Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
208/13.9TELSB-J.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
PODERES DO JUIZ
INQUÉRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: -durante o inquérito, o JIC pode conhecer a excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, por violação das regras de competência internacional.
-nessa fase, o JIC ao fazer um juízo de mérito sobre o inquérito, em violação de competências exclusivas do Ministério Público e do princípio do acusatório, comete a nulidade insanável do art.119, al.b, CPP.
-os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a investigação de factos integradores do crime de branqueamento, nomeadamente através de movimentos financeiros aqui ocorridos, mesmo que os factos relativos aos crimes precedentes tenham ocorrido noutro Estado e em relação a eles não tenha sido exercido procedimento criminal.
(Sumariado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: TEXTO PARCIAL:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
Iº 1. Nos autos de inquérito nº208/13.9TELSB do DCIAP, na sequência de requerimentos apresentados por MM (fls.426 deste apenso) e HP (fls.456 deste apenso), por despacho de 26Jan.17, o Mmo JIC decidiu:

"…
MM, empresário, de nacionalidade angolana veio, através de requerimento de fls. 3341ss, requerer a declaração de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal alegando, em síntese, os seguintes fundamentos:
(…)
Por sua vez, a fls. 3405, HP, veio, igualmente, requerer a declaração de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal alegando, em síntese, os seguintes fundamentos:
(…)

O Mº Pº não se pronunciou dentro do prazo legal e o assistente nada disse.
Cumpre apreciar o requerido pelos requerentes.
Os presentes autos de inquérito tiveram início, no dia 14-11-2013, com base na certidão de fls. 2ss, extraída do inquérito nº 142/12.0TELSB, na sequência de uma denúncia apresentada por AP e começou logo a correr contra pessoa determinada, entre eles, MHJ, LFN, FC, MM e outros.
A fls.138, consta a denúncia, com data de 16-6-2011, elaborada por AP, na qual solicita que seja feito um aturado inquérito às actividades económicas e financeiras em Portugal e investigar sobre a relação com instituições portuguesas, com os seguintes cidadãos. IS., WS. e HVD.
Esta denúncia deu origem a uma averiguação preventiva que correu termos sob o nº 85/11.
Na sequência dessa AP, foram recolhidas informações sobre as comunicações no âmbito da Lei 25/2008 (fls. 146), bem como sobre o património dos denunciados em Portugal (fls.173).
Foram tomadas declarações ao denunciante, conforme consta de fls. 218ss, no qual refere, em resumo, que a acumulação de riqueza de bilhões de dólares pelos três denunciados assenta na exploração das riquezas de diamantes e petróleos angolanos e que essa riqueza está a ser introduzida em Portugal.
Foi recolhida informação sobre HP., sendo este detentor de uma conta bancária junto do Banco Santander Totta, creditada em entre Agosto de 2009 a Outubro de 2010, por uma transferências no valor global de USD 3.562.930,00 proveniente do BPN Cayman, (fls.365ss).
Por despacho do Mº Pº de fls. 470, foi solicitado à PGR de Angola informação sobre a pendência de algum processo-crime contra os requerentes MM.e HP. e a fls. 538 consta a informação negativa prestada pela PGR de Angola.
Nos presentes autos de inquérito investigam-se factos susceptíveis de integrar crimes de branqueamento de capitais, p e p pelo artº 368-A do CP, tendo, como crimes precedentes, corrupção, burla, fraudes fiscais alegadamente cometidos em Angola.
Por despacho judicial de fls. 1352, com data de 21-11-2013, foi aceite a competência deste TCIC para a prática dos actos jurisdicionais no presente inquérito e no mesmo despacho foi confirmada a aplicação do regime de segredo de justiça.
Nesse mesmo despacho judicial, na sequência da promoção do Mº Pº de fls. 1348 e 1348, foi referido que o objecto dos presentes autos centra-se na factualidade denunciada a qual é susceptível de integrar a prática dos crimes de associação criminosa p e p pelo artº 299º, branqueamento de capitais p e p pelo artº 368-A ambos do CP, praticados em território nacional, tendo como crime precedente os de corrupção, burla, fraude fiscal, indiciariamente praticados em Angola e ainda crimes de tráfico de influência p e p pelo artº 335º do CP, corrupção activa com prejuízo do comércio internacional p e p pelo artº 7º da Lei 20/2008, de 21/04.
A fls. 1357 foi confirmada, nestes autos, o estatuto de assistente a RM .
Por despacho de fls. 2015, com data de 12-08-2014, foi proferido despacho de arquivamento, nos termos do artigo 277º nº 1 do CPP, quanto aos factos relativos ao suspeito MHJ.
Por despacho de fls. 2041ss, com data de 15-09-2014, foi determinado, no âmbito dos poderes hierárquicos, que o inquérito prosseguisse nos termos do artigo 262º nº 1 do CPP.
Por despacho judicial de fls. 3150ss foi declarada a irregularidade do despacho proferido a fls. 2070, pelo Sr. Director do DCIAP ficando o mesmo sem efeito bem como todos os actos subsequentes.
A fls. 390ss, constam os elementos relativos ao sujeito passivo MM quanto aos dois imóveis que é proprietário em Lisboa e aos dois veículos automóveis que é proprietário em Portugal.
