Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9132/2005-6
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: ALIMENTOS
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/24/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Na fixação da prestação a suportar pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores podem ser abrangidas as prestações já vencidas e não pagas pelo obrigado a alimentos.
Decisão Texto Integral:
No Tribunal de Família e Menores de Ponta Delgada, por sentença de 28.06.2000, transitada em julgado, foi regulado o exercício do poder paternal dos menores Vasco -- e Ana Paula --, filhos de José Manuel -- e de Nélia ---, nos termos da qual, além do mais, ficou estabelecido que o progenitor contribuiria com a montante mensal de 10.000$00, a título de alimentos para os menores.
No incidente de incumprimento suscitado pela mãe, com o fundamento de que o pai não procede ao pagamento da prestação alimentar desde Agosto de 2000, o Ministério Público promoveu a intervenção do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores.

Realizadas as diligências de prova que o tribunal considerou indispensáveis, foi decidido fixar definitivamente em € 50 o valor da prestação a pagar mensalmente para os menores e a tal título pelo Fundo.
Foi ainda determinado que ficava a cargo do Fundo as prestações de alimentos vencidas desde Agosto de 2000, também no montante mensal de € 50.

Não se conformando com tal decisão, dela recorreu o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1- Não foi intenção do legislador da Lei n° 75/98, de 19 de Novembro e do Decreto-Lei n° 164/99, de 13 de Maio, prever o pagamento pelo Estado do débito acumulado pelo obrigado judicialmente a prestar alimentos.
2- Foi preocupação dominante, nomeadamente do Grupo Parlamentar que apresentou o projecto de diploma o evitar o agravamento excessivo da despesa pública, um aumento do peso do Estado na sociedade portuguesa.
3- Também o legislador não teve em vista uma situação que a médio prazo se tornasse insustentável para a despesa pública, face à conjuntura sócio económica já então perfeitamente delineada.
4- Deve ter-se presente a "ratio legis" dos diplomas no âmbito do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores - FGADM, que, na sua razão de ser, visa assegurar a prestação de alimentos a menores, um mês após a notificação da decisão do Tribunal (conf. n.° 5 do art.° 4.° do DL n.° 164/99, de 13 de Maio), e não o pagamento dos débitos acumulados anteriormente pelo progenitor responsável pelo pagamento dessas prestações.
5- Dos diplomas que regem o FGADM, deve fazer-se uma interpretação restritiva, pelo que o elemento gramatical tem de ser dimensionado pelo princípio hermenêutico contido no artigo 9° do Código Civil, onde se expressa que "na fixação do sentido e alcance da lei, o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".
6- Assim, não se pode considerar objectivamente que esteja aludida nos diplomas, a responsabilidade do Estado-FGADM pelo pagamento de débitos acumulados pelo progenitor relapso.
A admitir o contrário e face ao que foi dito quanto à posição do Grupo Parlamentar que apresentou o projecto de lei, e a preocupação de que o legislador se revestiu no sentido de evitar um agravamento das despesas públicas, estar-se-ia a iludir o espírito da lei, apostada em não fomentar a irresponsabilidade por parte dos progenitores, quanto à obrigação de zelar pelos alimentos aos seus filhos menores.
7- Ressalta pois, ter sido intenção do legislador, expressamente consagrada, ficar a cargo do Estado apenas o pagamento de uma nova prestação de alimentos a fixar pelo tribunal dentro de determinados parâmetros, artigo 3° n° 3 e artigo 4° n° 1 do DL 164/99 de 13/5 e artigo 2° da Lei 75/98 de 19/11.
8- A nosso ver, não se encontra no espírito da lei, que se tenha querido garantir ao menor os alimentos a que o progenitor estava obrigado por decisão anterior e que nunca satisfez. Não é correcto pôr-se o Estado a pagar os débitos do progenitor relapso.
9- O débito acumulado do devedor relapso, não será assim da responsabilidade do Estado.
10- Fazer impender sobre o Fundo a obrigação de satisfazer o débito acumulado anularia ab initio - subvertendo, efectivamente, o espírito da lei - a verificação de tal pressuposto, porquanto deixariam de subsistir prestações em dívida.
