Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
425/22.0PISNT.L1-9
Relator: MARIA JOÃO FERREIRA LOPES
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
JUÍZO DE PROGNOSE FAVORÁVEL
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. A intervenção do Tribunal da Relação de concretização da medida da pena e do controle da proporcionalidade no respeitante à sua fixação concreta, tem de ser necessariamente parcimoniosa e limitada, não devendo intervir no que diz respeito ao quantum exacto da pena, se respeitados os parâmetros legais, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada.
II. Não é possível fazer qualquer juízo de prognose positiva, tendo em vista a suspensão da execução da pena de prisão, relativamente a arguido que após leitura de sentença que o condenou numa pena de dois anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução por crime de violência doméstica, apoda a esposa de “puta”, “vadia”, “ordinária”, “filha da puta”, dizendo-lhe “metes nojo”, desferindo empurrões sobre as mesma, agredindo-a com um soco, mantendo condutas semelhantes durante os cerca de 22 meses seguintes.
III. A rejeição do recurso por manifesta improcedência tem, também, o fim de moralização do mesmo, devendo utilizar-se tal instituto quando os respectivos termos não permitem a cognição do tribunal ad quem, ou quando, versando sobre questão de direito, a pretensão não estiver minimamente fundamentada, ou for claro, simples, evidente e de primeira aparência que não pode obter provimento, como acontece no caso sub judice.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Recurso próprio, interposto em tempo, admitido com efeito e modo de subida adequados.
Note-se que não tendo a demandante legitimidade para recorrer em matéria exclusivamente penal, também não lhe assiste legitimidade para responder a recurso interposto pelo arguido única e exclusivamente sobre tal matéria, razão pela qual não se tomará em consideração a resposta ao recurso por ela apresentada.
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Decisão sumária ao abrigo do artigo 417.º n.º 6 alínea b) e 420.º/1, a) do Código de processo Penal
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I. Relatório
1. Por sentença de 23-11-2023 atinente ao arguido AA, com os demais sinais dos autos, decidiu-se, além do mais:
“(…)
i) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica na pena de três anos prisão.
ii) Condenar ainda o arguido na pena acessória de afastamento do local de trabalho e residência da ofendida e à proibição de contactos com a mesma por qualquer meio e em qualquer local, durante três anos, sujeita a fiscalização electrónica.
iii) Julgar o pedido civil formulado pela demandante parcialmente procedente por provado e, em consequência, condenar o demandado/arguido ao pagamento da quantia de €1.5000,00 (mil e quinhentos euros) à demandante a título de danos não patrimoniais sofridos, absolvendo-o do demais peticionado.
iv) Manter até ao trânsito em julgado da sentença a medida de coação aplicada.
(…)”
2. O arguido, inconformado com esta decisão, dela veio interpor recurso pedindo a revogação da sentença recorrida e, em consequência, a correcção do excesso da pena em que que foi condenado, decidindo-se pela condenação em pena no limite mínimo legal e respectiva suspensão com regime de prova.
Rematou o corpo da motivação com as conclusões que, de seguida, se transcrevem:
“(…)
I. O presente recurso tem como objeto a impugnação, de parte, da Matéria de Direito que sustentou a condenação do recorrente como autor material, de um crime de violência doméstica em pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica na pena de três anos prisão e Julgar o pedido civil formulado pela demandante parcialmente procedente por provado e, em consequência, condenar o demandado/arguido ao pagamento da quantia de €1.5000,00 (mil e quinhentos euros) à demandante a título de danos não patrimoniais sofridos.
II. O recorrente não concorda com a determinação da pena que lhe foi aplicada a qual considera desproporcionada, injusta e que ultrapassa a medida da culpa.
III. O recorrente optou por prestar declarações nas quais manifestou o seu arrependimento sincero face aos factos praticados, tendo as suas declarações ficado gravadas no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido.
IV. Na escolha da medida da pena, o Tribunal recorrido não respeitou o estipulado no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, já que essa decisão deve ser realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral e especial que ao caso se fazem sentir.
V. Atentando à confissão parcial à inserção social e profissional do recorrente, as necessidades de prevenção especial (que se encontravam no patamar mínimo), a pena (agora recorrida) deveria ter sido aplicada no seu limite mínimo.
VI. No caso dos autos, as condições sociais e profissionais do recorrente, permitem formular um juízo de prognose favorável quanto aos efeitos que a censura do facto e a pena de prisão que está já a cumprir bem como a pena de prisão no processo que já foi condenado, serão aptas a satisfazer as finalidades de punição.
VII. Pelo exposto, requer a V. Exas. que reformem a excessividade da pena aplicada, sendo essa pena de prisão próxima do limite mínimo e suspensa na sua execução, nos termos do n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal, com regime de prova.
(…)”
3. Notificado para o efeito o Ministério Público respondeu, pugnando pelo não provimento do recurso, e manutenção da decisão recorrida, concluindo da seguinte forma:
“1. O Recorrente alega que a pena de três anos de prisão com que foi sentenciado é desproporcionada, injusta e ultrapassa a medida da culpa tendo sido violado o disposto no art.º 71.º do Código Penal.
2. O Recorrente foi condenado como autor material de um crime de violência doméstica, na forma agravada, previsto pelo art.º 152.º n.º 1 alínea a) e n.º 2 alínea a) a ainda n.ºs 4 e 5 do Código Penal, punível com pena de prisão de dois a cinco anos.
3. Nos termos do disposto no art.º 71.º do Código Penal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente, das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, designadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução, a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados pelo agente no seu cometimento, os fins ou os motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente, a sua conduta antes e depois dos factos e a sua situação económica.
3. O grau de ilicitude dos factos praticados pelo Recorrente é elevado, agiu com dolo direto, a sua culpa é intensa e as necessidades de prevenção geral e especial são muito elevadas.
4. Atenta a moldura penal do crime em causa, a forma e o modo de execução da sua prática pelo Recorrente, a reiteração da sua conduta, a acentuada ilicitude, a falta de sentido crítico sobre a sua atuação, a sua personalidade desviante e ainda as exigências de prevenção geral e especial a pena aplicada ao Recorrente é justa, adequada e proporcional.
5. Não se encontram preenchidos os pressupostos previstos no artigo 50.º n.º 1 do Código Penal para que lhe seja aplicada a suspensão da execução da pena de prisão.
6. Nenhuma censura merece a Douta Sentença recorrida pois foi proferida com respeito pelas disposições legais aplicáveis, devendo o recurso improceder totalmente.
(…)”
4. Subidos os autos a este Tribunal o Digno Procurador Geral Adjunto acompanhou a resposta da Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido e emitiu parecer no sentido de o recurso interposto pelo arguido dever ser improcedente nos termos ali apontados.
5. Cumprido de foi o estatuído no artigo 417.º/2 CPP nada foi acrescentado.
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II. Fundamentação
1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, a questões suscitadas no presente recurso são as seguintes:
- saber se se deverá aplicar-se ao arguido uma pena correspondente ao limite mínimo legal;
- se esta pena deverá ser suspensa na respectiva execução.