Do Apenso A, consta o Processo Administrativo nº1148/2010, aberto na sequência da comunicação feita (fls. 3 do Apenso A), pelo Banco Santander, no dia 26-10-2010, ao abrigo da Lei 25/2008, relativamente a uma operação – ordem de pagamento do BPN/Cayman, no valor de 800.000,00 USD para a conta nº 000311152275024.
A conta bancária em causa é titulada por HP e WS.
A fls. 5 do Apenso A, consta a acta nº 4/2008, na qual a sociedade angolana WI, S.A, decidiu atribuir um «success fee», no valor de dois milhões de dólares norte-americanos aos accionistas, sendo um milhão e quinhentos mil dólares à accionista WS..
A fls. 3 do Processo Administrativo nº 929/2011, incorporado no Apenso A, consta a comunicação feita em 13-7-2011, pelo Banco Santander Totta, no âmbito da Lei 25/2008, relativa à operação – transferência em routing operada pelo Banco Santander Totta na qualidade de banco correspondente, no valor de 750,000.00 na qual é interveniente WS..
Estas comunicações não deram origem a abertura de inquérito.
Os processos Administrativos acima referidos foram apensados à Averiguação Preventiva 85/11, por despacho de fls. 149.
Da análise dos autos, verifica-se que o presente inquérito, na qual os requerentes são suspeitos, não teve origem nas comunicações feitas pelo Banco Santander Totta ao abrigo da Lei 25/2008, mas sim com base na denúncia de fls. 138 elaborada por AP.
Em relação à suspeita WS., investigam-se nos presentes autos a origem das importâncias creditadas nas contas das quais é titular e co-titular, acima referidas.
A suspeita WS., mulher do HP., é cidadã angolana, contribuinte fiscal e residente em Angola.
A origem dos fundos movimentados na conta da suspeita foi justificada com a acta de fls. 5 do Apenso A, na qual a sociedade angolana, no dia 5-5-2008, WI, S.A, decidiu atribuir um «success fee», no valor de dois milhões de dólares norte-americanos aos accionistas, sendo um milhão e quinhentos mil dólares à accionista WS..
Os factos ilícitos constantes da denúncia de fls. 138 e, conforme resulta do despacho do Mº Pº de fls. 463, foram, alegadamente praticados em Angola. Factos que, alegadamente, estarão na origem ilícita dos fundos movimentados pelos suspeitos em causa em Portugal junto do Banco Santander Totta.
Conforme resulta do despacho do Mº Pº de fls. 463, os factos, alegadamente praticados em Angola, são susceptíveis de configurar a prática, em Angola, de crimes de corrupção, burla, fraude fiscais e outros.
Em Angola não existe nenhum inquérito crime no qual sejam visados os suspeitos em causa ou os factos descritos na denúncia de fls. 138.
No dia 6-1-2012 RM. apresentou denúncia, junto da Procuradoria-Geral da República de Angola contra outros suspeitos, também suspeitos nos presentes autos, como é o caso de MHJ., por este ter usado e abusado do seu cargo público e do poder de influência que detém junto do Presidente da República e praticado factos susceptíveis de enriquecimento ilícito, violação da lei das actividades petrolíferas.
Na sequência dessa denúncia, correu termos junto da PGR de Angola o inquérito nº 4/2012, o qual terminou com despacho de arquivamento, proferido em 7-2-2013, pela inexistência de indícios susceptíveis de integrar a prática de crime.
Deste modo, nos termos do artigo 32º nº 1 do CPP cumpre conhecer da alegada excepção de incompetência internacional invocada pelos suspeitos.
Como resulta do despacho do Mº Pº de fls, 463 os factos em investigação nos presentes autos são susceptíveis de integrar a prática de um crime de branqueamento de capitais p e p pelo artigo 368º - A do CP.
Do crime de branqueamento de capitais.
Resulta do disposto no artº 368 -A, do Código Penal que: quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal é punido com pena de prisão de 2 a 12 anos.
Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.
Esclarece o nº1 deste preceito legal, que se consideram vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação dos factos ilícitos típicos de (…) corrupção e demais infracções referidas no nº1 da Lei nº 36/94, de 20 de Setembro, e dos factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou a duração máxima superior a cinco anos, assim como os bens que com eles se obtenham.
O chamado branqueamento de capitais é legalmente descrito como um processo destinado a um certo fim, a ocultação ou dissimulação de um conjunto de características de bens de origem ilícita (origem, localização, disposição, movimentação, propriedade) pelo que a casuística do branqueamento de capitais é inesgotável (Do crime de Branqueamento de Capitais” Introdução e Tipicidade, Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Almedina, 2001).
Como se refere no acórdão do STJ no NUIPC 14/07.0TRLSB.S1. O branqueamento de capitais (dinheiro ou outros bens) consiste no procedimento através do qual o produto de operações criminosas ilícitas é investido em actividades aparentemente lícitas, mediante dissimulação da origem dessas operações; traduz-se no desenvolvimento de actividades, em resultado das quais um aumento de valores, que não é comunicado às autoridades legítimas, adquire uma aparência de origem legal, sendo, no fundo, um processo de transformação.
