Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18203/23.8T8SNT.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
CENTRO COMERCIAL
CONTRATO DE UTILIZAÇÃO DE LOJA
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O gestor do Centro Comercial tem um papel decisivo na criação do complexo comercial, agindo na implantação das lojas, sua selecção e interconexão, no fornecimento, gestão e fruição de serviços vários e em operações de promoção em ordem a captar o público consumidor e que, no fundo, torne o centro um local privilegiado para compras e economicamente rentável.
II. Face à existência de um contrato de utilização de loja em centro comercial e  actuando o gestor no âmbito das incumbências que lhe assistem, entendemos que perante o incumprimento reiterado e manifesto do lojista impõe-se considerar válida a cláusula que permite o desapossamento da loja após a resolução do contrato.
III. Pois, considerar que perante o incumprimento reiterado e manifesto do lojista, o gestor do Centro não possa reagir contra o mesmo atempadamente é permitir um desiquílibrio contratual manifesto e que põe em causa as competências organizativas do gestor, mas igualmente o funcionamento do complexo comercial na sua totalidade.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
C…, LDA., com sede na …matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o nº …, que é também o seu nº de identificação de pessoa colectiva, com o capital social de 500,00€ (quinhentos euros), representada por H…, titular do título de residência temporária nº …, válido até 23-11-2020, contribuinte fiscal …, intentou o presente PROCEDIMENTO CAUTELAR DE RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE e, subsidiariamente, PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM contra, A…, S.A., com sede na …, pedindo que seja ordenada a entrega imediata à Requerente da Loja n.º … do …
Alega para o efeito, em suma, que: a Requerida lhe facultou a utilização de tal loja, por acordo escrito assinado em 07-05-2021; em cumprimento do acordado pagou a caução que lhe foi exigida, e as rendas; em tal loja comercializa capas de telemóvel, colunas Bluetooth, smartwatches, entre outros similares ligados ao fenómeno internet of things e artificial inteligence sob a designação “WOOX”; na noite de 9 para 10-10-2023, a solicitação da Requerida foi erigido um tapume que impede o acesso à referida loja por vedar a mesma a todo o seu comprimento e altura; desde essa altura a Requerente não tem acesso aos seus bens e mercadorias, nem pôde continuar o exercício da sua actividade.
Produzida a prova foi ordenada a restituição da posse à requerente da loja nº …, com 83 m2, sita no piso 0 (zero) do Centro Comercial ….
Citada a requerida a mesma deduziu oposição na qual:
Admite ter entaipado a loja explorada pela Requerente, alegando, não obstante que o fez por incumprimento do acordo a que a partes chegaram e que foi homologado por sentença transitada em julgado, no procedimento cautelar nº 3466/22.4T8SNT-A, que correu termos no J2 deste Juízo Central Cível de Sintra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste. Em tal acordo, a Requerente obrigou-se a vender produtos electrónicos, loT1 e outros dispositivos que usem AI2 para uso doméstico da marca WOOX3, nomeadamente, câmaras de vigilância, fichas triplas, lâmpadas e kits de segurança, sendo que apenas poderia comercializar acessórios de telemóveis e gaming4 num espaço correspondente a 6 metros lineares, podendo estes ser contínuos ou interpolados. Não obstante, a Requerente continuou a vender na referida loja apenas acessórios para telemóveis como capas, correntes, protecções de ecrã e outros. Alega ainda o incumprimento contratual da requerente quer quanto à ausência de entrega de garantia e de autorização de débito directo, bem como o pagamento das remunerações devidas.
Conclui pela não manutenção da providência decretada.
Ouvida a prova apresentada em sede de oposição decidiu-se manter a providencia nos termos ordenados.
Inconformada veio a requerida apresentar recurso, concluindo que:
«1 - A Requerida entende que deve ser dado como indiciariamente provado o facto seguinte:
21A: Nas declarações de vendas, entregues pela Requerente à Requerida, por referência aos meses de Março a Setembro de 2023 (declarações fechadas nos meses de Abril a Outubro), a Requerente declarou ter vendido um total de € 13.727,06 (média diária de €442,81) em Março de 2023, de €15.309,08 (média diária de €510,30) em Abril de 2023, de €12.179,37 (média diária de €392,88) em Maio de 2023, de €12.631,10 (média diária de €421,04) em Junho de 2023, de €15.286,57 (média diária de €493,12) em Julho de 2023, de €17.352,00 (média diária de €559,74) em Agosto de 2023 e de €16.929,09 (média diária de €564,30) em Setembro de 2023.
2 - Com efeito, tal facto é, em primeiro lugar, uma decorrência do facto indiciariamente provado sob o n.º 21, onde se refere, a contrario, que a Requerente entregou as declarações de vendas dos meses de Abril a Outubro de 2023.
3 - Por outro lado, as declarações de vendas encontram-se registadas em documento designado por “… – declaração diária de vendas – loja 0.98 Woox (valores sem IVA)” - os dados constantes do documento foram devidamente comprovados pelas testemunhas M… - gravação das declarações da testemunha no período compreendido entre as 09:48 e 10:44, em particular os minutos 33 a 38 – e A… - gravação das declarações da testemunha no período compreendido entre as 10:55 a 11:07, sem prejuízo de se considerar que este documento, à semelhança dos demais, não foi impugnado pela Requerente (a impugnação da Requerente é extemporânea, porquanto já foi apresentada após o prazo de 10 dias que dispunha).
4 - Em face do facto que se propõe seja dado como provado (21A), não se poderá manter, nos seus exatos termos, o facto indiciariamente provado como n. 8, propondo-se a seguinte redação: “8. A Requerente factura diariamente cerca de €483,46.”
5 – O valor apresentado corresponde à média destes sete últimos meses antes da resolução
contratual operada pela requerida: a soma das médias diária de cada um destes meses a dividir pelos 7 meses, ou seja, €3.384,19 : 7 = 483,46.
6 - A Requerida entende que deve ser dado como indiciariamente provado o facto seguinte: “21B A Requerente não procedeu à entrega, à Requerida, da autorização de débito directo prevista contratualmente.” – a este propósito, depoimento da testemunha M… - gravação das declarações da testemunha no período compreendido entre as 09:48 e 10:44, em particular os minutos 32 a 33 e 38 a 40 – e R… - gravação das declarações da testemunha no período compreendido entre as 11:18 a 11:35, em particular os minutos 6:00 a 7:00.
