Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
269/21.7T8FNC.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: EXPROPRIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
PARTILHA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC)
I. Na falta de acordo entre os interessados sobre a partilha da indemnização depositada pela entidade expropriante à ordem do tribunal, em princípio caberá ao juiz do processo de expropriação diligenciar pela efetuação dessa partilha, o que fará “nos termos do Código de Processo Civil” (art.º 37.º n.º 4 do CE), isto é, por decisão a proferir após ter ouvido os interessados e realizado as diligências instrutórias que reputar necessárias.
II. Porém, se a indemnização constituir bem comum de um casal unido pelo matrimónio, que entretanto se divorciou, na falta de acordo devem os interessados ex-cônjuges obter no pertinente processo de inventário a definição dos direitos que a cada um deles pertence em relação à indemnização depositada nos autos, para em conformidade com o aí decidido lograrem obter no processo de expropriação o pagamento do que lhes for devido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
1. Em 18.01.2021 a Região Autónoma da Madeira – Direção Regional do Património e de Gestão dos Serviços Partilhados enviou ao Tribunal Judicial da Comarca da Madeira os autos de expropriação da “parcela …” levada a cabo para a realização da obra “Construção do novo Hospital do Funchal”, nos quais a requerente é entidade expropriante e são expropriados Maria (…) e outros, identificados nos autos.
2. A entidade expropriante requereu que lhe fosse adjudicada a posse e propriedade de um prédio misto e suas benfeitorias com a área de 1960m2, inscrito na matriz predial urbana sob os artigos matriciais n.ºs (…), (…), (…), (…), (…) (desconhecendo-se a identificação dos artigos de matriz das duas frações restantes) e na matriz predial rústica sob o artigo matricial n.º (…), seção U, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º (…)/20061215, localizado ao Pico do Funcho e identificado como parcela (…).
3. A entidade expropriante juntou comprovativo da declaração da utilidade pública da expropriação por resolução de Conselho de Governo n.º 557/2020 de 30 de julho, publicada no JORAM, 1.ª Série, n.º 148 de 6 de agosto de 2020.
4. A arbitragem atribuiu, por acórdão de 16.12.2020, ao referido prédio o valor global de € 795.289,20 (setecentos e noventa e cinco mil duzentos e oitenta e nove euros com vinte cêntimos).
5. Encontra-se junta aos autos a guia de depósito referente à quantia arbitrada.
6. Em 24.02.2021 foi proferido despacho de adjudicação da posse e direito de propriedade sobre o aludido imóvel e parcela.
7. Em 22.3.2021 os interessados G e J recorreram da decisão arbitral, circunscrevendo o âmbito do recurso ao valor atribuído às duas benfeitorias urbanas de que são donos, a que fora atribuído o montante indemnizatório de € 150 450,00 e € 15 555,00, respetivamente.
8. Em 22.12.2021 a entidade expropriante e os recorrentes/interessados G e J formalizaram transação nos autos, que foi homologada por sentença, findando o recurso.
9. Os restantes interessados não recorreram da decisão arbitral, tendo apresentado requerimentos visando o levantamento das indemnizações que lhes cabiam nos termos da decisão arbitral.
10. Assim e para o que importa para o objeto deste recurso de apelação em 16.3.2021 os interessados Manuel (…) e Maria (…) apresentaram o seguinte requerimento:
MANUEL (…), NIF (…), divorciado, residente ao (…), no Funchal, neste ato representado pela mandatária (…), com escritório à Rua (…), no Funchal, e
MARIA (…), NIF (…), divorciada, residente à (…), no Funchal, neste ato representado por (…), Advogada com cédula profissional n.º (…) e domicílio profissional na Rua (…), no Funchal,
Notificados do montante depositado referente à fração (…), vêm pelo presente solicitar o pagamento de €223.207,00 em duas tranches de €111.603,50 porquanto os titulares do prédio se mostram atualmente divorciados, conforme documento 1 que se anexa, solicitando a transferência de tais valores para as contas bancárias das mandatárias, nos termos seguintes:
Conta Clientes (…):
Valor de €111.603,50 para a Conta (…);
Conta Clientes (…): Valor de €111.603,50 para a Conta (…);
Termos em que pede e espera de V. Excia. deferimento.
JUNTA: 1 documento e procurações forenses”.
11. Em 09.4.2021 os interessados Maria (…) e Manuel (…) apresentaram um segundo requerimento, reiterando o requerido em 10.
12. Em 06.9.2021 foi proferido, no que concerne aos requerimentos referidos em 10 e 11, o seguinte despacho:
Notifique os expropriados (descrição predial n.º (…)/20111130 – fls.436, identificada no quadro 7 do auto de arbitragem de fls.327) de que o levantamento da indemnização deve ser precedido da demonstração do integral cumprimento das obrigações fiscais previstas no atual Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (procedeu à revogação do Código da contribuição Autárquica), conforme determinado pelo artigo 67.º, n.º 4, do Código das Expropriações, ou seja, devem os expropriados juntar aos autos certidão emitida pelo competente serviço de finanças na qual se demonstre a não existência de dividas de imposto (contribuição autárquica e/ou IMI).
Mais notifique a seção os processos executivos constantes da certidão predial de que existe nos presentes autos crédito a favor dos expropriados Manuel (…) e Maria (…)”.
13. Em 24.9.2021 a interessada Maria (…) veio aos autos (requerimento com a Referência n.º 4340125) juntar aquilo que considerou ser os “documentos necessários ao pagamento da indemnização respeitante à aqui expropriada”, ou seja:
a) Uma “declaração para levantamento de indemnização” assinada pela interessada, na qual reclama para si o pagamento da indemnização no valor de € 115 978,50, correspondente a € 111 603,50 acrescidos de € 4 375,00 “a título de partilha de património conjugal”, “conforme ata de processo de inventário”, afirmando que os créditos garantidos por penhora sobre o imóvel expropriado respeitam ao expropriado Manuel e não à expropriada Maria (…);
b) Uma ata de conferência de interessados em processo de inventário para partilha de bens, datada de 17.02.2016;
c) Uma certidão do Serviço de Finanças de Câmara de Lobos, datada de 24.9.2021 e válida por três meses, declarando que a referida interessada tinha a sua situação tributária regularizada.
14. Em 28.01.2022 o tribunal a quo deferiu alguns dos requerimentos de pagamento de indemnizações apresentados pelos diversos interessados e indeferiu outros, tendo, no que concerne aos requerimentos dos interessados Maria (…) e Manuel (…) proferido o seguinte despacho:
A expropriada MARIA (…) veio, por Requerimento (4340125) Formulário (57217771) apresentar, declaração unilateral, para recebimento da indemnização pela expropriação da benfeitoria descrita no quadro 7 do auto de arbitragem de fls. 324.
A declaração emitida pela mesma quanto à categorização da quantia exequenda peticionada em processo de execução não vincula o tribunal, estando, manifestamente fora das competências deste, motivo pelo qual não é a mesma tida em consideração.
Manuel (…) não outorgou a declaração apresentada, nem a sua I. Mandatária procedeu à adesão eletrónica do requerimento em causa, pelo que não se mostram reunidas, por ora, as condições legais para o pagamento da indemnização (cf. art. 37.º, n.ºs 3 e 4 a contrario sensu do Código das Expropriações).
Notifique.
Dê a seção conhecimento, para os efeitos tidos por convenientes, ao processo executivo, ao Sr. agente de execução e ao exequente (Urbano (…) - fls. 528), de que se mostra depositado à ordem deste tribunal o montante de € 223.207,00 relativo à indemnização por expropriação da fração com o artigo 3352”.