11- A nova legislação - Lei 75/98 e DL 164/99 - decorre, essencialmente, da falta de cumprimento da obrigação de alimentos, da preocupação do Estado em instituir uma garantia de alimentos ao menor para lhe assegurar os de que carece (por força do incumprimento), garantia que se traduz na fixação de uma prestação em função das condições actuais do menor e do seu agregado familiar e que podem ser bem diferentes das que determinaram a primitiva prestação.
12- É pois uma prestação autónoma e actual que não visa substituir definitivamente a anterior obrigação de alimentos mas antes proporcionar ao menor, de forma autónoma e subsidiária a satisfação de uma necessidade actual de alimentos.
13- De salientar ainda que, não há qualquer semelhança entre a razão de ser da prestação alimentar fixada ao abrigo das disposições do Código Civil e a então fixada no âmbito do Fundo.
14- A primeira consubstancia a forma de concretização de um dos deveres em que se desdobra o exercício do poder paternal, a última visa, assegurar no desenvolvimento da política social do Estado, a necessária protecção à criança, relativamente ao acesso da mesma às condições de subsistência mínimas.
15- A prestação a satisfazer pelo Fundo reveste pois, a natureza de uma prestação social tendo por objecto o reforço da protecção social que o Estado deve a menores, não assumindo assim, a natureza de uma obrigação de garantia da pensão antes fixada pelo Tribunal, ou seja, é verdade que é uma garantia de alimentos para o menor deles carecido por incumprimento do primitivo obrigado, contudo não se trata de uma garantia de pagamento das anteriormente fixadas que estejam em dívida.
16- A decisão violou assim, o artigo 2° da Lei n° 75/98, de 19 de Novembro e o n° 3 do artigo 3° e 4° do Decreto-Lei n° 164/99, de 13 de Maio.
17- Os diplomas em apreço só se aplicam para o futuro, não tendo eficácia retroactiva, conforme o artigo 12° do Código Civil.
18- E isto, independentemente de os seus efeitos se produzirem na data da entrada em vigor da Lei do Orçamento para o ano 2000.
19- Na verdade, o pagamento das prestações de alimentos saem das verbas do Orçamento.
20- O pagamento das prestações de alimentos terá início no mês seguinte à notificação ao organismo da Segurança Social, cf. n° 5 do artigo 4° do Decreto-Lei n° 164/99, de 13 de Maio.
21- Os doutos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra - Agravo 1386/01 de 26-06-01, que bem decidiu no sentido de o Estado não responder pelo débito acumulado do obrigado a alimentos, tratando-se de prestações de diversa natureza.
22- No mesmo sentido, os Acórdãos:
- Tribunal da Relação do Porto n.° 599/02, de 30-04-02 da 2.1 Secção; Tribunal da Relação do Porto n.° 905/02, de 11-06-02 da 2ª Secção; Tribunal da Relação de Évora n.° 1144/02 de 23-05-02 da 3ª Secção; Tribunal da Relação de Lisboa n° 7742/01 de 25-10-01 da 2ª Secção; Tribunal da Relação de Coimbra n.° 1386/01, de 26-06-01; Tribunal da Relação do Porto n.° 657/02, de 04-07-02 da 3ª Secção; Tribunal da relação de Évora n.° 638/02, de 23-05-02 da 3ª Secção; Tribunal da Relação do Porto n.° 2094/02, de 28-11-02 da 3ª Secção; Tribunal da Relação do Porto n.° 871/03.3 de 13-03-03 da 3ª Secção; Tribunal da Relação do Porto n.° 195/04-3, de 09-02-04 da 3ª Secção; Tribunal da Relação do Porto n.° 2369/04-2 de 17-06-04 da 2ª Secção; Tribunal da Relação do Porto n.° 3614/04-2 de 12-07-04 da 2ª Secção; Tribunal da Relação de Coimbra n.° 2193/04-3 de 01-10-04 da 3ª Secção; Tribunal da Relação de Évora n.° 1097/04-2, de 12-10-04 da 2ª Secção.
23- Parece-nos, salvo o devido respeito, que relativamente a esta matéria, ultimamente os Acórdãos têm-se pronunciado no sentido que, não compete ao Estado garantir os alimentos a que o progenitor estava obrigado por decisão judicial anterior e que não satisfez.
24- Não poderá aplicar-se por analogia o regime do artigo n° 2006.° do Código Civil.
25-A omissão da fundamentação de facto e de direito da sentença determina a anulação da sentença e a sua reformulação, conforme Acórdãos da Relação de Lisboa de 22.05.91 e da Relação de Coimbra n.° 3499/01 de 31.12.01.
26- Saindo o pagamento das prestações de alimentos do Orçamento de Estado, todo o rigor é exigível.

