Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3245/06.6TBAMD-C.L1-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: PODERES DO TRIBUNAL
PODERES DA RELAÇÃO
QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
PROVA
SIMULAÇÃO DE CONTRATO
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O alargamento de diligências probatórias que a 1ª instância venha a determinar, em relação ao que fora concretizado em acórdão da Relação, não ofende o disposto no art. 662º do CPC, que define poderes deste tribunal, mas não limita os da 1ª instância, cuja plenitude de apreciação, embora limitada ao que lhe é mandado julgar, emerge já do disposto na al. c) do nº 3 do mesmo artigo.
II– No âmbito de processos diversos do processo penal continua a poder ser recusada a informação que estiver coberta por sigilo bancário, e vir a ser determinada a sua quebra nos termos conjugados do art. 417º do CPC e do art. 135º do CPP, se for preponderante o interesse cuja tutela é prosseguida com o uso da informação pretendida.
III– Sustentando-se na petição inicial que os contratos de trespasse foram simulados, e alegando duas das rés, quanto a um deles, que foi efetivamente feito, através de cheque, o pagamento do respetivo preço, se as mesmas rés persistem em não colaborar no esclarecimento das dúvidas existentes sobre esse pagamento, apesar de a tanto estarem obrigadas por força do princípio da cooperação ínsito no art. 7º do CPC, torna-se imprescindível obter do banco sacado a adequada informação.
IV- A necessidade de descoberta da verdade material que viabilizará uma decisão justa, é interesse preponderante em relação ao que o sigilo bancário acautela, pelo que existe motivo para dispensa deste.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:



RELATÓRIO:


I - LG intentou contra MH, MC e DG ação declarativa, pedindo que se declare a nulidade de três contratos de trespasse de uma farmácia sucessivamente celebrados, o primeiro entre, por um lado, o autor, seu irmão EG e sua mãe MG e, por outro, a ré MH, o segundo por indicação de seu irmão e de sua mãe em favor da ré MC e o terceiro entre esta última e a ré DG.

Alegou, em síntese, que essa nulidade dos contratos resulta de os mesmos terem sido celebrados defraudando a “Lei da Propriedade da Farmácia” ou, a não se entender assim, por serem simulados; disse ainda serem igualmente nulos os contratos de conta em participação celebrados paralelamente com os dois primeiros trespasses, um entre a ré MH e o autor, seu irmão e a mãe de ambos, outro entre a ré MC e o irmão e a mãe do autor.

As rés contestaram.

Foi pedida, e admitida, a intervenção principal de EG, bem como de RS e de LC na qualidade de réus.

Depois de junta cópia certificada de um cheque no montante de 30.000.000$00, datado de 7.11.2001 e emitido pela ré DG a favor da ré MC, o autor requereu a notificação destas para juntarem extratos bancários comprovativos do pagamento daquele cheque.

Após a junção de documento, em papel timbrado da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo (CCAM) de ..., onde era declarado que o cheque havia sido pago ao balcão à ré MC, foi proferido despacho onde se consignou não ser necessário pedir novos esclarecimentos à mesma entidade.

O autor impugnou as assinaturas e o conteúdo do mesmo documento e agravou deste despacho.

Veio a ser proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu do pedido, tanto as rés, como os intervenientes.

O autor apelou.

Em 20.02.2014, foi proferido acórdão nesta Relação que, dando provimento ao agravo e anulando a decisão proferida sobre a matéria de facto e a sentença, ordenou que fosse obtida informação sobre o efetivo pagamento daquele cheque.

Foram concretizadas pela seguinte forma as diligências a realizar sucessivamente:

a) numa primeira fase, a obtenção dos extratos da conta da ré DG entre 14.11 e 31.12.2001;
b) a confirmar-se a saída do dinheiro dessa conta, a ré MC deverá esclarecer o destino dado ao pagamento;
c) e, a ter sido depositado em conta bancária, deverá ser junto aos extrato que abranja essa data e os 45 dias posteriores.