Segundo Lourenço Martins, Branqueamento de capitais: Contra medidas a nível internacional e nacional, Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), Ano 9, Fasc. 3.º, Julho-Setembro 1999, págs. 450/1, o branqueamento de capitais (dinheiro ou outros bens) consiste no procedimento através do qual o produto de operações criminosas ilícitas é investido em actividades aparentemente lícitas, mediante dissimulação da origem dessas operações; traduz-se no desenvolvimento de actividades, em resultado das quais um aumento de valores, que não é comunicado às autoridades legítimas, adquire uma aparência de origem legal, sendo, no fundo, um processo de transformação.
Rodrigo Santiago, O «Branqueamento» de capitais e outros produtos do crime, RPCC, 1994, págs. 501/2, o branqueamento passa, ou pode passar, por dois momentos: um primeiro, conhecido por money laundering, e um outro chamado recycling. “O money laundering constitui o núcleo essencial do branqueamento. Pretende-se, através das operações que visam alcançá-lo, que as vantagens ou incrementos patrimoniais, resultantes do facto criminoso anterior, sejam rapidamente libertadas dos vestígios da respectiva origem criminosa. Normalmente, neste momento, as referidas «vantagens» são ainda constituídas por dinheiro em numerário, e o respectivo branqueamento concretiza-se em negócios de curto prazo, os quais visam, como se referiu, dissimular não só a sua origem, como a respectiva identificação. É normalmente, o que se passa através da troca do dinheiro «sujo» por outros valores monetários, designadamente por notas de maior valor, ou pela troca desse dinheiro por outros bens facilmente transportáveis, como sejam jóias, metais e pedras preciosas, títulos de participação, abertura de contas bancárias noutros países, de preferência em nome de pessoas colectivas, negócios de Bolsa, aquisição de lotaria premiada, etc. Já a recycling, quando chega a ter lugar, se concretiza em operações ou «manipulações» através das quais os incrementos referidos, já previamente «lavados», vão ser objecto de «tratamentos» de forma a que ganhem a aparência de se tratar de objectos de proveniência lícita, com a sua consequente reentrada no normal circuito económico. O que sucede, por via de regra, com a aplicação do dinheiro em grandes negócios, como pizarias e salas de espectáculos, ou através da ligação a negócios bancários ou de sociedades financeiras».
A punição do branqueamento visa tutelar a pretensão estadual ao confisco das vantagens do crime, ou mais especificamente, o interesse do aparelho judiciário na detecção e perda das vantagens de certos crimes. (sic Ac. Rel Porto de 07-02-2007 – Proc. 06165509 in www.dgsi.pt).
Para Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2010, na nota prévia ao artigo 368.º-A, n.º 4, pág. 951, o bem jurídico protegido pelo crime de branqueamento de capitais, nas suas diversas alíneas, é o da administração da justiça, o da perseguição e confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa, repetindo agora na nota 2 ao artigo, na pág. 955, que o bem jurídico protegido pela incriminação é a realização da justiça, na sua particular vertente da perseguição e do confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa. Real e Júnior, Figura típica e objecto material do crime de “Lavagem de dinheiro”,
Condição objectiva do tipo de branqueamento é a verificação de um facto ilícito típico subjacente, definido pela lei, de onde sejam provenientes as vantagens que se dissimulam.
É pressuposto do branqueamento de capitais a existência de um de certos crimes precedentes previstos no “catálogo” legal, de cuja prática sejam provenientes os bens cuja origem se pretende dissimular.
É, por isso, indispensável demonstrar tal efectiva proveniência, não bastando apurar que o agente manipulou bens cuja origem licita não resulta clara.
É um crime doloso. Terá de haver a intenção de ocultar a origem ilícita das vantagens ou de favorecer um agente do facto precedente. Esse dolo deverá ser específico na medida em que se exige um efectivo conhecimento da proveniência das vantagens.
O processo de dissimulação do branqueamento passa, em regra, pelas seguintes fases:
Colocação - introduz-se os bens ou produtos, normalmente dinheiro, em algum ponto do circuito financeiro e económico legal.
Camuflagem (nuclear) - efectuam-se operações sucessivas de transformação ou transferência daquele dinheiro de modo a tornar difícil detectar-lhe a origem e o rasto; são, por exemplo, feitas sucessivas transferências para outras contas ou instituições financeiras de outras pessoas, frequentemente em outros países, de tal modo que a partir de certo ponto se torna praticamente impossível identificar a origem.
Integração - faz-se a utilização dos bens já lavados nomeadamente, o dinheiro em actividades lícitas que podem ir desde a compra de bens de luxo até ao investimento em actividades económicas.
Como vimos, as condutas tipificadas no nº 2 do art. 368-A do CP, que integram o tipo objectivo do crime de branqueamento, são, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 7-2-2007: «(i) a conversão de vantagens; (ii) a transferência de vantagens; (iii) o auxílio de alguma operação de conversão de vantagens; (iv) o auxílio de alguma operação de transferência de vantagens; (V) a facilitação de alguma operação de conversão de vantagens; (vi) a facilitação de alguma operação de transferência de vantagens.