15. Em 02.02.2022 a Sr.ª agente de execução no processo de execução n.º (…)/12.2TBFUN pendente no Juízo de Execução do Funchal, Juiz 1, veio aos autos informar “que se encontra/fica penhorado, nos termos do artigo 773º do Código de Processo Civil, à ordem dos presentes autos a quantia de € 73.072,02 (setenta e três mil, e setenta e dois euros e dois cêntimos) que o executado Manuel (…), NIF (…), tem a receber no processo de expropriação com o n.º 269/21.7T8FNC”.
16. Em 05.02.2022 a interessada Maria (…), através da sua mandatária, veio aos autos apresentar o seguinte requerimento:
1. No que à necessidade de anuência do expropriado Manuel, sob a forma de outorga na declaração apresentada pela expropriada Maria (…) se refere, cumpre dizer:
- Foi notificada a Agente de execução do despacho supra, e a mesma veio comunicar que a quantia exequenda penhorada ao que o executado Manuel tem a receber, é de €73.072,02.
2. Quer isto dizer que, a penhora é em relação àquele, sobre a quota parte dele, sendo desnecessário, pois, a este tribunal categorizar, pois com esta decisão perentória da Agente de Execução, é evidente a exclusão deste montante à quota parte da Maria (…), assim como exime – a, de qualquer dependência do aval do executado, na assinatura de um acordo, para receber o que é seu por direito.
3. Por todo o atrás descrito, o montante de €111.603,50 acrescido dos €4.375,00 o que perfaz €115.978,50, que legalmente é titular, não pode ser beliscado pela ameaça de uma execução, que não recaiu sobre si.
4. Salvo o respeito devido, não está, um juiz vinculado nesta sede a um título executivo, fundado numa sentença?
5. Parte - se do pressuposto que é um facto assente a quota parte da Maria (…) e respectiva justificação, não obstante, não será demais realçar que se fixou o valor da indemnização decidida pelos árbitros, adicionado ao valor correspondente à expropriação à totalidade do prédio, decidido pelo tribunal e correspondentemente alvo de depósito pela entidade expropriante.
6. Esse valor indemnizatório foi fixado em termos globais, sem especificação do montante que cabe a cada interessado.
7. Daí que a concretização da quantia a que cada um dos expropriados terá direito dependerá, primacialmente, de acordo entre todos. Na falta de acordo, o montante da indemnização deverá ser entregue àquele que por todos for designado (n.º 4 do art.º 37.º, Código das Expropriações).
8. Na falta de tal designação, estabelece o n.º 4 do art.º 37.º que efetuar-se-á a partilha “nos termos do Código de Processo Civil”.
9. Porém, em acórdão da Relação de Lisboa, datado de 16.9.2008, proferido no processo n.º 22203/1991.L1, foi ponderado que do normativo contido no n.º 4 do art.º 37.º do CE resulta que “a atribuição das prestações aos interessados sobre o montante indemnizatório global far-se-á, na falta de acordo, segundo as regras de partilha previstas no CPC. E, não obstante, se tratar materialmente de divisão de coisa comum, parece ressaltar da letra da lei a aplicabilidade das regras do inventário partilha com as necessárias adaptações.
10. Ora, tendo já existido um inventário partilha que veio fixar os termos desta, conforme Ata de processo de Inventário, já junta, não se vislumbra qualquer impedimento para que se proceda ao pagamento da indemnização, nem pode o tribunal abalroar os direitos destes cidadãos a uma vida condigna, privados que foram do seu lar, sem alternativa concedida.
11. Assim deverá V. Exa, proceder com o pagamento da indemnização da expropriação, na proporção de 50% do seu valor, (€111.603,50) bem como do acréscimo (€4.375,00) previsto em decisão no processo de inventário, desobrigada da ingerência da execução sobre a Maria (…), totalizando €115.978,50.
Nestes termos, reitera - se a V. Exa. que se encontram reunidas as condições previstas no art. 37, n.º 3 e 4 do Código de Expropriações, ipsis litteris, para ordenar o pagamento de indemnização à aqui expropriada Maria (…), tendo em conta a sentença que é título executivo e a sentença de inventário.
Pede e espera deferimento de Vossa Excelência”.
17. Em 16.02.2022 o interessado Manuel (…) veio aos autos dizer o seguinte:
MANUEL (…), notificado do requerimento apresentado pela sua ex-consorte MARIA (…), vem pelo presente esclarecer o seguinte:
1. O prédio expropriado é da titularidade conjunta do casal;
2. Os ónus que sobre ele impendem serão sempre responsabilidade dos dois titulares;
3. Mostra-se definido o valor de indemnização referente à expropriação desse imóvel;
4. Os valores decorrentes de outros processos deverão neles ser resolvidos e não nesta sede.
5. Solicita-se assim a divisão do montante da expropriação, em duas partes de igual valor, a repartir pelo ex-casal.
Termos em que pede e espera de V. Excia. Deferimento”.
18. Em 25.7.2018 o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
Vistos os autos.
O direito de propriedade sobre a benfeitoria descrita no quadro 7 do auto de arbitragem de fls. 324 encontra-se registada a favor de Manuel (…) e de Maria (…), à data casados entre si sob o regime da comunhão de adquiridos.
O imóvel faz assim parte do acervo conjugal, o qual terá de ser objeto de partilha dos bens comuns do casal, por meio do processo de inventário adequado (à falta de acordo para partilha extrajudicial) – cf. art. 1082.º, al. d) do Código de Processo Civil.
O valor da indemnização, sendo produto da expropriação de bem comum integra, igualmente, tal natureza.
Foi da mesma penhorada a quantia de € 73.072,02 no processo executivo n.º 3581/12.2TBFUN.
Posto isto, a expropriada MARIA (…) veio, por Requerimento (4340125) Formulário (57217771) apresentar, declaração unilateral, para recebimento da indemnização pela expropriação da benfeitoria descrita no quadro 7 do auto de arbitragem de fls. 324.
O tribunal reafirma que a declaração emitida pela mesma quanto à categorização da quantia exequenda peticionada em processo de execução não vincula o tribunal, estando, manifestamente fora das competências deste, motivo pelo qual não é a mesma tida em consideração.
Dessarte, não tendo Manuel outorgado a declaração apresentada, nem a sua I.Mandatária procedeu à adesão eletrónica do requerimento em causa, antes pelo contrário vem o mesmo requerer, igualmente, o pagamento da indemnização não se mostram reunidas, por ora, as condições legais para o pagamento da indemnização (cf. art. 37.º, n.ºs 3 e 4 a contrario sensu do Código das Expropriações).
Por fim, não cabe ao presente tribunal “executar a sentença de divórcio”, pois como a I.Mandatária da expropriada não olvidará, a execução de sentenças é matéria do juízo central de execução e não deste juízo local cível.
Em conclusão, não sendo junto um requerimento conjunto (expropriada Maria (…) e Manuel (…)) sobre a forma de partilha da indemnização (tendo igualmente presente a quantia que se mostra penhorada), não se mostra legalmente possível atribuir a indemnização nos termos peticionados pela expropriada Maria (…), pelo que, existindo dúvidas quanto ao titular da indemnização, o código das Expropriações indica o procedimento a ser seguido.
Indefere-se assim ao requerido”.
19. A interessada Maria (…) apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo, determinou o indeferimento da pretensão de realização de inventário partilha no próprio processo de expropriação, da atribuição da indemnização da expropriada, aqui recorrente e da exclusão da mesma na quantia exequenda penhora, remetendo a forma da partilha da indemnização e penhora, para procedimento autónomo.
2. A recorrente nos presentes autos pretende a revogação e alteração do douto despacho recorrido e que seja ordenado o prosseguimento do inventário naquela sede, com fundamento na,
- Matéria de direito do despacho proferida nos presentes autos * Inconstitucionalidade
e
- Nos pontos de direito incorretamente julgados e constantes da fundamentação de facto do despacho recorrido, cuja alteração implica um enquadramento jurídico diferente do consagrado naquela.
