Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
257/13.7T2MFR.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
PARTES COMUNS
SÓTÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I.Havendo incoerência entre a designação da ação como de reivindicação e o principal pedido formulado (reconhecimento do direito de aceder a um sótão, parte presuntivamente comum de prédio), deve dar-se prevalência ao efeito prático-jurídico visado com o pedido formulado em detrimento da imperfeita qualificação jurídica da ação.

II.O sótão ou vão de telhado, na ausência de qualquer especificação no título constitutivo da propriedade horizontal, constitui uma parte presuntivamente comum do prédio.

III.Essa presunção de comunhão pode ser ilidida mediante a prova da afetação material ab initio - reportada ao momento da constituição da propriedade horizontal ou, a fortiori, com a construção do prédio - do sótão a algum condómino.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Maria ... da Conceição ... intentou ação que denominou de reivindicação contra ... Filipe ... Luís e Leonilde ... ... , formulando os seguintes pedidos:
a.-Deve ser reconhecido à Autora o direito de propriedade de aceder ao sótão do imóvel;
b.-Deve a posição assumida pelos Réus ser considerada como abuso de direito;
c.-Devem os Rés ser condenados a colocar uma escada basculante nas escadas do prédio, ao nível do terceiro piso, de forma a permitir o acesso à porta por parte da Autora e demais proprietários das frações autónomas do prédio.

Para tanto e em síntese, alega a constituição em propriedade horizontal do edifício melhor identificado nos autos, na sequência do que foram as frações autónomas referidas adquiridas por si e pelos aqui RR., tendo estes passado a usar espaços de sótão existentes imediatamente acima das suas frações.

Contestando, ao Réus alegaram que, aquando das aquisições das frações em apreço, lhes foi dito que teriam o uso exclusivo dos desvão do sótão, uso esse que têm feito pacificamente até à data, concluindo, portanto, pela improcedência da ação.

Em resposta ao convite endereçado pelo Tribunal e na sequência do conteúdo da contestação oferecida pela 2.ª R., a A. suscitou incidente de intervenção principal provocada para sanar a preterição de litisconsórcio necessário passivo, de Cátia Cristina ... Samora, Carlos Nuno ... ..., Paula Alexandra de ... ... ... ..., Ana Leonor ... ... ... e de João Guilherme da Conceição ..., o qual foi julgado procedente nos termos do despacho de fls. 102, tendo sido os intervenientes citados e oferecido a contestação de fls. 109 e seguintes, que em tudo é idêntica à que os RR. originários deduziram.

Foi proferido despacho saneador, sendo identificado como objeto do litígio as «questões jurídicas referentes a constituir parte comum do prédio constituído em propriedade horizontal melhor identificado nos autos, o desvão de cobertura inclinada, localizado no cimo do prédio.» Fls. 116).

Foram enunciados os Temas da Prova.

Após julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente.
*

Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem parcialmente:
«5.-O tribunal a quo deu como provado conforme aos pontos 12 e 13 dos factos dados como provados que aquando da edificação do prédio em crise, o construtor colocou na despensa das frações autónomas “G” e “H”, uma alçapão de acesso ao desvão, alçapão esse servido por uma escada basculante ali colocada aquando da construção do referido prédio.
6.-Todavia, e no entendimento da Recorrente, não foi produzida qualquer prova desses factos, quer do ponto de vista documental, quer a nível testemunhal.
7.-Na escritura de constituição da propriedade horizontal do prédio, objeto do presente recurso, em momento algum atesta no sentido de existir qualquer alçapão servido por escada basculante.
8.-Do depoimento das duas testemunhas arroladas pelos RR., Zeferino Manuel da ... Feliciano e Alfredo Manuel Gomes Luís, não foi possível extrair qualquer elemento que possa consignar como provados os factos 12 e 13 da decisão de facto.
9.-Pelo que os pontos 12 e 13 da matéria dada como provada deveriam passar a contemplar a matéria considerada como não provada.
10.-A própria escritura de constituição da propriedade horizontal do prédio objeto dos presentes autos, não contempla qualquer indicação da existência de alçapão de acesso ao desvão, ou de qualquer escada basculante de apoio de entrada ao referido sótão.
11.-Razão pela qual deverá ser corrigida a sentença a quo relativamente a estes factos.
12.-A Recorrente entende que o tribunal a quo fez uma interpretação errada dos factos invocados, não tendo aplicado corretamente o direito aplicável aos factos em causa.
13.-A A. na ação que intentou e da qual já foi proferida sentença e da qual agora se recorre, peticionou ser reconhecido o seu direito de propriedade de aceder ao sótão do imóvel.
14.-Peticionou ainda ser o sótão ou desvão da cobertura do prédio considerado como parte comum.
15.-E ainda a colocação de umas escadas basculantes de acesso ao sótão em causa.
16.-O tribunal a quo, erradamente, no nosso entendimento, que desde já se salvaguarda, baseou a sua sentença na tese de que a A. pretendia que os RR. fossem condenados a permitir o acesso ao sótão/desvão do edifício, objeto dos presentes autos, quando tal se revelasse necessário.
17.-O que a A. pretendeu com a ação que intentou foi obter em primeiro lugar, o reconhecimento do seu direito de propriedade e dos demais condóminos, de aceder ao sótão do imóvel, e, em segundo lugar, em criar uma alternativa para que todos os condóminos que não têm acesso direto ao sótão, possam usufruir do referido desvão, sem ter que recorrer ao interior das frações “G” e “H”, correspondentes aos terceiros (3.ºs) andares.
18.-A ação de reivindicação a que a A. se arroga, baseia-se efetivamente na vertente fáctica de que os RR. se encontram a utilizar os espaços de sótão em exclusividade.
19.-O tribunal a quo considerou e bem, como parte comum, os espaços de sótão, e por conseguinte, da titularidade do conjunto dos condóminos.
20.-No entanto, o que a A. reivindica vai muito mais além do acesso exclusivo dos espaços de sótão por parte dos RR.
21.-A A. reivindica o seu direito e dos demais condóminos a poder usar, fruir e dispor do desvão do sótão quando assim o entenda e ser ter de “incomodar” os RR, uma vez serem estes os únicos condóminos com acesso privilegiado àquele espaço.
22.-Pese embora na escritura da constituição da propriedade horizontal do imóvel objeto dos presentes autos, nada conste nesse sentido.
23.-A A. peticiona ainda uma alternativa, que passa pela colocação de uma escada basculante de acesso ao sótão, ou a retirada da porta que se encontra por cima do terceiro (3º) esquerdo referente à fração “H”, colocando uma escada onde se possa aceder ao desvão.
24.-O tribunal a quo não decidiu sobre a verdadeira essência do pedido, ou seja, sobre o reconhecimento do direito de propriedade da A. em aceder aos espaços de sótão, e não tendo sido julgado essa questão, esteve o tribunal a quo mal.
25.-Pelo que entende a A e aqui Recorrente que a sentença a quo deva ser alterada e substituída por outra que julgue o ponto essencial da ação de reivindicação intentada, fazendo-se dessa forma a costumada Justiça!.
Nestes termos, e nos melhores de Direito mais de Direito, e com o sempre Mui Douto suprimento dos Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, deve ser dado provimento ao presente recurso, devendo ser a sentença a quo corrigida relativamente aos factos 12 e 13 dados como provados, os quais deverão ser considerados como não provados, bem como ser reconhecido o direito de propriedade à Recorrente em aceder aos espaços de sótão e, por conseguinte, ser a sentença a quo alterada e substituída por outra que julgue o ponto essencial da ação de reivindicação intentada, e ainda de ser, em alternativa, retirada da porta que se encontra por cima do terceiro esquerdo referente à fração “H”, colocando-se uma escada onde se possa aceder ao sótão, fazendo-se assim a sempre e costumada JUSTIÇA!»