A operação de «conversão» consiste “na alteração da natureza e configuração dos bens gerados ou adquiridos com a prática do facto ilícito típico subjacente, enquanto a «transferência» traduz-se “quer na deslocação física dos bens, quer na alteração jurídica ao nível da titularidade ou do domínio.
Quanto ao tipo subjectivo, exige o nº 2 do artigo 368-A do CP, a intenção de dissimular a origem ilícita das vantagens ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal».
Uma vez verificados os elementos constitutivos do tipo de crime de branqueamento de capitais cumpre saber se os tribunais portugueses têm competência para conhecer dos factos em investigação nos presentes autos.
Na verdade, estamos perante uma denúncia apresentada contra a requerente, entre outros, cidadã angolana com residência em Luanda, por alegados factos subjacentes ocorridos, supostamente, em Angola no qual o MºPº português abriu o presente inquérito quanto aos referidos factos.
É inquestionável a competência do tribunal português para conhecer do crime de branqueamento cometido em território nacional em que os ilícitos típicos subjacentes foram praticados também em território nacional. Questão mais complexa surge nos casos em que o crime subjacente é praticado no exterior. Na verdade, o crime de branqueamento de capitais tem um carácter transnacional, ou seja, coloca-nos perante novas formas de criminalidade resultantes do fenómeno da globalização que resultam em problemas ao nível da aplicação da lei penal no espaço.
A este propósito escreve Alberto Silva Franco, em “Globalização e criminalidade dos poderosos”, publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 10, Fasc. 2.º, Abril-Junho 2000, a págs. 206/7 «não se poder deixar de reconhecer que o modelo globalizador produziu novas formas de criminalidade que se caracterizam, fundamentalmente, por ser uma criminalidade supranacional, sem fronteiras limitadoras, por ser uma criminalidade organizada, e por ser uma criminalidade que permite a separação tempo-espaço entre a acção das pessoas que actuam no plano criminoso e a danosidade social provocada. Tal criminalidade, desvinculada do espaço geográfico fechado de um Estado, espraia-se por vários outros e se distancia nitidamente dos padrões de criminalidade que tinham sido até então objecto de consideração penal. A criminalidade económica, a criminalidade das drogas, a criminalidade ecológica, a criminalidade organizada etc., enfim, os crimes of the powerful, dependem em face das várias fases de sua operacionalidade, de um número elevado de acções delituosas, que podem até ser devidamente caracterizadas; no entanto, enquanto expressão de criminalidade montada na base de um sistema reticulado, não se sabe, ao certo, o lugar de sua realização e nem se mostra descomplicada a identificação dos seus autores».
Por sua vez, José de Faria Costa em Direito Penal Económico e Europeu, Volume III, Coimbra Editora, 2009, págs. 106 e 107 refere que: «O princípio da territorialidade constitui, dentro da nossa actual civilização jurídico-cultural, a pedra de toque de toda a problemática da aplicação da lei penal no espaço”, axioma que é integrado por outros princípios – v. g., defesa dos interesses nacionais, do pavilhão, da nacionalidade, do princípio da aplicação universal – o que permite que, mesmo quando não possa funcionar o princípio da territorialidade, a lei penal nacional se aplique, desde que se verifique um conjunto de circunstâncias consagrado explicitamente pelo legislador, aumentando-se o âmbito da lei penal nacional e respondendo, também deste modo, a duas atitudes essenciais que se devem ter nesta área: a) punir ou expulsar (punire aut dedere) e b) evitar a todo o custo que uma infracção fique sem punição».
Quanto a aplicação da lei penal no espaço, o artigo 4.º do Código Penal, refere que: «Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados: a) Em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou b) A bordo de navios ou aeronaves portugueses».
A aplicação espacial do direito penal assenta nos seguintes princípios, consagrados nos artigos 4º e 5º do CP: o princípio da territorialidade, o princípio da nacionalidade, o princípio da defesa dos interesses nacionais, o princípio da universalidade, o princípio da administração supletiva da lei nacional e o princípio da aplicação convencional.
Segundo o princípio da territorialidade o Estado aplica o direito penal a todos os factos juridicamente relevantes cometidos no seu território, definido no artigo 5º da CRP, independentemente da nacionalidade do agente.
De acordo com o princípio da defesa dos interesses nacionais, o Estado pune os factos juridicamente relevantes dirigidos contra os interesses nacionais.
Por sua vez, segundo o princípio da aplicação universal, o Estado pune todos os factos juridicamente relevantes dirigidos contra os interesses da humanidade, independentemente da nacionalidade do agente ou da vítima e do local onde foram cometidos.
O princípio da administração supletiva da lei nacional, nos termos do qual o estado pune os factos juridicamente relevantes cometidos fora do território nacional contra estrangeiros por estrangeiros que se encontram em Portugal mas que não podem ser extraditados.
Por fim, de acordo com o princípio da aplicação convencional da lei penal nacional, esta é aplicável sempre que o estado Português se vincule, por tratado ou convenção internacional a julgar certos factos pela lei nacional.
Quanto ao crime de branqueamento o artigo 368.º A nº 4º, do CP refere que: A punição pelos crimes previstos nos números 2 e 3 tem lugar ainda que os factos que integram a infracção subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, ou ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores.