Inconstitucionalidade
3. A questão de o tribunal extravasar a sua competência para se pronunciar quanto à “categorização” da quantia exequenda existente, não foi concretamente equacionada no despacho recorrido, que se limitou, à afirmação genérica de que está fora das competências do tribunal se pronunciar sobre quem recai a penhora de quantia exequenda, eximindo – se assim da intervenção especialmente relevante que é atribuída ao juiz no respectivo desenvolvimento processual, o que viola o previsto nos artigos 12, n.º 1 e 20, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa no sentido em que consagram o direito a um processo equitativo.
4. A insusceptibilidade da Recorrente, fazer valer o seu direito a ser ressarcida pela declaração de utilidade pública da expropriação do bem imóvel, – artigo 2º, do Código de Expropriações, através da atribuição da indemnização fixada, fazendo depender da anuência do expropriado, ex-cônjuge daquela.
5. Nos termos do artigo 20, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, como decorrência da personalidade judiciária
6. Assim sendo a decisão do tribunal a quo surge como restritiva deste direito, em virtude da errónea interpretação legal e consequente errada aplicação da justiça, violando a Lei Fundamental, no seu princípio da proibição da indefesa, compreendido no direito de acesso ao direito e aos tribunais, entendendo – se indefesa como privação ou limitação do direito de defesa da Ré, ora recorrente.
7. Assim sendo, mais não resta do que afastar o indeferimento constante da decisão, pela pretensa falta de anuência do ex-cônjuge, e consequente remissão para processo autónomo de inventário, bem como pelo alegado extravasar de competência para determinar sobre quem recai a penhora, porquanto o mesmo fere a Constituição, por uma incorreta interpretação.
8. Incorreta apreciação de Matéria de Direito
9. O tribunal a quo entendeu e fundou a sua convicção em:
1 - “O direito de propriedade sobre a benfeitoria descrita no quadro 7 do auto de arbitragem de fls. 324 encontra-se registada a favor de Manuel (…) e de Maria (…), à data casados entre si sob o regime da comunhão de adquiridos. O imóvel faz assim parte do acervo conjugal, o qual terá de ser objeto de partilha dos bens comuns do casal, por meio do processo de inventário adequado (à falta de acordo para partilha extrajudicial) – cf. art. 1082.º, al. d) do Código de Processo Civil. O valor da indemnização, sendo produto da expropriação de bem comum integra, igualmente, tal natureza.”.
10. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorretamente os referidos factos.
11. O despacho de indeferimento foi fundado nas dúvidas quanto ao titular da indemnização e a forma de atribuição, e teve como base ou motivos, de acordo com a sentença a fls 574:
a) “O direito de propriedade sobre a benfeitoria descrita no quadro 7 do auto de arbitragem de fls. 324 encontra-se registada a favor de Manuel (…) e de Maria (…), à data casados entre si sob o regime da comunhão de adquiridos. O imóvel faz assim parte do acervo conjugal, o qual terá de ser objeto de partilha dos bens comuns do casal, por meio do processo de inventário adequado (à falta de acordo para partilha extrajudicial) – cf. art. 1082.º, al. d) do Código de Processo Civil. O valor da indemnização, sendo produto da expropriação de bem comum integra, igualmente, tal natureza.”.
b) Foi da mesma penhorada a quantia de € 73.072,02 no processo executivo n.º 3581/12.2TBFUN. Posto isto, a expropriada MARIA (…) veio, por Requerimento (4340125) Formulário (57217771) apresentar, declaração unilateral, para recebimento da indemnização pela expropriação da benfeitoria descrita no quadro 7 do auto de arbitragem de fls. 324. O tribunal reafirma que a declaração emitida pela mesma quanto à categorização da quantia exequenda peticionada em processo de execução não vincula o tribunal, estando, manifestamente fora das competências deste, motivo pelo qual não é a mesma tida em consideração.”
c).”Dessarte, não tendo Manuel outorgado a declaração apresentada, nem a sua I.Mandatária procedeu à adesão eletrónica do requerimento em causa, antes pelo contrário vem o mesmo requerer, igualmente, o pagamento da indemnização não se mostram reunidas, por ora, as condições legais para o pagamento da indemnização (cf. art. 37.º, n.ºs 3 e 4 a contrario sensu do Código das Expropriações).”
d) “Por fim, não cabe ao presente tribunal “executar a sentença de divórcio”, pois como a I.Mandatária da expropriada não olvidará, a execução de sentenças é matéria do juízo central de execução e não deste juízo local cível.”
e) “Em conclusão, não sendo junto um requerimento conjunto (expropriada Maria (…) e Manuel (…)) sobre a forma de partilha da indemnização (tendo igualmente presente a quantia que se mostra penhorada), não se mostra legalmente possível atribuir a indemnização nos termos peticionados pela expropriada Maria (…), pelo que, existindo dúvidas quanto ao titular da indemnização, o código das Expropriações indica o procedimento a ser seguido. Indefere-se assim ao requerido.”
12. Com efeito, tal decisão, determinando, que se faça a partilha por “meio de processo de inventário adequado”, entenda – se, num processo instaurado separadamente, não é fundamentada, pela previsão legal apontada, e como tal o tribunal não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, o que constitui uma violação do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição e do artigo 154, n.º 1 e 2, do CPC.
13. É não fundamentada a decisão do tribunal porque não enunciou de modo expresso ou de modo implícito, inteligível, i.e., não ambíguo ou não obscuro, o teor material da regra ou princípio em que se apoiou, na parte de remeter para um “processo de inventario adequado
14. E nesse sentido há o entendimento que “ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial”, assim, “não cumprindo o dever constitucional/legal de justificação” (STJ 2- 3-2011/Proc. 161/05.2TBPRD.P1. S1 (SÉRGIO POÇAS)).
15. Não sendo demais realçar que, foi fixado o valor da indemnização determinado pelos árbitros, correspondente à expropriação da totalidade do prédio, decidido pelo tribunal e correspondentemente alvo de depósito pela entidade expropriante.
16. O valor indemnizatório foi fixado em termos globais, sem especificação do montante que cabe a cada interessado. Daí que a concretização da quantia a que cada um dos expropriados teria direito depende, primacialmente, de acordo entre todos.
17. Na falta de acordo, o montante da indemnização deverá ser entregue àquele que por todos for designado (n.º 4 do art.º 37.º, 1.ª parte, Código das Expropriações).
18. O tribunal optou por aplicar à contrário sensu, o previsto no artigo 37, n.º 3 e 4, do Código de Expropriações.
19. Salvo o devido respeito, não é possível encontrar correspondência literal na letra da lei com o sentido pretendido e dado pelo tribunal, mesmo numa óptica à contrário sensu, quando se estatui claramente no n.º 4, do art.º 37.º, que na falta de tal designação, efetuar-se-á a partilha “nos termos do Código de Processo Civil”, no próprio processo de expropriação, entenda – se.
20. Podemos inclusive questionar a interpretação defendida na decisão recorrida, não apresentar o mérito demonstrativo suficiente para justificar a parte dispositiva, ao concluir que a norma que se retira do art.º 37, n.º 3 e 4 do CE, se aplica à contrario sensu, ao caso em concreto, não resultando, na nossa perspetiva, que este preceito restrinja a recorrente do direito de se proceder a partilha, se a mesma resultar do processo de expropriação.
