Tribunal da Relação, com o seguinte dispositivo:
Em consequência decide-se julgar procedente a apelação da sociedade B, revogar o douto despacho, de 22 de Novembro de 2022, devendo ser proferido novo despacho que admita o pedido reconvencional da recorrente.
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Regressados os autos à 1ª instância, foi realizada audiência final, após o que, em 22/11/2023, foi proferida nova sentença, com o seguinte dispositivo:
Nestes termos, julgo o pedido reconvencional parcialmente procedente, por em parte provado, e em consequência condeno a autora a pagar à ré a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros).
Absolvo a autora do demais peticionado em sede reconvencional.
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Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
a) O pedido reconvencional apresentado pela ora Recorrida é o da condenação da ora Recorrente no pagamento da quantia de Eur. 15.000,00€ (quinze mil euros) como ressarcimento do alegado prejuízo que esta lhe causou, pela alegada prática de factos ilícitos, após a cessação do contrato de prestações de serviços celebrado entre as partes, o que nos conduz para o domínio da responsabilidade civil extracontratual, nos termos do artigo 483º do Código Civil.
Para o efeito,
b) A Ré sustentou o seu pedido essencialmente nos factos alegados no artigo 10º da sua oposição, designadamente, no alegado facto de que “a Requerente, logo após a celebração da cessação do contrato de prestação de serviços, e contra todos os princípios ético e comerciais, tentou que os consultores por si angariados para trabalharem na C, saíssem consigo e fossem trabalhar para a concorrência".
Contudo,
c) A sentença recorrida veio pronunciar-se no sentido de que a Autora contactou os consultores …, ainda durante a vigência do referido contrato de prestação de serviços, ou seja, antes de 20 de Julho de 2021, com o intuito de os levar consigo da Ré, violando assim o dever de lealdade para esta, condenando a Autora na obrigação de indemnizar a Ré, a título de responsabilidade civil contratual.
Ora,
d) Quaisquer contactos que tenham ou não existido por parte da Autora, na vigência do contrato de prestação de serviços com a Ré, nunca foram factos alegados por esta, nem a causa de pedir do respectivo pedido reconvencional foi a violação de qualquer obrigação contratual.
Por conseguinte,
e) A sentença é nula, nos termos do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 615º, conjugado com o disposto no artigo 608º, nº 2, 2º parte, ambos do C.P.C., uma vez que, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, o tribunal conheceu de questões de que de não podia tomar conhecimento.
Não obstante,
f) O ponto 6 dos factos provados deve ser eliminado da matéria de facto dada como provada, passando a constar, eventualmente, como alínea B) dos factos não provados, muito embora não se mostre relevante para a boa decisão da causa.
g) O ponto 7 (que passaria a ser o 6) dos factos provados deve ser alterado, passando a constar o seguinte:
No dia 8 de julho de 2021, as partes acordaram na revogação do contrato de prestação de serviços, pondo termo ao contrato referido no ponto 3, tendo a saída imediata de … como "Team Leader" sido comunicada à equipa do escritório da ré naquele mesmo dia, numa reunião tida para o efeito
h) O ponto 8 (que passaria a ser o 7) dos factos provados deve ser alterado, passando a constar o seguinte:
Em 20 de julho de 2021, as partes formalizaram o acordo de cessação do contrato de prestação de serviços a que se refere o ponto 7 (que passaria a ser o 6).
i) O ponto 9 (que passaria a ser o 8) dos factos provados deve ser alterado, passando a constar o seguinte:
Entre os dias 8 e 20 de julho de 2021, ..., em nome da autora, falou com alguns consultores, por iniciativa destes, sobre os seus projectos e planos para o futuro com a "Remax".
j) O ponto 10 (que passaria a ser o 9) dos factos provados deve ser alterado, passando a constar o seguinte:
C, D e E saíram da ré nos meses seguintes a Julho de 2021.
Em consequência,
k) Não existe nexo de causalidade entre as conversas mantidas entre a Recorrente e a saída da Recorrida de qualquer um dos consultores referidos na sentença, designadamente, a C, D e E.
Ainda que assim não se entenda,
l) Quaisquer contactos mantidos pela Recorrente, com qualquer consultor, após a cessação do contrato de prestação de serviços existente entre as partes, seriam sempre permitidos, uma vez que, sobre esta, e sobre os consultores, não recaía qualquer obrigação de não concorrência após a cessação dos respectivos contratos, nem os consultores estavam sujeitos a qualquer período mínimo de vinculação.
m) Mesmo que se considere que o contrato de prestações de serviços entre as partes cessou apenas em 20 de Julho de 2021, quaisquer contactos mantidos pela Recorrente, com qualquer um dos três consultores identificados na sentença, no período entre 8 e 20 de Julho de 2021, não levaram a que qualquer um desses consultores tenha saído da Recorrida na vigência daquele contrato, pelo que, gerando os consultores angariados pela Recorrente até mais receita nesse mês de Julho do que no mês anterior, não houve efectivamente qualquer dano provocado na Ré nesse período.
Acresce que,
n) A Recorrida nunca alegou quaisquer factos ocorridos no referido período entre 8 e 20 de Julho de 2021, nem tão pouco qualquer violação de um dever ou de uma obrigação contratual, pelo que, não pode a Recorrente ser condenada a pagar qualquer tipo de indemnização a título de responsabilidade civil contratual.
Para além disso,
o) Não tendo ficado provada a existência de qualquer dano ou prejuízo concreto para a Ré, mesmo que não fosse quantificável, nunca pode a Autora sequer ser condenada a pagar qualquer indemnização, ainda que fixada equitativamente.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente. considerando-se nula a sentença proferida;
Não obstante, deverá a matéria de facto provada e não provada ser alterada nos termos requeridos, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que absolva o Recorrente da totalidade do pedido reconvencional.