Daqui decorre que a punição pelos crimes de branqueamento abranja expressamente os casos em que os factos que integram a infracção principal tenham sido praticados fora do território nacional.
Deste modo, quanto ao crime de branqueamento, as regras de aplicação espacial da lei penal portuguesa permanecem inalteradas, sendo necessário que os actos de conversão, transferência ou ocultação ocorram, ao menos parcialmente, em território nacional ou a bordo de navio ou aeronave portugueses (artigos 7.º e 4.º do CP), ou que, ocorrendo no estrangeiro, o agente seja de nacionalidade portuguesa (artigo 5.º, n.º1, alínea c)) ou haja sido pedida a sua extradição e esta não possa ser concedida (artigo 5.º, n.º1, alínea e).
Voltando ao caso concreto, verifica-se, atento o teor da denúncia, que os factos que deram origem aos presentes autos, alegadamente, ocorreram em Angola, sendo que os suspeitos são angolanos e residentes em Luanda. Assim, quanto a estes factos, os alegados crimes de corrupção, burla e fraude fiscal cometidos em Angola, não existem dúvidas que o Mº Pº português carece de competência para os investigar, na medida em que não se verificam os pressupostos enunciados no referido artigo 5º do CP.
Como vimos supra, a investigação dos presentes autos, em relação ao requerente HP., não teve origem nas comunicações realizadas no âmbito da Lei 25/2008, na medida em que essas comunicações apenas deram origem a um Processo Administrativo, (presume-se que pelo teor da justificação quanto à origem dos fundos), mas sim, na denúncia de fls. 138, relativa a factos alegadamente cometidos em Angola.
Quanto aos factos alegadamente praticados em Angola, cumpre referir que os mesmos foram dados a conhecer à PGR de Angola, conforme resulta do teor da Carta Rogatória constante de fls. 470ss destes autos.
Consta, também, que a PGR de Angola, apesar de ter tomado conhecimento do teor da Carta Rogatória, não abriu nenhuma investigação visando os agora suspeitos.
Deste modo, a questão que se coloca neste momento, face á decisão tomada pelo MºPº de Angola em não abrir investigação quanto aos mesmos factos, é a de saber se o Mº Pº em Portugal tem competência para prosseguir com a investigação relativa aos movimentos financeiros ocorridos em Portugal que, quanto à sua origem, já foi objecto de decisão por um outro Estado soberano.
Paralelamente a isso, a suspeita WS fez juntar aos autos documentação constante do Apenso A com vista a justificar os movimentos bancários verificados na conta em que é titular com o marido, HP..
A este propósito, José de Faria Costa, O branqueamento de capitais (Algumas reflexões), 1992, pág. 69, a actividade de branqueamento é ela já uma criminalidade derivada, de 2.º grau ou induzida de outras actividades, pois só há necessidade de “branquear” dinheiro se ele provier de actividades primitivamente ilícitas.
Pedro Caeiro, A consunção do branqueamento pelo facto precedente, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, 2010, versando agora o artigo 368.º-A, do Código Penal, pág. 200, nota 35, afirma que o tipo do branqueamento exige apenas que as vantagens provenham de um facto ilícito típico, não de um crime, donde a punição do branqueamento não depende da efectiva punição pelo facto precedente.
Por sua vez, Germano Marques da Silva, Notas sobre branqueamento de capitais em especial das vantagens provenientes da fraude fiscal, Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 anos /Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Almedina, 2007 refere a págs. 456: o crime de branqueamento acompanha o crime designado, dificultando a actuação da justiça, quer na sua descoberta e punição, quer na perda das vantagens do crime que é consequência da condenação (artigo 111.º do CP). Mas o branqueamento não consiste simplesmente no aproveitamento das vantagens adquiridas com a prática do crime, é mais do que isso, é um facto praticado com o fim de dissimular a origem ilícita das vantagens ou de evitar que os agentes sejam perseguidos ou submetidos a uma reacção criminal, é, enfim, um facto praticado com o fim específico de dificultar a acção da justiça. O simples aproveitamento das vantagens do crime não constitui ainda branqueamento, só o sendo quando os factos típicos são praticados com aquela intenção específica. Por isso que pode existir concurso real de crimes entre o crime designado e o crime de branqueamento, quando praticados pelo mesmo agente, porque são diversos os factos e diversos são os bens jurídicos protegidos pelas incriminações.
Mais adiante a pág. 459, o mesmo autor reafirma que o crime de branqueamento é um crime contra a realização da justiça, na medida em que através da sua prática o agente persegue o fim de dissimular a origem ilícita dos bens a branquear ou «evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal», sendo que dissimular a origem ilícita dos bens é uma forma de evitar a perseguição criminal. O crime de branqueamento é praticado para ocultar ou garantir o proveito do crime antecedente, havendo entre eles uma conexão material de tal modo que o crime subjacente compõe a própria estrutura do branqueamento; no plano ontológico o crime de branqueamento é mais um elo na cadeia do crime subjacente e, por isso, que alguns entendem que ambos têm a mesma natureza».