Contra-alegaram os Réus, propugnando pela improcedência da apelação.

QUESTÕES A DECIDIR.

Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, são questões a decidir:
i.-Impugnação da matéria de facto;
ii.-Reapreciação de mérito.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
«1.-Encontra-se descrito sob o n.º 12 da freguesia da ..., na Conservatória do Registo Predial de ..., o prédio urbano sito na Rua ... ..., n.º 3, ..., ...;
2.-Pela Ap. 01/191284, encontra-se registada a constituição da propriedade horizontal do prédio acima referido, sendo mesmo composto pelas frações autónomas de “A” a “H”;
3.-Pela Ap. 26/20060717, encontra-se inscrita a favor da aqui A. a aquisição, por compra, da propriedade sobre a fração autónoma “E” do prédio identificado em 2.;
4.-Pela Ap. 11 de 2005/02/28, encontra-se inscrita a favor do 1.º R e da interveniente Cátia Cristina ... Samora, a aquisição, por compra, da propriedade sobre a fração autónoma “G” do prédio identificado em 2.;
5.-A fração autónoma “G” corresponde ao terceiro andar direito do prédio descrito em 2. e é composta de três assoalhadas, uma cozinha, uma casa de banho, um hall, uma despensa e uma varanda com a superfície de oitenta metros quadrados;
6.-Pela Ap. 35 de 2003/08/07, encontra-se inscrita a favor dos intervenientes Carlos Nuno ... ..., Ana Leonor ... ... ... e João Guilherme da Conceição ..., a aquisição, por partilha, da propriedade sobre a fração autónoma “H” do prédio identificado em 2.;
7.-Pela Ap. 35 de 2003/08/07, encontra-se inscrita a favor da 2.ª R., a aquisição, por partilha, do usufruto da fração autónoma “H” do prédio identificado em 2.;
8.-A fração autónoma “H” corresponde ao terceiro andar esquerdo do prédio descrito em 2. e é composta de três assoalhadas, uma cozinha, uma casa de banho, um hall, uma despensa e uma varanda com a superfície de oitenta metros quadrados;
9.-Por cima das frações autónomas “G” e H” existe um desvão localizado no cimo do prédio melhor identificado em 2. e que se estende por toda a sua cobertura;
10.-Existe uma porta de acesso ao acima referido desvão nas escadas do prédio, colocada por cima da porta de acesso à fração “H” mas que não é servida por quaisquer escadas, como melhor retratado a fls. 76 e 771, nunca tendo sido utilizada;
11.-O desvão referido em 9. é utilizado somente pelos demandados, que ao mesmo acedem por alçapões existentes nas despensas das suas frações;
12.-Aquando da edificação do prédio melhor descrito em 2., o construtor colocou na despensa das frações autónomas “G” e “H” um alçapão de acesso ao desvão melhor identificado a 9. [eliminado consoante decidido infra];
13.-Esses alçapões são servidos por uma escada basculante ali colocada aquando da construção atrás referida [alterado consoante decidido infra];
14.-Desde a alienação das frações identificadas em 1. que os seus sucessivos proprietários têm usado exclusivamente o desvão em apreço, com o conhecimento dos demais condóminos;
15.-Sendo que o próprio desvão está delimitado por uma parede de tijolo correspondente à claraboia do prédio, que não permite a passagem da parte acessível a cada uma das frações à outra.»

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Impugnação da matéria de facto.

Os apelantes pretendem que os factos provados sob 12 e 13 passem a ser considerados como não provados, argumentando – para tanto – que dos depoimentos prestados pelas testemunhas dos Réus não é possível extrair qualquer elemento que possa sustentar a prova de tais factos, sendo ainda certo que inexiste prova documental a tal respeito.

