Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8454/2005-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: APREENSÃO DE VEÍCULO
RESERVA DE PROPRIEDADE
CONTRATO
MÚTUO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/20/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. É admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir um direito de crédito de terceiro, abrangendo a referência, no art. 18º, nº 1 do DL 54/75, ao “contrato de alienação” também o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade.
2. O art. 409º, nº 1, do CC abrange, na sua letra e espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel, em virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃODE LISBOA

            I - RELATÓRIO
B, S.A. vem requerer providência cautelar de apreensão de veículo automóvel e dos respectivos documentos, nos termos do disposto no DL nº 54/75, de 12 de Fevereiro, contra (V) e (P), alegando para tanto que:
- no exercício da sua actividade credíticia celebrou com os RR. um contrato de mútuo, pelo qual emprestou ao primeiro a quantia de € 14.490,00 com a fiança da Segunda;
- sob instruções expressa dos RR. a quantia mutuada foi entregue directamente à firma fornecedora do bem a adquirir, in casu, uma viatura automóvel marca Ford, modelo Focus Station, matrícula 74-...-TC;
- o veículo foi entregue aos requeridos;
- os requeridos obrigaram-se a pagar o montante mutuado em 72 prestações mensais, iguais e sucessivas no montante de € 271,37, vencendo-se a primeira em 24.09.04.;
- nos termos da cláusula 9ª foi acordada a constituição de reserva de propriedade sobre o citado veículo até integral cumprimento do contrato;
- os requeridos apenas pagaram as 5 primeiras prestações e parte da 6ª;
- a requerente interpelou os requeridos exigindo o pagamento dos valores em mora;
- os requeridos não efectuaram qualquer pagamento nem devolveram a viatura, pelo que se considerou o contrato em incumprimento definitivo a 21.05.05;
- a requerente tem direito à entrega do veículo à luz da reserva de propriedade;
- como preliminar da respectiva acção principal e ao abrigo do art. 15º do DL 54/75 pretende a requerente a apreensão do veículo.
Por despacho de 12.07.2005, foi liminarmente indeferido o requerimento inicial.
Inconformada, a Requerente agravoudo despacho, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:
1. A Agravante beneficia de Reserva de Propriedade, registada a seu favor, sobre o veículo automóvel cuja apreensão requereu, podendo exercer os direitos previstos no Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro, cuja aplicação não está condicionada à efectiva resolução do contrato, bastando a prova do incumprimento.
2. Os Requeridos entraram em incumprimento e a Requerente interpelou-os, resolvendo o contrato e exigindo a devolução da viatura.
3. Os Requeridos nada mais pagaram, continuando a usar e a fruir do veículo até à data.
4. Foram alegados factos públicos e notórios integradores do conceito de periculum in mora.
5. A Reserva de Propriedade foi querida pelas partes ao abrigo do princípio da liberdade e autonomia contratual, consubstanciando uma substituição do vendedor pelo credor bancário que integralmente o ressarciu do preço da venda através do mútuo concedido ao comprador, nenhum sentido fazendo, uma vez recebido integralmente o preço pelo vendedor, que este continuasse a arrogar-se a qualidade de proprietário, que de facto passou a ser aquele até ao pagamento integral das prestações convencionadas por parte do comprador.
6. A cláusula de Reserva de Propriedade registada é legítima, válida e eficaz, não podendo ser declarada ilícita oficiosamente. Quando muito, a parte interessada poderia, eventualmente, arguir a excepção no momento próprio, decidindo o juiz após cumprido o princípio do contraditório.
7. O atraso na restituição do veículo, tendo em conta a experiência comum, para além de causar graves prejuízos à Requerente, pela sua própria natureza, é susceptível de rápida e quiçá irremediável deterioração.
8. A não entender aplicável o referido Decreto-Lei n° 54/75, deveria ter-se ordenado nova autuação do processo como procedimento cautelar comum ou convidado ao aperfeiçoamento do requerimento inicial.
            9. O Mmo. Juiz a quo julgou improcedente a providência cautelar, desrespeitando as normas seguintes:
a) Artigo 62.°, nº 1, da C.R.P.: a Sentença recorrida veda ao Recorrente o ressarcimento, em tempo útil, do seu direito, o qual tem natureza patrimonial;
b) Artigo 205.°, da C.R.P.: a Sentença recorrida recusa, na prática, ao Recorrente a administração da justiça, na perspectiva de que esta deve ser exercida em tempo útil;
c) As disposições dos art°s 381° e ss. do C.P.C.
d) Artigo 15° e ss. do decreto-lei 54/75 de 12 de Fevereiro.

            Corridos os Vistos legais,
       Cumpre apreciar e decidir.
            Neste recurso está em causa saber se pode ser decretada apreensão do veículo em causa, requerida pelo titular da reserva de propriedade, nos termos do DL nº 54/75, em caso de incumprimento de um contrato de mútuo, cujo produto serviu para o financiamento da aquisição do mesmo veículo.