7 - A Requerida entende que deve ser alterada a redação do facto indiciariamente provado
como n.º 6, o qual deverá passar a ser o seguinte: “6. Na noite de 9 para 10-10-2023, a solicitação da Requerida, foi colocado um tapume na referida loja, que impedia o acesso à mesma.”
8 - A requerida impugna o excerto constante do facto inscrito como n.º 6, denominado “contra a vontade da Requerente”, dado que esta, apesar de por diversas vezes interpelada, em momento algum respondeu o que quer que fosse, pelo que, em momento anterior e contemporâneo da colocação do tapume amovível, não houve qualquer manifestação de
oposição.
9 - Por outro lado, o tapume amovível foi colocado de noite, sem a presença da Requerente, pelo que, também nesse momento, não houve manifestação de oposição – a este propósito, depoimento da testemunha T…, no período compreendido entre as 14:37 e as 14:46. A testemunha relata que fez o fecho da loja e que no dia a seguir estava lá o placard.
10 - A única reação conhecida da Requerente apenas decorre do procedimento cautelar intentado, em que pede a restituição da posse.
11 - O tribunal a quo considerou, - e bem - em sede de fundamentação de direito, que “a
requerente, ao contrário do que afirmou no seu requerimento inicial, não cumpriu as obrigações que o acordado com a Requerida lhe impunham, posto que:
“- não pagou a contrapartida pela utilização da loja, no valor de 26.891,45€, vencida até Agosto de 2023;
- não pagou, nem paga à Requerida qualquer valor, não obstante a Requerida estar impedida de celebrar contrato com outro lojista, o que importará uma compensação a cargo da Requerente, por privação da Requerida do uso da loja, no valor mensal de 5.144,07€, desde o mês de Setembro de 2023 e até ao presente;
- não entregou a garantia bancária no valor de 35.527,32€ como se obrigou, ficando a Requerida em risco de não lograr cobrar as quantias de que a Requerente seja devedora, seja a indiciariamente provada no valor de 26.891,45€, sejam as que venham a resultar da
compensação da Requerida pela privação do uso da loja no tempo decorrido entre a resolução do contrato e a efectiva entrega da loja.
- Não comercializa na loja os produtos que acordou com a Requerida comercializar.
12 – Para além do incumprimento das obrigações contratuais expressas pelo tribunal a quo e referidas no artigo precedente, - que correspondem aos factos indiciariamente provados sob os n.ºs 14 e 18 a 21 - é notório que a Requerente também não procedeu à entrega da autorização de débito directo, que acresce aos restantes incumprimentos – ver, a propósito, conclusão n.º 6.
13 - Apesar de os factos indiciariamente provados e a convicção do julgador terem corroborado os fundamentos constantes da resolução operada pela Requerida e de a comunicação escrita a resolver o contrato ter chegado ao conhecimento da Requerente, a quem foi entregue em 29/08/2023, - facto indiciariamente provado sob o n.º 16 - o Tribunal a quo não extrai qualquer consequência jurídica destes factos, determinando apenas que se mantem “válido tudo quanto se disse no despacho que decretou a providência cautelar, quanto aos pressupostos para o decretamento da mesma.”
14 - Parece-nos que, verificando-se um incumprimento contratual que determinou a resolução do contrato, o Tribunal, fruto da prova agora produzida, não poderia deixar de apreciar estes novos factos e de os enquadrar à luz do direito.
15 - Não o fazendo, para além da violação das normas jurídicas previstas nos artigos 432.º a 436.º do Código Civil, não se consegue perceber exactamente o raciocínio expendido pelo julgador e o caminho que prosseguiu até à decisão final, pecando, por isso, a sua decisão por falta de fundamentação, na vertente de fundamentação deficiente, vicio este que entendemos poder ser suprido por este Tribunal da Relação, dado estarem disponíveis todos os elementos para a decisão da causa.
16 - Entende a Requerida que o tribunal a quo, ao permitir que a Requerente continue a exercer a sua actividade numa loja cujo direito de utilização já não dispunha (fruto da resolução contratual legitimamente operada), faz com que o seu proprietário se veja privado da loja e da gestão do espaço comercial de forma integrada, como é legitimo que o faça.
17 – Por outro lado, com a cessação do contrato (a resolução contratual legitimamente operada), não se mostram preenchidos os pressupostos que permitem o decretamento deste procedimento cautelar especificado, nomeadamente no que se refere a posse, esbulho e violência, pelo que assim se têm por violados os artigos 377.º e 378.º do CPC.
18 – Entendemos que a Requerente não se pode servir dos meios de defesa da posse desde logo porque não tem posse (titulada):
a) O contrato de utilização de loja em Centro Comercial é um contrato atípico, não lhe sendo aplicáveis as regras especificas previstas para o contrato típico de locação, nomeadamente as que se referem aos meios de defesa da posse;
b) Ainda que assim não fosse, - e entendemos que é – o contrato de utilização foi validamente resolvido, nos termos contratuais e legais, pelo que a relação contratual se extinguiu, em momento prévio ao alegado momento perturbador.
19- A este propósito comungamos com o decidido no Ac. do STJ 4477/05.0TVLSB.L1.S1, de 01.07.2010, que, pela sua adequação ao caso concreto, nos permitimos reproduzir:
“2.1.2- A cláusula 19ª confere ao gestor do Centro o direito de resolução do contrato em caso de incumprimento pelo lojista dos deveres e obrigações decorrentes do contrato de utilização, podendo aquela, uma vez resolvido o contrato, reassumir a detenção da loja, usando dos meios necessários.
A partir da resolução do contrato, e só após esta ter operado, consagra esta cláusula a possibilidade do gestor reassumir a detenção da loja, para a hipótese do lojista não a entregar voluntariamente dentro de determinado prazo.