O tribunal a quo fundamentou a resposta aos factos 12 e 13 nestes termos:
«(…) há que afirmar que resultou da conjugação da prova testemunhal produzida em sede de audiência final que efetivamente os alçapões referidos em K. dos Factos Assentes foram abertos aquando da edificação do prédio dos autos, e que o seu construtor colocou a servi-los escadas pelas quais se poderia aceder ao desvão, tendo também erguido a parede divisória referida no ponto 4. dos Temas da Prova.
Na verdade, nesse sentido depuseram Zeferino ... Feliciano e Alfredo G... L..., tendo sido preponderante na formação da convicção desta julgadora o depoimento da primeira das testemunhas identificadas na medida em que se apresentou a depor de forma percecionada como totalmente isenta e desinteressada, relatando de forma circunstanciada a sua razão de ciência e até justificando com inteira plausibilidade a memória de factos ocorridos há cerca de 30 anos.
Na verdade, referiu Zeferino ... Feliciano que se deslocou à fração da titularidade da 2.ª R. quando a mesma foi adquirida por ela e seu falecido marido, de quem era muito amigo, o que aconteceu pouco após a edificação do prédio, e que se recorda da existência do alçapão de acesso ao sótão porque a escada que a servia estava numa posição que lhe pareceu muito perigosa, facto para o qual alertou o marido da 2.ª R. E razão pela qual reteve na memória ter visto o alçapão e o próprio desvão do sótão, no qual o casal seu amigo projetava instalar o quarto de um dos filhos, já que estava delimitado pela parede divisória acima já mencionada e que, portanto, se estendia somente por parte da integralidade do sótão do prédio.
Deste depoimento, que se revelou pelas razões expostas como inteiramente credível, corroborado que foi pelo conteúdo da fotografia de fls. 34 e ainda pelo relatado de Alfredo G... ..., que o confirmou integralmente mas no que respeita à fração da atual titularidade do 1.º R., sendo certo que por reporte ao momento em que este a adquiriu, ou seja, a 2005, não restaram quaisquer dúvidas a esta julgadora quanto à verdade do alegado pelos RR. – isto porque, e no que concretamente respeita à fração do 1.º R., afigura-se conforme às regras da experiência que um construtor que tenha dividido o desvão do sótão com uma parede, assim criando dois espaços distintos, autónomos e estanques entre si, e que tenha aberto um alçapão de acesso a um desses espaços numa das duas frações por ele encimadas, o tenha feito igualmente na restante a fim de permitir o acesso à divisão do sótão que se estendia sobre esta última.»

Ouvida a inquirição das duas testemunhas em causa, dela emerge o seguinte. A testemunha Zeferino F... foi à fração correspondente ao 3º andar esquerdo por uma vez, antes de 1988, em razão de ser amigo do então proprietário, falecido marido da Ré Leonilde. A escada de acesso ao sótão chamou-lhe a atenção por estar muito vertical e estar num cubículo pequeno, tendo a testemunha alertado o amigo que poderia aí cair. Viu o sótão, apercebendo-se que estava dividido por uma parede. Expressamente questionado sobre quem fez a obra da escada, se o amigo se o construtor do prédio, afirmou “não abordámos isso”.

Por sua vez, a testemunha Alfredo Luís é pai do Réu ..., sendo que este adquiriu a sua fração em 2005, data em que a testemunha aí foi pela primeira vez. A testemunha relatou o que aí viu, designadamente a escada móvel de acesso e o sótão dividido por uma parede. Todavia, não se pronunciou sobre a autoria dessas obras, o que – atenta a respetiva razão de ciência – não poderia fazer.

Da documentação junta aos autos, designadamente escritura de constituição de propriedade horizontal, não consta qualquer menção à existência das referidas escadas/acessos ao sótão.

Ora, neste contexto, afigura-se-nos que o tribunal a quo firmou uma convicção sem arrimo probatório suficiente. Com efeito, as duas testemunhas em causa não demonstraram qualquer conhecimento direto quanto à autoria dos alçapões e das escadas neles apostas. Tais testemunhas apenas atestaram a existência dos mesmos.

O tribunal a quo, na prática, recorreu a uma presunção judicial cujo facto-base é a existência dos alçapões e da divisão no sótão, recorrendo a uma regra da experiência qual seja a de que é normal que o construtor tenha dividido o sótão com uma parede bem como que tenha aberto, consequentemente, um alçapão para acesso de cada fração confinante ao sótão.

Todavia, não cremos que seja formulável tal regra de experiência, não correspondendo a mesma necessariamente ao id quoad plerumque accidit (sobre a formulação de regras de experiência, cf. o nosso Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª edição, 2017, pp. 85-89). Ou seja, a asserção de que um construtor de um prédio deste género adota esta conduta de forma homogénea, constante e uniforme, não colhe arrimo na experiência comum. Tanto assim é que a testemunha Manuel Canário, interrogado sobre se as paredes do sótão eram de origem e sobre quem fez os alçapões, respondeu que a lógica é que a pessoa que usufrui dos mesmos é que os tenha feito porque o construtor, normalmente, gasta o menos possível no prédio. Ou seja, o depoimento prestado infirma – precisamente- a regra de experiência que o tribunal a quo entendeu formulável.

Assim sendo, procede parcialmente o recurso neste circunspecto, passando a não provado o facto 12 e passando o facto 13 a ter a seguinte redação: «Esses alçapões são servidos por uma escada basculante.»

Reapreciação de mérito
Da qualificação da ação e efeito-prático jurídico pretendido pela Autora
A Autora intentou esta ação denominando-a como de reivindicação, formulando como primeiro pedido o de ser reconhecido à Autora «o direito de propriedade de aceder ao sótão do imóvel».

A nomenclatura a que a Autora recorreu é imperfeita porquanto, desde logo, à Autora – enquanto condómina - não assiste qualquer direito de propriedade sobre o sótão (na medida em que o mesmo não integra a sua fração) mas apenas um eventual direito de compropriedade, conforme veremos. Em segundo lugar, o primeiro pedido formulado é um típico pedido de uma ação de simples apreciação positiva (cf. Artigo 10.3.a) do Código de Processo Civil), não se sobrepondo a um pedido típico de uma ação de reivindicação. Neste, o autor, que invoca a titularidade de um direito real de gozo, pede ao tribunal que condene o réu que tem a coisa em seu poder a entregar-lha – cf. Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, p. 491. Ora, a Autora não peticiona que os Réus lhe entreguem o sótão, pedindo simplesmente que lhe seja reconhecido o direito de aceder ao sótão do imóvel, realidade distinta.