O Ministério Público respondeu às alegações concluindo pela confirmação integral do despacho recorrido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

B- Fundamentação de direito

A questão a decidir nos presentes autos é meramente de direito e consiste em saber se na fixação da prestação a suportar pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores podem ser abrangidas as prestações já vencidas e não pagas pelo obrigado, conforme foi entendido no despacho recorrido, ou se, conforme defende o agravante, só podem ser consideradas as prestações vincendas.

A Lei nº 75/98, de 19 de Novembro consagrou a garantia de alimentos, a prestar pelo Estado,  instituindo, para o efeito, o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.

Trata-se de uma crescente socialização do risco do incumprimento de obrigações alimentares devidas a menores[1].

O legislador pretendeu proteger as crianças credoras e carentes de alimentos independentemente das datas em que tal crédito se tenha fixado.
Impressão que se reforça pela leitura do preâmbulo do Decreto-Lei nº 164/99:
“A Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (artigo 69.º). Ainda que assumindo uma dimensão programática, este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção. Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (artigo 24.º). Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna.
A protecção à criança, em particular no que toca ao direito a alimentos, tem merecido também especial atenção no âmbito das organizações internacionais especializadas nesta matéria e de normas vinculativas de direito internacional elaboradas no seio daquelas. Destacam-se, nomeadamente, as Recomendações do Conselho da Europa R (82)2, de 4 de Fevereiro de 1982, relativa à antecipação pelo Estado de prestações de alimentos devidos a menores, e R(89)l, de 18 de Janeiro de 1989, relativa às obrigações do Estado, designadamente em matéria de prestações de alimentos a menores em caso de divórcio dos pais, bem como o estabelecido na Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela ONU em 1989 e assinada em 26 de Janeiro de 1990, em que se atribui especial relevância à consecução da prestação de alimentos a crianças e jovens até aos 18 anos de idade.
A evolução das condições sócio-económicas, as mudanças de índole cultural e a alteração dos padrões de comportamento têm determinado mutações profundas a nível das estruturas familiares e um enfraquecimento no cumprimento dos deveres inerentes ao poder paternal, nomeadamente no que se refere à prestação de alimentos, circunstância que tem determinado um aumento significativo de acções tendo por objecto a regulação do exercício do poder paternal, a fixação de prestação de alimentos e situações de incumprimento das decisões judiciais, com riscos significativos para os menores.
De entre os factores que relevam para o não cumprimento da obrigação de alimentos assumem frequência significativa a ausência do devedor e a sua situação sócio-económica, seja por motivo de desemprego ou de situação laboral menos estável, doença ou incapacidade, decorrentes, em muitos casos, da toxicodependência, e o crescimento de situações de maternidade ou paternidade na adolescência que inviabilizam, por vezes, a assunção das respectivas responsabilidades parentais.
Estas situações justificam que o Estado crie mecanismos que assegurem, na falta de cumprimento daquela obrigação, a satisfação do direito a alimentos.
Ao regulamentar a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, que consagrou a garantia de alimentos devidos a menores, cria-se uma nova prestação social, que traduz um avanço qualitativo inovador na política social desenvolvida pelo Estado, ao mesmo tempo que se dá cumprimento ao objectivo de reforço da protecção social devida a menores.
Institui-se o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a quem cabe assegurar o pagamento das prestações de alimentos em caso de incumprimento da obrigação pelo respectivo devedor, através dos centros regionais de segurança social da área de residência do alimentado, após ordem do tribunal competente e subsequente comunicação da entidade gestora. A intervenção destas entidades no processo em causa resulta justificada, no que concerne ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, pela própria natureza da prestação e, no que respeita aos centros regionais de segurança social, pela proximidade territorial do alimentado, podendo estes assegurar, melhor que outro serviço, a rápida e eficaz satisfação da garantia de alimentos devidos ao menor”.