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A ré contra-alegou, deduzindo também recurso subordinado, rematando com as seguintes conclusões:
1. - Ao contrário do alegado pela Recorrente, a sentença recorrida não padece de nulidade, pelo que deverá ser confirmada;
2. - De facto a causa de pedir na reconvenção foi o aliciamento por parte do legal representante da Recorrente, junto dos consultores que havia contratado para a B., para que saíssem consigo para o seu novo projecto na marca "Remax";
3. - E não a data ou datas em que tal aliciamento ocorreu, pelo que não se verificou qualquer excesso de pronuncia na sentença recorrida ao condenar a Recorrente como efectivamente sucedeu;
4. - Assim, a referida não é nula, pelo que se deve manter na ordem jurídica devendo o seu teor ser confirmado (pelo menos em parte, como se irá constatar);
5. - Os pontos 6, 7, 8, 9 e 10 dos factos dados como provados na sentença recorrida, devem manter-se inalterados pelo facto de corresponderem, efectivamente, à prova produzida nos autos;
6. - E mantendo-se a matéria de facto inalterada (com a pequena excepção assinalada, relativamente ao ponto 9 dos factos dados como provados) teremos forçosamente de concluir que existe um nexo de causalidade entre o aliciamento realizado pela Recorrente, através do legal representante da Recorrente, junto dos cerca de 30 consultores que trabalhavam para a Recorrida (e que haviam sido trazidos pela própria Recorrente para trabalharem na B) e a saída desses consultores para a Remax (para onde foi prestar serviços a Recorrente).
7. - E da prova produzida nos autos, deverá julgar-se que o facto dado como não provado na sentença (alínea A) dos factos dados como não provados) deve ser julgado como provado, aditando-se aos factos dados como provados um novo facto, ponto 13, do seguinte teor: «Entre setembro de 2021 e setembro de 2022, a atuação da autora e a saída dos C, D e E causou à ré um prejuízo no montante de €15.000,00.»
8. - E em face desta alteração da matéria de facto a sentença deverá ser parcialmente revogada e alterada passando a condenar a Autora/Recorrente na totalidade do pedido reconvencional;
9. - Caso o tribunal venha a entender que a B, Lda não teve o alegado prejuízo (ou lucro cessante) de 15.000,00€, hipótese que se coloca por dever de patrocínio, mas sem conceder, deve a sentença recorrida ser mantida no exactos termos em que foi proferida e manter-se a condenação da Autora/Recorrente a pagar à B a quantia em que foi condenada de 5.000,00€ (cinco mil euros).
10. - A sentença recorrida violou assim, o disposto nos art.º 562.º, art.º 563.º, art.º 564.º, art.º 565.º, art.º 762.º, art.º 798.º e 799.º todos do Código Civil.
11. - Deve a sentença recorrida ser parcialmente revogada e substituída por outra que condene a Autora/Recorrente na totalidade pedido reconvencional, ou seja, a pagar à B, Lda a quantia de 15.000,00€ (quinze mil euros).
Nestes termos e nos mais de direitos, deve o recurso de apelação interposto pela Autora/Recorrente     ser            julgado improcedente, por não provado;
Deve, ainda, a ser admitido o recurso subordinado interposto pela sociedade B, Lda. e, em consequência, deve a decisão recorrida ser parcialmente revogada e substituída por outra que condene a Autora/Recorrente na totalidade pedido reconvencional formulado pela Ré/Recorrida, a sociedade B. e, em consequência, deve a sociedade Autora/Recorrente ser condenada a pagar à B. a totalidade do valor pedido na reconvenção, ou seja, a quantia de 15.000,00€.
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O recurso principal foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
A impugnação da matéria de facto;
A nulidade da decisão recorrida;
A verificação dos pressupostos de procedência da demanda reconvencional.
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III. Os factos
Receberam-se da 1ª instância os seguintes factos provados (com as alterações infra determinadas na apreciação das impugnações da matéria de facto):
1. A autora é uma sociedade unipessoal, cujo único sócio e gerente é F.
2. A ré, é uma sociedade comercial que se dedica à mediação imobiliária e que exerce esta atividade sob a marca de G.
3. Em agosto de 2022, as partes celebraram, entre si, um contrato, mediante o qual, F, sócio gerente da autora passou a exercer as funções de "Team Leader” do escritório (Market Center) G da ré, sito.
4. Em contrapartida, a ré obrigou-se a pagar a quantia de €2.700,00 mensais, acrescida de comissões variáveis, correspondentes a 6% do volume de faturação mensal da ré.
5. Nos termos do referido contrato, a autora obrigou-se a recrutar novos consultores para trabalharem para a ré, tendo como objetivo o recrutamento de, pelo menos, 125 novos consultores até ao final do 2.º ano de atividade.
6. Eliminado (6. No final do 1.º ano de atividade, a autora apenas tinha conseguido recrutar cerca de 30 novos consultores para a ré.).
7.  No dia 8 de julho de 2021, as partes acordaram na revogação do contrato de prestação de serviços no final do mês de julho de 2021, tendo a saída de F como "Team Leader” sido comunicada à equipa do escritório da ré naquele mesmo dia, numa reunião tida para o efeito.
8. Em 20 de julho de 2021, as partes outorgaram acordo de cessação do contrato de prestação de serviços, pondo termo ao contrato referido no ponto 3.
9. Entre os dias 8 e 20 de julho de 2021, F, em nome da autora, contactou alguns (em número exactamente não apurado) dos consultores que havia angariado para ré, tentando que saíssem consigo e fossem trabalhar para a concorrência. (9. Entre os dias 8 e 20 de julho de 2021, F, em nome da autora, contactou os 30 consultores que havia angariado para ré, tentando que saíssem consigo e fossem trabalhar para a concorrência.)
10. C, D e E aceitaram a proposta feita pela autora e, nessa sequência, saíram da ré nos três meses seguintes.
11. C, D e E foram consultores objeto de faturação por parte da ré à autora e foram pagos pela ré.
12. No modelo da ré, os referidos consultores geravam uma receita bruta anual média no montante mínimo de €5.000,00 cada um.
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Foram ainda considerados não provados, os seguintes factos:
A) Entre setembro de 2021 e setembro de 2022, a atuação da autora e a saída dos consultores C, D e E causou à ré um prejuízo no montante de €15.000,00.
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A impugnação da matéria de facto.
Dispõe o art.º 662º n.º 1 do Código de Processo Civil:
A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Tem sido entendido que, ao abrigo do disposto no citado preceito, a Relação tem os mesmos poderes de apreciação da prova do que a 1ª instância, por forma a garantir um segundo grau de jurisdição em matéria de facto.