Justificam-se estas considerações preliminares porquanto o tribunal a quo descurou a formulação concreta do pedido enunciado sob a) para se centrar na análise dos pedidos típicos da ação de reivindicação.

Segundo o Artigo 609º, nº1, do Código de Processo Civil, a sentença não pode condenar em objeto diverso do que que se pedir. Esta regra do nº1 do Artigo 609º do Código de Processo Civil deve ser interpretada em sentido flexível de modo a permitir ao tribunal corrigir o pedido, quando este traduza mera qualificação jurídica, sem alteração do teor substantivo, ou quando a causa de pedir, invocada expressamente pelo autor, não exclua uma outra abarcada por aquela – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.11.2004, Ferreira Girão, 04B2640.

Sobre esta questão, escreve o Conselheiro Manuel Tomé Gomes, Da Sentença Cível, pp. 43-44, o seguinte:

«Também no que respeita à fixação ou condenação em objeto diferente do pedido se tem suscitado dúvidas sobre o alcance prático deste limite, em particular nos casos em que a solução passa por uma qualificação jurídica diversa da sustentada pelo autor ou reconvinte. É o que acontece quando, por exemplo, o autor pede a resolução de um contrato com fundamento em incumprimento, mas em que se verifica que o contrato em crie é nulo por falta de forma; ou quando, por exemplo, o autor instaura uma ação de impugnação pauliana, concluindo, erradamente, pela invalidade (nulidade ou anulabilidade) do negócio impugnado, sendo que o efeito adequado é o da ineficácia relativa, à luz do disposto no artigo 6artigoº1 e 4 do CC. Será que o tribunal poderá, na primeira hipótese, declarar a nulidade do contrato e decretar a respetiva consequência restituitória, ao abrigo do disposto nos artigos 286º e 289º do CC, e, na segunda hipótese, decretar a ineficácia do negócio impugnado, dando ainda provimento à pretensão do autor?

A solução desta questão pressupõe, antes de mais, a interpretação do pedido e o entendimento de que este consiste no efeito prático-jurídico pretendido e não tanto na coloração jurídico que lhe é dada pelo autor. Na verdade, é unânime a doutrina de que o tribunal não está adstrito à qualificação jurídica dada pelas partes, já que, à luz do disposto no artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

Assim sendo, se a situação se reconduzir a um mero erro de qualificação jurídica na formulação do pedido, aferido em função do contexto da pretensão, parece que nada obsta a que o tribunal decrete o efeito prático pretendido, ainda que com fundamento em base jurídica diversa.»

Na jurisprudência, merece menção o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.4.2016, Lopes do Rego, 842/10, que analisa esta questão de forma clara e pertinente, de que extratamos os seguintes passos:
«Na praxis judiciária, encontramos posições antagónicas sobre a possibilidade de convolação jurídica quanto ao pedido formulado – opondo-se um entendimento mais rígido e formal, que dá prevalência quase absoluta à regra do dispositivo, limitando-se o juiz a conceder ou rejeitar o efeito jurídico e a específica forma de tutela pretendida pelas partes, sem em nada poder sair do respetivo âmbito; e um entendimento mais flexível que – com base, desde logo, em relevantes considerações de ordem prática – consente, dentro de determinados parâmetros, o suprimento ou correção de um deficiente enquadramento normativo do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou requerente, admitindo-se a convolação para o decretamento do efeito jurídico ou forma de tutela jurisdicional efetivamente adequado à situação litigiosa (vejam-se, em clara ilustração desta dicotomia de entendimentos, a tese vencedora e as declarações de voto apendiculadas ao acórdão uniformizador 3/2001).
Note-se que (como salientamos no estudo O Princípio Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Lebre de Freitas, págs. 781 e segs.) a prevalência de uma visão que tende a sacralizara regra do dispositivodando-lhe nesta sede uma supremacia tendencialmente absoluta, conduz a resultado profundamente lesivo dos princípios – também fundamentais em processo civil – da economia e da celeridade processuais: na verdade, a improcedência da ação inicialmente intentada e em que se formulou pretensão material juridicamente inadequada não obsta a que o autor proponha seguidamente a ação correta, em que formule o – diferente – pedido juridicamente certo e adequado, por tal ação ser objetivamente diversa da inicialmente proposta (e que naufragou em consequência da errada e insuprível perspetivação e enquadramento jurídico da pretensão); ora, sendo atualmente o principal problema da justiça cível o da morosidade na tutela efetiva dos direitos dos cidadãos, não poderá deixar de causar alguma perplexidade esta inelutável necessidade de repetir em juízo uma ação reportada a um mesmo litígio substancial, fundada exatamente nos mesmos factos e meios de prova, só para corrigir uma deficiente formulação jurídica da pretensão, através da qual se visa alcançar um resultado cujo conteúdo prático e económico era inteiramente coincidente ou equiparável ao pretendido na primeira causa…

Como exemplos paradigmáticos da prevalência na jurisprudência desta visão substancialista e mais flexível das coisas, podem referir-se, desde logo, o Assento do STJ de 28/3/95 e o Acórdão uniformizador de jurisprudência 3/2001.

No primeiro daqueles arestos, entendeu-se (de forma, aliás, unânime) que Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade e se na ação tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no nº1 do art. 289º do CC.
(…)

Considera-se, deste modo, que o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objeto diverso do peticionado.
Importa, todavia, estabelecer, na medida do possível, quais os parâmetros dentro dos quais se move esta possibilidade de convolação jurídica, não se podendo olvidar que – continuando a ser a regra do dispositivo pedra angular do processo civil que nos rege – o decretamento de efeito jurídico diverso do especificamente peticionado pressupõe necessariamente uma homogeneidade e equiparação prática entre o objeto do pedido e o objeto da sentença proferida, assentando tal diferença de perspetivas decisivamente e apenas numa questão de configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida.