II – FACTOS PROVADOS
1. No exercício da sua actividade a Requerente celebrou com os Requeridos conrato de mútuo, pelo qual emprestou a quantia de € 14.490,00.
2. A quanta mutuada foi entregue directamente à fornecedora do bem, no caso um veículo automóvel, FORD, Focus Station, matrícula 74-...-TC.
3. O veículo foi entregue aos Requeridos que apenas pagaram as primeiras cinco prestações.
4. Nos termos da cláusula 9ª do mútuo, foi acordada a constituição de reserva de propriedade sobre o referido veículo, a favor da Requerente, até integral pagamento.
5. A referida reserva foi objecto de inscrição na Conservatória do Registo Automóvel.

III - O DIREITO
Na decisão recorrida não foi decretada a providência requerida de apreensão do veículo, nos termos previstos no DL n° 54/75, de 12/02, por se entender que sendo este procedimento antecipatório da acção de entrega definitiva decorrente da resolução de um contrato de compra e venda, não estando alegada a celebração pelas partes de qualquer contrato de compra e venda, mas de um contrato de financiamento de uma aquisição sob a forma de um mútuo, a requerente é terceira relativamente ao contrato de compra e venda, pelo que nunca poderá propor uma acção de resolução ao abrigo do disposto no art. 18° n.º 1 do DL n.º 54/75.
            Dispõe o art. 15º, nº 1, do citado diploma que,  “vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veiculo e dos seus documentos.
Por sua vez, prescreve o art. 16°, nº1 que “provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”.
            Conforme resulta do disposto nos arts. 5°, 15° e 16° do Dec.-Lei nº 54/75, no caso de incumprimento pelo requerido das obrigações que originaram a reserva de propriedade, as condições de exercício do presente procedimento cautelar são:
a) que a reserva de propriedade se encontre registada, a favor do requerente, na Conservatória do Registo de Automóveis, em obediência à alínea b) do art. 5°/1 do Dec.-Lei nº54/75, de 12/02;
b) que o requerido não tenha cumprido as obrigações que originaram a reserva de propriedade.
Por seu lado, o art. 409º do CC, constituindo uma excepção à regra prevista no art. 408º do CC, tem como efeito suspender a transmissão do bem. O alienante reserva para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações assumidas pelo comprador. Assim, o bem só se transmite quando o comprador tiver cumprido as  suas obrigações contratuais.
1. Não se desconhece que tradicionalmente a jurisprudência tem sustentado, tal como a decisão recorrida que, sendo a providência dependência da acção principal a propor,  que o quadro jurídico-processual em que se integra a figura da apreensão cautelar de veículos é restrito, independentemente do regime de direito substantivo a que obedece a compra e venda com reserva de propriedade, associada ou não a contratos de financiamento bancário ou parabancário[1].
De acordo com esta posição, a providência cautelar em causa só é susceptível de tutelar a existência de um direito de crédito vencido de natureza pecuniária garantido por hipoteca, e a falta de cumprimento da obrigação de prestação correspondente, ou de um contrato de compra e venda de veículo automóvel com convenção de reserva de propriedade e incumprimento das obrigações assumidas pelo comprador.