Donde, deve a Relação apreciar a prova e sindicar a formação da convicção do juiz, analisando o processo lógico da decisão e recorrendo às regras de experiência comum e demais princípios da livre apreciação da prova, reexaminando as provas indicadas pelo recorrente, pelo recorrido e na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Neste sentido, vide António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 287:
O actual art.º 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava. Como se disse, através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.
O Tribunal não está vinculado a optar entre alterar a decisão no sentido pugnado pelo recorrente ou manter a mesma tal como se encontra, antes goza de inteira liberdade para apreciar a prova, respeitando obviamente os mesmos princípios e limites a que a 1ª instância se acha vinculada.
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Sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o art.º 640º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Assim, os requisitos a observar pelo recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, são os seguintes:
- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;
- A especificação dos meios probatórios que no entender do recorrente imponham uma solução diversa;
- A decisão alternativa que é pretendida.
A este respeito, cumpre recordar duas restrições a uma leitura literal e formal destes ónus processuais inerentes ao exercício da faculdade de impugnação da matéria de facto.
Deve-se considerar a tendência consolidada da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de não se exponenciarem os efeitos cominatórios previstos no art.º 640º e realçado a necessidade de extrair do texto legal soluções capazes de integrar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando prevalência aos aspectos de ordem material, na expressão de Abrantes Geraldes, ob. cit., pg. 171 (nota 279) e 174.
Em primeiro lugar, apenas se mostra vinculativa a identificação dos pontos de facto impugnados nas conclusões recursórias; as respostas alternativas propostas pelo recorrente, os fundamentos da impugnação e a enumeração dos meios probatórios que sustentam uma decisão diferente, podem ser explicitados no segmento da motivação, entendendo-se como cumprido o ónus de impugnação nesses termos.
No que tange à decisão alternativa, veja-se o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 12/2023, de 17/10/2023, publicado no Diário da República nº 220/2023, Série I, de 14/11/2023, com o seguinte dispositivo:
Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.
Quanto aos restantes requisitos, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal, de 01/10/2015 (Ana Luísa Geraldes), de 14/01/2016 (Mário Belo Morgado), de 19/2/2015 (Tomé Gomes); de 22/09/2015 (Pinto de Almeida), de 29/09/2015 (Lopes do Rego) e de 31/5/2016 (Garcia Calejo), todos disponíveis na citada base de dados, citando-se o primeiro:
«(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória
Em segundo lugar, cumpre distinguir, quanto às explicitações exigidas ao impugnante e no que se refere à eficácia impeditiva do seu incumprimento, para a apreciação da impugnação, em dois graus de desvalor.
Se o incumprimento dos ónus processuais previstos no nº 1 do citado art.º 640º implica a imediata rejeição da impugnação, já o incumprimento dos ónus exigidos no  nº 2 do mesmo preceito (…indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso…) tem visto essa eficácia limitada aos casos em que essa omissão dificulte gravemente o exercício do contraditório pela parte contrária ou o exame pelo tribunal de recurso, pela complexidade dos facos controvertidos, extensão dos meios de prova produzidos ou ausência de transcrição dos trechos relevantes.
A esse respeito, veja-se o Acórdão de 11/02/2021 (Maria da Graça Trigo) consultável em www.dgsi.pt:
I. O respeito pelas exigências do n.º 1 do art.º 640.º do CPC tem de ser feito à luz do princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, princípio que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art.º 18.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art.º 20.º, n.º 4 da Constituição.
II. No caso dos autos, afigura-se que o fundamento de rejeição da impugnação de facto é excessivamente formal, já que a substância do juízo probatório impugnado se afigura susceptível de ser apreendida, tendo sido, aliás, efectivamente apreendida pelos apelados ao exercerem o contraditório de forma especificada.
III. Trata-se de uma acção relativamente simples, com um reduzido número de factos provados e de factos não provados, em que a pretensão dos réus justificantes é facilmente apreensível e reconduzível aos factos por si alegados para demonstrarem a usucapião e que encontram evidente ou imediato reflexo nos factos não provados que pretendem que sejam reapreciados, factos esses correspondentes, em grande medida, à matéria objecto da escritura de justificação.
De igual modo decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 29/10/2015 (Lopes do Rego), consultável em www.dgsi.pt:
1. Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº 1 do art.º 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes ( e que consta actualmente do art.º 640º, nº2, al. a) do CPC) .
2. Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento complemente tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso.
Veja-se, também do Supremo Tribunal, o Acórdão de 21/03/2019 (Rosa Tching), disponível em www.dgsi.pt:
«I. Para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos defacto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. E, por outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.
II. Na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
III. Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.
IV. Tendo o recorrente, indicado, nas conclusões das alegações de recurso, o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou indicado o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico e complementado estas indicações com a transcrição, no corpo das alegações, dos excertos dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso, tanto basta para se concluir que o recorrente cumpriu o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos no artigo 640º, nº 2, al. a) do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.».
No mesmo sentido, o Acórdão de 19/1/2016 (Sebastião Póvoas), disponível na mesma base de dados:
5) A falta da indicação exacta e precisa do segmento da gravação em que se funda o recurso, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC não implica, só por si a rejeição do pedido de impugnação sobre a decisão da matéria de facto, desde que o recorrente se reporte à fixação electrónica/digital e transcreva os excertos que entenda relevantes de forma a permitir a reanálise dos factos e o contraditório.
Ainda, o aresto de 6/12/2016 (Garcia Calejo), da referida base de dados:
No caso vertente, os recorrentes indicaram, por referência a cada um dos depoimentos das testemunhas (em que baseiam o seu entendimento), o início e o termo deles por referência ao ficou exarado nas actas de audiência de julgamento e referiram a data em que os depoimentos foram realizados. Referenciaram ainda os trechos dos depoimentos das testemunhas que, no seu entender, justificavam a alteração almejada. Ou seja, transcrevendo parte dos depoimentos e fornecendo as indicações que permitem localizar, na gravação, as passagens a que se referem, os recorrentes forneceram à Relação os elementos relevantes e concretos que permitiriam ao tribunal a reapreciação da matéria de facto.
Por isso, os recorrentes cumpriram o ónus em causa, pelo que a reapreciação da matéria de facto impugnada deveria ter sido efectuada.