E daqui decorre que não será possível ao julgador atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, não sendo de admitir a convolação sempre que entre a pretensão formulada e a que seria adequado decretar judicialmente exista uma essencial heterogeneidade, implicando diferenças substanciais que transcendam o plano da mera qualificação jurídica.

O Ac. de 5/11/09, proferido pelo STJ no P. 308/1999.C1.S1, ilustra, de forma clara, as balizas em que é lícita esta atividade de reconfiguração ou reconstrução normativa pelo juiz da pretensão efetivamente formulada pela parte. Assim, entendeu-se que:
- Nada obstava a que se pudesse convolar do pedido de anulação de certo negócio jurídico de doação, realizada mediante intervenção de procurador, cuja legitimação assentava em procuração que havia sido anulada por se ter verificado erro dolosamente provocado, para a declaração de ineficácia do negócio jurídico em relação ao doador, decorrente da representação sem poderes, nos termos do art. 268º do CC; porém:
- Tendo-se o autor limitado a formular um pedido constitutivo de anulação do negócio jurídico de doação, já não seria, porém, lícito ao tribunal proferir sentença em que, para além do decretamento de certo valor negativo do ato (independentemente de este se configurar como invalidade ou ineficácia) se condenasse ainda oficiosamente a parte a restituir o que obteve em consequência do negócio destruído, já que, nesse caso, a decisão acabaria por incidir sobre um objeto material – a restituição de certos bens – claramente diferenciado e destacável do objeto da pretensão formulada, situada apenas no plano da aniquilação dos efeitos do negócio.

Deste modo, tendo-se o autor limitado a formular um pedido de anulação de certo negócio jurídico, não é lícito ao tribunal proferir sentença de condenação na restituição ou entrega dos bens, consequente ao decretamento da invalidade - ou da ineficácia do negócio - por tal implicar violação do princípio de que o juiz não pode condenar em objeto diverso do pedido.

Ou seja: é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efetivamente, na sua estratégia processual, curou de formular.

O grupo de situações em que se pode admitir – e em que vem sendo mais frequentemente admitida - a reconfiguração jurídica do específico efeito peticionado pelo autor situa-se no campo dos valores negativos do ato jurídico: pretendendo o autor, em termos práticos e substanciais, a destruição dos efeitos típicos que se podem imputar ao negócio jurídico celebrado, ocorre uma deficiente perspetivação jurídica desta matéria, configurando a parte o efeito prático-jurídico pretendido – de aniquilação do valor e eficácia do negócio – no plano das nulidades quando, afinal, a lei prevê para essa situação um regime de ineficácia ou inoponibilidade; ou na invocação de um regime de anulabilidade quando o valor negativo do ato se situa no plano da nulidade, ou vice-versa.»

Do que fica assim exposto infere-se que a imperfeição da nomenclatura adotada pela Autora, quer na qualificação da ação como de reivindicação quer na invocação de um direito de propriedade sobre o sótão, não impede que o tribunal atente no efeito prático-jurídico pretendido pela Autora, qual seja o de lhe ser reconhecido o direito de aceder ao sótão do imóvel, questão descurada pelo tribunal a quo.

Da natureza jurídica do sótão.

A este propósito, o tribunal a quo raciocinou nos seguintes termos:
«Não se subsumindo os espaços existentes entre o pavimento que serve de teto ao último piso e o telhado, a qualquer um dos elementos estruturais da edificação que ao abrigo do n.º 1 do preceito em último lugar referido são imperativamente comuns7, e não constando os mesmos da descrição de cada uma das fração autónomas da titularidade dos aqui demandados – como ressuma evidente do julgamento de facto -, nem sequer a título de afetação exclusiva do respetivo uso, então há que presumir que os referidos espaços se constituem como partes comuns, da titularidade do conjunto dos condóminos e, portanto, para uso comum de todos – cf. artigos 1421.º, n.º 2, alínea e) e 1420.º, ambos do Cód. Civil.
Isto porque pese embora o adquirido de 11. a 14. do julgamento de facto, a verdade é que não se pode escamotear o que deriva do ponto 10. do mesmo local da presente. A existência da porta aí referida, na localização melhor descrita e cuja destinação é somente, permitir o acesso ao que existe por cima das frações dos RR., a saber o desvão em apreciação, mais a mais sem qualquer indício de que semelhante porta foi ali colocada ou aberta em momento posterior à construção do prédio dos autos, não permite considerar evidente, antes pelo contrário, que o desvão do sótão se destina à exclusiva utilização pelos condóminos proprietários das frações da titularidade dos RR.. Na verdade, a existência de um acesso exterior, localizado numa parte comum do edifício e portanto acessível a qualquer condómino, arreda a ponderação de uma exclusiva afetação material e objetiva do desvão aos aqui RR., já que franqueado fica o acesso ao sótão sem qualquer necessidade de a utilização dos alçapões existentes nas frações em causa.
Donde, repisa-se, a conjugação da factualidade adquirida nos autos não permite valoração que sustente a conclusão de que os espaços de sótão a ocupados pelos RR. apenas são passiveis de objetiva e exclusivamente servir os condóminos titulares das frações autónomas que se situam imediatamente abaixo.
Toda a argumentação acima expendida foi-o com base na posição doutrinal e jurisprudencial acima já referida e segundo a qual a ilisão da presunção constante na alínea e) do n.º 2 do artigo 1421.º do Cód. Civil é possível ainda que semelhante afetação exclusiva não conste do título constitutivo ou em qualquer sua alteração válida, sendo certo que se adotasse posição mais restritiva, a saber, aquela que pugna por só ser atendível se constar na magna carta 10 da propriedade horizontal, por maioria de razão dever-se-ia concluir pela natureza comum do sótão em questão.
Pelo exposto, dúvidas não sobejam quanto ao facto de os espaços em apreço serem da titularidade do conjunto dos condóminos, nos termos da compropriedade especial a que se encontram adstritos as partes comuns no âmbito do direito real da propriedade horizontal.»

A análise efetuada pelo tribunal a quo não merece reparo neste circunspecto.