A resolução contratual pode ser atribuída, por convenção, a uma das partes ou a ambas, podendo fazer-se extrajudicialmente, mediante declaração à parte contrária –arts. 432º, nº 1 e 436º, nº 1 C.Civil, operando a partir do momento em que essa declaração chegue ao destinatário ou dele seja conhecida – art.º 224º C.Civil. E a destruição da relação contratual, por força do disposto no art.º 433º C.Civil, já que equipara, quanto aos seus feitos, a resolução à nulidade, obriga o lojista à restituição da loja.
A cláusula aqui em análise permite que o gestor reassuma a detenção da loja, mas apenas
após a resolução do contrato e para a hipótese dessa entrega não ser feita dentro de determinado prazo pelo lojista.
Esta cláusula foi livremente negociada entre as partes. E a não haver a possibilidade do
gestor obter a desocupação da loja, isso poderia criar embaraços ao normal desenvolvimento do comércio do Centro e, consequentemente, afectar os demais lojistas, quando o gestor tem precisamente por incumbência proporcionar condições a esse normal funcionamento do Centro, mantendo a sua plena vivência.
A actuação do gestor está ancorada numa cláusula consensualmente elaborada pelas partes, de acordo com o princípio da liberdade de fixação do conteúdo dos contratos. E, por outro lado, apresentando-se a reocupação da loja necessária ao regular funcionamento do Centro Comercial, afigura-se justificado e ajustado o teor da cláusula, o que equivale por afirmar a sua não desconformidade com quaisquer princípios legais.”
20 – No mesmo sentido, veja-se Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13.11.2012, processo 830/12.0TBCTB.C1. em cujo sumário se refere o seguinte: 1. Ainda que não esteja em causa um verdadeiro e típico contrato de arrendamento e sim um contrato atípico e inominado, o lojista ou utilizador de loja em centro comercial que lhe foi cedida por “contrato de utilização de loja” – à semelhança do que acontece com o locatário em contrato de arrendamento – pode, durante a vigência do contrato, recorrer aos meios possessórios, mesmo contra o cedente, para defender o seu direito à ocupação e utilização da loja cujo gozo lhe foi cedido. 2. Todavia, uma vez cessado o contrato – com a consequente extinção do direito à ocupação e utilização da loja – e deixando de ser titular daquela posição contratual, o utilizador da loja, que continua a ocupá-la por ter incumprido o dever de a restituir, deixa de ter qualquer “posse” ou direito que possa defender através dos meios possessórios e, designadamente, através de um procedimento cautelar de restituição de posse. 3. Ainda que seja ilícita a conduta do cedente que, por acção directa e sem verificação dos pressupostos de que dependia a sua licitude, reocupa a loja – que lhe deveria ter sido entregue na data da cessação do contrato – e muda as respectivas fechaduras, não haverá lugar à sua restituição ao utilizador que, por ter cessado o contrato do qual decorria o seu direito, já não tinha qualquer título legítimo para a sua ocupação/utilização.
21 – Quanto ao esbulho, entendemos que a Requerente não só não tinha a posse, como não tinha também qualquer direito sobre a coisa, logo, não se pode considerar que foi privada de algum direito sobre ela.
22 – Nos termos do artigo 1261º, n.º 2, do CC: “Considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usa de coação física, ou de coação moral nos termos do artigo 255º do CC”. O artigo 255º, n.º 1, do mesmo Código, considera coação moral “a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração”, acrescentando o n.º 2 que “a ameaça tanto pode respeitar a pessoa como a honra ou fazenda do declarante ou de terceiro”.
23 - No nosso caso, houve apenas a colocação de um tapume amovível, que não implicou
alteração ou substituição de portas e fechaduras, e sem a presença de quaisquer outras pessoas, nomeadamente da requerente.
24 - Comungamos do decidido no Ac. do STJ de 19 de maio de 2020, o qual, pela sua relevância, aqui se transcreve parcialmente: “Já quanto ao conceito de violência, há duas correntes na doutrina e na jurisprudência. Para uma, largamente maioritária, a violência pode ser exercida sobre as pessoas ou sobre as coisas. Para outra corrente, o esbulho a considerar na providência cautelar de restituição provisória de posse é apenas aquele que resulte de violências ou ameaças contra as pessoas que defendem a posse. Aderimos à primeira. A violência tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre as coisas (por exemplo, ocupação de casa alheia, mediante arrombamento da porta de entrada, como
parece indicar a parte final do n.º 2 do artigo 255º (ameaça contra a fazenda), na medida em que não pode deixar de relacionar-se a coisa objecto de violência com o possuidor que reclama a restituição da posse.
Todavia, a violência contra as coisas, na simples expressão da sua materialidade, não significa, só por si, coacção física ou moral. Se assim fosse, e uma vez que qualquer acto de esbulho traz normalmente associada alguma violência, correr-se-ia o risco de confundir esbulho com violência.
Por isso, como defendido por Orlando de Carvalho, a violência contra as coisas só é relevante se com ela se pretender intimidar, directa ou indirectamente, a vítima da mesma, não devendo qualificar-se como tal os meros actos de destruição ou danificação desprovidos de qualquer intuito de influenciar psicologicamente o possuidor.
Deste modo, como bem se afirma no acórdão-fundamento, “se a acção recair sobre as coisas e não directamente sobre pessoas, esta só poderá ser havida como violenta se, indirectamente, coagir o possuidor a permitir o desapossamento, pois apenas assim estará em causa a liberdade de determinação humana”.
Esta parece-nos ser a perspectiva mais compatível com a norma do artigo 1261º, n.º 2, o que nos afasta da posição seguida no acórdão deste STJ de 19.10.2016, em que se arrimou a decisão da 1ª instância. Recorde-se que nesse aresto decidiu-se que “não pode deixar de se considerar esbulho violento a vedação com estacas de madeira e rede com uma altura de 1,50m executada pelos requeridos como um obstáculo que constrange, de forma reiterada, a posse dos requerentes, impedindo-os de a exercitar como anteriormente faziam, merecendo, por conseguinte, tutela possessória cautelar no âmbito do procedimento de restituição provisória de posse”.
O entendimento expresso nesse acórdão parece ser também o defendido por Lebre de Freitas, para quem a construção ou destruição duma coisa, ou a sua alteração, pode ser o meio de impedir a continuação da posse, coagindo, física ou moralmente, o possuidor a abster-se dos actos de exercício do direito correspondente.