E isto apesar de o arguido, no ponto 4. da motivação do recurso ter escrito, aliás de forma bastante confusa:
“4. Conforme a douta Sentença, ora dos fatos dados como não provados, que praticados em publico, e por esse motivo não provados estão em contradição com os fatos supra no 7 ), em 21 de Abril de 2021, quer à porta do tribunal, quer no interior do autocarro que seguia para o ..., o arguido seguiu no encalço da vitima e confrontou-a com o pedido de indemnização pedido naquele processo, começando a apelidá-la com "puta", “vadia”, “ordinária”, “filha da puta”, “metes nojo” e para amedrontá-la disse-lhe, " a tua filha é a culpada por ter falado no julgamento". Não deveriam ter sido dados como provados. O mesmo se diga para o descrito em 8). Devendo ter sido estes também dados como não praticados pelos motivos indicados na douta Sentença.”
O próprio arguido diz, de forma clara e cremos que inequívoca, “O presente recurso tem como objeto a impugnação, de parte da Matéria de Direito” não resultando da respectiva motivação que o mesmo pretenda proceder a qualquer impugnação da matéria de facto, quer, em termos de revista alargada (invocando vícios do artigo 410º, nº 2, al. b), do Código de Processo Penal), quer na forma de impugnação ampla da matéria de facto (erro de julgamento, de harmonia com o estatuído no artigo 412.º/3 do mesmo diploma).
Assim, considera-se definitivamente fixada a matéria julgada em primeira instância.
2. A decisão recorrida.
Para o que agora interessa cumpre chamar à colação a decisão recorrida:
“(…)
III. F U N D A M E N T A Ç Ã O D E F A C T O
Da discussão da causa e produção da prova vieram a resultar provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:
1) O arguido AA e BB iniciaram uma relação de namoro, no verão de 2017, passando a coabitar, primeiramente em ... e, posteriormente, na ....
2) Contraíram matrimónio, no dia ... de ... de 2018.
3) Com eles residiam os filhos da vítima, CC, nascida em ... de ... de 2008 e DD, nascido em ... de ... de 2003.
4) O arguido foi consumidor habitual de álcool e estupefacientes.
5) O arguido foi condenado, no âmbito do processo comum singular n.º 149/19.6PKSNT, por sentença transitada em julgado, em 25 de Maio de 2021, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período, pela prática de um crime de violência doméstica, perpetrado contra a vitima, processo cujo cumprimento ainda se mostra pendente.
6) A partir de 5 de Outubro de 2021, o arguido continuou a residir na habitação comum e, posteriormente, em meados de Novembro de 2021, foi residir para a habitação da sua progenitora, sita na ... e desde Novembro de 2021, a vitima foi residir para a habitação dos seus pais, sita na ..., que dista cerca de 50 metros da habitação do arguido.
7) No dia da leitura da sentença do processo referido em 5), em 21 de Abril de 2021, quer à porta do tribunal, quer no interior do autocarro que seguia para o ..., o arguido seguiu no encalço da vitima e confrontou-a com o pedido de indemnização pedido naquele processo, começando a apelidá-la com "puta", “vadia”, “ordinária”, “filha da puta”, “metes nojo” e para amedrontá-la disse-lhe, "a tua filha é a culpada por ter falado no julgamento".
8) Enquanto proferias tais expressões intimidatórias, o arguido desferia empurrões no corpo da vítima e chegados à habitação onde ambos ainda residiam, desferiu-lhe um murro no corpo, ficando a vítima com dores.
9) Em data não concretamente apurada, mas no Verão de 2022, quando a vítima se encontrava com o arguido, numa horta que ambos cultivam, em ..., na ..., caiu-lhe um comprimido da mesa e, acto contínuo, desferiu um empurrão à ofendida.
10) Seguidamente, muniu-se de uma enxada, arremessando-a ao corpo da vítima, somente não a atingindo por aquela se ter conseguido desviar.
11. No dia 14 de Setembro de 2022, o arguido dirigiu-se à vitima e desferiu-lhe um soco na cara, atingindo-lhe a face, do lado direito, testa, lábios e dentes.
12) Como consequência da conduta do arguido, a vítima apresentou trauma na face, nomeadamente, o dente 11, pivot, com mobilidade do dente superior, com lesão periapical, edentulismo parcial superior e inferior, com perda do dente 11, lesões essas que determinaram 4 dias de doença, sendo possível a substituição por prótese/implante.
13) No dia 31 de Janeiro de 2023, cerca das 21horas, quando se cruzou com a vitima, estando esta acompanhada do seu filho DD, no jardim existente perto da sua habitação, o arguido, acompanhado de EE, sua progenitora e de FF, sua irmã, dirigiu-se à vitima, iniciando uma discussão.
14. De imediato, o arguido ao mesmo tempo que levantava a mão, dirigiu-se à vítima com o fito de agredi-la, porém, o filho da vítima intrometeu-se entre ambos, não conseguindo aquele atingir o corpo da vítima.
15. No dia 6 de Fevereiro de 2023, aquando da sua detenção nestes autos, no interior da zona de detenção, o arguido em tom de voz audível, enquanto soqueava as portas e paredes, dizia: “quando sair daqui vou matar a BB”.
16. O arguido agiu sempre consciente e voluntariamente, bem sabendo que molestava física e psiquicamente a sua esposa, infligindo-lhe dores físicas, molestando-a e debilitando-a psicologicamente, fazendo-a recear pela sua integridade física e vida, e cerceando a sua liberdade pessoal, prejudicando assim o seu bem-estar psicossocial e ofendendo-a na sua dignidade humana, impondo a sua vontade em detrimento da vitima e fazendo-se valer da sua superioridade física, impondo a sua vontade em detrimento daquela, não se coibindo de actuar, em muitas ocasiões, no recesso da habitação.
17. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
18. A ofendida sentia-se vexada e humilhada todos os dias.
19. O arguido cresceu no seio de uma família que apresentava características de desestruturação devido aos comportamentos alcoólicos da figura paterna, residindo o agregado na zona de ....
20. O arguido, após concluir o 4º ano de escolaridade, com cerca de onze anos de idade, passou a desempenhar a atividade profissional de ... de cofragem, sendo essa a profissão do seu padrasto.
21. O arguido manteve-se no agregado da família até ter conhecido a mãe da sua filha, com quem residiu cerca de dois anos e, após termo do relacionamento, AA foi residir para ..., onde trabalhou nas vindimas, tendo regressado a Portugal um ano depois, voltando a residir em casa da mãe.
22. Ao regressar, AA voltou a trabalhar na área da construção civil, como ... de cofragem, iniciando um relacionamento amoroso com a ofendida em 2018.
23. O arguido apresenta um percurso marcado por consumos de álcool, consumindo bebidas alcoólicas desde os seus quinze anos, tendo-se submetido a um tratamento de desintoxicação em 2020.
24. O arguido esteve internado na ... entre 6 de Janeiro de 2020 e 28 de Janeiro de 2020, referindo não ter voltado aos consumos, interrompendo o acompanhamento durante a pandemia (tendo ficado sem médico assistente), mas que o tinha retomado em 28 de Junho de 2022 em consulta de psicologia, tendo sido inserido no grupo pós alta do internamento.