21. Veja – se aliás a esse propósito, o Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 16.9.2008, proferido pelo Desembargador Tomé Gomes no processo n.º 22203/1991.L1, foi ponderado que do normativo contido no n.º 4 do art.º 37.º do CE resulta que “a atribuição das prestações aos interessados sobre o montante indemnizatório global far-se-á, na falta de acordo, segundo as regras de partilha previstas no CPC. E, não obstante, se tratar materialmente de divisão de coisa comum, parece ressaltar da letra da lei a aplicabilidade das regras do inventário-partilha com as necessárias adaptações. Fixada, pois, a indemnização globalmente devida, há que notificar os interessados para comprovarem nos autos a realização de acordo sobre a sua respectiva repartição e para, na falta de acordo, se pronunciarem sob a forma da partilha, seguindo-se depois os termos respeitantes à partilha em inventário. Este procedimento será tramitado nos próprios autos principais (…).” (Dr. Joel Timóteo Ramos Pereira, Juiz de Direito de Círculo, Revista “o Advogado”, II Série, n.º 21, Janeiro de 2006).
22. Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 17.06.2021 no proc. 3689/10.9TBFUN.L1-2, diz que “Os interessados têm o direito de lhes ser atribuída a quantia indemnizatória antes referida. Atribuição essa que deve ter lugar em conformidade com o disposto nos arts. 73.º/1 e 37.º/4 do CE e ocorrer por partilha entre os comproprietários. Está em causa um ato processual complementar (de execução), que pode ter lugar nestes mesmos autos. Tais asserções constantes do despacho recorrido não permitem aos apelantes se inteirarem, de forma clara, lógica e congruente das justificações para que tivesse sido decidido não decidir o requerido pelos apelantes, em particular quanto à atribuição de parte da indemnização fixada nos autos, e depositada pela entidade expropriante; O Tribunal a quo formula uma conclusão (errada), sem que para tanto aduza as pertinentes premissas; é a efetiva atribuição da referida indemnização da expropriação definitivamente fixada;”(Dr. JORGE LEAL).
23. Ou, poderemos entender que existe formalmente fundamentação, mas padece de insuficiência, mediocridade ou erroneidade? E nesse sentido, uma coisa é a decisão não conter fundamentação e, outra, é “bem ou mal, o tribunal fundamenta[r] a decisão” (RP 11-1-2018/Proc. 2685/15.4T8MTS.P1 (FILIPE CAROÇO)). É como um tertium genus,“ entre a fundamentação completa, total e indubitável e a falta de fundamentação”(TCAN 28-4-2016/Proc. 00385/08.0BEBRG (MÁRIO REBELO))
24. Poderemos igualmente estar, perante o facto de o próprio silogismo estar errado no seu mérito, por conter uma contradição com os factos ou com o Direito: trata-se de erro do julgamento de facto decorrente de o juiz “decidir contrariamente aos factos apurados” (RP 2-5-2016/Proc. 1556/14.6T8LOU-A. P1 (CORREIA PINTO)) ou de o julgamento de direito decorrente de o juiz decidir “contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente” (RP 2-5-2016/Proc. 1556/14.6T8LOU-A.P1 (CORREIA PINTO)) – seja por erro de subsunção dos factos à norma jurídica aplicável, seja por erro na determinação de tal norma ou por erro na sua interpretação.
25. Mas, afinal, a suscetibilidade da Recorrente ser indemnizada, pode ser inferida por aquela norma jurídica (37, n.º 4 CE), e que a decisão recorrida não deu importância?
26. Sim, se tivermos em linha de conta o que prevê o art.º 154 do CPC, que impõe ao tribunal o dever de fundamentar as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo, a qual a fundamentação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição da parte.
27. Não estando em causa o exercício de um poder discricionário, a apreciação judicial de um requerimento apresentado por uma parte, em que a mesma formula determinada pretensão, invocando expressamente os vários normativos legais em que se sustenta, não pode limitar-se ao indeferimento com o argumento de haver “falta de fundamento legal” ou “não se mostram reunidas por ora, as condições legais para o pagamento da indemnização”.
28. No mínimo, impunha-se explicitar o motivo pelo qual os normativos legais invocados pela recorrente não tinham aplicação no caso concreto, tornando assim sindicável a decisão judicial proferida.
29. E se conjugarmos com o entendimento de autores na doutrina que consideram que a decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol I, Almedina, 2.ª edição, 2020, p. 764).
30. A obscuridade ou ambiguidade só gera ininteligibilidade da parte decisória da sentença (ou do despacho) quando um declaratário normal, nos termos dos artigos 236.º n.º 1 e 238.º n.º 1 do CC não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., p. 735).
31. Em suma, e no que à questão do inventário ser em processo separado ou no próprio processo de expropriação se refere, o n.º 1 do art.º 73.º do CE estipula que “a atribuição das indemnizações aos interessados faz-se de acordo com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do art 37 do CE.” Daí que a concretização da quantia a que cada um dos expropriados terá direito dependerá, primacialmente, de acordo entre todos.
32. Na falta de acordo, o montante da indemnização deverá ser entregue àquele que por todos for designado (n.º 4). Na falta de tal designação, estabelece o n.º 4 do art.º 37.º que efetuar-se-á a partilha “nos termos do Código de Processo Civil”. Pelo que não poderia esta decisão ser indeferida.
33. No que se refere a parte do despacho que determina a não vinculação do tribunal sobre a categorização da quantia exequenda peticionada em processo de execução, não poderia o tribunal, como o fez, aderir aos fundamentos alegados pelo ex-cônjuge da Recorrente, porque não se trata de despacho de mero expediente, aqueles que se destinam «a promover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes» (Art. 152.º n.º 4 do C.P.C.).
34. No caso, o despacho incidia sobre uma pretensão específica da recorrente no sentido de se proceder ao pagamento da indemnização, de acordo com as regras do inventário, excluindo na sua quota parte a quantia exequenda penhorada, com base na existência de comunicação do AE, alegando que a penhora era em relação ao que o executado Manuel tem a receber.
35. Quer isto dizer que, a penhora é em relação àquele, sobre a quota parte dele, sendo desnecessário, ao tribunal categorizar, pois com esta decisão perentória da Agente de Execução, é evidente a exclusão deste montante à quota parte da Maria (…), assim como exime – a, de qualquer dependência do aval do executado, na assinatura de um acordo, para receber o que é seu por direito.
37. [Na apelação não consta conclusão n.º 36] Exploremos mais a fundo a questão: foi instaurado um processo declarativo comum, donde foi decidido que a dívida seria apenas do ex-cônjuge da recorrente (na altura já estavam divorciados). Desta decisão procedeu-se à execução (proc. 3581/12.2TBFUN), resultando uma dívida exequenda de 73.072,02 € (Doc. 1)
38. Foi penhorada no processo de expropriação essa quantia, contudo foi assumida pelo tribunal sobre o produto da expropriação do bem comum do casal. Ora existindo um património comum além dos patrimónios próprios dos cônjuges podem os credores executar a meação do cônjuge devedor nos bens comuns. (Artigo 1696 do Código Civil)
39. Estes bens não deixam de ser comuns, por isso se eles responderem por uma dívida própria haverá uma compensação ao património comum. É evidente que a existência de uma compensação implicará já um relacionamento entre o património próprio do Cônjuge devedor e o comum que não afeta a relação com os credores.
40. No campo da responsabilidade por dívidas, as compensações estão previstas no artigo 1697 do CC, essencialmente no facto de o crédito de um dos cônjuges sobre o outro só poder ser exigível no momento da partilha dos bens do casal (n.º 2 do artigo 1697)
41. Sempre que nos regimes de comunhão por dívidas de exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges tendo respondido bens comuns, surgirá um direito de compensação do património comum a efetivar no momento da partilha.
42. No final, a compensação devida a um dos cônjuges pela comunhão será paga por um acréscimo de meação do cônjuge credor nos bens comuns, de valor igual ao da compensação devida e, necessariamente, por uma diminuição, na mesma proporção, na meação do outro cônjuge.
43. A dissolução do casamento e da comunhão implica o fim do regime matrimonial e o surgimento de um estado de indivisão pós-comunhão que terminará com a liquidação e partilha dos bens comuns. É precisamente no momento da liquidação da comunhão que se devem integrar as compensações entre os patrimónios próprios e o comum.