Na fundamentação desta decisão disse-se, de forma significativa, o seguinte: “Devendo o direito das rés à protecção do sigilo bancário ceder perante a necessidade de esclarecer um facto por elas alegado, particularmente relevante para a discussão da presente causa, havendo fundadas dúvidas quanto à sua veracidade, e não havendo outra forma de as esclarecer.

Já na 1ª instância foi proferido, seguidamente, despacho que mandou pedir à entidade bancária a junção aos autos dos extratos da conta da ré DG, de onde foi sacado o cheque acima referido, entre 14.11 e 31.12.2001; este pedido foi satisfeito através do envio do extrato que consta de fls. 56-59 deste apenso.

Veio depois o autor requerer, a fls. 1184 dos autos principais, que se pedisse à CCAM:
-o esclarecimento de quem é (ou são) os demais titulares da mesma conta;
-a junção de cópia do empréstimo de 30.000.000$00 creditado no dito extrato na mesma data em que o cheque foi debitado, com as condições particulares e titulares dele constantes, bem como de um extrato desse empréstimo, com o plano de pagamentos efetuados, conta em que esses pagamentos foram efetuados e data do seu pagamento integral;
-o esclarecimento da existência de outras contas em nome da ré DG, com os respetivos titulares, e a junção dos respetivos extratos entre 1.11 e 31.12.2001.

Em 26.06.2014 foi determinado que se pedissem à CCAM as informações e elementos.

A CCAM, por carta de 17.7.2014, comunicou que a informação pedida poderia contender com a obrigação de sigilo bancário por não caber nas exceções previstas no nº 2 do art. 79º do RGICSF (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras); e invocou o direito de recusa, ao abrigo da al. c) do nº 3 do art. 417º do CPC.

Foi proferido, em 30.10.2014, despacho a considerar ilegítima aquela recusa e a determinar à CCAM de ... o fornecimento dos referidos elementos, sob pena de multa por falta de colaboração com o tribunal.

Nesta decisão considerou-se, essencialmente, que:
-tais elementos são de significativa e imprescindível importância para o interesse na boa administração da Justiça, que se sobrepõe ao interesse próprios da proteção da esfera privada;
-a base legal para o ordenado consta da al. d) do citado art. 79º, bem como da remissão para o art. 135º do CPP feita no nº 4 do referido art. 417º.

Os réus apelaram contra esta decisão, tendo apresentado alegações onde, pedindo a sua revogação e substituição por outra que não atenda ao pedido de obtenção de mais elementos bancários para além dos extratos bancários já juntos aos autos, formula as seguintes conclusões:

1- O presente recurso de apelação tem por objecto o despacho com a referência Citius 84482134, que decidiu ser ilegítima a recusa da entidade bancária Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... e determinou que “ … a CCAM de ... forneça os elementos supra referidos, uma vez que a recusa por si invocada é ilegítima, sob pena de vir a ser condenada em multa por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do artigo 417º, nº 2 do CPC. “ 
2A obtenção de novos elementos probatórios nasce na sequência de Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que, em sede de recurso de agravo, decidiu revogar o despacho agravado, “ …determinando-se que, nos termos acima indicados, seja obtida informação sobre o efectivo pagamento do cheque documentado a folhas 323, repetindo-se, depois, o julgamento e termos subsequentes. “ 
3- Para concretização da sua decisão o Tribunal de recurso definiu que os esclarecimentos a solicitar à instituição bancária em causa seriam os “extractos de  conta da ré DG, de onde foi sacado o cheque de folhas 323, entre o dia 14-11-2001 e 31-12-2001.”
4Mais concretizando, para que não restassem dúvidas acerca dos elementos probatórios a requerer, que, em caso de confirmação que o dinheiro saiu efectivamente da conta e não voltou nesse período, deverá a ré MC esclarecer o destino que lhe foi dado e, caso o mesmo tenha sido depositado em conta bancária, deverá ser junto extracto dessa conta abrangendo a data desse depósito e os 45 dias posteriores.
5– Os extractos bancários da conta da ré DG, ora recorrente, de onde foi sacado o cheque, referentes ao período que medeia entre os dias 14/11/2001 e 31/12/2001, foram solicitados à instituição bancária supra referenciada, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... (CCAMA) em cumprimento de despacho do Tribunal recorrido, datado de 28/04/2014, com a referência Citius 26862094 e foram por esta juntos aos autos mediante ofício datado de 12.05.2014, mostrando-se, assim, cumprido quer o despacho da Mta Juiz do Tribunal recorrido quer a decisão do Tribunal de recurso.
6- Contudo, o Tribunal recorrido veio aceder ao pedido formulado pelo A. para solicitação de novos elementos bancários, pese embora no requerimento cujo indeferimento deu origem ao recurso de agravo que obteve provimento, o mesmo A. tenha solicitado apenas a junção dos extractos bancários ora juntos, no que se refere à ré DG, novos elementos bancários esses que, a concretizarem-se, constituem grave devassa da vida privada não só da ré DG mas também dos eventuais co-titulares de contas bancárias com a mesma ré.
7O A. vem, agora, solicitar, o que foi aceite pelo Tribunal, que a instituição bancária em causa esclareça quem são os demais titulares da conta bancária da qual foi sacado o cheque em causa nos autos, bem como que junte aos autos cópia do contrato de crédito, suas condições particulares, titulares, extracto, plano de pagamentos, conta em que estes foram efectuados e data do seu pagamento integral, para além de extractos de todas as demais contas da titularidade ou co-titularidade da ré DG, entre as datas de 01/11/2001 e 31/132/2001.
8Ordenando à instituição bancária que dê cumprimento a tal pedido, o Tribunal extravasou claramente os limites dos esclarecimentos a solicitar à entidade bancária em questão, concretizados no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, violando expressamente, desde logo, o disposto no artigo 662º do CPC.
9Por outro lado, o despacho ora em recurso, o qual remete para o despacho datado de 26-06-2014, com a referência Citius 27964838, que apresenta como fundamentação genérica a relevância dos documentos e informações solicitados pelo A. para o esclarecimento dos factos e para a decisão da causa, não apresenta fundamentação para considerar ilegítima a recusa da instituição bancária em prestar as informações solicitadas ao abrigo do sigilo bancário.
10- O Tribunal recorrido justifica a ilegitimidade da escusa invocada pela instituição bancária, entendendo que os elementos solicitados se encontram dentro do regime de excepção previsto no artigo 79º, nº 2, alínea d) do Regime Jurídico das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, pelo que, no caso em apreço, não existe segredo profissional susceptível de ser invocado por parte da CCAMA, aduzindo ainda que tais elementos resultam ser de significativa e mesmo imprescindível importância para o interesse na boa administração da justiça, valor que se sobrepõe ao interesse da protecção da esfera privada da pessoa ao abrigo do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.