25. O arguido, em situação de reclusão no Estabelecimento Prisional de Caxias, tem apresentado comportamento adequado, não tendo registo de punições, encontrando-se a exercer atividade profissional como faxina, beneficiando de visitas da família, nomeadamente, progenitora e irmã.
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Não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados. Designadamente não se logrou provar que:
a) Quase diariamente, quando o arguido se cruza com a vitima, na via pública, diz-lhe, com tons de seriedade, “mato-te”, “mais vale viúvo que divorciado” e, outras vezes, faz o gesto com o seu dedo a passar pelo pescoço, como se a degolasse desferindo-lhe, simultaneamente, empurrões.
b) Devido à proximidade entre as habitações, após deixarem de coabitar, diariamente, o arguido persegue a vítima.
c) Desde a separação em Outubro de 2021 até 5 de Fevereiro de 2023, não raras vezes, o arguido ficava à espera da vitima, à porta do seu prédio, seguindo-a, na via pública.
d) Não raras vezes, já ébrio, usando ambas as mãos, o arguido aperta o pescoço da vitima, estrangulando-a, ficando esta com notória dificuldade em respirar, cuspindo-lhe para a casa e para humilha-la e diminuir-lhe a sua auto-estima, dizendo-lhe, frequentemente, “filha da puta”, “és uma merda”, “metes-me nojo, “vadia”, “badalhoca”, ”andas a vender- te por droga e álcool”
e) No período referido em 13), constantemente, telefona à vítima, de noite, perturbando o seu descanso.
f) Controlando todas as suas entradas e saídas da habitação, permanecendo, por vezes, mais que 8 horas à sua porta.
g) E, a altas horas da madrugada, batia, insistentemente, à porta da habitação, perturbando o descanso da vítima e dos seus familiares.
h) Chegando a vítima a inibir-se de sair à rua com medo e receio que o arguido atente contra a sua vida ou integridade física.
i) O que sucedeu, entre outras, no dia 29 de Julho de 2022, faltando a uma consulta com o seu psicólogo, porque o arguido não parava de rondar a sua habitação.
j) Acto continuo, o arguido desferiu-lhe um forte soco, que a atingiu na boca e uma palmada na coxa esquerda, causando-lhe dores nas zonas atingidas.
l) Em data não concretamente apurada, mas no final de Setembro de 2021, quando ainda residiam na habitação comum, o arguido iniciou uma discussão com a vitima e, para amedrontá-la, após lhe ter desferido um empurrão, o arguido muniu-se de um garfo e elevou-o em direcção à vitima, como clara intenção de atingir o seu corpo com aquele utensílio, não prosseguindo os seus intentos.
m) No dia 29/30 de Setembro de 2021, pela hora do almoço, quando se encontravam no interior da habitação, no decurso de uma discussão, o arguido muniu-se de um azulejo cortado, que apanhou do chão, elevando-o em direcção à vitima, com clara intenção de atingir a sua integridade física, sendo no entanto impedido pelo DD, filho da vitima, que lhe desferiu um empurrão.
n) No período mencionado em 13), o arguido anda atrás da vitima, nos estabelecimentos comerciais de restauração, entra e começa a apelida-la de "puta", "tens vários homens", "estás grávida e vais ter um filho tutti fruti de ter tantos homens”, enxovalhando-a, em frente, a todas as pessoas, que nada fazem com medo do arguido, o que perturba emocionalmente a vitima e a deixa envergonhada perante o meio social em que se encontra inserida.
o) No dia 14 de Setembro de 2022, o arguido dirigiu-se à vitima, iniciando uma discussão, apelidando-a de “puta”, “vaca” (sic), anunciando, com tons de seriedade que a matava.
p) No dia 26 de Junho de 2022, quando a vitima se encontrava a sair do ..., em ..., o arguido dirigiu-se a si, encostando a cabeça na cabeça da vitima.
q) Concomitantemente dizia-lhe: “tenho de falar contigo, temos que conversar, andas a fazer pouco de mim”, “vou- te bater”, “vou-te partir os dentes todos”, “parto-te a boca”, ficando a vitima amedrontada porque já antes o arguido lhe havia partido um dente.
r) No dia 4 de Janeiro de 2023, quando a vitima se encontrava na via pública, o arguido seguiu no seu encalço, desferindo-lhe dois socos, que a atingiram no queixo e na cara, provocando-lhe dores nas zonas atingidas.
s) No dia 1 de Janeiro de 2023, quando a vitima se encontrava a rezar, na via pública, o arguido dirigiu-se a si, insultando-a, apelidando-a de “porca”, “estás-te a oferecer aos homens”, por aquela trajar roupa branca, “foste ter uma filha com um cigano”, começando a vitima a chorar, porque chamou à colação o nome da sua filha, já falecida, o que deixou a vitima bastante revoltada e triste.
t) No dia 6 de Janeiro de 2023, cerca das 11horas, quando a vitima saiu da habitação, o arguido seguiu no seu encalço, abordando-a e naquelas circunstâncias, o arguido disse-lhe “O teu pai abusa de ti e dos teus meninos”, “és uma puta”, “desaparece daqui”, cuspindo-lhe para a cara.
u) No dia 31 de Janeiro de 2023 o arguido arremessou para o chão o tablet da vitima, que lhe tinha custado €100,00, do qual necessitava para iniciar o seu curso.
v) Como consequência da conduta do arguido em 31 de Janeiro de 2023 em conjugação de esforços com a sua progenitora e irmã, a vitima foi assistida no hospital e apresentava trauma do punho esquerdo e face e da grelha costal à esquerda, com edema do primeiro dedo e limitação da mobilidade por dor.
x) Quando regressou à habitação, o arguido soube que a mesma se tinha dirigido ao hospital e, furioso, desferiu- lhe um soco na cara, partindo-lhe um dente, na parte inferior.”
(…)
V.D E T E R M I N A Ç Ã O D A P E N A
Subsumidos os factos à sua dignidade criminal, importa agora encontrar a resposta punitiva adequada com a determinação da medida da sanção.
O crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152.º n.º 2 al. a) do Código Penal é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. Verificamos, assim, que está legalmente determinada a natureza da sanção a aplicar, tendo em vista as finalidades que com a mesma se pretende atingir: o tipo de ilícito em questão não comporta pena pecuniária, pois que o legislador entendeu que esta não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição
Cumpre assinalar que, no presente caso, as exigências de prevenção geral são significativas na medida em que se reprova a culpa do agente que actua nestas circunstâncias, procurando tranquilizar a consciência jurídica da comunidade, reforçando a ideia de que o Direito desincentiva - e que deve ser por demais sublinhada no contexto das sociedades modernas – e são objecto de consensual reprovação, quaisquer actos, omissões ou condutas desta natureza, com “a consciencialização ético social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos (...) e de que a família não constitui um feudo sagrado, onde o direito penal se tinha de abster de intervir” (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, págs. 329 e 330).
Quanto às finalidades de prevenção especial, operando apenas ao nível da reinserção social do arguido, há que ter presente que o arguido tem já anterior condenação desta natureza, na mesma ofendida.
Chegados ao momento de determinar a concreta medida da pena, impõe-se não olvidar que a necessidade da tutela de bens jurídicos terá que ser encontrada em concreto, segundo as circunstâncias do caso em análise e não em abstracto. Na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, importa atender à culpa do agente e às exigências de prevenção - artigo 71.º n.º 1 e 2 do Código Penal – bem como a todas as circunstâncias que, ainda que não façam parte do crime, deponham a favor ou contra este.