44. Operação prévia a partilha dos bens comuns, a liquidação visa determinar e avaliar a massa a partilhar. É o ativo que se partilha, mas, sempre que possível, o ativo líquido, deduzindo o passivo, as dívidas da comunhão. A liquidação da massa comum não será completa se não incluir na massa activa ou passiva da comunhão as compensações, consoante sejam a favor ou a cargo da mesma, respetivamente.
45. Por isso, será preciso, no momento da liquidação e partilha, restabelecer o equilíbrio entre os patrimónios. Se for devedor de uma compensação face a comunhão, (1689, 1, in fine CC), deverá conferir o que deve ao património comum, o que implicará não necessariamente uma reposição dos bens ou valores retirados a comunhão, mas o receber menos bens na sua meação, ou seja, será a meação do cônjuge devedor que responderá pela compensação devida a comunhão, imputando se o valor da compensação devida na sua meação.
46. A lei permite que o credor execute a meação do cônjuge devedor, mandando citar o cônjuge do executado para requerer a separação de bens, precisamente para forçar a partilha dos bens do casal. Caso tal não suceda o credor penhora bens comuns e não exatamente a meação do cônjuge devedor que apenas será determinada no momento da liquidação.
47. Atendendo o disposto no artigo 1689 CC, as compensações devidas pela massa comum a um dos cônjuges, e pagas por um acréscimo da sua meação nos bens comuns, terão de ser apuradas e reservadas ao cônjuge credor da compensação antes do pagamento das dívidas e liquidação do passivo da comunhão, no sentido de integrarem o passivo da mesma.
48. Dizemos reservadas na medida em que o pagamento das compensações realiza-se por imputação no aumento do seu valor na meação do cônjuge devedor ou credor e a atribuição concreta da meação apenas se verifica após o pagamento das dívidas. As compensações a favor de um dos cônjuges e do seu património próprio constituem também um crédito desse cônjuge e um débito da comunhão, pois trata-se de valores que a comunhão indevidamente utilizou em seu benefício.
49. No acórdão da Relação de Coimbra de 15/2/2005 diz que o processo Especial de inventario em consequência do divórcio é o meio adequado para se conhecer e decidir dos chamados créditos de compensação entre os cônjuges devendo aí ser relacionados. Destina-se não só a dividir os bens do casal, mas a liquidar as responsabilidades mútuas e as dívidas do casal e nestas incluem-se não só as dívidas face a terceiros, mas também as devidas entre os patrimónios existentes dentro do casal. Tal como se incluem todos os bens do casal também deve incluir-se todas as dívidas, incluindo as compensações.
50. As compensações implicam uma relação com o património comum e efetivamente o processo de inventário é meio adequado a sua consideração, dado que é por ele que se procede a liquidação e partilha da comunhão.
51. Donde se depreende que, formulou-se uma pretensão, em situação de conflito de interesses, que impunha decisão fundamentada, não configurável como um mero exercício de um poder discricionário, o que não fez este tribunal.
53. [Na apelação não consta conclusão n.º 52] A conclusão é, por isso, no sentido de facto, não ser possível à Recorrente, acompanhar o itinerário valorativo ou cognoscitivo subjacente ao decisório do Despacho recorrido, por falta de fundamentação.
54. Pelo que mal andou o Tribunal “a quo” ao proferir o Despacho de fls 574, de que ora se recorre, sem lhe conferir qualquer fundamentação de facto, ou de Direito, que permita a compreensão dos termos deste e do indeferimento do peticionado.
55. Consequentemente, não ocorre a situação de não se mostrarem reunidas as condições legais para o pagamento da indemnização, conforme defendido no despacho recorrido
56. Da conjugação destes acórdãos e as normas neles previstas, podemos concluir, com segurança, que resulta claramente que o Tribunal a quo, entendeu erradamente na nossa humilde opinião, em indeferir à Recorrente o pagamento da indemnização, no montante de €111.603,50 acrescido dos €4.375,00, relativos à compensação devida e a inclusão da quantia penhorada numa execução, que não recaiu sobre si.
57. Conclui se, assim, que a decisão em causa adotou um entendimento que, face aos textos legais e aos pronunciamentos doutrinais e jurisprudenciais cognoscíveis à data da sua prolação, não podia deixar de ser considerada como uma decisão desconforme.
A apelante terminou pedindo que a decisão recorrida fosse revogada e consequentemente fosse ordenado “o prosseguimento nos autos de expropriação do inventário, e a recorrente como titular da indemnização no valor € 115.978,50, desobrigada da ingerência da execução, e em consequência, alterada a douta decisão recorrida, com as legais consequências”.
20. Não houve contra-alegações.
21. O tribunal a quo pronunciou-se acerca da inconstitucionalidade e nulidades arguidas, negando-as.
22. Foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. As questões objeto deste recurso são as seguintes: inconstitucionalidade da decisão recorrida; nulidades da decisão recorrida; direito da apelante à quantia peticionada; tramitação processual a seguir.
2. Primeira questão (inconstitucionalidade da decisão recorrida)
A apelante defende que a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 12.º n.º 1 e 20.º n.º 4 da CRP. Segundo a apelante, o tribunal a quo, ao negar ter competência para se pronunciar sobre quem recai a penhora mencionada nos autos, ao exigir a anuência do expropriado ex-cônjuge da recorrente para que se proceda à atribuição da indemnização depositada nos autos e ao remeter para processo autónomo de inventário afronta o direito da apelante a uma decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo e obsta a que a recorrente possa valer o seu direito a ser ressarcida pela expropriação do imóvel, no caso uma benfeitoria urbana, assim se violando o princípio da proibição da indefesa, compreendido no direito de acesso ao direito e aos tribunais.
Cremos que esta questão da conformidade da decisão recorrida com a Constituição, nos termos atrás explicitados, deve ser antecedida pela apreciação do direito ordinário aplicável à situação sub judice, na vertente do direito substantivo e adjetivo, isto é, deve ser inserida na apreciação das subsequentes questões “direito da apelante à quantia peticionada” e “tramitação processual a seguir”.
Para aí se relega, pois, a análise dos normativos constitucionais que se mostrar pertinente.
3. Segunda questão (nulidades da decisão recorrida)
A apelante imputa à decisão recorrida os vícios de falta de fundamentação e/ou de ininteligibilidade.
Vejamos.
As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo deverão ser sempre fundamentadas (n.º 1 do art.º 154.º do CPC). Trata-se, de resto, de um imperativo constitucional (art.º 205.º n.º 1 da CRP).
Consonantemente, as sentenças e os despachos não fundamentados padecem de nulidade (artigos 613.º n.º 3 e 615.º n.º 1 al. b) do CPC).
Sendo certo que, como é jurisprudência constante, não pode confundir-se falta de fundamentação com fundamentação alegadamente insuficiente ou desacerto da decisão (v.g., STJ, 02.6.2016, processo 781/11.6TBMTJ.L1.S1, consultável, bem como todos os acórdãos adiante citados, em www.dgsi.pt).
Por outro lado, sob pena de cometer alguma das duas nulidades previstas no art.º 615.º n.º 1 al. d) do CPC, o juiz não deve conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, nem deve deixar de pronunciar-se sobre as questões que lhe cabia apreciar.
O art.º 608.º n.º 2 do CPC estipula que “[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
O juiz deve conhecer de todas as questões que lhe sejam submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, de todas as causas de pedir e de todas as exceções invocadas, assim como de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (cfr. José Lebre Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, p. 737). Como já notava Alberto dos Reis, tal exigência não é desrespeitada se o tribunal não se ocupar com todas as considerações, argumentos ou razões produzidas pelas partes para sustentarem a sua pretensão. O que importa é que o tribunal decida a questão posta (Código de Processo Civil anotado, volume V, Reimpressão, 1984, Coimbra Editora, p. 143; na jurisprudência, v.g., STJ, 02.7.2020, 167/17.9YHLSB.L2.S2).