Vejamos com mais detalhe a posição desse autor. Aceitando a orientação de que a violência directamente exercida sobre as coisas constitui meio indirecto de atingir as pessoas, na medida em que cria no possuidor um estado psicológico de insegurança, receio ou intimidação, Lebre de Freitas afirma que essa orientação é incompleta, dizendo: “ao lado da coacção moral, há a coacção física e, em domínio que não é o do negócio jurídico, esta pode consistir num obstáculo material que impossibilite a posse, independentemente de qualquer ameaça ou outro comportamento susceptível de afectar a segurança do possuidor. Basta que a acção física exercida sobre as coisas seja um meio de coagir uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade”. Para logo concluir: “É, pois, violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída, em consequência dos meios usados pelo esbulhador”.
Como dissemos, discordamos deste entendimento, mais amplo, sobre a caracterização do
esbulho como violento.
Contrariamente ao defendido por alguma jurisprudência, aceita-se que a violência contra as coisas não implique necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor.
Mas também não basta que ela se traduza numa actuação constritiva, equivalente à privação não consentida da posse. É preciso mais: é preciso que, pela forma como essa constrição é efectuada, o possuidor se mostre coagido a permitir o desapossamento, ficando colocado numa situação de incapacidade de reagir perante o acto de desapossamento.
Conforme defende Teixeira de Sousa, “só este conceito de violência pode justificar verdadeiramente que esta providência cautelar possa ser decretada sem citação nem audiência do esbulhador, o que constitui uma excepção ao princípio basilar do contraditório. Não pode ser qualquer violência a justificar este enorme benefício que é concedido ao possuidor”.
Ora, dos factos provados apenas resulta que a recorrente colocou uma “rede que na prática
impede a utilização do caminho na parte que se encontra no prédio da Requerida”, sem que, por outro lado esteja minimamente demonstrado que essa actuação tenha constituído, directa ou indirectamente, qualquer tipo de coacção nas pessoas dos Requerentes/recorridos. Consequentemente, faltando o requisito da violência, terá de ser concedido provimento à
revista.”
No âmbito do aludido Acórdão do STJ foi elaborado o seguinte Sumário: - “Para a decretação da restituição provisória de posse, só releva a violência sobre coisa se essa violência implicar que o possuidor fique coagido a permitir o desapossamento. “
25 - Entende a Requerida que não só não houve demonstração da coação, como ainda resulta da documentação junta que a Requerente não ficou minimamente coagida a permitir o invocado desapossamento.
26 - Note-se que apenas foi dado como provado que, na noite de 9 para 10-10-2023, a solicitação da Requerida, a loja foi entaipada de modo a impedir o acesso à mesma – ver, a propósito facto provado sob o n.º 6.
27 - Em suma, considera a Requerida que não havia nem há razões, de facto e/ou de direito, para a procedência da providência requerida.
28 - O tribunal a quo considera ainda que as cláusulas 24.ª e 26ª do contrato celebrado entre as partes são nulas, fazendo referência aos artigos 405.º, n.º 1, 280.º, n.ºs 1 e 2, 294.º e 292.º do CC, que consideramos terem sido mal interpretados e aplicados.
29 -Entendemos que um procedimento cautelar de restituição provisória da posse não é o
processo próprio para a discussão da aparente nulidade de tais cláusulas. No entanto, e apesar disso, não podemos concordar com uma tal qualificação, considerando-se que tais cláusulas não são nulas - a este propósito, seguimos também o que se decidiu no já citado Ac. do STJ 4477/05.0TVLSB.L1.S1, de 01.07.2010, em que se afirmou a não desconformidade de cláusulas similares às dos autos com quaisquer princípios legais.
30 - Na perspectiva da Requerida, com a válida resolução do contrato, ocorrida em 13/09/2023, a Requerente já não dispunha de qualquer direito de utilização da loja, não dispondo de título que legitime a sua posse da loja em questão e inexistindo fundamento para que, contra a vontade da requerida, sua legitima proprietária, se mantenha, sem qualquer fundamento legal ou contratual, na posse da aludida loja.
31 –Motivo pelo qual a loja deverá ser entregue à sua proprietária.».
A requerente apresentou resposta pugnando pela improcedência do recurso e concluindo que:
«I. Em nenhum momento do seu recurso impugnou os factos dados como indiciariamente provados e não provados pelo Tribunal a quo, com recurso à prova gravada.
II. Face ao exposto, não deverá a mesma granjear do aditamento de qualquer prazo para recorrer. Por outro lado, sem realmente o fazer revela-se no mínimo enviesada e potenciadora de desvios ao ritualismo processual que sempre devem ser assinaladas, com todas as consequências legais aplicáveis ao caso.
III. A apelante pretende que sejam alterados vários pontos da matéria de facto os quais foram decididos em sentido desfavorável à sua pretensão.
IV. No entanto, para que a alteração desses factos fosse julgada procedente, impendia sobre si o ónus de indicar provas que impunham decisão diferente da tomada pelo Tribunal a quo.
V. No entanto, a recorrente limita-se a tecer considerações sobre a prova ao invés de indicar prova que impusesse uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo.
VI. O que a recorrente pretende, na verdade, com o recurso ora interposto, é substituir a sua convicção pelo do Tribunal a quo.
VII. O Tribunal fundou a sua convicção de forma inatacável e exemplar, e retirou dela as conclusões de direito que melhor se ajustam ao caso em apreço.
VIII. Mesmo que a impugnação da matéria de facto pudesse ser julgada procedente, tal em nada afectaria a decisão final do Tribunal a quo, no sentido de manter a providência cautelar inicialmente decretada, dado que as alterações propostas em nada ferem a conclusão quanto ao preenchimento dos pressupostos da providência de restituição provisória da posse.
IX. Os pressupostos necessários para o decretamento e manutenção da providência se mantém.
X. Ou seja, estão preenchidos os pressupostos de facto da providência de restituição provisória da posse, nos termos do disposto no art.º 377º do Código de Processo Civil, na medida em que a recorrida demonstrou a posse, a sua perda por esbulho e a violência no desapossamento.