Concretizando, foram tidas em consideração as seguintes circunstâncias: o dolo, considerado na modalidade de dolo directo, mas de intensidade alta porque o agente previu e tinha como fim realizar este acto criminoso, querendo o resultado da sua conduta, sem esquecer a reiteração do comportamento, nas ameaças, insultos e agressões físicas e psíquicas. Por outro lado, a ilicitude do facto é de grau elevado atendendo a que o motivo que espoleta a sua actuação apresenta-se-nos como fútil, não sendo esta, como é bom de ver, a forma correcta de resolução dos seus problemas em casa. Por outro lado, a sua conduta é altamente reprovável atendendo à relação que tem com a vítima, exigindo-se da sua parte outro tipo de comportamento, podendo e devendo agir de outro modo já que se tratará de sua ex-mulher, sendo notório o desrespeito pela dignidade humana da ofendida, que nem uma sentença anterior transitada em julgado serviu para dissuadir o arguido de comportamentos semelhantes, pelo que contra o arguido a existência de um antecedentes criminais da mesma natureza à data da prática dos factos. A seu favor o facto de residir longe da assistente, pese embora isso resulte, tão somente, de mera imposição judicial, pelo que não existem motivos que convençam o Tribunal que comportamentos semelhantes cessarão de modo voluntário.
Sublinhar as exigências de prevenção geral que são elevadíssimas no que ao crime de violência doméstica diz respeito, perante os plúrimos bens jurídicos contra os quais atenta.
Destarte, tudo ponderado, julga-se adequado aplicar ao arguido a pena de três anos de prisão.
Quanto à pena de prisão ora aplicada tem de se considerar a possibilidade da eventual suspensão na sua execução, uma vez que como dispõe o artigo 50º, nº 1 do Código Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades de punição”. O prazo da suspensão não pode ser inferior a um ano, tratando-se de uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, pelo que é necessário que, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, se possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição. Sendo a pena de prisão fortemente restritiva de um direito constitucionalmente tutelado – a liberdade individual, de acordo com o art. 27º da Constituição da República Portuguesa, deve funcionar de acordo com uma lógica de última “ratio”, e verificando-se os pressupostos do art. 50º do Código Penal, deve o juiz suspender a execução da pena de prisão.
Inexistindo qualquer outra forma de substituição da pena de prisão atendendo à moldura supra fixada, a pergunta que se impõe fazer é se perante estes factos a efectividade da prisão se exige para assegurar as finalidades da punição ou se estas podem ser satisfeitas com a suspensão da execução da pena ora aplicada.
O arguido tem já um antecedente pela prática do mesmo ilícito de violência doméstica, na mesma ofendida, sem esquecer que não assimilou a pena suspensa aplicada em anterior condenação. Sobre o arguido há ainda a dizer que este permanece num contexto de adição ao álcool que se pauta por períodos de alguma abstinência, com algum tratamento. Por outro lado, cumpre ter presente que já foi condenado numa pena de prisão suspensa e isso não o impediu de cometer os factos que ora julgamos, pelo que podemos concluir por um passado criminal pautado por agressividade e violência, ao qual acresce a não confissão dos factos, a não colaboração de forma relevante para a descoberta da verdade e a ausência de qualquer arrependimento, que nos levam a concluir pela ausência de assimilação do ilícito perpetrado, constante vitimização e desculpabilização, que o arguido tem uma personalidade perigosa para os bens jurídicos protegidos pelo tipo legal de crime de violência doméstica e que, neste quadro, não há qualquer prognose favorável à não reincidência em liberdade, como se viu, aliás, após a anterior condenação.
O arguido não procurou refazer a sua vida afastado da ofendida, apesar da proibição de contactos que sobre si impendia.
O Tribunal tem consciência que uma pena de prisão efectiva poderá quebrar a frágil estabilidade profissional e familiar do arguido, mas isso não é o bastante para contornar o facto de que o arguido tem de ser responsável pelos actos que pratica e que sem uma assunção ou contrição do que ocorreu, nada nos garante que assim que deixar de estar em vigor uma pena acessória de proibição de contactos com o ofendido, com a aplicação de uma pena em liberdade, que as agressões não retomem. Dos factos dados como provados, sobretudo no que concerne às suas condições socio-económicas nada se extrai e que permita concluir que o arguido se absterá de cometer factos semelhantes no futuro e que volte a reincidir no crime de violência doméstica: seja na pessoa do ofendido, ou, atendendo ao seu historial quanto a este crime, a qualquer nova relação que estabeleça. Em suma, não só as exigências de prevenção especial são fortíssimas, mas com estas concorrem exigências de prevenção geral, impondo-se não minorar as consequências gravosas do cometido.
Apesar de algum percurso positivo do arguido, este não assume consistência suficiente para se concluir que uma pena de substituição iria assegurar suficientemente as finalidades de punição.
Regressando novamente às condenações já sofridas, cumpre não esquecer que durante o período da suspensão da execução da pena de prisão no Processo N.º 149/19.6PKSNT (de 25 de Maio de 2021 a 25 de Novembro de 2023), o arguido cometeu os factos que ora discutimos, pelo que é evidente que desmereceu a confiança que esse Tribunal depositou no arguido, sendo evidente que a anterior condenação numa pena de prisão suspensa.
Quanto à pena de prisão ora aplicada mostra-se inviável a sua substituição, uma vez que nem a aplicação de penas de prisão substituídas anteriormente, dissuadiram o arguido de continuar a delinquir. E isso, por si só, é suficiente para nos fazer concluir pela ineficácia das penas de substituição de que o arguido beneficiou e não mereceram qualquer conversão por parte deste. Com efeito, torna-se manifestamente insuficiente para afastar o arguido da prática de futuros crimes e insuficiente aos olhos da comunidade a substituição por outra pena, esgotadas que foram todas essas oportunidades em anteriores condenações sem que se tivesse conseguido, em liberdade, e após lhe terem sido dadas oportunidades de aprender a pautar o seu comportamento de forma adequada, que o arguido reflectisse sobre a gravidade do mesmo e adoptasse uma atitude conforme ao direito. Muito pelo contrário, assiste-se ao modo como o arguido reiteradamente viola as mesmas normas numa atitude de absoluta indiferença às condenações que já lhe foram aplicadas, em manifestação de total desrespeito pelas regras jurídicas que lhe são impostas, e, acima de tudo, um sentimento de impunidade perante as anteriores condenações, falhando notoriamente, em assimilar as oportunidades concedidas.
O arguido ignorou flagrantemente o aviso e oportunidade dada e não manifesta qualquer vontade de reger a sua vida por comportamentos adequados. Acresce que em face da personalidade do arguido e na ausência de elementos que sinalizem uma vontade de redenção, arrependimento e de convencer o Tribunal que o mesmo não se tornaria a repetir, não estamos em crer que novos episódios semelhantes não ocorram em liberdade. O historial criminal do arguido evidencia uma propensão de delinquência neste âmbito que não estamos convencidos que não tornará a ocorrer, pelo que urge tomar medidas para combater a prática de novos ilícitos criminais – assim é uma das vertentes a ter em conta na pena a aplicar ao arguido.