11- Contudo, o despacho recorrido não fundamenta, como deveria, qual a razão por que entende que se aplica ao caso em apreço o regime constante do artigo 135º do Código de Processo Penal, por remissão do artigo 417º, nº 4 do CPC, uma vez que este último artigo remete para o regime estatuído no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa.
12- Tal significa que, no caso em apreço, não estando no âmbito de um processo penal, há que adaptar o regime estatuído no artigo 135º do CPP à natureza dos interesses em causa para aferir da legitimidade da escusa, devendo o tribunal justificar o motivo pelo qual entende não haver sigilo bancário no caso concreto, o que o tribunal recorrido manifestamente não fez, uma vez que se limita a invocar que a situação em apreço se encontra abrangida pelo regime de excepção previsto no artigo 79º, nº 2 alínea d) do Regime Geral da Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, disposição que excepciona do regime do segredo bancário o fornecimento de elementos às autoridades judiciárias no âmbito do processo penal.
13- Se é certo que as disposições do processo penal se aplicam ao Código de Processo Civil em matéria de sigilo profissional, por expressa remissão do artigo 417º, nº 4 do CPC, tal aplicação tem necessariamente de ser realizada atendendo à natureza dos interesses em causa.
14Ora, nos presentes autos, a natureza dos interesses em causa restringe a prova a produzir aos factos delimitados pelo objecto do litígio, factos que se mostram cabalmente documentados pelos elementos já constantes do processo nas fases de instrução e julgamento e complementados pelos extractos bancários da conta da ré DG juntos aos autos em 12.05.2014.
15- A obtenção de elementos de prova sujeitos a sigilo profissional como é manifestamente o caso dos elementos relativos a nomes de clientes, contas de depósito e seus movimentos, bem como quaisquer outras operações bancárias não só de pessoas que sejam partes no processo mas principalmente de pessoas totalmente alheias ao processo judicial em causa, tal como solicitado pelo A. e aceite pelo tribunal, viola claramente o dever de segredo bancário, estatuído no artigo 78º, nº 2 do RGICSF, não se enquadrando nas situações de excepção previstas no artigo 79º, nº 2 alínea d) do mesmo diploma legal, atendendo à natureza dos interesses em causa conforme restringe expressamente o artigo 417º nº 4 do CPC.
16- O tribunal, quer na dispensa do sigilo profissional quer na avaliação da legitimidade ou ilegitimidade da escusa encontra-se obrigado à rigorosa observância do princípio da proibição do excesso na sua tripla vertente da necessidade, adequação e proporcionalidade, conforme amplamente reconhecido pela Jurisprudência. Vide, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-02-2012, proferido no processo 4433/09.9TBSXLD. L1-7, disponível «em www.dgsi.pt.
17Princípio que se mostra violado ao ordenar o acesso a informações sobre contas, seus movimentos e demais operações bancárias de clientes bancários que não são partes do processo judicial em cujo âmbito tais informações são ordenadas.
18- A obtenção de tais informações sem autorização do respectivo cliente viola manifestamente o direito à reserva da vida privada dos seus titulares, valor constitucionalmente consagrado no artigo 26º 1º da CRP, o qual, salvo melhor e douta opinião, não pode legitimamente ser violado ao abrigo do princípio geral e abstracto do interesse na boa administração da justiça quando os mesmos não são partes na causa nem arguidos ou suspeitos em qualquer processo penal, como acontece nos presentes autos.
19O dever de cooperação para a descoberta da verdade que impende sobre todas as pessoas, sejam ou não partes na causa judicial, preceituado pelo artigo 417º, nº 1 do CPC, não se mostra, assim, violado pela invocação legítima do sigilo profissional, tendo tal dever sido cumprido em toda a plenitude por parte dos RR ao juntarem aos autos o cheque de folhas 323, bem como os demais elementos probatórios já constantes dos autos.
20- O despacho recorrido viola, assim, por todo o supra exposto, o disposto nos artigos 662º e 417º, nº 4, do CPC, bem como os artigos 78º e 79º do RGICSF e artigo 135º do CPP, para além do artigo 26º, nº 1 da CRP, pelo que deve o mesmo ser revogado e substituído por outro que não atenda ao pedido de obtenção de mais elementos bancários para além dos extractos bancários já juntos aos autos relativos à conta da qual foi sacado o cheque em causa nos presentes autos, em estrita obediência ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ordenando-se, consequentemente, que não sejam levados em conta os documentos juntos pela CCAM de ... na sequência do despacho recorrido
Como é de Lei e de Justiça.