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Por fim, qualquer alteração pretendida pressupõe em comum um pressuposto: a relevância da alteração para o mérito da demanda.
A impugnação de factos que tenham sido considerados provados ou não provados e que não sejam importantes para a decisão da causa, não deve ser apreciada, na medida em que alteração pretendida não é suscetível de interferir na mesma, atenta a inutilidade de tal acto, sendo certo que de acordo com o princípio da limitação dos atos, previsto no art.º 130.º do Código de Processo Civil não é sequer lícita a prática de atos inúteis no processo.
Veja-se o Acórdão do STJ de 17/05/2017 (Fernanda Isabel Pereira), também disponível em www.dgsi.pt:
“O princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo.
Trata-se de uma das manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questões que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.”
E, ainda, os Acórdãos da Relação de Guimarães, de 15/12/2016 (Maria João Matos) e desta Relação de 26/09/2019 (Carlos Castelo Branco), também da citada base de dados:
Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (art.ºs 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.).
*
Neste enquadramento genérico, que flui do texto legal interpretado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, analisemos as impugnações deduzidas por ambas as partes.
i) A impugnação da autora
Inicia a recorrente por alegar:
f)  O ponto 6 dos factos provados deve ser eliminado da matéria de facto dada como provada, passando a constar, eventualmente, como alínea B) dos factos não provados, muito embora não se mostre relevante para a boa decisao da causa.
O referido ponto tem a seguinte redacção:
6. No final do 1.º ano de atividade, a autora apenas tinha conseguido recrutar cerca de 30 novos consultores para a ré.
A Exma. Juíza a quo fundou a consideração deste facto como provado, no acordo das partes.
Contudo, tal não corresponde à realidade, uma vez que o número de 30 consultores é alegado pela Ré nos artigos 7º e 11º da sua oposição, tendo o artigo 11º sido expressamente impugnado pela Autora no artigo 2º da resposta à oposição, sendo essa impugnação extensível ao alegado no artigo 7º.
Acresce ainda que o facto descrito no ponto 6 não tem qualquer relevância para a decisão da causa, devendo ser eliminado dos factos provados, sendo irrelevante o número de consultores que a Autora recrutou para a Ré.
Pelo exposto, procede esta impugnação, determinando-se a eliminação do ponto 6. da matéria de facto provada.
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De seguida, invoca a recorrente que:
g) O ponto 7 (que passaria a ser o 6) dos factos provados deve ser alterado, passando a constar o seguinte:
No dia 8 de julho de 2021, as partes acordaram na revogação do contrato de prestação de serviços, pondo termo ao contrato referido no ponto 3, tendo a saída imediata de F como "Team Leader" sido comunicada à equipa do escritório da ré naquele mesmo dia, numa reunião tida para o efeito
O referido ponto tem a seguinte redacção:
7. No dia 8 de julho de 2021, as partes acordaram na revogação do contrato de prestação de serviços no final do mês de julho de 2021, tendo a saída de F como "Team Leader” sido comunicada à equipa do escritório da ré naquele mesmo dia, numa reunião tida para o efeito.
Invoca, para tanto, a recorrente, que:
(…)
*`
A Exma. Juíza a quo fundou a consideração deste facto como provado, no acordo das partes.
Ora, no dia 20 de julho de 2021 ambas as partes celebraram um "Acordo de Cessação de Contrato de Prestação de Serviços", do qual consta expressamente na cláusula 1.º que «Ambas as partes acordam em fazer cessar, com efeitos imediatos, o Contrato de Prestação de Serviços celebrado entre as partes.»
Ou seja, neste Acordo não ficou consignado que o contrato cessava com efeitos a dia 8 de julho de 2021, mas sim com efeitos à data da celebração do referido Acordo de Cessação de Contrato de Prestação de Serviços, ou seja a dia 20 de julho de 2021.
Assim, em face deste documento, que não foi impugnado pela Recorrente, conclui-se que a recorrente não tem qualquer razão quanto a esta matéria pois, na verdade, o Contrato de Prestação de Serviços, celebrado entre ambas as partes, apenas cessou em 20 de julho de 2021.
Sendo que, de igual modo, a recorrente não impugnou o art.º 8º da oposição, que contém a alegação em causa.
Improcede, portanto, esta reclamação.
*
Em terceiro lugar, invoca a recorrente o seguinte:
Em consequência, deve o ponto 8 dos factos provados constante da sentença recorrida ser também revisto e alterado, no sentido de se dar como o provado o seguinte facto:
8. Em 20 de julho de 2021, as partes formalizaram o acordo de cessação do contrato de prestação de serviços a que se refere o ponto 7.
O ponto 8. tem a seguinte redacção:
8. Em 20 de julho de 2021, as partes outorgaram acordo de cessação do contrato de prestação de serviços, pondo termo ao contrato referido no ponto 3.
A Exma. Juíza a quo fundou a consideração deste facto como provado, no acordo das partes.
Também neste caso, o facto encontra-se provado por acordo, não tendo a recorrente impugnado o artigo 8º da oposição, onde o mesmo foi alegado.
Improcede, portanto, esta reclamação.
*
Invoca a recorrente, de seguida, que:
Por conseguinte, deve o teor do facto descrito no nº 9 dos factos provados ser revisto e alterado, no sentido de dar como provado o seguinte:
9. Entre os dias 8 e 20 de julho de 2021, F, em nome da autora, falou com alguns consultores, por iniciativa destes, sobre os seus projectos e planos para o futuro com a "Remax".
Por conseguinte, deve o teor do facto descrito no nº 10 da matéria de facto ser revisto e alterado, no sentido de dar como provado apenas o seguinte:
10. C, D e E, saíram da ré nos meses seguintes a Julho de 2021.
Os pontos 9. e 10. têm a seguinte redacção:
9. Entre os dias 8 e 20 de julho de 2021, F, em nome da autora, contactou os 30 consultores que havia angariado para ré, tentando que saíssem consigo e fossem trabalhar para a concorrência.
10. C, D e E aceitaram a proposta feita pela autora e, nessa sequência, saíram da ré nos três meses seguintes.
*
A Exma. Juíza  a quo fundou a sua convicção da seguinte forma:
(…)
*
Invoca, para fundar a sua discordância, a recorrente, a apreciação dos mesmos depoimentos testemunhais de … bem como as declarações do legal representante da autora.