Tendo em conta os ensinamentos acima referidos e a estreita relação entre os actos de branqueamento e o facto ilícito precedente e tendo estes factos precedentes, alegadamente, sido consumados num outro país soberano que, apesar de já ter tomado conhecimento dos alegados ilícitos subjacentes, não exerceu investigação quanto aos mesmos, faz com que os tribunais portugueses, neste caso o Mº Pº, careçam de competência para a prossecução da investigação por não estarem verificados os requisitos do artigo 5º do CP.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, citado no ARL de 26-3-2015, NUIPC 147/13.3TELSB «o princípio da universalidade ou da aplicação universal visa permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro que atentam contra bens jurídicos carecidos de protecção internacional ou que … o Estado Português se obrigou internacionalmente a proteger. Não se trata …da facultar a cada Estado a intervenção penal relativamente a todo e qualquer facto considerado crime pela lei interna o que conduziria à existência de um jus puniendi estadual sem qualquer fronteira e fomentador, por isso, em larga medida, de conflitos internacionais de caracter jurídico-penal».
Atento o disposto no artigo 96º do CPC, aplicável ao caso concreto por força do artigo 4º do CPP, «determinam a incompetência absoluta do Tribunal a) a infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras da competência internacional;».
A incompetência absoluta constitui uma excepção dilatória, a qual pode ser conhecida oficiosamente e conduz à absolvição da instância – artigos 577º a), 97º e 99º, todos do CPC.
Em face do exposto, sendo os suspeitos, um cidadão angolano, residente em Angola e contribuinte fiscal em Angola, e outro cidadão português mas sujeito passivo residente em Angola, os factos subjacentes, alegadamente, terem sido consumados em Angola, faz com que os tribunais portugueses sejam incompetentes, sobe pena de violação das regras de competência internacional, para investigar e julgar os factos que constituem o objecto dos presentes autos na parte relativa aos referidos requerentes.
Assim sendo, julgo verificada a excepção de incompetência absoluta, por violação das regras de competência internacional e, em consequência, absolvo os requerentes MM. e HP. da instância.
…".

2. Deste despacho de 26Jan.17, recorre o Ministério Público, tendo apresentado motivações, das quais extraiu as seguintes conclusões:
(…)

3. O recurso foi admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo, após o que MM e HP responderam, nos termos que constam de fls.36 e segs. e 99 e segs. deste apenso, ambos concluindo pelo seu não provimento.

4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-geral Adjunto, apôs visto.
5. Após os vistos legais, realizou-se a conferência.
6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à apreciação das seguintes questões:
-intervenção do JIC no inquérito;
-competência dos tribunais portugueses;

* * *
IIº 1. Tendo o despacho recorrido julgado verificada a excepção de incompetência absoluta, por violação das regras de competência internacional, defende o recorrente que na fase de inquérito não cabe nas funções do JIC apreciar a competência ou incompetência do Ministério Público.
O art.219, da Constituição da República Portuguesa, consagra a autonomia do Ministério Público, bem como lhe confere o exercício da acção penal, a qual é materializada no Código de Processo Penal, conferindo-lhe, no processo criminal, o “dominus da fase de inquérito".
Contudo, o estatuto e competências reconhecidas ao Ministério Público, não o eximem ao controlo jurisdicional, presente em todos os órgãos de soberania e na Administração Pública no seu conjunto, como é próprio de um Estado de Direito Ac. deste Tribunal da Relação de 24-09-2015, proferido no apenso B deste processo, acessível em www.dgsi.pt..
Estando em causa uma situação de defesa de direitos liberdades e garantias dos cidadãos, a autonomia do Ministério Público, não pode justificar o afastamento de sindicância jurisdicional, no que respeita à sua actuação no processo criminal, de que tem o domínio.
Os arts.268 e 269, do CPP, prevêm um série de actos a praticar, ordenar ou autorizar pelo JIC no decurso do inquérito, mas não estabelecem uma enumeração taxativa de actos em que o JIC pode intervir, prevendo a al.f, do nº1, de ambos os preceitos a possibilidade de “Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução” e “ (…) quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução”, o que é compatível com a competência ao JIC para “… exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento”, como estatui o art.17, CPP.
Reconhecendo a CRP, expressamente, o direito a um processo equitativo, na hipótese de um cidadão ser vítima de violação de direitos liberdades e garantias, por ser alvo em Portugal de inquérito penal por factos que não são da competência dos tribunais portugueses, tem de lhe ser garantido o direito a tutela jurisdicional, o que na fase de inquérito será concretizado com a intervenção do JIC, assim se garantindo a aplicação directa de normas constitucionais (art.18, nº1, CRP).

2. Na pronúncia sobre a competência internacional dos tribunais portugueses para investigar determinados factos, o JIC, porém, não pode comprometer-se com o mérito dessa investigação.
Na verdade, o nosso sistema processual penal é de estrutura acusatória, ou seja, existe uma separação entre a entidade que acusa e a entidade que julga o processo.
