Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | OLINDO GERALDES | ||
Descritores: | LEGITIMIDADE CONTRATO DE SEGURO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/06/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I. O critério comum de determinação da legitimidade das partes radica na titularidade da relação material controvertida, designadamente nos termos como é desenhada pelo autor da ação. II. Não é exigível a efetiva titularidade da relação material controvertida. III. Assiste legitimidade para demandar, com vista à efetivação da responsabilidade civil, decorrente dos danos sofridos por efeito do furto de um veículo automóvel, objeto do contrato de seguro facultativo, celebrado entre as partes, à pessoa que utilizava o veículo, ainda que a sua titularidade pertencesse ao então seu cônjuge. IV. A questão de saber se o contrato de seguro possibilita ou não a atribuição da indemnização é um problema que respeita, não ao pressuposto processual da legitimidade ativa, mas ao mérito da causa. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO José, com o apoio judiciário na máxima amplitude, instaurou, em 7 de setembro de 2010, no 9.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, contra Companhia de Seguros F - M, S.A., ação declarativa, sob a forma de processo sumário, pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 27 407,59, acrescida dos juros de mora vincendos. Para tanto, alegou em síntese, que, em 28 de setembro de 2001, celebrou com a R. um contrato de seguro, tendo por objeto o veículo automóvel, matrícula (…), registado a favor do seu cônjuge, contrato efetuado no interesse do A.; entretanto, em 23 de janeiro de 2005, tal veículo foi furtado, facto que participou à P.S.P., e não mais apareceu; sofreu, por via disso, danos patrimoniais e também não patrimoniais, que carecem de indemnização, nomeadamente ao abrigo do referido contrato de seguro, que incluía a cobertura do risco de furto ou roubo. Citada, contestou a R. por exceção, invocando a prescrição e ilegitimidade do A., por não ser o proprietário do veículo automóvel, e por impugnação, e concluiu pela sua absolvição do pedido. Respondeu ainda o A., no sentido da improcedência das exceções arguidas pela R. Findos os articulados, e em 19 de março de 2012, foi proferido o despacho saneador, no qual se absolveu a Ré da instância, com fundamento na ilegitimidade do Autor. Não se conformando com essa decisão, recorreu o Autor e, tendo alegado, formulou, essencialmente, as seguintes conclusões: a) O Autor celebrou o contrato de seguro como tomador de seguro, pois também o contratou na qualidade de segurado, por ser quem mais utilizava o veículo automóvel. b) É responsável único perante eventuais danos próprios que adviessem quando o usufruía do veículo, incluindo o seu furto ou roubo. c) Na relação controvertida configurada na p.i., o Recorrente é titular de interesse relevante, direto e pessoal. d) O Tribunal ad quo interpretou e aplicou os §§ 1.º e 2.º do art. 428.º do Código Comercial e o art. 1253.º do Código Civil de forma incorreta. e) Poderá ainda configurar-se uma situação de abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium. f) A sentença recorrida não conduz a uma solução justa. Pretende o Recorrente, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida, com a determinação do prosseguimento dos termos da ação. Depois de algumas vicissitudes processuais, contra-alegou a Ré, no sentido da manutenção da decisão recorrida. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. Neste recurso, está em causa, essencialmente, a legitimidade ativa para a ação de efetivação da responsabilidade civil por furto de veículo, cujos danos foram seguros por pessoa distinta do seu proprietário. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. Estão provados os seguintes factos: 1.Em 28 de setembro de 2001, o A., na qualidade de tomador, celebrou com a R. o contrato de seguro do ramo automóvel, nos termos da apólice n.º 60/6865698, destinado a garantir os danos próprios e os emergentes da responsabilidade civil pela condução do veículo automóvel, matrícula (…), incluindo o risco de furto ou roubo. 2.Esse veículo automóvel encontrava-se registado, com reserva da propriedade, a favor do então cônjuge do A. 3.O A. era quem mais partilhava na utilização desse veículo automóvel, conjuntamente com o seu cônjuge. 4. Da petição inicial, consta a alegação de que o veículo automóvel referido foi furtado em 23 de janeiro de 2005, com participação à P.S.P. 5.Em 25 de janeiro de 2005, o A. comunicou, à R., o furto do veículo automóvel. 2.2. Delimitada a matéria de facto relevante, importa então conhecer do objeto do presente recurso, definido pelas suas conclusões, e cuja questão jurídica emergente foi antes especificada, nomeadamente a questão da legitimidade ativa para a ação de efetivação da responsabilidade civil. A decisão recorrida considerou que o Apelante não tinha qualquer interesse em segurar o veículo automóvel, por não ser seu proprietário, usufrutuário ou locatário e, por isso, não ter legitimidade para contratar o seguro de danos próprios, sendo ainda o contrato nulo, por falta de interesse em subscrevê-lo. Neste contexto, concluindo pela falta de interesse atendível, declarou a ilegitimidade do Apelante para ação, absolvendo a Apelada da instância. O Apelante, insistindo, continua a alegar a sua legitimidade para a ação, invocando ainda o abuso do direito, enquanto a Apelada, por sua vez, opondo-se, remete para a bondade da decisão recorrida. A legitimidade ativa para a ação, como pressuposto processual, afere-se pelo interesse direto em demandar, exprimindo-se esse interesse pela utilidade derivada da procedência da ação, como decorre do disposto no art. 26.