Em contra-alegações apresentadas sustentou-se a improcedência do recurso.
           
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – São dois os núcleos de argumentação tecida pelos apelantes para obter a revogação da decisão apelada.

Por um lado – conclusões 2ª a 8ª -, entendem que, tendo a Relação anulado a sentença já proferida e mandado reabrir a audiência para a produção de dois meios de prova expressamente definidos, o despacho apelado não podia determinar a produção de meios de prova diversos, pelo que violou o disposto no art. 662º do CPC (diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência).

Por outro, sustentam, ao longo das conclusões 9ª a 19ª, que o mesmo despacho não satisfez a exigência, constante do nº 4 do art. 417º, de aplicar o regime processual penal quanto à dispensa do dever de sigilo com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, tendo incorrido em violação do princípio da proibição do excesso ao ordenar o acesso a informações sobre operações bancárias de pessoas que não são partes no processo.

Passemos a analisar o primeiro dos invocados argumentos.

Na 1ª instância o autor vira rejeitado o seu pedido de notificação das rés DG e MC para que juntassem extratos bancários comprovativos do pagamento do cheque através do qual teria sido liquidado o preço do trespasse em que ambas intervieram – rejeição essa determinada no seguimento da junção de uma declaração da CCAM da qual constava que esse cheque havia sido pago ao balcão à segunda destas rés.

Esta Relação deu provimento ao agravo onde este despacho foi impugnado, constando do respetivo acórdão a afirmação de que esse pagamento se não encontrava provado; e, usando os poderes conferidos pela al. c) daquele citado art. 662º, mandou que se procedesse, sucessivamente, à junção dos extratos da conta da ré DG entre 14/11 e 31/12/2001 e que, a confirmar-se a saída do dinheiro dessa conta, se averiguasse o destino dado ao pagamento, inclusive através da junção de extrato da conta bancária da ré MC, se fosse caso disso, com vista à subsequente repetição do julgamento e trâmites posteriores.

Já na 1ª instância, obteve-se o extrato da conta da ré DG, do qual consta a saída da mencionada importância de 30.000.000$00; assim se executou a primeira parte do que fora determinado pela Relação.

E, depois disso, houve o requerimento do autor de fls. 1184, o despacho que o deferiu, a recusa de cumprimento por parte da CCAM e a prolação do despacho apelado.

Consta-se, pois, que as diligências feitas no Tribunal de 1ª instância, por um lado, não esgotaram as determinadas pela Relação e, por outro, promoveram a obtenção de elementos a que a Relação se não referiu.

Defendem os apelantes que o Tribunal de 1ª instância não podia ter alargado, deste modo, a averiguação para esclarecimento dos factos.

Mas sem razão.

Desde logo, porque o acórdão da Relação, embora tenha concretizado certas diligências para serem desenvolvidas em duas fases, não determinou que só elas fossem levadas a cabo. E a liberdade de investigação do tribunal “a quo” é inerente ao julgamento que de novo deverá realizar, tendo como única limitação o objeto agora em vista - a questão do pagamento do referido cheque de 30.000.000$00.

O alargamento determinado na 1ª instância, a requerimento do autor, em nada ofende o disposto no art. 662º, que define poderes da Relação mas não limita os da 1ª instância, cuja plenitude de apreciação, embora limitada ao que lhe é mandado julgar, emerge já do disposto na al. c) do nº 3 do mesmo artigo.

Não se acolhem, pois, as razões invocadas a este respeito.
 
Abordemos então o segundo núcleo de argumentação.

Começa por fazer-se um breve resumo do regime do sigilo bancário.

Há que atender, desde logo, à norma do nº 1 do art. 78º do RGICSF, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31/12, que impede aos membros de órgãos de administração e fiscalização das instituições de crédito[1] a revelação ou utilização de informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

E é feita no nº 2 do mesmo art. 78º uma exemplificação de factos e elementos cobertos pelo sigilo bancário, quando aí se diz: “Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.”

Não se trata de dever de valor absoluto, pois logo o art. 79º do RGICSF prevê exceções; no seu nº 1 consigna-se que a revelação de factos ou elementos respeitantes às relações do cliente com a instituição pode ter lugar mediante autorização daquele e no nº 2 enumeram-se casos em que quaisquer factos ou elementos cobertos pelo segredo podem ser revelados, a saber:

-na al. a), ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;
-na al. b), à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;
-na al. c), ao fundo de Garantia de Depósitos, ao Sistema de Indemnização aos Investidores e ao Fundo de Resolução, no âmbito das respetivas atribuições[2];
-na al. d), às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal[3];
-na al. e), à administração tributária, no âmbito das suas atribuições;
-na al. f), quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.