Contrapondo argumentos jurisprudênciais em sentido contrário aos trazidos pela recorrente.
 
“Na fixação do montante da pensão de alimentos a satisfazer pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores nos termos da Lei nº 75/98, de 19/11 e do DL nº 164/99, de 13/05, podem ser consideradas as prestações já vencidas e não pagas pelo pai do menor, pois o espírito da lei foi, claramente, o de garantir ao menor os alimentos a que o progenitor estava obrigado e não satisfez e que também não foi possível cobrar coercivamente”[2] .
Neste acórdão escreveu-se. “ Se o pensamento do legislador fosse o de a fixação da prestação em causa só tomar em conta as prestações vincendas do obrigado relapso, tê-lo-ia dito expressamente – como fez no artº 2006 do Código Civil, para as prestações de alimentos – até porque isso contraria a finalidade dos diplomas em apreço (...)”.

No mesmo sentido veja-se  o Acórdão da Relação do Porto de 19.9.2002, assim sumariado:
“ A intervenção do Fundo de Garantia tem natureza subsidiária, sendo seu pressuposto a não realização coactiva da prestação já fixada através das formas previstas no artº 189º da OTM.
Na fixação da prestação a suportar pelo referido Fundo de Garantia podem ser abrangidas as prestações já vencidas e não pagas pela pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos”[3].

Assim, não vemos no articulado legal nenhuma referência expressa à obrigatoriedade de as prestações só poderem ser as futuras e não as já vencidas e não pagas.
Pelo contrário, cremos que uma interpretação razoável do articulado legal nos leva a concluir que o legislador se preocupou em proteger uma universalidade de menores, isto é, todas as crianças credoras de alimentos e não apenas aquelas cujos créditos se tenham fixado após a sua entrada em vigor.[4]
Podemos, pois, concluir que:
Na fixação da prestação a suportar pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores podem ser abrangidas as prestações já vencidas e não pagas pelo obrigado a alimentos.

Deste modo, o agravo não deve ser provido.

III - DECISÃO
Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo, confirmando-se o despacho recorrido.
Sem custas, por delas estar isento o agravante – art 2º nº 1 alª b) do Código das Custas Judiciais.


Lisboa,  24 de Novembro de 2005

Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Sérgio Gouveia
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[1] Remédio Marques “ Algumas Notas Sobre Alimentos”, Coimbra Editora, 2000, pág. 230.
[2] Acórdão da Relação de Lisboa de 12.7.2001 (Moreira Camilo), desta Secção, in base de dados do Tribunal, no endereço www.dgsi.pt. Este acórdão foi confirmado pelo Acórdão do STJ de 31.01.2002 ( revista nº 4160/01-2ª), salvo quanto aos débitos acumulados respeitantes ao período anterior à entrada em vigor do DL 164/99.
[3] Col Jur IV/2002, pág. 180.
[4] Ac. da Relação de Lisboa de 26.02.2004 – Pº nº 5938/04 –  ( Bruto da Costa), in CD-TRL8, edição de acórdãos da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, publicado pela Imprensa Nacional- Casa da Moeda, SA.