Por outro lado, na alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º comina-se com nulidade a sentença quando “…ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol I, Almedina, 2.ª edição, 2020, p. 764). A obscuridade ou ambiguidade só gera ininteligibilidade da parte decisória da sentença (ou do despacho) quando um declaratário normal, nos termos dos artigos 236.º n.º 1 e 238.º n.º 1 do CC não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, p. 735).
A decisão recorrida, supratranscrita (I.18.), não enferma de nenhum dos vícios apontados. Nela o tribunal pronunciou-se sobre o requerimento que lhe havia sido apresentado pela interessada Maria (…), que era o pagamento à interessada de um determinado valor a partir de um depósito efetuado pela entidade expropriante a título de indemnização pela expropriação da mencionada parcela 68, pagamento esse a que a interessada teria direito enquanto coexpropriada de uma determinada benfeitoria urbana alvo da expropriação, a qual era bem comum do casal formado pela interessada Maria (…) e pelo interessado Manuel (…), entretanto divorciados. O tribunal a quo indeferiu o requerimento, em termos suficientemente fundamentados e claros. O tribunal, conforme decorre da transcrição da decisão, entendeu que para o deferimento do requerido era necessária a formalização de acordo do outro interessado, que não existia, pelo que, estando em causa um bem comum do ex-casal, a partilha deveria ser realizada em processo de inventário, nos termos do art.º 1082.º al. d) do CPC. O tribunal entendeu também que não estava vinculado à declaração unilateral da interessada Maria (…), que esta juntou com o seu requerimento, na qual esta alegava que a dívida dada à execução, e que originara a penhora do imóvel expropriado, não afetava o seu direito. Segundo o tribunal a quo a categorização da quantia exequenda peticionada em processo de execução está fora das suas competências. O tribunal a quo apontou ainda, como obstáculo ao requerido, a existência da aludida penhora sobre uma quantia da indemnização.
A discordância que se possa ter contra o assim decidido assenta em erro de julgamento, que não a vícios de ordem formal que inquinem a decisão com as imputadas nulidades.
Nesta parte, pois, a apelação é improcedente.
4. Terceira e quarta questões (direito da apelante à quantia peticionada e tramitação processual a seguir)
4.1. A matéria de facto a levar em consideração é a que consta no Relatório supra (I) e ainda a seguinte:
a. A decisão arbitral avaliou em € 223 207,00 as “benfeitorias da fração …” da parcela … suprarreferida em I.2. (fls 327 dos autos).
b. Tais “benfeitorias” pertenciam aos interessados Maria (…) e Manuel (…), casados no regime de comunhão de adquiridos, constituindo (as benfeitorias) o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Funchal sob o n.º (…)/20111130, Freguesia São Martinho, inscrito a favor dos ditos interessados sob a Ap. (…) de 2011/11/30 (cfr., v.g., fls 100 dos autos).
c. Em 20.6.2012, no decurso de tentativa de conciliação efetuada no âmbito da ação de divórcio sem consentimento intentada pela ora apelante contra Manuel (…), então pendente no Tribunal de Família e Menores do Funchal sob o n.º (…)/12.4TMFUN, as partes acordaram em converter os autos em divórcio por mútuo consentimento, tendo declarado o seguinte:
B) Que existem os seguintes bens comuns do casal:
- Um prédio urbano, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo (…) e inscrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número (…) e com o valor patrimonial de € 2 185,62.
- Um veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Wolkswagen Polo, matrícula (…) do ano de 1994, com o valor comercial de € 600,00.
- Um veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Renault Clio, matrícula (…) do ano de 2007, com o valor comercial de € 10 000,00.
- Um veículo motorizado, marca Kawasaki, matrícula (…) do ano de 2008, com o valor comercial de € 4 500,00.
C) Que o direito de uso e habitação da casa de morada fica atribuído à cônjuge mulher até à partilha.
D) Que ambos os cônjuges prescindem mutuamente de alimentos;
E) Que não existem filhos menores.”
d. Na mesma data e diligência foi proferida sentença decretando o divórcio por mútuo consentimento dos referidos cônjuges (fls 105 e 106 dos autos).
e. Em 17.02.2016, no decurso de conferência de interessados realizada no processo de inventário para partilha de bens n.º (…)/12.4TMFUN-A, pendente na Secção de Família e Menores do Funchal, J3, da Comarca da Madeira, em que era cabeça-de-casal Manuel (…) e requerida Maria (…), após interpelação da Sr.ª juíza a ilustre mandatária do cabeça-de-casal declarou o seguinte:
Os veículos referidos em verbas 1 a 3 apresentado pelo cabeça de casal foram vendidos pelos seguintes montantes:
- O automóvel de marca Volkswagen com a matrícula (…) (verba 1) foi vendido por €250,00, uma vez que o mesmo havia sido abandonado na estrada pela requerida sujeito a ser rebocado pelas entidades oficiais.
- O automóvel de marcar Renault com a marca (…) (verba 2) foi vendido pelo valor de €5.500.00.
- A motorizada de marca kawasaki com a matrícula (…) (verba 3) foi vendida o preço de €3.0000.00.
Nestes termos proceda-se ao aditamento à relação de bens dos valores da respectiva alienação” (cfr. ata a fls 509 v.º a 511 destes autos).
f. Nessa altura o cabeça de casal esclareceu que recebera o dinheiro correspondente ao valor da venda dos referidos bens.
g. No mesmo ato pela Sr.ª juíza foi proferido o seguinte despacho:
Em face da posição assumida por ambas as partes adite-se à relação de bens as verbas correspondentes aos valores monetários recebidos pela venda das antigas verbas 1, 2 e 3 passando integrar a verba um o valor de € 250,00 correspondente ao preço de venda do veículo automóvel em causa (que correspondia à antiga verba n.º 1) recebido pelo cabeça de casal, verba nº2 o valor monetário € 5.500.00 recebido pelo cabeça de casal pela venda do veículo automóvel anteriormente descrito na verba n.º 2, e o valor € 3.000.00 corresponde ao preço da verba da motorizada anteriormente descrita na verba n.º 3, recebido pelo cabeça de casal”.
h. Ainda no mesmo ato pelas partes foi declarado que não pretendiam licitar os bens 4 e 5 e que chegavam ao seguinte acordo:
As partes irão colocar à venda o imóvel que constitui a verba nº 5 juntamente com o recheio que constitui a verba nº 4, pelo valor mínimo de € 185 mil euros (casa e recheio) e que da metade do valor da venda que caberia a cada um dos interessados irão descontar a metade das verbas 1, 2 e 3 cujos os valores foram recebidos pelo cabeça de casal havendo de compensar a interessada desses valores por ter direito a receber metade de cada um deles (no valor de € 4.375.00), pelo que na parte que caberia ao cabeça de casal será desconto a metade dos valores recebidos”.
i. Seguidamente, no mesmo ato, pela Sr.ª juíza foi proferido o seguinte despacho:
“Em face ao acordo em que as partes chegaram, aguardem os autos pelo prazo de 3 meses (em face ao artigo 272.º do CPC). Após decorrido tal período deverão as partes informar o tribunal do resultado das diligências que encetaram para a venda das verbas 3 e 5, mais devendo informar o tribunal, caso não ter sido conseguida a venda, o que requerem quanto aos ulteriores do processo, sendo certo se as partes mantiverem a posição assumida na presente diligencia quanto à recusa de efetuar licitação de tais verbas impendentemente do valor, terão as mesmas permanecer em comum.”
j. A transmissão da propriedade do imóvel referido em b. para a Região Autónoma da Madeira, por expropriação por utilidade pública, está inscrita na Conservatória do Registo Predial do Funchal pela Ap. (…) de 2021/03/10 (cfr., v.g., fls 568 v.º destes autos).
k. Sobre o imóvel referido em b. estão registadas as seguintes penhoras:
- “AP. (…) de 2012/10/15
Data da penhora: 2012/10/15
Quantia exequenda: 17 633,40 euros
Sujeito ativo: (Urbano…)
Sujeito passivo: Manuel (…)
Processo executivo n.º (…)/12.2TBFUN – Tribunal Judicial do Funchal – 1.º Juízo Cível
- “AP. (…) de 2018/03/12
Data da penhora: 2018/03/12
Quantia exequenda: 35 410,41 euros
Sujeito ativo: (D….)