Ora, ouvidos que foram estes depoimentos testemunhais e as declarações do legal representante da autora, concorda-se com a impugnação, no que tange à referência a «30 consultores», não se podendo retirar dos depoimentos e declarações que o legal representante da autora tivesse contactado todos os consultores por si angariados, mas apenas número não apurado desses.
Quanto ao número de consultores angariados, a eliminação desse trecho em particular emerge da apreciação supra efectuada ao ponto 6. da factualidade provada, devendo conciliar-se aquela eliminação, com o segmento deste ponto ao mesmo respeitante.
No restante, discorda-se da impugnação e acompanha-se a convicção do tribunal a quo, nos exactos termos aduzidos na sentença recorrida.
Pelo exposto, altera-se o ponto 9. da factualidade provada para a seguinte redacção:
9. Entre os dias 8 e 20 de julho de 2021, F, em nome da autora, contactou alguns (em número exactamente não apurado) dos consultores que havia angariado para ré, tentando que saíssem consigo e fossem trabalhar para a concorrência.
Mantendo-se o ponto 10. da factualidade provada.
*
ii) A impugnação da ré
No seu recurso subordinado, a ré impugna o facto não provado, nos seguintes termos:
Passando, por isso, os factos dados como provados a serem 13, sendo este (o 13.º) do seguinte teor: «Entre setembro de 2021 e setembro de 2022, a atuação da autora e a saída dos consultores C, D e E causou à ré um prejuízo no montante de €15.000,00.»
O facto não provado tem a seguinte redacção:
A) Entre setembro de 2021 e setembro de 2022, a atuação da autora e a saída dos consultores C, D e E causou à ré um prejuízo no montante de €15.000,00.
*
A Exma. Juíza a quo fundou a sua convicção negativa, nos seguintes termos:
(…)
*
Invoca a recorrente subordinada, para fundar a sua impugnação, as declarações do seu legal representante e os depoimentos de ….
Ouvidos que foram na íntegra estes depoimentos e as declarações de …, não discordamos da decisão recorrida.
Efectivamente, não resulta destes meios probatórios que a ré tenha sofrido o prejuízo invocado de €15.000,00 nem que a atuação da autora e a saída dos consultores C, D e E tenha causado à ré qualquer prejuízo.
Encontrando-se demonstrado que:
11. C, D e E foram consultores objeto de faturação por parte da ré à autora e foram pagos pela ré.
12. No modelo da ré, os referidos consultores geravam uma receita bruta anual média no montante mínimo de €5.000,00 cada um.
Nem os referidos depoimentos testemunhais nem as declarações do legal representante da ré permitem concluir que, em virtude da saída daqueles consultores, a ré tenha deixado de auferir a receita invocada de €15.000,00.
Ficando em aberto a possibilidade de essa receita ter sido obtida pelos restantes consultores da ré ou por outros consultores eventualmente contratados.
Ou seja, não se pode retirar, com segura convicção, que a ré diminuísse as suas receitas pelo exacto valor proporcional ao que aqueles três consultores contribuíam antes da sua saída.
Sendo que, como é natural, o volume de receitas da ré não depende exclusivamente e de forma matemática, do número de consultores angariados, pois, nesse caso, bastaria à ré angariar o dobro ou o triplo de consultores, para obter o dobro ou o triplo das receitas…
Improcede, pois, esta impugnação, mantendo-se a convicção negativa quanto ao facto não provado.
*
IV. O Direito
Da nulidade da sentença.
Invoca a recorrente a nulidade da sentença recorrida:
a) O pedido reconvencional apresentado pela ora Recorrida é o da condenação da ora Recorrente no pagamento da quantia de Eur. 15.000,00€ (quinze mil euros) como ressarcimento do alegado prejuízo que esta lhe causou, pela alegada prática de factos ilícitos, após a cessação do contrato de prestações de serviços celebrado entre as partes, o que nos conduz para o domínio da responsabilidade civil extracontratual, nos termos do artigo 483º do Código Civil.
Para o efeito,
b) A Ré sustentou o seu pedido essencialmente nos factos alegados no artigo 10º da sua oposição, designadamente, no alegado facto de que “a Requerente, logo após a celebração da cessação do contrato de prestação de serviços, e contra todos os princípios ético e comerciais, tentou que os consultores por si angariados para trabalharem na KW PRO, saíssem consigo e fossem trabalhar para a concorrência".
Contudo,
c) A sentença recorrida veio pronunciar-se no sentido de que a Autora contactou os consultores C, D e E, ainda durante a vigência do referido contrato de prestação de serviços, ou seja, antes de 20 de Julho de 2021, com o intuito de os levar consigo da Ré, violando assim o dever de lealdade para esta, condenando a Autora na obrigação de indemnizar a Ré, a título de responsabilidade civil contratual.
Ora,
d) Quaisquer contactos que tenham ou não existido por parte da Autora, na vigência do contrato de prestação de serviços com a Ré, nunca foram factos alegados por esta, nem a causa de pedir do respectivo pedido reconvencional foi a violação de qualquer obrigação contratual.
Por conseguinte,
e) A sentença é nula, nos termos do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 615º, conjugado com o disposto no artigo 608º, nº 2, 2º parte, ambos do C.P.C., uma vez que, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, o tribunal conheceu de questões de que de não podia tomar conhecimento.
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Dispõe o artigo 615º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Causas de nulidade da sentença»:
“1. É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.”
As nulidades previstas nas alíneas b) e c) reconduzem-se a vícios formais que respeitam à estrutura da sentença e as previstas nas alíneas d) e e) referem-se aos seus limites.
O excesso de pronúncia, enquanto fundamento da nulidade da decisão, incide apenas sobre as questões colocadas pelas partes e não sobre os fundamentos ou argumentos que tenham sido invocados pelo tribunal para sustentar a sua decisão.
A lei fala em «questões», isto é, em assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões.
Não devem ser abrangidos no objeto do processo, para o efeito de aferir da nulidade por excesso de pronúncia, razões ou argumentos usados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas, nem a determinação da lei aplicável, que compete oficiosamente ao tribunal.