Com efeito, o sótão com as caraterísticas do dos autos é uma parte presuntivamente comum nos termos do Artigo 1421º, nº2, do Código Civil. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.7.2013, Alves Velho, 63/10,
« (…) o vão de telhado não é naturalisticamente identificável com os conceitos de telhado ou terraço de cobertura,pois que não representa a estrutura de cobertura em si mesma e com a específica função de tapagem superior do edifício, mas um espaço ou área a que é possível dar determinadas utilizações, usualmente de armazenamento, mas sem que se exclua o próprio alojamento habitacional.

Em consonância, a jurisprudência e doutrina dominantes, vêm entendendo que os sótãos ou vãos de telhado, não integram a estrutura do edifício nem são, pela função que desempenham, partes do mesmo relativamente às quais seja de exigir a afetação ao gozo de todos os condóminos, para caberem na previsão da al. b) do nº 1 do art. 1421º, como coisa obrigatoriamente comum (cfr. acs. RC, de 9-12-86 (CJ XI-5-83), STJ, de 28-9-1999 (proc. 98B703), de 08-02-2000 (BMJ 494-338) e de 16-12-2004 (proc. 04B3814); RUI V. MILLER, “A Propriedade Horizontal No Código Civil”, 3ª ed., 163 e F. RODRIGUES PARDAL e M. B. DIAS DA FONSECA, “Da propriedade horizontal”, 5ª ed., 213).
Com efeito, como, em sede argumentativa, tem sido convocado, a inclusão desse espaço do edifício entre as partes obrigatoriamente comuns tornaria impossível, em contradição com a realidade conhecida, a individualização e afetação exclusiva do sótão, ou de parte dele, com a inerente consequência de vedar qualquer especificação com esse sentido ou conteúdo, ou de adotar qualquer cláusula tendente a excluir a comunhão, no título constitutivo da propriedade horizontal, sob pena de violação do seu próprio regime imperativo.

Acresce que, exigindo-se a inclusão da afetação no título constitutivo, resultaria inútil a admissão das presunções de comunhão, especificadas ou residualmente previstas, contempladas no n.º 2 do artigo, pois que haveriam de se considerar obrigatoriamente comuns todas as partes sem destino fixado no título.

Em suma, a natureza e utilidade dos sótãos ou vãos de telhado não impõem, em sede interpretativa, a sua obrigatória qualificação como “instrumentos de uso comum do prédio”.

Conclui-se, no seguimento do expendido, que, embora presuntivamente deva ser, como efetivamente é, considerado parte comum do edifício, o sótão ou vão de escada não é de considerar parte imperativamente comum.»

No mesmo sentido, cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.2004, Bettencourt de Faria, 04B3814.

Essa presunção de comunhão pode ser ilidida mediante a prova da afetação material ab initio do sótão a algum condómino. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.5.2012, Hélder Roque, 218/2001,
«(…) não se encontrando especificadas como privativas, no título constitutivo da propriedade horizontal, todas as coisas que não estejam afetas ao uso exclusivo de um deles, devem ainda as mesmas ser consideradas, presumivelmente, como partes comuns e, portanto, compropriedade de todos os condóminos, com possibilidade de afastamento dessa presunção, nos termos do estipulado pelo artigo 1421º, nº 2, e), do CC.

Quer isto dizer que deixam de ser comuns aquelas coisas que estejam afetadas ao uso exclusivo de um dos condóminos, bastando, para o efeito, a fim de afastar a presunção de comunhão, uma afetação material, uma destinação objetiva[8], mas já existente à data da criação do condomínio, embora não se exija que ela conste do respetivo título constitutivo da propriedade horizontal.

Esta destinação objetiva verificar-se-ia, por exemplo, na hipótese de uma parte do edifício que deixaria de ser comum para passar ao uso exclusivo do condómino, em virtude de só poder ter acesso ou comunicação, através de uma fração autónoma desse condómino, isto é, à qual só fosse possível aceder, mediante a fração adjacente, devendo entender-se, então, que esse espaço pertence à mesma fração, ainda que a respetiva afetação não conste do título constitutivo da propriedade horizontal, não sendo uma parte comum.

[8]Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª edição, revista e atualizada, 1987, 423; STJ, de 8-2-2000, BMJ n º494, 338»

Na expressão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.5.2009, Salazar Casanova, 1793/05,
«(…) se do título constitutivo da propriedade horizontal não constar a afetação de parte de um prédio a alguma fração autónoma, a presunção derivada da alínea e) do n.º 2 do artigo 1421.º pode ser ilidida, nomeadamente se se demonstrar que ab initio essa parte esteve afeta em exclusivo a determinada fração, não se exigindo que a afetação material conste do respetivo título executivo.

Encontramos esta tese sufragada, entre outros, pelos Acs. do STJ de 28.09.99, www.dgsi.pt, de 08.02.2000, CJ/STJ, T I: 67, RL de 18.02.97, www.dgsi.pt, de 29.06.99, www.dgsi.pt, de 07.05.2002, www.dgsi.pt, e RC, de 26.02.2002, www.dgsi.pt.

Dizer que a elisão da presunção relativa, contida na citada norma, está dependente da demonstração de que ab initio a parte do prédio esteve afeta ao uso exclusivo de determinado condómino, tem algo de ambíguo. Ambiguidade que fica afastada se se concretizar que é entendimento maioritário na jurisprudência o de que o termo inicial coincide com o momento da constituição da propriedade horizontal ou, a fortiori, com a construção do prédio (cfr. Acs. STJ de 28.09.99, 08.02.2000 citados).
(…)

Ora, à luz da aludida interpretação do artigo 1421.º/2, alínea e), continua a assegurar-se um critério distintivo válido e operante fundado no momento da constituição do condomínio por se considerar relevante a afetação objetiva ao uso exclusivo de um dos condóminos existente à data da constituição do condomínio, excluindo-se, portanto, do seu âmbito os casos em que a afetação se verifica ulteriormente, não deixando, assim, de subsistir um critério objetivo, impondo-se apenas averiguar se ocorria ou não uma afetação material objetiva anterior cujo ónus incumbe a quem pretende que seja reconhecido o seu exclusivo domínio sobre a coisa (artigo 342.º/1 do Código Civil).