Sujeito passivo: Manuel (…), divorciado
Penhora de imóvel que integra a comunhão conjugal não partilhada (art.º 740.º n.º 1 do CPC). Acresce ainda das despesas previsíveis de execução no montante de 3.541,04 euros.
(Proc. de execução n.º (…)/16.0T8FNC – Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Funchal – Juízo de Execução)” (cfr., v.g., fls 567 v.º a 568 v.º destes autos).
4.2. O Direito
Sobre a atribuição da indemnização de expropriação pelos interessados em geral o presente relator já teceu algumas considerações em outros processos, nomeadamente no acórdão, citado pela apelante, proferido em 17.6.2021 no processo n.º 3689/10.9TBFUN.L1-2 (igualmente subscrito pelo Exm.º 1.º adjunto).
Algumas delas irão ser aqui reproduzidas.
Estes autos têm por objeto a expropriação por utilidade pública de uma parcela de terreno, numerada pela entidade expropriante como parcela 68, que integra, além de um prédio rústico, diversos prédios urbanos, entre os quais o prédio que pertencia aos interessados Maria (…) (ora apelante) e Manuel (…).
Embora a decisão arbitral (proferida nos termos do art.º 49.º do Código das Expropriações - CE) tenha fixado uma indemnização global, respeitante à totalidade da parcela expropriada, no valor de € 795.289,20, nela indicaram-se os valores parcelares atribuídos a cada um dos imóveis (designados por “benfeitorias urbanas”) que se localizavam na dita parcela.
Foi assim que, não existindo recurso pendente sobre a decisão arbitral, os titulares de cada uma dessas “benfeitorias” vieram aos autos peticionar o pagamento, de entre o depósito da quantia de € 795 289,20 efetuado pela entidade expropriante nos termos do art.º 51.º n.º 1 do CE, o pagamento da quantia que, nos termos dessa atribuição parcelar de indemnização, lhes cabia – tendo vários deles já obtido o deferimento de tal pretensão.
Neste recurso está em causa a indemnização respeitante à expropriação do imóvel suprarreferido em II.4.1.a. e b.. Esse imóvel pertencia aos interessados Maria (…) e Manuel (…), pelo que a indemnização, devida nos termos dos artigos 62.º n.º 2 da CRP, 1.º e 23.º n.º 1 do CE, é titulada por ambos.
O art.º 52.º n.º 2 do CE estabelece que quando não houver recurso da decisão arbitral “o juiz observa, no que respeita à atribuição da indemnização aos interessados, o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações”.
Também o n.º 1 do art.º 73.º do CE estipula que “[a] atribuição das indemnizações aos interessados faz-se de acordo com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações”.
Por sua vez o art.º 37.º, que respeita à expropriação amigável, tem o seguinte teor:
1 – O auto ou a escritura serão lavrados dentro dos oito dias subsequentes àquele em que o acordo estabelecido for comunicado pela entidade expropriante ao notário, oficial público ou funcionário designado nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo anterior, em conformidade com o disposto no Código do Notariado.
2 – Do auto ou escritura deverão ainda constar:
a) A indemnização acordada e a forma de pagamento;
b) A data e o número do Diário da República em que foi publicada a declaração de utilidade pública da expropriação;
c) O extracto da planta parcelar.
3 – A indemnização acordada pode ser atribuída a cada um dos interessados ou fixada globalmente.
4 – Não havendo acordo entre os interessados sobre a partilha da indemnização global que tiver sido acordada, é esta entregue àquele que por todos for designado ou consignada em depósito no lugar do domicílio da entidade expropriante, à ordem do juiz de direito da comarca do lugar da situação dos bens ou da maior extensão deles, efectuando-se a partilha nos termos do Código de Processo Civil.
5 – Salvo no caso de dolo ou culpa grave por parte da entidade expropriante, o aparecimento de interessados desconhecidos à data da celebração da escritura ou do auto apenas dá lugar à reconstituição da situação que existiria se tivessem participado no acordo, nos termos em que este foi concluído.
6 – A entidade expropriante deve facultar ao expropriado e aos demais interessados cópia autenticada do auto ou da escritura de expropriação amigável, quando solicitada.”
Está em causa a atribuição aos interessados da indemnização correspondente à expropriação do imóvel objeto deste recurso.
A concretização da quantia a que cada um dos expropriados terá direito dependerá, primacialmente, de acordo entre todos. Na falta de acordo, o montante da indemnização deverá ser entregue àquele que por todos for designado (n.º 4 do art.º 37.º). Na falta de tal designação, estabelece o n.º 4 do art.º 37.º que efetuar-se-á a partilha “nos termos do Código de Processo Civil”.
Salvador da Costa, na obra Código das Expropriações e Estatuto dos Peritos Avaliadores, anotados e comentados, 2010, Almedina, em anotação ao art.º 52.º, defende que “não designando os vários interessados, por acordo, aquele a quem o montante indemnizatório deve ser entregue, nada mais incumbe ao tribunal, oficiosamente, nesta matéria. A partir daí, caberá aos credores da indemnização a implementação da partilha do montante indemnizatório em causa nos termos do Código de Processo Civil, no incidente adequado.” (pág. 325) (negrito nosso).
Em anotação ao citado art.º 37.º n. 4 do CE, para o qual o art.º 52.º remete, Salvador da Costa propende “a considerar, por virtude da natureza da situação em causa, que a partilha a que se reporta este normativo é aquela a que essencialmente aludia o artigo 1373º do Código de Processo Civil e a que agora alude o artigo 54º da Lei nº 29/2009, de 29 de Junho. Nesta perspectiva, parece-nos que esta partilha apenas envolve a audição dos interessados sobre o modo da sua realização e a decisão do juiz do processo de expropriação, a seguir, a definir os seus termos.” (negrito nosso).
Em acórdão desta Relação datado de 16.9.2008, proferido no processo n.º 22203/1991.L1 (acórdão inédito, relatado pelo então Desembargador Tomé Gomes), foi ponderado que do normativo contido no n.º 4 do art.º 37.º do CE resulta que “a atribuição das prestações aos interessados sobre o montante indemnizatório global far-se-á, na falta de acordo, segundo as regras de partilha previstas no CPC. E, não obstante se tratar materialmente de divisão de coisa comum, parece ressaltar da letra da lei a aplicabilidade das regras do inventário-partilha com as necessárias adaptações.
Fixada pois a indemnização globalmente devida, há que notificar os interessados para comprovarem nos autos a realização de acordo sobre a sua respectiva repartição e para, na falta de acordo, se pronunciarem sob a forma da partilha, seguindo-se depois os termos respeitantes à partilha em inventário. Este procedimento será tramitado nos próprios autos principais (…).” (negrito nosso).
As palavras supracitadas tinham em vista o processo de inventário e correspondente partilha que eram regulados no Código de Processo Civil de 1961, maxime o disposto no art.º 1373.º. Aí se estipulava que o tribunal ouviria os interessados sobre a forma da partilha e, depois, seria proferido despacho determinativo da forma como seria organizada a partilha. Em tal despacho seriam resolvidas todas as questões que ainda o não tivessem sido e que fosse necessário decidir, podendo mandar-se proceder à produção de prova que se julgasse necessária. Mas se houvesse questões de facto que exigissem “larga instrução”, os interessados seriam remetidos nessa parte para os meios comuns.