Neste sentido, vejam-se, por todos, o Acórdão do STJ de 14/7/2020 (Maria Clara Sottomayor), disponível em www.dgsi.pt.
Veja-se, ainda, o Acórdão do STJ de 8/2/2018 (Maria da Graça Trigo), disponível na mesma base de dados:
II - A nulidade por condenação além do pedido e em objecto diverso do pedido, e ainda por exceder o âmbito da pronúncia, prevista no art.º 615º, nº 1, alínea e), do CPC, a verificar-se, resultará do desrespeito pelo princípio do nº 1, do art.º 609º, do CPC, segundo o qual a sentença não pode exceder os limites quantitativos e qualitativos do pedido.
III - Tal nulidade deriva, assim, da conformidade com o princípio da coincidência entre o teor da sentença e o objecto do litígio (a pretensão formulada pelo autor, que se identifica pela providência concretamente solicitada pelo mesmo e pelo direito que será objecto dessa tutela), o qual, por sua vez, constitui um corolário do princípio do dispositivo (art.º 3º, nº 1, do CPC).
Ora, não se vê como a sentença tenha excedido as questões suscitadas pelas partes, naquele referido enquadramento.
A ré apresentou demanda reconvencional, pretendendo compensar o crédito da autora mediante contra-crédito indemnizatório, relativo a prejuízo sofrido em consequência de práticas da autora.
Esse prejuízo consiste na perda de €15.000,00, que teria auferido caso três consultores tivessem continuado na equipa da ré e não fossem «desencaminhados» para trabalhar na equipa da autora, como descreve nos art.ºs 13º, 14º, 16º, 17º e 18º da oposição.
A sentença recorrida apenas analisou esta questão: a pretensão indemnizatória da ré, relativa ao invocado prejuízo.
As divergências entre a factualidade alegada, quanto à data da prática dos factos lesivos, no quadro contratual que ligava as partes e a sua análise jurídica, não afastam a ponderação do tribunal recorrido da questão que lhe é colocada, no caso, a existência e quantificação da pretensão indemnizatória emergente do prejuízo causado à ré pela saída dos colaboradores, imputável à autora.
Improcede, pois, a invocada nulidade.
*
Da verificação dos pressupostos da demanda reconvencional
Fundou a Exma. Juíza a quo a sua decisão nas seguintes considerações jurídicas:
O contrato celebrado entre a as partes em agosto de 2020 trata-se de um contrato de prestação de serviços atípico, para efeitos do artigo 1154.º do Código Civil, uma vez que, por este contrato, a autora se obrigou a proporcionar à ré um resultado do seu trabalho intelectual - a angariação de consultores -, mediante retribuição (a quantia de €2.700,00 mensais, acrescidos de comissões variáveis, correspondentes a 6% do volume de faturação mensal).
 Enquanto contrato de contrato de prestação de serviços, o negócio acima mencionado é também um contrato em que a confiança entre os outorgantes assume um caráter importante, uma vez que se trata de um contrato de cooperação entre pessoas. Para tal característica aponta, aliás, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de maio de 2013 (Processo N.º 4/05.7TBMNC.G1, Helena Melo), disponível em www.dgsi.pt.
Assim sendo, do n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil decorre que as partes se encontravam obrigadas a proceder de boa fé durante a execução do mencionado contrato e, por conseguinte, vinculadas a uma série de deveres acessórios de comportamento, incluindo o dever de lealdade.
No que respeita à autora, encontrava-se a mesma, desta forma, até à cessação do contrato ocorrida em 20 de julho de 2020, na sequência do dever de lealdade para com a ré, obrigada a adequar funcionalmente a sua conduta à realização do interesse desta última, ou seja, à obtenção de lucro com o exercício da atividade dos 30 consultores por si contratados.
Por conseguinte, é manifesto que, ao contactar os consultores C, D e E, ainda durante a vigência do contrato de prestação de serviços acima celebrado com a ré - entenda-se, antes de 20 de julho de 2021 -, com o intuito de os levar a sair consigo da ré e ao provocar a saída destes 3 colaboradores, a autora violou o dever de lealdade para com a ré, uma vez que causou prejuízos à faturação da mesma e prejudicou, desta forma, a obtenção de lucro pela ré.
A violação do dever de lealdade acima mencionada constitui, desta forma, a autora na obrigação de indemnizar a ré, a título de responsabilidade civil contratual, enquanto violação de um dever acessório de conduta decorrente do princípio da boa fé, como decorre da jurisprudência constante do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de maio de 2022 (Processo N.º 2670/20.4T8PRT.P1, Eugénia Cunha).
A autora encontra-se, como tal, obrigada a indemnizar a ré pela saída dos consultores C, D e E, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 798.º, do artigo 799.º, do artigo 562.º, do artigo 563.º, do n.º 1 do artigo 564.º e do n.º 1 do artigo 566.º do Código Civil,
 No que respeita ao valor do prejuízo sofrido pela ré reconvinte, apenas se demonstrou que os consultores geravam uma receita bruta anual média no montante mínimo de €5.000,00 cada um, mas já não se apurou, nem tal foi alegado, qual o período que aqueles três consultores previsivelmente permaneceriam na ré após a saída da autora e não fosse o seu recrutamento por esta para outra agência.
Não sendo possível apurar o valor exato dos danos, até porque o prejuízo corresponde a um lucro cessante, enquanto benefício que a ré teria obtido se não fosse a conduta do gerente F e a saída daquele três consultores da ré, na sequência da proposta que lhes foi feita em nome da autora, há que atender, em sede de fixação do valor do dano, a critérios de equidade, nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil.
Considerando-se, como tal, equitativa a fixação da indemnização no valor de €5.000,00, ponderando que se tratavam dos melhores consultores recrutados pela autora, mas que não existe qualquer expectativa de permanência destes na ré, aliada à circunstância da ré ter um recrutamento contínuo e, como tal, nunca ter ficado sem consultores nem atividade.
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Como se vê, a Exma. Juíza a quo assentou a pretensão indemnizatória da ré na responsabilidade civil contratual, entendendo que se demonstrou a violação do dever de lealdade emergente do contrato que ligava às partes e durante a vigência do mesmo.