XI. Da análise dos autos torna-se inequívoco que a recorrente tentou fazer justiça pelas próprias mãos.
XII. O art.º 1.º do CPC consagra o princípio da proibição da autodefesa prescrevendo que a ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei.
XIII. Dado se encontrar vedada aos particulares a faculdade de recorrem à autotutela do seu direito, surge a obrigação de o Estado, através dos seus órgãos jurisdicionais, provir pela tutela adequada do direito colocado em causa.
XIV. No presente processo, a recorrente tentou alçar voo e substituir-se a um órgão de
soberania, tentando fazer justiça pelas próprias mãos.
XV. Note-se que a recorrente não se limitou a fechar a loja, limitando qualquer acesso à mesma pela recorrida e seus funcionários: a recorrente colocou um tapume/taipal em todo o comprimento e largura da loja, tendo sido necessário recorrer a uma equipa especializada para o colocar e retirar do local, conforme resulta do auto de tomada de posse do imóvel.
XVI.A recorrente não aceita que o contrato tenha sido resolvido de forma lícita. Com efeito, a recorrida defende que a resolução do contrato é ilícita e não incorreu em qualquer incumprimento contratual que legitimasse a resolução almejada pela recorrente.
XVII.A cláusula contratual que confere ao proprietário ou a entidade exploradora do centro comercial o direito de, uma vez resolvido o contrato de utilização de loja, reassumir a detenção da loja com recurso aos meios extrajudiciais que entenda necessários e adequados para o efeito, renunciando o lojista ao requerimento de eventuais providências cautelares destinadas a impedir tal direito, é nula, por violar o disposto nos artigos 1º do Código de Processo Civil e 336º nº 1 do Código Civil.
XVIII. Tendo o proprietário ou a entidade exploradora do centro comercial impedido o lojista de aceder ao direito de utilização da loja que lhe estava contratualmente afecta, bem como de explorar o estabelecimento comercial que aí funcionava, ficando deles desapossado, foi perpetrado por aquele o esbulho dessa loja.
XIX.O que se exigiria, da parte da recorrente, é que esta respeitasse a lei, os Tribunais e os mais elementares princípios norteadores da justiça processual e não se julgasse acima desta.
XX. Se a recorrente julgava válida a resolução do contrato tinha de fazer, curiosamente, o que a recorrida fez, isto é, recorrer à restituição provisória da posse.
XXI. Não o tendo feito, a recorrente violou ostensivamente a lei e os direitos e interesses
le4galmente protegidos da recorrida.
XXII. Consequentemente, andou bem o Tribunal a quo ao decretar e manter a providência
cautelar peticionado, tendo procedido a uma boa interpretação e aplicação do direito.»
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- É de alterar os factos nos termos pugnados pela recorrente;
- Ocorre a resolução do contrato com a consequente validade das cláusulas que determinem a entrega ou o desapossamento da loja legitimamente pela requerida, ora apelante;
- Inexiste o esbulho violento exigível para a procedência da providência.
*
II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados sumariamente provados na decisão que decretou a providencia os seguintes Factos:
1. Em 07-05-2021, por escrito denominado “CONTRATO DE UTILIZAÇÃO DE LOJA EM CENTRO COMERCIAL”, a Requerida deu à Requerente a utilização da loja nº …83 m2, sita no piso 0 (zero) do …, até 31-05-2027, para venda de produtos electrónicos, lot e AI para uso doméstico, sob a denominação comercial “WOOK”.
1.1. Da quantia mensal fixa de 3.984,00€ (três mil, novecentos e oitenta e quatro euros), acrescida de IVA à taxa em vigor; e
1.2. Da quantia variável de 8% sobre o valor das vendas mensais, acrescida de IVA à taxa em vigor.
1.3. Das despesas comuns e fundo de promoção, no valor de 830,00€ (oitocentos e trinta euros) mensais, acrescida de IVA à taxa em vigor.
2. Na cláusula 24ª, das condições gerais do contrato, sob a epígrafe “Resolução”, lê-se que:


3. E na cláusula 26ª, das condições gerais do contrato, sob a epígrafe “Restituição do espaço cedido”, lê-se que:





4. Em 08-10-2022, no âmbito do Procedimento Cautelar nº 3466/22.4T8SNT-A, que correu os seus termos pelo Juiz 2 deste Juízo Central Cível de Sintra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em que foi Requerente a aqui Requerente, e Requerida a aqui Requerida, as partes declararam ter chegado a acordo global, nos seguintes termos:
1º - A requerida dá sem efeito a resolução contratual objeto dos autos; o que é aceite pela requerente, pelo que se manterão em vigor todas as condições contratuais constantes do contrato de utilização de loja em centro comercial, celebrado pelas partes, que não venham a ser afastadas pela presente transação.
2º - A requerida aceita que a requerente possa exercer a seguinte atividade comercial, na loja nº …:
a) Comercialização de acessórios de telemóveis e Gaming num espaço correspondente a 6 metros lineares, podendo, estes, ser considerados junto ou separados;
b) os restantes produtos a vender na loja, terão que ser, todos eles, produtos oficiais da marca Woox;
3º - Para os efeitos constantes do artigo anterior, a requerente terá que apresentar à requerida, até 31-01-2023, o projeto de Lay Out que vai executar na loja após a data de 1-02-2023.
4º - Requerida e requerente aceitam que, até 31-01-2023, não seja aplicável o art.º 2º, podendo a requerente, neste prazo, vender os produtos que presentemente tem em exposição.
5º - Caso a atividade desenvolvida pela requerente não corresponda ao que consta da clausula 2ª da presente transação, que deve ser coincidente com os Lay Out’s que forem definidos, a requerida poderá pôr fim ao contrato, a todo o tempo e por este motivo, desde que confira à requerente um prazo de pré aviso, não inferior a 15 dias, para que esta possa sanar o incumprimento.
6º - Verificando-se o incumprimento definitivo da cláusula 2ª, a requerente deverá proceder ao pagamento à requerida, de uma quantia de €30 000,00 (trinta mil euros), a título de cláusula penal.