Por fim, diremos que inexistindo qualquer expectativa na alteração positiva da conduta do arguido e não se compadecendo a sociedade com qualquer nova oportunidade que lhe seja dada, só o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada será adequada e suficiente a assegurar as exigências de prevenção geral e especial, não se procedendo a qualquer substituição da pena de prisão aplicada.
Nos termos do artigo 152.º n.º 4 e 5 do Código Penal é possível a aplicação de penas acessórias para o crime de violência doméstica.
A gravidade dos actos imputados ao arguido é facilitada pela proximidade entre agressor e vítima, pelo que se impõe garantir a segurança e tranquilidade desta, a passo da recuperação do arguido, através do adequado acompanhamento. A ilicitude dos factos é elevada, há reiteração de comportamentos, diversos bens jurídicos violados e uma ausência de assimilação e sentido crítico da sua conduta por parte do arguido, sendo que nada nos autos assinala que não concretizará o mal que promete reiteradamente. Tendo presente as circunstâncias do caso concreto e o modo de violência aplicado contra a sua companheira, entendemos justificada a aplicação ao arguido da pena acessória de obrigação de afastamento do local de trabalho e residência da ofendida, bem como proibição de contactos por qualquer meio com esta– artigo 34.º-B n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro; entendendo- se ser necessário que o seu cumprimento seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, ou seja, através de vigilância electrónica. Quanto ao período durante o qual tal pena acessória deve vigorar, entende-se fixar o mesmo em três anos; é certo que ela é ineficaz durante o período de reclusão do arguido, mas absolutamente essencial em situações de saída precária ou concessão de liberdade condicional.
(…)”
3. Da medida da pena
3.1. Foi o arguido condenado na pena de três anos de prisão pela prática de um crime de violência doméstica, p.p. no artigo 152.º/, 1, a) e 2, a) do CP, nos termos do qual, quem, quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns ao cônjuge ou ex-cônjuge, contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
Insurge-se o arguido contra excesso da pena que lhe foi aplicada, alegando, desde logo que relativamente aos fatos descritos como ameaça de morte à ofendida no dia da sua detenção a ela não foram dirigidos e a ofendida deles não tomou conhecimento não resultando daí um sofrimento para a mesma, quanto muito deveria ter sido acusado e ou condenado pelo crime de ameaça.
Pelas razões já mencionadas, a matéria de facto dada como provada ou não provada em primeira instância, por via da não impugnação nesta sede, considera-se definitivamente fixada e o que consta da mesma matéria, no ponto 15. é o seguinte: “No dia 6 de Fevereiro de 2023, aquando da sua detenção nestes autos, no interior da zona de detenção, o arguido em tom de voz audível, enquanto soqueava as portas e paredes, dizia: “quando sair daqui vou matar a BB”. Desconhece-se se tal frase chegou ou não ao conhecimento da ofendida e, logo, se da mesma resultou, ou não algum sofrimento para a vítima. O certo, porém, é que tal frase foi proferida de forma audível, enquanto o mesmo arguido soqueava as portas e paredes, tudo no quadro de um comportamento violento, referindo-se clara e obviamente à vítima, caracterizador do crime de violência doméstica que, na esmagadora maioria do casos, não se esgota numa única mas numa pluralidade de condutas, que vão desgastando a vítima a nível físico, psíquico e emocional.
Não tem, pois, qualquer razão, o arguido neste segmento do recurso.
3.2. Mais alega o recorrente que:
- O recorrente optou por prestar declarações nas quais manifestou o seu arrependimento sincero face aos factos praticados, tendo as suas declarações ficado gravadas no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido,
- O recorrente no período anterior à data da prática dos factos estava integrado profissionalmente exercendo as funções inerentes à categoria profissional de ...,
- A atual situação de reclusão serviu para refletir sobre o sentido que tem dado à sua vida, consolidando o juízo de prognose favorável.
Continua o arguido referindo que:
- não obstante, na escolha da medida da pena, o Tribunal recorrido não respeitou o estipulado no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, já que essa decisão deve ser realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral e especial que ao caso se fazem sentir.
- “relativamente às exigências de prevenção especial, e por referência aos correspondente crime, constata-se que se revelam (…) mínimas quanto ao arguido considerando, a par do enquadramento familiar e social e grande maioria dos fatos pelo que vinha acusado foram considerados não provados, a pena (agora recorrida) deveria ter sido aplicada no seu limite mínimo e suspensa na sua execução”.
- ao que acresce o cumprimento da prisão no processo a que já foi condenado em virtude da revogação da suspensão da pena.
Vejamos:
Sem nos querermos alongar em considerações teóricas sobre o crime de violência doméstica, porque desnecessárias no caso concreto, dir-se-á, contudo, que Como se refere no Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2009 (Proc. n.º 09P0236, www.dgsi.pt), face à redacção dada à norma referenciada pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, aos normativos em causa, o referido crime de violência doméstica, pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas, embora só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencherá o tipo de ilícito - Cfr. Maria Elisabete Ferreira, Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Almedina, 2005, pág. 106/107 e Ac. STJ de 247/4/2006.
Nesta incriminação protege-se a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e auto-determinação sexual e até a honra, sendo o crime de violência doméstica um crime de dano (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objecto da acção).
Ou seja, com a incriminação em referência, protege-se a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida, em particular a saúde, como bem jurídico complexo, aqui se compreendendo o bem-estar físico, psíquico e mental e que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade pessoal, penalizando-se a violência na família – STJ, 06-04-06, proc. n.º 06P1167 - que suscita maiores preocupações, não tendo sequer escapado à atenção do Conselho da Europa, que cedo a caracterizou como “acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade” – Projecto de Recomendação e de exposição de Motivos, do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna – 33.ª Sessão Plenária do Comité Director para os Problemas Criminais, BMJ 335-5.
A necessidade de criminalização das condutas previstas neste preceito adveio da progressiva consciencialização acerca da gravidade de um fenómeno social de proporções tanto mais alarmantes quanto encapotadas e altamente lesivo, com repercussões quer a nível da formação individual, quer a nível da integridade do próprio tecido social. Fenómeno esse do qual são vítimas pessoas particularmente vulneráveis e indefesas em razão dos vínculos, nomeadamente de natureza familiar ou análoga, que as ligam às pessoas dos seus agressores e em resultado dos quais se estabelecem entre estes e aquelas relações de subordinação ou de domínio de facto, que as colocam em situação de dependência económica e/ou emocional. Pretendeu-se, pois, contrariar um sentimento de impunidade - encorajado pelo facto de tais condutas serem habitualmente praticadas em círculos privados ou muito restritos, longe dos olhares alheios, nem sempre denunciadas e ainda mais raramente reclamada a sua punição até às últimas consequências, seja por medo de represálias, vergonha de expor publicamente a situação ou falta de capacidade para o fazer (circunstâncias, aliás, propiciadoras da sua proliferação) -, bem como travar a espiral de violência em que se traduzem e os demais efeitos nocivos que desencadeiam, reprimindo a sua prática.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, 404) o crime em análise é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima.