Na quantificação dessa pretensão, recorreu a critérios de equidade, ao abrigo do disposto no art.º 566º, nº3 do Código Civil.
Entendeu, pois, a Exma. Juíza a quo que se tornava necessário o apelo aos critérios de equidade, nos termos do n.º 3 do artigo 566.º da lei civil, segundo a qual, “se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, ou seja, quando se encontre esgotada a possibilidade de recurso aos elementos com base nos quais se determinaria com precisão o montante dos danos - Prof. Almeida Costa, em “Reflexões sobre a Obrigação de Indemnização”, RLJ 134.º-299; Prof. Vaz Serra, RLJ 114.º-310 e Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Março de 1980 – BMJ 295-369 – e de 25 de Março de 2003 – CJ/STJ XXVII – 1.ª, 140-111.
Assim pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-5-2010, Proc. 408/2002.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt,  “IV - O juízo de equidade das instâncias, assente numa ponderação, prudencial e casuística das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida – se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade”; no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/01/2016, Proc. 1021/11.3TBABT.E1.S1, na mesma base de dados, “Não poderá deixar se ter-se em consideração que tal juízo de equidade das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade de adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados e, em última análise, o princípio da igualdade”; e no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-6-2008, Proc. 08A1700, disponível também em www.dgsi.pt,  “VII - Assente a existência de valores a apurar, mas não se tendo determinado, com precisão, o seu montante, deve condenar-se no que se liquidar em execução de sentença, se tal liquidação se afigurar possível, designadamente por recurso a meios de prova na fase de liquidação.
VIII - Tal significa a oportunidade para provar os montantes que não se lograram demonstrar na fase declarativa mas, e apenas, com os limites do pedido que nunca podem ser ultrapassados.
IX - O julgamento de equidade, designadamente nos termos do n.º 3 do art.º 566.º do CC, só ocorre quando se mostre esgotada a possibilidade de recurso aos elementos com base nos quais se determinaria com precisão o montante devido. O recurso à equidade constitui um critério residual que só será aplicável desde que dos factos provados se tenha como demonstrada a existência de danos e estiverem esgotadas as possibilidades de determinação do valor desses danos.”        
Ou seja, o recurso à equidade na quantificação de danos patrimoniais apenas pode operar quando se tenha provado a existência de danos e, caso não se tenha apurado o seu montante preciso, após liquidação em execução de sentença.
Não na fase declarativa, como a presente, em que nos deparamos com evidente incumprimento do ónus de prova que cabia à ré, ora reconvinte.
Repare-se que, na sua oposição, a reconvinte caracterizou os danos peticionados da seguinte forma:
13.º
Não obstante a maioria dos consultores que a Requerente angariou e que tentou "desviar" da … não terem aceite saírem consigo, o que é certo é que a Requerente ainda conseguiu que em Julho de 2021 e nos meses seguintes, 3 (três) consultores por si angariados saíssem da … e fossem, presumivelmente, trabalhar com a Requerente ou com o seu sócio/gerente.
14.º
De facto, foram "desencaminhados" pela Requerente para irem trabalhar consigo, os consultores C, D e E (mais tarde, ou seja, já no ano de 2022, a Requerente ainda conseguiu que o consultor … saísse da …).
15.º
Ora, no modelo da … a margem bruta anual média de um consultor situa-se entre os 5.000,00€ (cinco mil euros) e os 7.000,00€ (sete mil euros).
16.º
O que significa que só no último ano (entre Setembro de 2021 e Setembro de 2022), a actuação da Requerente, causou à Requerida um prejuízo que se pode computar, no mínimo, em cerca de 15.000,00€ (quinze mil euros).
RECONVENÇÃO
17.º
De facto, se os 3 (três) referidos consultores, C, D e E, tivessem continuado a prestar serviços integrados na equipa da B, seria certo que a Requerida teria facturado, pelo menos, mais 15.000,00€ (quinze mil euros) no último ano.
18.º
Assim, a actuação da Requerente, ao "desviar" da KW PRO, os 3 (três) referidos consultores, causou um prejuízo directo à Requerida de, pelo menos, 15.000,00 € (quinze mil euros).

Contudo, apenas logrou provar, a este respeito, que:
9. Entre os dias 8 e 20 de julho de 2021, F, em nome da autora, contactou alguns (em número exactamente não apurado) dos consultores que havia angariado para ré, tentando que saíssem consigo e fossem trabalhar para a concorrência.
10. C, D e E aceitaram a proposta feita pela autora e, nessa sequência, saíram da ré nos três meses seguintes.
11. C, D e E foram consultores objeto de faturação por parte da ré à autora e foram pagos pela ré.
12. No modelo da ré, os referidos consultores geravam uma receita bruta anual média no montante mínimo de €5.000,00 cada um.
Foram ainda considerados não provados, os seguintes factos:
A) Entre setembro de 2021 e setembro de 2022, a atuação da autora e a saída dos consultores C, D e E causou à ré um prejuízo no montante de €15.000,00.
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Face a este gritante incumprimento do respectivo ónus de prova, teríamos duas alternativas: ou consideraríamos que a ré não demonstrou a existência de qualquer prejuízo ou relegaríamos a fixação desse prejuízo para liquidação em execução de sentença, não sendo possível a condenação líquida, nos termos do disposto no art.º 609º, nº2 do Código de Processo Civil.
Isto, numa acção autónoma, declarativa.
No caso, contudo, encontramo-nos perante uma demanda reconvencional, em que a ré/reconvinte pretende operar a extinção do crédito da autora, mediante compensação com um seu contra-crédito, relativo a indemnização emergente da prática de determinados factos por banda da autora.
Como refere Menezes Cordeiro, em Direito das Obrigações, vol. 2.º, AAFDL, p. 219, para que a extinção da dívida por compensação possa ser oposta ao credor, exige-se a verificação dos requisitos enunciados nos artigos 847.º e ss. do C. Civil a saber:
a) a existência de dois créditos recíprocos;
b) a exigibilidade (forte) do crédito do autor da compensação;
c) a fungibilidade e a homogeneidade das prestações;
d) a não exclusão da compensação pela lei;
e) a declaração de vontade de compensar.