No tocante à al. d), justifica-se fazer a comparação entre o texto atual e o que antes vigorava, do seguinte teor: “d) Nos termos previstos na lei penal e de processo penal.

Esta alínea operava uma remissão para o art. 135º do CPP, onde se prevê que uma pessoa obrigada a segredo pode escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos – nº 1; sendo a recusa considerada ilegítima pela autoridade judiciária, esta pode ordenar, ou requerer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento – nº 2; sendo caso de segredo, o tribunal superior àquele onde for suscitado o incidente[4] pode determinar a prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que tal se mostre justificado, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos – nº 3.

Então, as entidades obrigadas ao sigilo bancário podiam invocá-lo perante os tribunais, mas a estes cabia – mesmo no âmbito de um processo penal - avaliar a razão da recusa, podendo, mesmo no caso de a mesma ser fundada, vir a decidir pela quebra do sigilo, em função das circunstâncias.

Com a nova redação daquela alínea d) deixou de ter cabimento a recusa de informação quando esta é pedida por autoridade judiciária no âmbito de um processo penal, não havendo lugar à aplicação do incidente para quebra do sigilo[5].

Porém, no âmbito de outro tipo de processos continua a poder ser recusada a informação que estiver coberta por sigilo bancário.

Poderá, então, ser determinada a sua quebra nos termos conjugados do art. 417º do CPC e do citado art. 135º, se for preponderante o interesse cuja tutela é prosseguida com o uso da informação em causa.

Importa, pois, avaliar se no caso dos autos se mostram reunidos os pressupostos para a quebra do sigilo.

Na petição inicial o autor sustenta que os contratos de trespasse, nomeadamente o celebrado entre as rés DG e MC, foram simulados.

A simulação é causa de nulidade do negócio jurídico, reunindo duas características particularmente negativas que a tornam merecedora de forte crítica – lesar dissimuladamente interesses alheios e ser praticada com dolo.

Alegando as rés, como se vê da leitura do acórdão desta Relação de 20.2.2014, que foi efetivamente feito o pagamento de 30.000.000$00 pela primeira à segunda, e persistindo elas em não colaborar no esclarecimento das dúvidas existentes, apesar de tal lhes ter sido solicitado e de a tanto estarem obrigadas por força do princípio da cooperação ínsito no art. 7º, torna-se imprescindível obter da CCAM a adequada informação, nos termos constantes do despacho apelado.

Na verdade, os elementos que foram pedidos quanto ao empréstimo feito com vista àquele pagamento permitirão, eventualmente, saber quem por ele se responsabilizou e quem procedeu ao seu pagamento, elementos úteis para averiguar se o terceiro trespasse foi viciado por simulação.

E não se vislumbra que a eventual participação em operações relacionadas com aquele empréstimo possa envolver a revelação de factos relevantes da intimidade cuja ocultação seja imposta por razões mais relevantes do que a necessidade de alcançar uma decisão justa que a descoberta da verdade material viabilizará.

Assim, também a argumentação invocada a este propósito não colhe.

Resta salientar, relembrando, no seguimento de observação que já acima fizemos, que no Tribunal de 1ª instância ainda não foi cumprido tudo o que o acórdão de 20.2.2014 determinou, no tocante à averiguação do destino dado ao pagamento, inclusive através da junção de extrato da conta bancária da ré MC.

IV– Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão apelada.
Custas a cargo dos apelantes.

Lxa. 2.06.2015

(Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho)
(Maria Amélia Ribeiro)
(Graça Amaral)


[1] Bem como aos seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional, na redação dada pelo art. 3º do DL nº 157/2014, de 24/10.
[2] Na redação dada pelo art. 3º do DL nº nº 157/2014.
[3] Na redação dada pelo art. 1º da Lei nº 36/2010, de 2.09.
[4] Ou o pleno das secções criminais, se o incidente tivesse sido suscitado no STJ.
[5] Cfr., neste sentido, os acórdãos da Rel. Coimbra de 16/11/2011, relatora Maria José Nogueira, e de 19/10/2011, relator Jorge Dias, disponíveis em www.dgsi.pt