17.-Esta é a orientação que também promana dos Acs. do S.T.J. de 17-6-1993 (Araújo Ribeiro) C.J.,2, pág 158, de 14-10-1997 (Torres Paulo) C.J.,3, pág 80 , de 28-9-1999 (Machado Soares) B.M.J. 489-358, de 8-2-2000 (Garcia ...) C.J.,1, 67. E, quanto a outros, a orientação contrária ou se funda numa realidade de facto diversa, tal o caso do Ac. do S.T.J. de 9-5-1991 (Tato Marinho), B.M.J. 407-545 em que a afetação ocorreu depois de constituída propriedade horizontal, ou o caso do Ac. do S.T.J. de 31-10-1990 (Figueiredo de Sousa) B.M.J. 400-646 em que o proprietário construiu no edifício que depois constituiu em propriedade horizontal dependências em águas furtadas que não integraram o título como frações autónomas nem tão pouco ficaram afetas ao uso exclusivo dos condóminos.»

No mesmo sentido da ilisão da presunção pela afetação exclusiva ab initio, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.6.1993, Araújo Ribeiro, 81725, de 8.2.2000, Garcia ..., 1115/99, ambos acessíveis em www.colectaneadejurisprudencia.com.

No que tange à ilisão da presunção, no Acórdão da Relação do Porto de 17.11.2015, Augusto Carvalho, 95/11, discorreu-se nestes termos:
«(…) deve entender-se que, não constando do título que o sótão se encontra afetado ao uso exclusivo da fração dos réus, daí resulta que aquele se presume parte comum, presunção que pode ser ilidida.
De facto, "se fosse intenção do legislador considerar comuns todas as partes cuja afetação ao uso exclusivo de um dos condóminos não constasse do título, então não faria sentido o nº 2 falar em presunção, bastaria o preceito dizer: São comuns, salvo menção em contrário no título constitutivo da propriedade horizontal". Acórdão de 8.2.2000, CJ/STJ, Ano VIII, Tomo I, pág. 71.

No título constitutivo da propriedade horizontal não se especificou o sótão como correspondendo a qualquer fração e, portanto, encontramo-nos perante uma situação concreta compreendida na presunção prevista na alínea e) do nº 2 do artigo 1421º, presunção que pode ser afastada pela prova daquilo a que Pires de Lima e A. Varela designam por afetação material.

Na citada alínea e) presumem-se ainda comuns "as coisas que não sejam afetadas ao uso exclusivo de um dos condóminos".

No dizer daqueles autores, "a afetação a que se alude aqui é uma afetação material - uma destinação objetiva - existente à data da constituição do condomínio. Se, por exemplo, determinado logradouro só tem acesso através de uma das frações autónomas do rés-do-chão, deve entender-se que pertence a esta fração (...). E o mesmo se diga, ainda a título de exemplo, do sótão ou das águas furtadas do edifício, quando, no todo ou por parcelas, estejam apenas em comunicação com a fração ou as frações autónomas do último piso (faltando esta afetação material, o sótão será comum) ". Ob. cit., pág. 423.No mesmo sentido, refere-se no acórdão do STJ, de 17.6.1993, que "deixa de ser considerada parte comum de prédio constituído em propriedade horizontal a que, desde início, foi adquirida juntamente com a fração autónoma para ser utilizada em exclusivo por determinado (s) condómino (s), ainda que tal exclusividade não fosse referida no título constitutivo". CJ/STJ, Ano I, Tomo II, pág. 158.
(…)

De acordo com esta matéria de facto, desde o início da construção do prédio, o sótão esteve afetado em exclusivo à fração autónoma dos réus, apenas com esta tendo comunicação, e, por conseguinte, deve considerar-se que foi ilidida a presunção estabelecida na alínea e) do nº 2 do artigo 1421º. A afetação material do sótão à fração dos réus, existindo à data da constituição do condomínio, afasta-o do âmbito das coisas comuns mencionadas no citado preceito.»

Revertendo ao caso em apreço, não está provado que, à data da constituição da propriedade horizontal (em 22.11.1984, cf. fls. 20-22) ou mesmo antes durante a construção do prédio, as frações do 3º direito e do 3º esquerdo beneficiassem já de acesso exclusivo a parte do sótão (cf. supra alteração do facto provado sob 12 para não provado). O facto provado sob 14 (“Desde a alienação das frações identificadas em 1 que os seus sucessivos proprietários têm usado exclusivamente o desvão em apreço, com o conhecimento dos demais condóminos”) é insuficiente para se inferir que a afetação material exclusiva se reporta à data da constituição da propriedade horizontal, sendo que esta antecede – em regra - a venda das frações. Ademais, das cópias simples do Registo Predial juntas não deriva que a primeira aquisição das frações do 3º esquerdo e do 3º direito tenha ocorrido na mesma data da constituição da propriedade horizontal ou sequer do registo desta.

Por outro lado, do facto provado sob 10 resulta que existe uma porta de acesso ao sótão, colocada por cima da porta de acesso à fração “H”, o que – só por si – infirma que o acesso ao sótão a partir do 3º esquerdo e do 3º direito, mesmo a ter sido executado ab initio (o que não está demonstrado), tenha sido pensado e executado como um acesso exclusivo para os condóminos respetivos.

Destarte, não se encontra ilidida a presunção de que o sótão é parte comum.

O direito de acesso da Autora.
Não tendo sido ilidida a presunção de que o sótão/desvão é parte comum, assiste direito à Autora a aceder ao mesmo nos termos das disposições conjugadas dos Artigos 1422º, nº1 e 1406º, nº1, do Código Civil.