A exigibilidade do crédito do autor da compensação surge no sentido que o crédito só é judicialmente exigível, para este efeito, se tiver as condições que permitem a realização coativa da prestação, ou seja tem de tratar-se de um crédito certo e seguro, que até pode ser ilíquido, mas que não pode ser meramente hipotético ou eventual.
Por regra nem a inexistência de reconhecimento judicial do contra-crédito, nem a circunstância de o mesmo ser impugnado (sendo por isso controvertido), impedem, a invocação da compensação. E, por conseguinte, a exigibilidade judicial da obrigação como requisito da admissibilidade da compensação não pressupõe, em princípio, a existência de título executivo nem a existência de prévia declaração judicial de reconhecimento do crédito.
Contudo existem situações excecionais em que a própria existência do contra-crédito se mostra dependente de prévia decisão judicial, aqui se incluindo as situações em que o contra-crédito invocado só tem existência com a especifica decisão judicial que o reconheça como tal, declarando a sua existência (e o seu montante), tal como sucede com os créditos indemnizatórios emergentes de responsabilidade civil.
Concorda-se a este propósito, com os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, vol. II, pág. 136, quando afirmam “a necessidade de a divida compensatória ser exigível no momento em que a compensação é invocada afasta, por sua vez, a possibilidade de, em acção de condenação pendente, o demandado alegar como compensação o crédito de indemnização que se arrogue contra o demandante, com base em facto ilícito extracontratual a este imputado, enquanto não houver decisão ou declaração que reconheça a responsabilidade civil do arguido. Embora a divida retroaja neste caso os seus efeitos ao momento da prática do facto, ela não é obviamente exigível enquanto não estiver reconhecida a sua existência.”
Importa assim distinguir os créditos resultantes de contratos cuja existência e o montante resultam das próprias cláusulas dos contratos, (por exemplo um qualquer contrato em que assuma a obrigação do pagamento de determinada quantia pecuniária), do outros créditos cuja existência e montante não resultem expressamente definidos em contratos, bem como situações de responsabilidade civil extracontratual em que nem sequer existe qualquer vinculação contratual geradora de créditos, sendo a fonte do crédito de cariz indemnizatório, resultante de um facto ilícito normalmente, culposo, gerador de danos que devem ser ressarcidos.
Daqui resulta que, quer no campo contratual, quer no extracontratual, podem surgir créditos indemnizatórios, decorrentes de responsabilidade civil, originada pela prática de facto ilícito normalmente culposo causador de dano a outrem, havendo assim de encontrar um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Em suma, a responsabilidade civil depende de diversos requisitos, que têm de ser judicialmente verificados com a consequente atribuição do montante indemnizatório adequado que ao caso couber, pelo quem regra é por via de decisão judicial que se determina se o crédito indemnizatório existe e a que montante ascende.
Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 3-11-2010 (relatora Maria Catarina), disponível em www.dgsi.pt, “ao invés do que acontece com qualquer outro crédito e, designadamente, com um crédito proveniente de um contrato – em que a existência do crédito e respectiva obrigação (obrigação de prestar) decorre da mera celebração do contrato, que, uma vez provado, permitirá concluir pela existência do crédito – a existência de um crédito emergente de responsabilidade civil (a que corresponde uma obrigação de indemnizar) pressupõe a apreciação de diversos factos (acto gerador do dano, culpa, nexo de causalidade, etc.) que constituem pressupostos dessa responsabilidade e que terão que ser analisados e apreciados pelo julgador. De facto, a existência de responsabilidade civil não é um facto que exista por si e que seja susceptível de prova directa; a existência de responsabilidade civil pressupõe a análise e apreciação de um conjunto de factos, pelo que não será possível afirmar a existência de um crédito daí emergente sem que exista, previamente, uma decisão que declare a existência de responsabilidade civil”.
E, como se refere mais à frente no mesmo Acórdão, “estando em causa uma obrigação de indemnizar (emergente de responsabilidade civil), essa obrigação e respectivo direito de crédito não tem existência real sem que seja declarada a verificação do facto de que emerge esse crédito (a responsabilidade civil), pelo que, enquanto não existir decisão judicial que reconheça esse facto, o eventual crédito daí emergente não pode ser invocado para efeitos de compensação.”
Retornando ao caso dos autos, temos por certo que o contra-crédito alegado pela ré para efeitos de compensação assenta em responsabilidade civil, por danos alegadamente por aquela sofridos, resultantes de alegados desvios de consultores.
O que está em causa é uma obrigação de indemnizar e não uma obrigação contratual de prestar e isto independentemente do título de responsabilidade, contratual ou extracontratual.
Ora, neste contexto não podemos considerar o contra crédito compensatório como exigível no momento em que a compensação é invocada, já que a obrigação de indemnizar não tem real existência e por isso não é exigível, enquanto não for proferida decisão judicial que reconheça a existência da responsabilidade civil, que no caso é a fonte da obrigação, o que implica a apreciação e análise de diversos factos que constituem o pressuposto dessa responsabilidade.
A admissão da reconvenção constituiu, assim, um benefício à ré, concedendo-lhe uma hipótese de liquidação do seu crédito indemnizatório.
Claudicando no aproveitamento desse benefício, não será admissível obter o desiderato pretendido – a extinção do crédito da autora, por compensação – mediante condenação no pagamento de uma indemnização, a liquidar em incidente de execução de sentença.
Sendo que, como se viu, tal incidente constitui passo prévio necessário à fixação indemnizatória com recurso a critérios de equidade.
Não sendo substantivamente viável o recurso a critérios de equidade, nesta fase, também não se mostra admissível a condenação em obrigação ilíquida, pois esta sempre será insuficiente para operar a extinção do crédito da autora, por compensação.
Pelo que sempre deverá improceder a demanda reconvencional.
Procedendo a apelação principal.
E improcedendo o recurso subordinado, na medida em que este assentou na impugnação da matéria de facto, supra considerada improcedente.
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V. A decisão                                                       
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na procedência da apelação principal e na improcedência da apelação subordinada:
a) revogar a decisão recorrida e
b) julgando improcedente a demanda reconvencional, absolver a autora da mesma.
Custas em ambas as instâncias, pela ré.
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Lisboa, 18 de Abril de 2024
Nuno Lopes Ribeiro
Anabela Calafate
João Manuel Cordeiro Brasão