7º - As partes acordam em proceder ao acerto de contas até 31-01-2023 relativamente ao valor devido pela utilização da loja, pela requerente, até essa data.”.
5. Tal acordo foi homologado por sentença proferida na mesma data.
6. Na noite de 9 para 10-10-2023, a solicitação da Requerida, contra a vontade da Requerente, a referida loja foi entaipada de modo a impedir o acesso à mesma.
7. Altura desde a qual a Requerente não tem acesso aos seus bens e mercadorias, nem pôde continuar o exercício da sua actividade.
8. A Requerente factura diariamente cerca de 1.100,00€ na referida loja.
Face à oposição ficaram demonstrados sumariamente os factos seguintes:
9. Na cláusula 2ª, das condições particulares do contrato, sob a epígrafe “Preço e encargos”, lê-se que:



10. Nas condições particulares do contrato, lê-se: 10. Nas condições particulares do contrato, lê-se:

11. Nas condições particulares do contrato, lê-se:


12. Na cláusula 7ª, das condições particulares do contrato, sob a epígrafe “Garantia bancária”, lê-se que:



13. Na cláusula 10ª, das condições gerais do contrato, sob a epígrafe “Pagamento do Preço de Cedência e Fiscalização”, lê-se que:



(…)




14. Após 31-01-2023, a Requerente continuou a vender na referida loja apenas acessórios para telemóveis como capas, correntes, protecções de ecrã e outros, não comercializando produtos electrónicos, loT e outros dispositivos que usem AI para uso doméstico da marca WOOX, nomeadamente, câmaras de vigilância, fichas triplas, lâmpadas e kits de segurança, o que ocorre até ao presente.
15. Em 27-03-2023, a requerida interpelou a Requerente para proceder ao pagamento dos valores em dívida resultantes da utilização da loja e das respectivas despesas comuns, no valor de bem como para que diligencie pela adequação da actividade comercial exercida na loja, nos termos do acordado.
16. A Requerida, por carta datada de 08-08-2023, que a Requerente recebeu em 29-08-2023, interpelou a Requerente para pagar a quantia em divida de 26.891,45€; para entregar garantia bancária no valor de 35.527,32€; para entregar autorização de débito directo; para entregar as declarações de vendas; e para adequar actividade comercial exercida na loja como acordado, advertindo expressamente a Requerente que, não procedendo como solicitado, no prazo de 15 dias contados da recepção desta comunicação escrita, consideraria o contrato resolvido devendo entregar da loja nº … livre e devoluta de pessoas e bens, e que, caso não proceda à entrega da loja na data de extinção do contrato, a requerente tinha o direito de reassumir a loja.
17. Por comunicação escrita datada de 18-09-2023 a Requerida declarou que considerava o contrato resolvido em 13-09-2023 solicitando a imediata entrega da loja, advertindo que a iria reassumir a mesma caso tal entrega não se efectivasse em 48 horas contadas da recepção da comunicação; e o pagamento da divida em aberto à data, no valor de 26.891,45€.
18. A Requerente não pagou à Requerida a quantia de 26.891,45€, correspondente a parte da factura de Junho, à factura Julho e à factura de Agosto, de 2023, nem na data do vencimento das mesmas, nem posteriormente, até ao presente.
19. A Requerente não pagou à Requerida a quantia mensal de 5.144,07€, correspondente à remuneração fixa de 4.510,55€, com desconto de 225,53€, acrescida de comparticipação para as despesas comuns de 859,05€, correspondente aos meses de Setembro de 2023 e todos os seguintes até ao presente.
20. A Requerente não entregou à Requerida garantia bancária no valor de 35.527,32€, até ao presente.
21. A Requerente não entregou à Requerida as declarações de vendas através do portal electrónico MyCeetrus instalado pela Requerida, excepto as concernentes aos meses de Abril a Outubro de 2023.
22. A declarou à Requerente de que iria tomar posse da loja por comunicação datada de 11-10-2023.
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Da impugnação da decisão de matéria de facto:
No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita».
No entanto, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
Quando seja impugnada a matéria de facto estabelece o art.º 640.º do C.P.C.:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não podendo limitar-se a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham para cada um desses pontos de facto fosse julgado provado ou não provado. A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art.º 640.º do C.P.C.( Cfr. Acs. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes) e Proc. n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt. ).
Feito este enquadramento haverá que aferir se é de alterar a matéria factual considerada na decisão recorrida nos termos pretendidos, sem olvidar o carácter perfunctório que preside à apreciação, mas sem que tal signifique que não seja feita uma análise criteriosa das provas apresentadas.
Por outro lado, importa ter presente que não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.).
Posto isto, haverá desde logo que deixar de considerar quer a alteração pretendida quanto ao ponto 8, quer ainda o aditamento pretendido em 21A, factos atinentes à facturação da requerente, os quais não são relevantes para a decisão que se pretende nestes autos de natureza cautelar e de restituição provisória de posse, quer seja para a afirmar ou infirmar.
No que concerne ao aditamento do ponto 21B que visa a afirmação de que a requerente não procedeu à entrega à requerida da autorização de débito directo, haverá efectivamente que considerar que a alegação da requerida na sua oposição, no seus art.ºs 22º e 23º anunciava tal incumprimento, mas no âmbito da matéria de facto considerada sumariamente demonstrada já resulta tal imputação à requerente no âmbito da interpelação plasmada no ponto 16., aliás, a ausência de pagamento evidenciada no ponto  19. já comprova a ausência de autorização de débito directo, sem que haja necessidade de autonomizar tal facto em concreto para a decisão.
Resta, por fim, a alteração do ponto 6. Sustenta a recorrente que ao contrário do constante em tal facto inexistiu manifestação de oposição da requerente na altura do acto que determinou a colocação de um tapume na loja em causa e, logo, impossibilidade de acesso e de exercício da actividade comercial na mesma pela requerente.
No ponto 6. Considerou-se o seguinte facto:
6. Na noite de 9 para 10-10-2023, a solicitação da Requerida, contra a vontade da Requerente, a referida loja foi entaipada de modo a impedir o acesso à mesma.