O tipo objectivo inclui as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual, que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal, salientando-se que o novo elenco legal de maus tratos é meramente exemplificativo, concretizando tal conceito, mas não o esgotando.
O conceito de “maus tratos físicos” engloba qualquer agressão ou acto de acometimento físico que provoque lesão ou doença (hematomas, feridas, fraturas, queimaduras, etc.), susceptíveis de integração dos crimes de ofensa à integridade física simples; os “maus tratos psíquicos” ou o que é o mesmo, qualquer acto ou conduta intencionais que produzam desvalorização, sofrimento ou agressão psicológica (insultos, vexações, crueldade mental, etc.), o que situa a vítima num clima de angústia que destrói o seu equilíbrio emocional, abrangendo situação enquadráveis em crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação ou injúria simples ou qualificadas e toda e qualquer perturbação psíquica, tenha a mesma, ou não, reflexos físicos; as “privações de liberdade” incluem o sequestro simples mas também qualquer situação de controlo injustificado e excessivo da vítima, que a prive da liberdade de movimentos ou locomoção e nas “ofensas sexuais” inclui-se qualquer contacto sexual realizado a partir de uma posição de poder ou autoridade relativamente à vítima, traduzindo-se em situações de coação sexual, violação nos termos do artigo 164.º/2, importunação sexual, abuso sexual de menores dependentes, nos termos do estatuído no artigo 172.º/2 e 3.
Na violência psíquica o terror psíquico persiste sob a forma de ameaça, espionagem e de interrogatórios. Este tipo de violência baseia-se no abuso emocional, com o denominador comum da vexação, exigências de obediência por parte do agressor, desprezo, burlas verbais (insultos e gestos), intimidação, humilhações em público, manipulações, abandono físico e económico, sexualidade vexatória, etc., assim se obtendo “um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação” – cf. Ac. TRG de 02-11-2015, proc. n.º 77/14.1TAACC.G1.
Por violência física há-de entender-se toda e qualquer manifestação agressiva ou de maltrato (golpes, contusões, empurrões bruscos, bofetadas, pontapés, etc.) qualquer que seja a sua gravidade. Deverá tratar-se sempre de um ataque, ainda que dissimulado, e independentemente das marcas os sinais físicos que esse ataque possa deixar. A mesma similitude é exigida para a violência física, ou seja, toda a violência exercida sobre a vivência psicológica de uma pessoa e que de maneira mais ou menos relevante, incida sobre a psique do afectado, colocando directamente em perigo a sua saúde mental.
Fazendo uma síntese poder-se-á definir a violência doméstica como como toda a acção, conduta ou comportamento agressivo que, através de distintas formas de expressão, produzem dano ou menoscabam determinados bens jurídicos das pessoas agredidas (vida, integridade física ou psíquica, liberdade, honra, integridade moral, etc.).
Este crime “persiste enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais) e psíquica e mental da vítima (humilhando-a, por exemplo) e a relação de convivência que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente” – J. M. Tamarit Sumalla, Comentarios a la Parte Especial del Derecho Penal, 1996, p. 100, cit. no Ac. TRG de 31-05-04, proc. n.º 719/04-1, www.gsi.pt.
No que respeita ao elemento subjectivo, trata-se de um crime doloso, podendo o dolo revestir qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, resultando claro - afastada que foi a exigência de que o agente agisse por “malvadez ou egoísmo” que constava da redacção do artigo 153.º do Código Penal anterior às alterações introduzidas pelo DL nº 48/95 - que basta o dolo genérico.
Como é sabido a questão da medida da pena não é do conhecimento oficioso por parte do tribunal de recurso.
Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena, o juiz serve-se do critério global contido no artigo 71.º do CP, estando vinculado aos módulos – critérios de escolha da pena constantes do preceito. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.
O dever jurídico, substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo da decisão sobre a determinação da pena.
Acerca da questão da cognoscibilidade, controlabilidade da determinação da pena, no âmbito do recurso, há que dizer que a intervenção do tribunal nesta sede, de concretização da medida da pena e do controle da proporcionalidade no respeitante à sua fixação concreta, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada.
Vem-se entendendo que se pode sindicar a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro de prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada.
Ultrapassada que está a fase da consideração, como ponto de partida para a determinação da medida concreta da pena, o do ponto médio da sua moldura abstracta, bem como o de ser esta a matéria onde transparece e se assume na plenitude, a arte de julgar, como ponto incontornável de partida e de chegada, temos que a operação de determinação da medida da pena, se faz em função dos critérios gerais de medida da pena, seja, a culpa do agente e as exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
O Código Penal atribui à pena um conteúdo de reprovação ética, dando tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime, ligada ao princípio da eminente dignidade da pessoa humana, limita de forma inultrapassável a medida da pena, sem deixar de atender aos fins da prevenção geral e especial.
“A culpa jurídico-penal traduz-se num juízo de censura, que funciona ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena”, cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 215.
Com a determinação de que sejam tomadas em consideração as exigências de prevenção geral, procura dar-se satisfação à necessidade da comunidade, de punição do caso concreto, tendo-se em conta, de igual modo, a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos e com o recurso à vertente da prevenção especial, procura satisfazer-se as exigências de socialização do agente com vista à sua integração na comunidade.
Dispõe o artigo 40.º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, n.º 1 e, que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, n.º 2.
O modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, “aquele que comete à culpa a função, única, mas nem por isso menos decisiva, de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral, de integração, a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa e, cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dento da referida “moldura de prevenção”, que sirva melhor as exigências de socialização ou, em casos particulares, de advertência ou segurança do delinquente” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, 186-187.
Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições normativas específicas que devem ser respeitadas: a formulação da norma reveste a “forma plástica” de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições, cabe ao legislador definir e que, em consequência, devem ser respeitadas pelo juiz.
A norma do artigo 40.º condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, sendo a culpa o limite da pena, mas não o seu fundamento.
Nos termos do artigo 71.º/1 do CP, a determinação da medida concreta da pena é feita dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as circunstâncias enumeradas exemplificativamente, nas alíneas a) a f) do n.º 2 do citado artigo 71.º do CP.
A este processo deve presidir uma preocupação de tratamento justo do caso concreto, adequado à vontade e intenções da lei, que haverá que passar pela escolha de reacção sancionatória com aptidão e eficácia bastantes à ideal/tendencial protecção do bem jurídico violado e à dissuasão da prática de novos crimes, constituindo a retribuição justa do mal praticado, dando satisfação ao sentimento de justiça e segurança da comunidade e contribuindo, na medida do possível, para a reinserção social do delinquente.
A culpa constitui, assim, o limite inultrapassável do quantum da pena, dentro é certo da sub-moldura da prevenção geral e ponderadas as necessidades que o agente apresente em sede de prevenção especial.
Esta medida concreta da pena a aplicar ao arguido, tendo em atenção que a mesma assenta na “moldura de prevenção”, cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do quantum da pena imprescindível, no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, deve ser encontrada dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º/1 CP), sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigos 40.º/2 e 71.º/1 CP).
Devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal, a pena tem de responder, sempre positivamente, às exigências de prevenção geral de integração, sendo certo que se a culpa constitui o fundamento e o limite da pena, as suas finalidades são a prevenção geral e especial.