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC). Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor – art. 26.º, n.º 3, do CPC. Com este sentido normativo, ultrapassou-se, conforme declaração expressa do legislador, a velha vexata quaestio acerca do estabelecimento do critério de determinação da legitimidade das partes, adotando-se uma posição próxima da de Barbosa de Magalhães, que se opunha à de Alberto dos Reis (veja-se, a propósito, ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, págs. 128 e segs., LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, 2004, págs. 55 e segs., LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 1999, págs. 50 e segs., e FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, Volume I, 2010, págs. 415 e segs.). No atual contexto legal, o critério comum de determinação da legitimidade das partes radica na titularidade da relação material controvertida, designadamente nos termos como é desenhada pelo autor da ação. Por isso, para tal efeito, não é exigível a efetiva titularidade da relação material controvertida, num sinal claro da desvalorização da legitimidade como pressuposto processual, evidenciada pelo tratamento dado por certa doutrina (M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, págs. 151 e segs., e LEBRE DE FRETAS, Ibidem, pág. 53). Face ao alcance do conceito de legitimidade consagrado na lei processual vigente, que acaba de se identificar, afigura-se que, no caso vertente, assiste legitimidade ao Apelante para demandar a Apelada, com vista a efetivar a responsabilidade civil, decorrente dos danos sofridos por efeito do furto do veículo automóvel, objeto do contrato de seguro facultativo, celebrado entre as partes. É certo que o veículo automóvel estava registado a favor de terceiro, nomeadamente do então cônjuge do Apelante, e que este celebrou o contrato de seguro na qualidade de tomador. Essa circunstância, contudo, não retira o interesse direto na ação ao Apelante, na medida em que era quem mais utilizava o veículo automóvel objeto do contrato de seguro invocado nos autos, como se encontra provado, por acordo das partes. Sendo legítimo o uso do veículo automóvel pelo Apelante e podendo o contrato de seguro ser celebrado mesmo por quem não fosse o proprietário do veículo, desde que revele ter um interesse no seguro, como se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de outubro de 2007, ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt (Processo n.º 07A2728), torna-se evidente a existência de um interesse pessoal e directo, para o tomador do seguro, pela reparação dos danos provocados pelo furto do veículo automóvel, objecto do contrato de seguro. A validade ou invalidade do contrato de seguro, nomeadamente à luz do disposto no art. 428.º do Código Comercial, é uma questão substantiva, que, porém, não pode influenciar a determinação da legitimidade activa para a acção, dado que aquela, como resulta do disposto no referido n.º 3 do art. 26.º do CPC, deve ser aferida em função dos termos como o autor descreveu a relação material controvertida. E, sendo assim, não pode deixar de se reconhecer ao Apelante legitimidade para instaurar a acção de efectivação da responsabilidade civil, nomeadamente nos termos do n.º 3 do art. 26.º do CPC. Acresce ainda que, independentemente da propriedade do veículo automóvel, o Apelante invocou também danos sofridos na sua esfera jurídica, designadamente danos de natureza não patrimonial. Esta circunstância, que não pode ser olvidada, mostra igualmente que o Apelante tem um interesse directo e pessoal na acção, o que lhe confere legitimidade activa para a demanda. A questão (substantiva) de saber se o contrato de seguro facultativo celebrado, e em razão do qual a Apelada, certamente, recebeu o correspondente prémio, possibilita ou não a atribuição de uma indemnização ao Apelante é, como anteriormente se aludiu, um problema que respeita, não ao pressuposto processual da legitimidade, mas, diferentemente, ao mérito da causa. Nesta senda, reconhecida a legitimidade activa para acção, não pode subsistir o despacho recorrido, que declarou a ilegitimidade do autor, procedendo assim, no essencial, o recurso interposto, com a consequente revogação do despacho recorrido, para que a acção prossiga os seus trâmites normais. 2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante: I. O critério comum de determinação da legitimidade das partes radica na titularidade da relação material controvertida, designadamente nos termos como é desenhada pelo autor da ação. II. Não é exigível a efetiva titularidade da relação material controvertida. III. Assiste legitimidade para demandar, com vista à efetivação da responsabilidade civil, decorrente dos danos sofridos por efeito do furto de um veículo automóvel, objeto do contrato de seguro facultativo, celebrado entre as partes, à pessoa que utilizava o veículo, ainda que a sua titularidade pertencesse ao então seu cônjuge. IV. A questão de saber se o contrato de seguro possibilita ou não a atribuição da indemnização é um problema que respeita, não ao pressuposto processual da legitimidade ativa, mas ao mérito da causa. 2.4. A Apelada, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC. III – DECISÃO Pelo exposto, decide-se: 1) Conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida. 2) Condenar a Apelada (Ré) no pagamento das custas. Lisboa, 6 de junho de 2013 (Olindo dos Santos Geraldes) (Fátima Galante) (Manuel José Aguiar Pereira) |