O atual CPC começou por não regular a matéria de partilha em inventário. Aquando da sua entrada em vigor, em 01.9.2013, essa tarefa cabia aos cartórios notariais, nos termos do regime aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5.3.
No CPC subsistia a ação de divisão de coisa comum (art.º 925.º a 930.º do CPC) e permanecia o regime geral dos incidentes da instância (artigos 292.º a 295.º do CPC).
Atualmente a partilha de património em processo de inventário voltou a poder ser realizada no tribunal judicial, por força da Lei n.º 117/2019, de 13.9, que aditou ao Livro V do CPC o título XVI, epigrafado “Do processo de inventário”, contendo os artigos 1082.º a 1135.º.
Pelo que ganha de novo atualidade o acima exposto quanto à aplicabilidade das regras reguladoras do processo de inventário para a formalização da partilha da indemnização em processo de expropriação (cfr. artigos 1109.º e 1110.º do CPC).
Sucede que a indemnização em causa nesta apelação constitui bem comum de um casal unido pelo matrimónio, que entretanto se divorciou.
Isto é, o aludido direito de indemnização integra o acervo de bens comuns do casal, integra o património da comunhão conjugal, que constitui uma contitularidade de mão comum, cujos titulares o são de um único direito, tendo cada um dos cônjuges tão só uma quota na comunhão, que é designada por meação nos bens comuns (cfr., v.g., art.º 1730.º n.º 2 do CC; Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 5.ª edição, Almedina, pp. 428 e 429).
Os efeitos patrimoniais do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respetiva sentença, embora se retrotraiam à data da propositura da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges (art.º 1789.º n.º 1 do CC). Em relação a terceiros, os efeitos patrimoniais do divórcio só lhes são oponíveis a partir da data do registo da sentença (n.º 3 do art.º 1789.º do CC).
Após esse momento e até à partilha dos bens comuns do casal, mantém-se uma situação de comunhão de direitos ou património coletivo, a que já não são aplicáveis as regras inerentes à manutenção de uma sociedade conjugal, mas que não corresponde a uma compropriedade, embora, nos termos previstos no art.º 1404.º do Código Civil, as regras da compropriedade possam ser convocáveis, com as necessárias adaptações (cfr., v.g., ac. do STJ, de 26.4.2012, proc. 33/08.9TMBRG; STJ, 22.02.2011, proc. 1561/07.9TBLRA.C1.S1; Relação do Porto, 09.3.2020, processo 1336/19.2T8VCD.P1; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e atualizada, 1984, Coimbra Editora, pp. 347, 348, 350) ou, noutra perspetiva que também é defendida, lhe possam ser aplicáveis analogicamente as regras da comunhão hereditária (cfr., v.g., Cristina M. Araújo Dias, Responsabilidade por Dívidas do Casal, vol. II, Almedina, 2021, pp. 415 a 425).
A verdade é que o regime de bens termina com a dissolução do matrimónio mas até à partilha mantém-se um estado de comunhão patrimonial. Só com a partilha se concretizarão os bens que pertencerão a cada ex-cônjuge e só nessa altura se apurarão e pagarão as dívidas correspondentes (art.º 1689.º do Código Civil).
Na falta de acordo entre os cônjuges, a partilha far-se-á no pertinente processo de inventário, seja judicialmente (através do processo regulado nos artigos 1133.º e 1082.º e seguintes do CPC), seja perante o notário (aplicando-se o regime do inventário notarial regulado na Lei n.º 117/2019, de 13.9).
In casu, o procedimento da partilha dos bens comuns do casal teve o seu início no âmbito de processo judicial, conforme decorre do dado como provado em II.4.1.e.
Ora, ignora-se qual o desfecho desse processo. A apelante alega que aí as partes chegaram a um acordo, do qual resultaria que a apelante teria direito, sobre a sua meação no valor da indemnização objeto destes autos, a um acréscimo (no valor de € 4 375,00) correspondente à sua meação no valor da venda dos bens comuns (três veículos automóveis), a que o seu ex-marido havia procedido após o divórcio. Porém, o acordo documentado nos autos (conforme facto provado II.4.1.h.) qualifica o crédito da apelante como acréscimo (“compensação”) à metade que lhe caberia no produto da venda que as partes iriam efetuar da verba n.º 5 (o prédio – “benfeitoria urbana” a que se refere este recurso) e da verba n.º 4 (recheio do aludido prédio). Isto é, embora desse acordo se possam extrair extrapolações para a situação presente (o prédio não foi vendido, por ter sido expropriado, mas a indemnização poderá funcionar como o preço da pretendida venda), a verdade é que, desde logo, se ignora qual o resultado da pretendida venda do recheio do imóvel, nomeadamente a quem terá sido entregue o eventual preço.
Por outro lado o ex-cônjuge da recorrente não deu a sua aquiescência, neste processo de expropriação, à pretensão de aplicação desse acordo à indemnização depositada nestes autos (cfr. I. 17.).
Acresce a existência de pelo menos uma dívida (cfr. I.15. e II.4.1.k.), cuja origem se desconhece e sobre cuja comunicabilidade há controvérsia entre os interessados. É verdade que a Sr.ª agente de execução apenas indica como executado e sujeito passivo da penhora o interessado Manuel (…), o que apontará para a incomunicabilidade da dívida (cfr. I.15.). E a apelante vem agora dizer, em sede de recurso, que a aludida dívida foi apreciada em sede de processo declarativo comum, tendo aí sido decidido que a dívida era apenas do ex-cônjuge da recorrente (cfr. conclusão 37 da apelação). Ora, não só essa alegação deveria ter sido apresentada perante o tribunal recorrido (ao tribunal ad quem cabe apreciar as decisões recorridas à luz do que havia sido alegado e instruído perante o tribunal a quo à data da prolação do juízo impugnado – art.º 627.º n.º 1 do CPC) como a decisão judicial invocada não se mostra documentada nos autos. E o interessado Manuel (…) afirma, embora enigmaticamente, que “os ónus que sobre ele [o prédio expropriado] impendem serão sempre da responsabilidade dos dois titulares” (cfr. I.17.).
O facto de o direito à indemnização se inserir num património de mão comum, cujos elementos só ingressarão no património individual de cada um dos seus titulares após a partilha, partilha essa que deve, na falta de acordo, ser efetuada pelo processo próprio, que não é o processo de expropriação, conduz-nos à improcedência da pretensão da apelante.
Caberá aos interessados ex-cônjuges obterem no processo de inventário a definição dos direitos que a cada um deles pertence em relação à indemnização depositada nos autos, para em conformidade com o aí decidido lograrem obter no processo de expropriação o pagamento do que lhes for devido.
Contrariamente ao alegado pela apelante, a decisão recorrida não viola as disposições constitucionais que consagram a garantia da efetivação jurisdicional dos direitos, nomeadamente os artigos 12.º n.º 1 e 20.º n.º 4 da CRP. Com efeito, do decidido não emerge a impossibilidade de as partes prosseguirem os seus direitos. No que concerne à celeridade dessa prossecução, ela também depende da atuação das partes, da capacidade de se entenderem entre si, da sua diligência na apresentação ao tribunal dos elementos necessários à decisão, do uso avisado dos meios processuais adequados. Tanto mais que as partes já haviam desencadeado o meio processual próprio para a clarificação dos direitos e responsabilidades atinentes à dissolução do seu matrimónio, ou seja, o processo de inventário suprarreferido. E esse processo poderá eventualmente ser reaberto, nos termos do art.º 1129.º do CPC.
A apelação é, assim, improcedente.

III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação, na vertente das custas de parte, são a cargo da apelante, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lisboa, 12.01.2023
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Paulo Fernandes da Silva