Descendo ao caso concreto, na fundamentação da medida da pena, foi tomado em consideração:
- o dolo, considerado na modalidade de dolo directo, mas de intensidade alta porque o agente previu e tinha como fim realizar este acto criminoso, querendo o resultado da sua conduta;
- a reiteração do comportamento, nas ameaças, insultos e agressões físicas e psíquicas;
- a ilicitude do facto é de grau elevado atendendo a que o motivo que espoleta a sua actuação apresenta-se-nos como fútil, não sendo esta, como é bom de ver, a forma correcta de resolução dos seus problemas em casa;
- a conduta do arguido altamente reprovável, atendendo à relação que tem com a vítima, exigindo-se da sua parte outro tipo de comportamento, podendo e devendo agir de outro modo já que se tratará de sua ex-mulher, sendo notório o desrespeito pela dignidade humana da ofendida, que nem uma sentença anterior transitada em julgado serviu para dissuadir o arguido de comportamentos semelhantes:
- a circunstância de o arguido ter antecedentes criminais da mesma natureza, à data da prática dos factos;
- a favor do arguido militou o facto de residir longe da assistente, tendo-se considerado, no entanto, que tal circunstância resulta, tão somente, de mera imposição judicial, inexistindo motivos que convençam o Tribunal que comportamentos semelhantes cessarão de modo voluntário;
- as exigências de prevenção geral que são elevadíssimas no que ao crime de violência doméstica diz respeito, perante os plúrimos bens jurídicos contra os quais atenta.
A tudo isto acrescentamos o seguinte:
- é notória a premência de combate a este tipo de delitos, contra as pessoas que integram a célula familiar, elemento essencial e estruturante das sociedades ocidentais desenvolvidas, cujo desagregar constitui causa próxima e remota, dos mais diversos problemas sociais e educacionais, dos tempos modernos, tudo, por isso a tornar de grande importância a necessidade de prevenção, quer geral, quer especial, deste tipo de crimes;
- a forma de actuação do arguido, agredindo ofendida com empurrões, murros e socos e arremessando-lhe uma enxada, bem como a e gravidade das consequências para o corpo e saúde física e psíquica da vítima, sendo que esta, por via dos comportamentos do arguido se sentia vexada e humilhada todos os dias e em virtude de uma das agressões veio a sofrer trauma na face, nomeadamente, o dente 11, pivot, com mobilidade do dente superior, com lesão periapical, edentulismo parcial superior e inferior, com perda do dente 11, lesões essas que determinaram 4 dias de doença;
- a natureza das expressões pelo arguido dirigidas à ofendida, dirigindo-lhe os epítetos de "puta", “vadia”, “ordinária”, “filha da puta”, e a expressão “metes nojo”, é altamente pejorativa e valorada de forma extremamente negativa pela sociedade em geral;
- o período de tempo em que o arguido adoptou as condutas supra referenciadas, perdurando por cerca de 22 meses;
- os sentimentos manifestados pelo arguido durante a prática do crime, de total indiferença e desprezo pelo bem estar físico, psicológico e emocional de uma pessoa com quem havia contraído matrimónio e a quem, supostamente, deveriam unir especiais laços afectivos e de lealdade, cooperação e protecção;
- a circunstância de o arguido apresentar um percurso marcado por consumos de álcool, consumindo bebidas alcoólicas desde os seus quinze anos, tendo-se submetido a um tratamento de desintoxicação em 2020, com internamento, muito embora referindo não ter voltado aos consumos, interrompendo o acompanhamento durante a pandemia (tendo ficado sem médico assistente), mas que o tinha retomado em 28 de Junho de 2022 em consulta de psicologia, tendo sido inserido no grupo pós alta do internamento, situação que, não se mostra, em definitivo, ultrapassada, revela francas fragilidades ao nível da personalidade do agende, agudizando as necessidades de prevenção especial;
- a favor do arguido milita ainda a circunstância de continuar a ter o apoio, pelo menos, da mãe e irmã, que o visitam no EP e o facto de, nesse estabelecimento, aparentemente ter vindo a progredir de forma positiva, sendo que, todavia, nos parece ainda completamente prematuro concluir pela irreversibilidade da conduta do arguido na adopção de uma conduta normativa.
Pelo exposto, cremos que a sentença recorrida ponderou e analisou todas as circunstâncias concretas apuradas e bem assim os parâmetros legais que regem em sede de determinação da medida da pena, tendo observado, na dosimetria dessa pena, os critérios legalmente consagrados nos artigos 71.º/2, 72.º, 73.º e 77.º do Código Penal, nada havendo a censurar neste ponto à decisão recorrida ao impor ao arguido a pena de três anos de prisão (tanto mais que o arguido já havia sido condenado numa pena de 2 anos e 6 meses de prisão por crime idêntico), improcedendo o recurso também neste segmento.
3.3. Da suspensão da execução da pena de prisão.
Defende o arguido que a pena que lhe foi imposta deveria ter sido suspensa na sua execução
Vejamos se tem razão, adiantando, desde já, estarmos firmemente convencidos de que a não tem.
Começando por relembrar ensinado pelo Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, 1993, págs. 52/53,) “…o sistema sancionatório do nosso CP assenta na concepção básica de que a pena privativa da liberdade – sendo embora um instrumento de que os ordenamentos jurídico-penais actuais não conseguem ainda infelizmente prescindir – constitui a ultima ratio da política criminal (…) bem pode afirmar-se que o CP vigente deu realização (…) aos princípios político-criminais da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiariedade da pena de prisão, revelando ao mesmo tempo a sua oposição de princípio à execução contínua de penas curtas de prisão.”
E, também, segundo Anabela Miranda Rodrigues (Sistema Punitivo Português, in Sub Judice n.º 11, Janeiro/Junho.1996, pág. 32) “A principal linha de força a destacar aqui é que a prisão (…) deve ver a sua aplicação reduzida aos casos de cometimento de crimes mais graves em que uma reacção através de outras formas de pena não poderia assegurar o efeito essencial de prevenção geral desejado.”
Nisto se traduz a natureza da prisão como ultima ratio, em sintonia com o disposto no art.º 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, designadamente, tendo em conta o subjacente princípio da proporcionalidade, traduzido, conforme Gomes Canotilho/Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra, 2007, págs. 392 e seg.), na proibição do excesso, consentânea com os princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade em sentido restrito, sem perder de vista outras condicionantes ao nível da prevenção especial e que possam ser satisfeitas através de outras formas de pena.
As finalidades das penas - de prevenção geral positiva e de integração e de prevenção especial de socialização, que emergem do art. 40.º, n.º 1, do CP - conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime, mas sempre tendo presente a real necessidade da aplicação da pena, na qual se incluirá, num sentido amplo, o seu modo de execução.
E se essas finalidades se puderem atingir de modo menos gravoso que com a sujeição a prisão, há que dar prevalência a outras penas, como seja a de multa, ou até às ditas penas de substituição, cujo elenco e âmbito de aplicação, tem vindo a ser amplamente alargadas, notando-se que já na Exposição de Motivos constante da Proposta de Lei n.º 98/X se escreveu que “A revisão procura fortalecer a defesa dos bens jurídicos, sem nunca esquecer que o direito penal constitui a ultima ratio da política criminal do Estado” e que “de entre as suas principais orientações, destacam-se (…) a diversificação das sanções não privativas da liberdade, para adequar as penas aos crimes, promover a reintegração social dos condenados e evitar a reincidência”.