Como refere Anabela Rodrigues O inquérito no Novo Código de Processo Penal pág.77., a nossa Constituição conferiu à magistratura do Ministério Público "... o grau de independência efectiva, nomeadamente perante o Executivo, que faziam com que aquele assumisse, no exercício da sua função atinente à fundamentação da acusação, o tão desejável estatuto de autonomia, no qual vai implicada a obrigação de se mover por critérios estritos de objectividade e imparcialidade. O que tudo faz com que se possam remeter as coisas ao seu devido lugar: continua a defender-se a figura do juiz de instrução, mas apenas na exacta medida em que se defende a jurisdicionalização de todas as medidas investigatórias que directamente contendem com os direitos" liberdades e garantias das pessoas; e pode, sem medo do ápodo de reaccionarismo, reacentuar-se a ideia do Ministério Público como "dominus" da fase de investigação por excelência".
A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público (art.263, CPP), compreendendo aquele o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e recolher as provas (art.262, CPP), terminando o mesmo com arquivamento ou acusação (art.276, nº1, CPP).
Quer a decisão de acusação (art.283 do CPP), quer a de arquivamento (art.277 do CPP), são passíveis de controlo judicial, através do reconhecimento a determinados sujeitos processuais do direito de requererem a abertura da instrução (art.287, CPP), da competência do juiz de instrução, mas este não pode, em hipótese alguma, substituir-se ao Ministério Público na decisão sobre o mérito do inquérito, sob pena de nulidade, por falta de promoção do processo pelo Ministério Público (art.119, al.b, CPP).

3. No caso, o recorrente, em abono do reconhecimento da competência dos tribunais portugueses para investigação dos factos objecto do presente inquérito invoca o art.4, al.a, do CP (aplicação da lei penal portuguesa a factos praticados em território português).
Alega o recorrente que o objeto do inquérito são movimentos financeiros aqui ocorridos, que refletem intenção de ocultar a sua real origem e dissimular a sua natureza ilícita, susceptíveis de integrar os elementos típicos do crime de branqueamento p.p., pelo art.368 A, nº4, do nosso Código Penal.
O objecto do processo penal, definido em termos análogos ao conceito de causa de pedir do processo civil, é essencialmente composto por factos e por direito que consubstanciam a prática de um crime.
No caso, os autos iniciaram-se com certidão extraída do inquérito nº142/12.0TELSB.
Dessa certidão consta uma denúncia onde são relatados factos justificativos de suspeita de que um conjunto de indivíduos se encontrariam a utilizar o sistema financeiro português para proceder à introdução camuflada na economia legítima de quantias por si obtidas através do desenvolvimento de atividade económica e negocial, em Angola, em violação da legislação criminal desse país relativa à titularidade de cargos de responsabilidade política.
Como refere o despacho recorrido, na sequência da denúncia, os autos começaram logo a correr contra pessoa determinada, entre eles o recorrente MM. e outros, tendo o denunciante em 16Jun.11 solicitado que fosse feito um aturado inquérito às actividades económicas e financeiras em Portugal e investigação sobre a relação de instituições portuguesas com os cidadãos IS., WS. e HVD.
Foi recolhida informação sobre o recorrente HP., sendo este detentor de conta bancária junto do Banco Santander Totta, creditada entre Ago.09 e Out.10 com transferências no valor global de USD 3.562.930,00, proveniente do BPN Cayman.
Do apenso A consta processo administrativo aberto na sequência de comunicação pelo Banco Santander Totta, em 26Out.10, ao abrigo da Lei nº25/08, relativamente a uma ordem de pagamento do BPN Cayman, no valor de USD 800.000, para uma conta titulada pelo recorrente HP. e esposa, WS..
Estes movimentos financeiros, na medida em que podem traduzir a introdução de dinheiro de proveniência ilícita no circuito económico financeiro e económico legal, são susceptíveis de preencher os elementos típicos do crime de branqueamento p. e p. pelo disposto no art. 368º-A, do Código Penal.
Tendo esses factos ocorrido em território português, está verificado o pressuposto da al.a, do art.4, do CP, para aplicação da lei penal portuguesa, o que para nós é suficiente para reconhecimento da competência internacional dos tribunais portugueses para o presente inquérito.
Os recorridos citam o Ac. da 9ª Secção deste Tribunal de 2Jun.16 (acessível em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?codarea=57&nid=5098), mas esse acórdão refere-se a inquérito tendo por objecto factos que se consumaram em Angola, enquanto nos presentes autos estão em causa factos ocorridos em Portugal (movimentos financeiros).
Investigando o Ministério Público factos ocorridos em Portugal, é deslocada a referência dos recorridos a abuso de poder, desrespeito pela soberania e independência de Angola, ou interesses políticos na condução do inquérito.

4. Refere o despacho recorrido que constitui condição objectiva do tipo de branqueamento a verificação de um facto ilícito típico subjacente de onde sejam provenientes as vantagens que se dissimulam, factos esses que ocorreram em Angola, Estado competente para a sua investigação e em relação aos quais não instaurou qualquer processo crime, concluindo que não tendo aí sido instaurado processo crime e não tendo o Estado Português competência territorial para investigar os factos integradores dos crimes precedentes previstos no "catálogo" legal, também não pode investigar os factos integradores do branqueamento, apesar destes terem ocorrido em Portugal.