Na motivação de tal facto que advém da decisão que decretou a providência expôs-se pelo Tribunal a quo que: “Quanto ao ponto 6. mais relevou o referido pelas testemunhas Y…, gestor da loja em causa, que esclareceu o que verificou ter ocorrido na sequência de telefonema recebido do funcionário que se deslocou ao local no dia 10-10-2023, com o objectivo de abrir a loja ao público. O referido por esta testemunha foi corroborado por tal funcionário T…, vendedor da loja em causa, que descreveu o local tal como o encontrou no dia 10-10-2023.
A impossibilidade de acesso à loja em causa a partir desse momento foi igualmente referida por ambas as testemunhas, cujos depoimentos resultaram credíveis por espontâneos e objectivos, pelo que, não obstante a sua ligação profissional à Requerente, mereceram a confiança do tribunal.”.
Nas suas conclusões 8ª a 10ª a recorrente indica que em momento anterior e contemporâneo da colocação do tapume amovível, não houve por parte da requerida qualquer manifestação de oposição. Admitindo que o tapume amovível foi colocado de noite, sem a presença da Requerente, mas concluindo que “também nesse momento, não houve manifestação de oposição”, confirmado pelo depoimento da testemunha T…. Mas admitindo que a única reacção conhecida da Requerente apenas decorre do procedimento cautelar intentado em que pede a restituição da posse.
Ora, manifestamente não lhe assiste razão, pois admite a recorrente que o acto que impede a requerente de aceder à loja foi perpetrado à noite, ou seja, quando não se encontrava ninguém na loja, pelo que nunca poderia ter existido uma actuação directa contra tal facto nessa altura. Porém, é manifesto que tal acto não teve a anuência ou o acordo da recorrida, ou sequer lhe foi comunicado que iria ocorrer em concreto previamente. Na verdade, resulta que foi na noite de 9 para 10-10-2023, a solicitação da Requerida, que a loja foi entaipada de modo a impedir o acesso à mesma. Ora, só no dia seguinte a tal acto levado a cabo pela recorrente é que comunicou à recorrida que iria tomar a posse da loja – conforme resulta provado em 22.
Logo, manifestamente tal acto ocorreu contra a vontade da requerente, pois foi a recorrida que, socorrendo-se do período de encerramento do Centro Comercial e à noite, levou a cabo tal acto, sem que tenha logrado provar que obteve qualquer acordo da requerente para o efeito, nem sequer com base no seu silêncio, pois não comunicou o acto previamente. Aliás, vingando tal hipótese nunca determinado acto seria contrário à vontade de outrem no caso de ausência física desse outrem ou de terceiro, pelo que bastaria perpetra-lo de forma insidiosa e num período onde não existisse ninguém que pudesse reagir a tal acto.
Deste modo, improcede na íntegra a impugnação dos factos levada a cabo pela recorrente.
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III. O Direito:
No âmbito desta decisão não é posto em causa e julgamos ajustada a qualificação do contrato tal como foi definido na decisão objecto de recurso como sendo um contrato de utilização de loja em centro comercial, tipo contratual sociologicamente bem definido mas legalmente atípico e inominado.
Com efeito, o contrato de instalação de lojista em centro comercial caracteriza-se pela cedência do gozo de um espaço - loja - para o exercício de uma actividade comercial ou de prestação de serviços num complexo imobiliário, composto por diversas lojas com comércios e serviços variados e complementares e por espaços comuns de lazer, realizando cada lojista por sua própria conta e risco, a exploração do respectivo espaço, mas estando obrigado a obedecer a regras gerais de funcionamento e organização do centro comercial. Pelo que os contratos celebrados entre as entidades exploradoras de centros comerciais e os respectivos lojistas são habitualmente qualificados como correspondendo legalmente a contratos atípicos, visto não corresponderem exactamente a nenhum dos tipos legais previstos e regulados, embora socialmente típicos. Neste sentido e de forma exaustiva importa considerar o Acórdão desta Relação de 19-03-2009, Proc. nº 11378/16.4T8SNT.L1-2, in www.dgsi.pt, no qual se conclui que: “O sociologicamente típico “contrato de utilização de loja em centro comercial” é um contrato legalmente atípico, inominado, e não um contrato de arrendamento;”.
“Os contratos de integração de comerciantes singulares em centros comerciais são típicos contratos de empresa. É objectivo comum das partes a instauração de uma empresa comercial; de modo que esta instauração é não só direito, mas também obrigação da concessionária (…).
[O] centro faculta a utilização do espaço, ficando o concessionário obrigado a instalar e manter um estabelecimento e fazer funcionar a empresa respectiva; enquanto que o centro se obriga a fazer funcionar o conjunto e a realizar inúmeras prestações daquelas decorrentes (…).
[O] contrato em causa deverá ser qualificado como um contrato de integração empresarial. Através dele, o concessionário é integrado numa empresa mais vasta, que é o próprio centro comercial (…). O sentido do contrato é o de realizar a integração duma empresa singular no complexo do centro comercial” 2. 2 OLIVEIRA ASCENSÃO, Integração empresarial e centros comerciais, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Volume XXXII, 1991, págs. 29-55.
O contrato de utilização de espaço em centro comercial é, pois, um contrato atípico, que como tal se rege pelo acordado pelas partes dentro dos limites da liberdade contratual - art.º 405º nº 1 do CC.
Assim, o direito de utilização do espaço (loja) concedido à Requerente rege-se pelas regras do contrato que lhe deu origem.”.
Donde, tal como se alude na decisão “nos termos do contratado, à Requerente foi concedido o direito de utilizar a loja onde deverá exercer durante seis anos a actividade comercial de venda de produtos electrónicos, lot e AI para uso doméstico, sob a denominação comercial “WOOK”. Tanto no que diz respeito à instalação da loja como ao seu funcionamento posterior, a Requerente deveria cumprir uma série de regras impostas pela Requerida, promotora ou gestora do centro comercial em causa, destinadas a assegurar a harmonização da loja e da sua actividade com os padrões estéticos, de qualidade e de eficiência tidos em vista para o conjunto do centro.
Como contrapartida pelo direito de utilização da loja a Requerente obrigou-se a pagar uma determinada quantia mensal, parte fixa, parte variável e despesas.”.