Refere Fernanda Palma (As alterações reformadoras da parte geral do Código Penal na revisão de 1995: Desmantelamento, reforço e paralisia da sociedade punitiva, in “Jornadas sobre a revisão do Código Penal” AAFDL, 1998, pág. 32) que “A preferência pelas penas não privativas da liberdade, quando estiverem satisfeitas as finalidades preventivas da punição, revela que o sistema se reconstrói, conformando agora duas tendências aparentemente inconciliáveis: a agravação das penas e a preferência pelas penas não privativas da liberdade. A contradição entre as duas ideias resolve-se pela ideia superadora de uma reserva da pena de prisão para situações justificadas por razões preventivas.
Essa preferência só deverá ser afastada devido a considerações de prevenção, sobressaindo as especiais de socialização, sem que, porém, também, as exigências de prevenção geral não sejam descuradas, no sentido de que a tanto se oponham na medida em que revelam o conteúdo indispensável à defesa do ordenamento jurídico.
Sendo inquestionável a conceptualização da pena de prisão como última ratio, só devendo ser aplicada quando qualquer outra pena de substituição não seja suficiente para assegurar a “protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, in casu “O passado criminal do arguido é eloquente no sentido do fracasso de todas as penas de substituição que lhe foram aplicadas (…)”
Na verdade, o caso sub judice é um caso paradigmático de que a pena de prisão suspensa na sua execução não foi suficiente para dissuadir o arguido de voltar a delinquir. É muito dificilmente compreensível, para qualquer cidadão dotado de um mínimo de sentido de normatividade, que alguém, no dia em que é condenado numa pena e dois anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução, depois da leitura da sentença, quer à porta do tribunal, quer no interior do autocarro em que seguia com a mesma vítima do crime anterior, a tenha apelidado de “puta”, “vadia”, “ordinária”, “filha da puta”, dizendo-lhe “metes nojo” e “a tua filha é a culpada por ter falado no julgamento” (expressão que, naturalmente, amedrontou a ofendida), desferindo empurrões sobre a ofendida enquanto lhe dirigia tais palavras e, ainda não satisfeito, quando chegados à habitação onde ambos ainda residiam, desferiu um murro no corpo da vítima, que ficou com dores.
E que durante período de suspensão de execução da anterior pena de prisão pela prática de crime de violência doméstica, tenha praticado sobre a mesma todos os comportamentos descritos na factualidade dada como provada, integradores de crime idêntico, completamente alheio, por um lado à advertência subjacente à suspensão de uma pena de prisão suspensa e, por outro lado, desperdiçando a oportunidade que lhe foi concedida de arrepiar caminho, passando a adoptar uma conduta que se espera de qualquer cidadão cumpridor da Lei e das decisões judiciais.
“Destarte e salvo o elevado respeito, é impossível concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (nº 1 do artº 50º do Código Penal) e fazer qualquer juízo de prognose que não o de que voltará a cometer idênticos crimes, a menos que receba o sério e enérgico aviso constituído pela pena de prisão efectivamente cumprida, não se vislumbrando, pelos mesmos motivos, qualquer outro tipo de substituição da pena (…)” – cf. Ac. desta Relação de 07-03-2023, proc. n.º 512/22.5PTFUN.L1-5, jurisprudência.pt.
Constitui pressuposto material da aplicação da pena de suspensão de execução da pena de prisão (ainda que sujeita a regime de prova ou cumprimento de deveres e obrigações) que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza na seguinte proposição: a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Para tal, é preciso, como já se salientou, que o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar tais finalidades - que o artigo 40.º identifica como sendo “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
Na formulação deste juízo, “o tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa” – cf. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª edição, p. 639, em anotação ao artigo 50.º
Ora, em face do que se disse até ao momento, não se vislumbra, minimamente, como se poderia fazer qualquer juízo de prognose positivo, acreditando, com a suficiente certeza, de que, doravante, o arguido irá pautar a sua vida por uma conduta adequada e normativa.
Aliás, atendendo ao passado criminal do arguido, não se pode vaticinar numa base minimamente segura, que inclui um risco prudente, que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para o afastar da criminalidade.
E a situação é tão flagrante que se tem muita dificuldade em vislumbrar, sequer, que o arguido, em algum momento, tenha acreditado no sucesso da respectiva pretensão recursiva.
Veio o recorrente, assim, colocar em crise, de forma manifestamente infundada, nos termos e para os efeitos do artigo 420.º/1 do CPP, a decisão recorrida.
O recurso, não só, está votado ao insucesso, como resulta, ser o mesmo, manifestamente improcedente, pois que através de uma avaliação sumária da sua fundamentação, em face do texto legal, se pode concluir, sem margem para dúvida, que está claramente votado ao insucesso, que os seus fundamentos são inatendíveis.
Isto é, deduziu o recorrente, pretensão, manifestamente contra legem, de forma, de resto, no mínimo, que deve ser qualificada como de ousada e temerária, pretendendo fazer valer uma pretensão que, atenta a letra da lei, os factos provados e a jurisprudência, se revela, num exame perfunctório, manifestamente improcedente. Como se refere no Ac. do STJ de 10-01-2002 (proc. n.º 01P4019, https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/01p4019-2002-88002375) “É manifestamente improcedente o recurso quando é clara a inviabilidade do recurso; quando no exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições da jurisprudenciais sobre as questões suscitadas, que aquele recurso está votado ao insucesso”.
A rejeição do recurso, nestes casos, tem em vista moralizar o uso do mesmo.
Com efeito, é de rejeitar o recurso, quando se revele manifestamente improcedente, pois que a manifesta improcedência constitui um fundamento de rejeição do recurso de natureza substancial, visando os casos em que os termos do recurso não permitem a cognição do tribunal ad quem, ou quando, versando sobre questão de direito, a pretensão não estiver minimamente fundamentada, ou for claro, simples, evidente e de primeira aparência que não pode obter provimento.
Será o caso típico de o recurso versar sobre a aplicação de uma pena de substituição da pena de prisão e não ser referida nem existir fundamentação válida para a aplicar, como pretende o arguido.
Nestes termos, sumariamente, há que decidir, ao abrigo do disposto nos artigos 420.º/1 alínea a) e 417.º/6 alínea b) CPP, pela rejeição do recurso, que sempre tem em vista moralizar o uso do mesmo e a sua desincentivação como instrumento de demora ou chicana processuais.
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III. Decisão
Atento todo o exposto decido rejeitar, por manifestamente improcedente, o recurso apresentado pelo arguido AA, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 417.º/6, b), e 420.º/1, a), todos do CPP.
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Taxa de justiça pelo arguido, que de fixa em 3 Ucs – artigos 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal, e tabela III do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro.
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Nos termos do artigo 420.º/3 CPP, condena-se, ainda o recorrente, no pagamento da quantia equivalente a 3 Ucs.
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Registe e notifique, nos termos legais.
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Lisboa, 28-02-2024
Maria João Ferreira Lopes