            2. Porém, uma outra corrente vem entendendo que é admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir um direito de crédito de terceiro, abrangendo a referência, no art. 18º, nº 1 do DL 54/75, ao “contrato de alienação” também o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade[2].
De facto, importa ter presente a evolução social no que concerne às novas modalidades de contratação, susceptíveis, pela sua peculiar estrutura, de alargar os tradicionais modelos processuais, em termos de englobarem as novas realidades contratuais, sobretudo quando se trata, como ocorre no presente caso, de contratos intensamente conexionados, fazendo apelo à interpretação actualista do citado nº 1 do artº 18º do DL nº 54/75.
            A verdade é que, assiste-se nos últimos anos, a um exponencial crescimento do crédito ao consumo, “…sendo hoje a regra para a aquisição de quaisquer bens com algum valor significativo - com especial relevo para os veículos automóveis - o recurso ao financiamento pelas instituições vocacionadas para o efeito, sobrando, por isso, não tanto a eventualidade do incumprimento pelo consumidor das obrigações emergentes do contrato de alienação, mas mais das do contrato de mútuo que aquele permite, podendo, em boa verdade, dizer-se que o pagamento do preço do bem alienado se confunde com o cumprimento integral das obrigações do contrato que tem como objecto o financiamento da sua aquisição”[3].
O art. 9º, nº 1 do C.C. refere que à actividade interpretativa não basta o elemento literal das normas e que é essencial a vontade do legislador, captável no quadro do sistema jurídico, das condições históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, na especificidade do tempo em que são aplicadas.
Interpretar uma lei é, no fundo, fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei [4].
No plano dos resultados da interpretação, mostra-se necessário, ainda confrontar o texto da lei com o seu espírito: havendo coincidência, estar-se-á perante a chamada interpretação declarativa; não a havendo, ocorre a chamada interpretação extensiva ou restritiva.
Alguns autores até admitem dever operar a interpretação correctiva se o seu resultado se configurar contrário a interesses preponderantes da ordem jurídica, em termos tais que, se o legislador tivesse considerado a situação, não a teria consagrado.
Ora, o citado art. 18º insere-se no âmbito das normas reguladoras da acção especial cautelar de apreensão de veículos automóveis, motivada pela ideia da sua deterioração no tempo necessário para a conclusão da acção declarativa de que é instrumental.
Por seu lado, a venda com reserva de propriedade (art. 409º do CC) é uma alienação sob condição suspensiva, em que se suspende o efeito translativo, produzindo-se imediatamente os demais. A transferência da propriedade fica dependente de evento futuro, que, em regra, será o cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte e daí que a hipótese mais frequente seja a da venda a prestações com espera de preço, em que se clausula, para maior segurança do vendedor, que a coisa vendida continuará a pertencer-lhe até o preço estar integralmente pago.
Parece, pois, perfeitamente admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência da propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda, como decorre da parte final do art. 409º, 1, doCC.
Assim, o art. 409º, nº 1, do CC abrange, na sua letra e espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel por virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo.
Ademais, a lei permite que se o devedor cumprir com dinheiro ou outra coisa fungível emprestado por terceiro pode sub-roga-lo nos direitos do credor. Esta situação de sub-rogação não carece do consentimento do credor e depende de declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor (art. 591º do Código Civil).
            Por tudo isso, na leitura do disposto no artº 18º, nº 1 do DL nº 54/75, é de entender como extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade, a referência ao "contrato de alienação".
Como faz notar do acórdão desta Relação e desta Secção [5], “a interpretação jurídica das normas não deve restringir-se a um conceptualismo formalista, despido das consequências práticas que dele possam provir”. E a ponderação das consequências “constitui ainda um momento da argumentação jurídica, pelo menos para todos quantos entendem - e são hoje muitos - que a inferência jurídica não pode ficar alheia aos efeitos práticos da solução inferida”[6].
A formal e redutora interpretação de que só o incumprimento e consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega do veículo alienado, tornaria inútil e sem efeito prático a cláusula da reserva de propriedade, sempre que a aquisição do veículo fosse feita através do financiamento de terceiro, o que constitui hoje a regra, face à evolução verificada nessa forma de aquisição.
O vendedor, recebendo do financiador o montante integral do preço do veículo, o que, na maioria dos casos, corresponde ao cumprimento integral do contrato de alienação pelo comprador, fica, em bom rigor, impedido de resolver esse contrato, porque integralmente cumprido e, logo, de fazer reverter a seu favor a cláusula de reserva de propriedade, até porque, verdadeiramente, esta foi estabelecida para garantir o cumprimento do contrato de financiamento.
Como refere o acórdão a que vimos fazendo referência “… incumprido este sem que o financiador, ainda que conjuntamente com o vendedor titular da reserva, pudesse accionar tal clausulado, invocando a resolução do único contrato que, em última análise, não foi cumprido - o contrato de mútuo -, chegaríamos à tão iníqua quanto absurda situação de o mutuário/comprador relapso não poder ser desapossado do veículo de que não é proprietário, exactamente porque a transferência da propriedade ficou salvaguardada pela cláusula da reserva de propriedade, esvaziando-se por completo a finalidade e utilidade desta”.
Em tais circunstâncias juridico-factuais e preenchido o requisito do registo da reserva de propriedade em favor do mutuante, como sucede no caso dos autos, não é de indeferir liminarmente a providência cautelar de apreensão de veículo automóvel pelo mesmo instaurada.
A Requerente indicou testemunhas para prova da restante matéria factual.

IV – DECISÃO
Termos em que se acorda em conceder provimento ao agravo, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
Lisboa, 20 de Outubro de 2005.
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)
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[1] Entre outros, o Ac. RL Lisboa, 16-12-03 (relator António Abrantes Geraldes), www.dgsi.pt
[2] Acs. Rlde 13.02.2003 (Olindo Geraldes), CJ, tomo I, pág. 103; de 13-3-03, (Pereira Rodrigues) CJ, tomo II, pág. 74; de 27.06.2002 (Salvador da Costa) e de 05-05-2005 (Carlos Valverde) in www.dgsi.pt.
[3] Ac RL de 05-05-2005 (Carlos Valverde) in www.dgsi.pt.

[4] Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, págs. 21 a 26.
[5] Ac RL de 05-05-2005 (Carlos Valverde) in www.dgsi.pt
[6] Ac. do STJ, de 19-9-89, in BMJ nº 389, pág. 536, citado no Acórdão desta Relação de 5.5.2005, já referênciado.”