Referiu-se a este propósito na decisão a quo que:
«Contudo, há que sopesar juridicamente as consequências de estar estabelecido probatoriamente que os demandados são condóminos por que titulares de frações autónomas que constituem o prédio dos autos – e portanto, serem comproprietários dos espaços de sótão naquele existentes.
É que, por expressa remissão ínsita no n.º 1 do artigo 1422.º do Cód. Civil, à compropriedade das partes comuns no âmbito da propriedade horizontal aplica-se o regime ínsito no artigo 1406.º, n.º 1 do mesmo diploma, como, de resto, acima já se afirmou para sustentar a legitimidade substantiva da A. para, desacompanhada dos demais comproprietários reivindicar a propriedade.
Assim, na falta de acordo, qualquer um dos contitulares pode servir-se da coisa comum, contante que a não empregue para fim diferente daquela a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente tem direito.
Donde, somente quando a utilização de parte de comum se faça em termos tais que impossibilite os demais contitulares dela usufruírem é que se revelará cristalino que tal utilização constitui esbulho dos poderes de fruição dos demais, proibida nos termos do preceito em referência.
Razão pela qual o comunheiro pode reivindicar a coisa de outro comunheiro que o esbulhou, já que se um titular de um direito real viola com a sua posse ou detenção o direito real de gozo de outro titular, tendo ambos os direitos a mesma coisa por objeto, o titular do direito real violado pode reivindicar a coisa do violador.
Ou como verte Abílio Neto Habitualmente, essas perturbações, esbulhos ou ameaças provêm de terceiros, mas se forem da autoria de algum condómino, que exceda o uso que faz das partes comuns, ou se arrogue, em relação a elas, direitos exclusivos, o administrador é obrigado, …, a agir como se tratasse de atos ou pretensões de um estranho ao condomínio.
Ora, pese embora apenas os RR. tenham vindo a utilizar os espaços de sótão em referência, sobre eles inclusivamente arrogando-se direitos de exclusividade como resulta da posição processual assumida nos presentes, tal não impede que os demais contitulares fruam daquelas partes comuns na medida em que, desconhecendo-se o concreto uso realizado do sótão, a porta melhor referida em 10. do julgamento de facto franqueia o acesso àquela parte comum, que é assim suscetível de ser usada por todos os condóminos, bastando para o efeito a colocação de escadas que permitam a sua utilização.
Donde, não se pode concluir por existir uma utilização exclusiva à qual seja inerente a violação dos direitos dos demais titulares de frações autónomas sobre as partes comuns em apreço, por exprimir uma fruição dos RR. que excede o que lhes permite a situação de contitularidade forçada em que se encontram, nomeadamente o vertido no artigo 1406.º, n.º 1 do Cód. Civil, ex vi artigo 1420.º, n.º 1 do mesmo diploma, por privar os demais consortes do uso a que igualmente têm direito.
Na verdade, repisa-se, integrando-se na esfera jurídica dos RR. a fruição do sótão, nos termos conjugados do disposto nos artigos 1421.º, n.º 2, alínea c), 1420.º, n.º 1 e, finalmente, 1406.º, n.º 1, todos do compêndio legal em citação, desconhecendo-se o concreto uso que é feito e não se encontrando vedado ao acesso aos demais condóminos, que lhes é facultado pela porta referida em 10. do julgamento de facto, nada nos autos permite julgar que aquela fruição viola os direitos dos demais comunheiros.»

O raciocínio expendido é de acompanhar na parte em que enfatiza que não está demonstrada uma conduta ativa e obstativa dos condóminos do 3º esquerdo e do 3º direito no sentido de impedir o acesso ao sótão/desvão por parte dos demais condóminos, tanto mais que existe uma porta para tal efeito que não é utilizada porquanto não está munida de uma escada específica de acesso para os demais condóminos. Também não merece reparo a asserção de que os Réus, na qualidade de condóminos, também têm direito de acesso ao sótão/desvão.

Todavia, já não podemos acompanhar a decisão impugnada quanto, partindo destes pressupostos, julga improcedente a ação reportando-se – expressamente – ao pedido de reivindicação. Conforme foi acima explicado, mais do que a imperfeita roupagem jurídica utilizada pela autora na configuração da petição, há que atentar no efeito prático-jurídico pretendido pela Autora. Tal efeito prático-jurídico é claro: declarar-se o direito da mesma em aceder ao sótão do imóvel.

Ora, quanto a este, não há dúvida que assiste tal direito à Autora – a par de igual direito aos demais condóminos – nos termos dos Artigos 1422º, nº1 e 1406º, nº1, do Código Civil.

A mesma ordem de razões, que conduz à procedência parcial do primeiro pedido, determina a improcedência do segundo pedido porquanto os Réus têm também direito de aceder ao sótão, não estando demonstrada uma conduta obstativa dos mesmos no sentido dos demais condóminos acederem ao sótão pela parte existente para o efeito. Não há factos que deem arrimo à tese da existência de abuso de direito por parte dos Réus.

No que tange ao terceiro pedido, deverá o mesmo improceder. 

Na verdade, a colocação de uma escada basculante de acesso à porta do desvão/sótão tem de ser, em primeira linha, objeto de deliberação em assembleia de condóminos nos termos dos Artigos 1425º,nº1, 1430º nº1, 1431º,nº1, 1436º, alínea h),todos do Código Civil. Não está demonstrado que tal tenha ocorrido. Só após a efetivação de tal deliberação é que todos os condóminos devem contribuir para a colocação de tal escada na proporção da respetiva permilagem – cf. Artigos 1426º,nº1 e 1424º, nº1, do Código Civil. 
           
DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se em:
a)-Julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a sentença impugnada na parte em que absolveu os réus totalmente do primeiro pedido;
b)-Julga-se a ação parcialmente procedente, reconhecendo-se à Autora – na qualidade de condómina - o direito de aceder ao sótão referido em 9 através da porta descrita em 10;
c)-No mais, julga-se a apelação improcedente por não provada, mantendo-se a decisão da primeira instância.
Custas pela apelante e pelos apelados na proporção de 60% e 40%, respetivamente.



Lisboa, 26.4.2017


                                  
(Luís Filipe Pires de Sousa)                                  
(Carla Câmara)                                 
(Maria do Rosário Morgado)



[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de
9.4.2015, ... Miguel, 353/13.