O recorrente, por seu lado, alega que o facto do Estado de Angola não ter instaurado processo crime por factos aí ocorridos e integradores dos crimes precedentes ao branqueamento e Portugal não ter competência territorial para os mesmos não é obstáculo à verificação do crime de branqueamento, pois o nº4, do citado art.368-A prevê a punição por esse crime "... ainda que os factos que integram a infracção subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, ou ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores".
Esta questão, porém, tem a ver com o mérito do inquérito, cuja apreciação, como vimos, escapa aos poderes constitucionais e legais do JIC.
Saber se apesar do agente ter praticado em Portugal os actos previstos no nº2, daquele art.368-A, tendo os factos integradores dos crimes precedentes sido praticados noutro Estado que não exerceu em relação a eles acção penal, o mesmo pode ser acusado do crime de branqueamento em Portugal, terá de ser decidido no despacho final do inquérito, de acusação (art.283 do CPP), ou de arquivamento (art.277 do CPP), só depois podendo ocorrer o controlo judicial, caso se verifiquem os respectivos pressupostos (art.287, CPP).
Tendo o Mmo JIC optado no despacho recorrido por um juízo de mérito sobre o inquérito, promovendo o inquérito em violação de competências exclusivas do Ministério Público (art.219, nº1, da CRP e art.263, nº1, CPP) e do princípio do acusatório (art.32, nº5, CRP), cometeu a nulidade insanável do art.119, al.b, CPP.

5. O despacho recorrido reconhece que o presente inquérito tem por objecto a investigação de factos corridos em Portugal, susceptíveis de constituir crime de branqueamento, o que, como se referiu, só por si, é suficiente para reconhecer a competência dos tribunais portugueses.
Afasta essa competência, por o Estado de Angola não ter exercido acção penal em relação aos crimes precedentes e os tribunais portugueses não terem competência internacional para eles, mas os factos susceptíveis de integrar tais crimes precedentes ao branqueamento não são objecto do presente inquérito, não cabendo ao JIC fazer neste momento um juízo de mérito sobre o objecto do inquérito o que caberá, em primeira linha, ao Ministério Público no momento próprio.
Contudo, ainda que fosse admissível, neste momento, um juízo de mérito em relação ao inquérito, a solução defendida pelo despacho recorrido não seria aceitável.
Na verdade, com o crime investigado são postos em causa bens jurídicos que têm a ver com a realização da justiça. Com a punição deste tipo de condutas visa-se proteger a sociedade, o Estado e as suas instituições contra o uso das fortunas ilicitamente acumuladas, que podem corromper e contaminar as próprias estruturas do Estado e as actividades comerciais e financeiras legítimas, o que não pode ficar prejudicado pela inércia de outros Estados (onde alegadamente terão ocorrido os crimes precedentes), indiferentes a bens jurídicos que para a nossa ordem jurídica são de grande relevância.
Neste sentido, apontam instrumentos internacionais a que Portugal está vinculado, nomeadamente a CONVENÇÃO DO CONSELHO DA EUROPA RELATIVA AO BRANQUEAMENTO, DETECÇÃO, APREENSÃO E PERDA DOS PRODUTOS DO CRIME E AO FINANCIAMENTO DO TERRORISMO (Varsóvia, 16.05.2005), aprovada por Resolução da Assembleia da República n.º 82/2009 (DR 1.ª série — N.º 166 — 27 de Agosto de 2009), ao prever no art.9, nº5, " Cada uma das Partes garantirá a possibilidade de condenação por branqueamento independentemente de condenação anterior ou simultânea pela prática de infracção subjacente" e a Diretiva nº91/308/CEE, do Conselho, de 10 de Junho de 1991, que no seu art.1, refere "... Existe branqueamento de capitais mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro ou de um país terceiro".
De qualquer modo, mesmo que fosse caso de incompetência dos tribunais portugueses, a consequência não seria a absolvição da instância decretada pelo despacho recorrido, por aplicação analógica das normas do processo civil, pois não ocorre qualquer lacuna (art.4, CPP), estando esta situação expressamente regulada no nº4, do art.33, CPP, onde se prevê que o processo nessa hipótese é arquivado.

6. Concluindo:
-durante o inquérito, o JIC pode conhecer a excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, por violação das regras de competência internacional.
-nessa fase, o JIC ao fazer um juízo de mérito sobre o inquérito, em violação de competências exclusivas do Ministério Público e do princípio do acusatório, comete a nulidade insanável do art.119, al.b, CPP.
-os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a investigação de factos integradores do crime de branqueamento, nomeadamente através de movimentos financeiros aqui ocorridos, mesmo que os factos relativos aos crimes precedentes tenham ocorrido noutro Estado e em relação a eles não tenha sido exercido procedimento criminal.
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IIIº DECISÃO:
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, dando provimento ao recurso do Ministério Público, acordam:
a) Em declarar a nulidade do despacho recorrido, na parte em que se pronunciou sobre o mérito do inquérito;
b) Em revogar o despacho recorrido, reconhecendo, nos termos dos arts.4, al.a, do Código Penal e 6, do Código de Processo Penal, os tribunais portugueses internacionamente competentes para investigar os factos objecto do presente inquérito.
c) Condena-se cada um dos recorridos, em quatro UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 20 de Junho de 2017

(Relator: Vieira Lamim)

(Adjunto: Ricardo Cardoso)