A recorrente insurge-se com a decisão que declarou improcedente  a oposição e manteve, assim, a restituição da posse da loja requerida pela recorrida, com dois fundamentos essenciais: Por um lado, a prova do incumprimento por parte da requerente das obrigações assumidas, com a consequente resolução do contrato e cláusulas contratuais que neste caso permitem o dessapossamento da loja por iniciativa da requerida; por outro lado, a inexistência de esbulho violento, condição essencial para o deferimento da restituição provisória da posse.
Como resultou provado, no contrato ficou expressamente previsto, na cláusula 24ª, das condições gerais do contrato, a possibilidade de resolução contratual no caso nomeadamente de incumprimento das obrigações assumidas. Porém, ainda que tal possibilidade possa ser estabelecida e considerada válida – cf. art.º 432º do CC – a questão que se coloca é saber se perante esta é ou não válida a estipulação contratual que prevê a possibilidade de a recorrente poderá “reapoderar-se plenamente” da loja objecto do contrato, ainda que se confira a possibilidade à recorrida de “acionar os meios judiciais ao seu dispor” no caso de não aceitar o fundamento invocado pela recorrente para o exercício do direito de resolução do contrato, tudo nos termos das cláusulas 24ª e 26ª do contrato transcritas nos pontos 2. e 3. dos factos.
Donde, perante a prova quer das interpelações para cumprir as obrigações assumidas  - pontos 14. e 15., quer perante a resolução – ponto 17., a requerente optou por entaipar a loja, não permitindo à requerente o acesso à mesma. Tal actuação no dizer da recorrente está a coberto das cláusulas contratuais estabelecidas entre as partes e supra aludidas.
Perante tais cláusulas o Tribunal a quo entendeu que “Não está aqui em causa saber se a Requerente violou ou não o acordado com a Requerida mas sim o recurso à força pela Requerida contra a Requerente. Ora, a ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei” – art. 1º do Código de Processo Civil.
Por isso, conforme proclama a Constituição da República Portuguesa no nº 5 do seu artigo 20º, “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”.
A acção directa (“recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito” – art.º 336º, nº 1, do CC) só é lícita “quando for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo” (art.º 336º, nº 1, do CC).
As cláusulas em causa não observam estes limites, pelo que são nulas – arts. 405º, nº 1, 280º nºs 1 e 2, 294º e 292º do CC( Neste sentido, os acórdãos do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, todos disponíveis em www.dgsi.pt: De 09-02-2017, tirado no Proc. nº nº 11378/16.4T8SNT.L1-2, relatado por Ondina Carmo Alves em cujo sumário se lê, na parte aqui relevante: “1. O contrato de instalação de lojista em centro comercial caracteriza-se pela cedência do gozo de um espaço - loja - para o exercício de uma actividade comercial ou de prestação de serviços num complexo imobiliário, composto por diversas lojas com comércios e serviços variados e complementares e por espaços comuns de lazer, realizando cada lojista por sua própria conta e risco, a exploração do respectivo espaço, mas estando obrigado a obedecer a regras gerais de funcionamento e organização do centro comercial.
2. Os contratos celebrados entre as entidades exploradoras de centros comerciais e os respectivos lojistas são habitualmente qualificados como correspondendo legalmente a contratos atípicos, visto não corresponderem exactamente a nenhum dos tipos legais previstos e regulados, embora socialmente típicos.
3. Ao contrato de instalação de lojista em centro comercial é aplicável o regime resultante das respectivas cláusulas acordadas, desde que válidas, bem como o regime legal geral dos contratos e, se necessário, a disciplina de figuras contratuais próximas, como o são, em certas vertentes, o contrato de arrendamento urbano.
4. A cláusula contratual que confere ao proprietário ou a entidade exploradora do centro comercial o direito de, uma vez resolvido o contrato de utilização de loja, reassumir a detenção da loja com recurso aos meios extrajudiciais que entenda necessários e adequados para o efeito, renunciando o lojista ao requerimento de eventuais providências cautelares destinadas a impedir tal direito, é nula, por violar o disposto nos artigos 1º do Código de Processo Civil e 336º nº 1 do Código Civil.” ( igual entendimento resulta do Acórdão de 19-03-2009, tirado no Proc. nº 3028/08.9TVLSB-2). A conduta da Requerida constitui um acto, ilícito, de justiça privada.”
Com efeito, no âmbito das decisões invocadas ainda que se entenda que o lojista ora recorrido não beneficiasse, à partida, da tutela judicial relativa a acções de prevenção, de manutenção e de restituição da posse, por se situar a ocupação no âmbito de um direito obrigacional, acabam por conferir tal direito assente no seguinte:
Em certos casos, de titularidade de chamados direitos pessoais de gozo, ou seja, de direitos, assentes numa obrigação contratual, que possibilitam ao seu titular, com vista à satisfação do seu interesse, o gozo directo e autónomo de determinada coisa (cfr. Manuel Henrique Mesquita, “Obrigações reais e ónus reais”, Almedina, pág. 51), o legislador reconhece verificarem-se as razões supra enunciadas para a actuação dos mecanismos protectores próprios das acções possessórias, enunciando tal entendimento no regime dos correspondentes contratos: a locação (art.º 1037º nº 2: “o locatário que for privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos pode usar, mesmo contra o locador, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276º e seguintes”), a parceria pecuária (art.º 1125º nº 2) e o comodato (art.º 1133º nº 2), para além do depósito (art.º 1188º nº 2 do Código Civil). Fora do Código Civil, igual faculdade foi concedida ao locatário, na locação financeira (art.º 10º nº 2 alínea c) do Dec.-Lei nº 149/95, de 24.6).
Trata-se, contudo, de normas excepcionais, por reconhecerem tutela possessória a meros detentores, titulares de direitos emergentes de relações obrigacionais. Assim, essas normas, casuisticamente formuladas, não comportam aplicação analógica, nomeadamente em benefício de outros direitos pessoais de gozo (art.º 11º do Código Civil; neste sentido, Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 6; Moitinho de Almeida, Restituição de posse…, supra citado, pág. 63 e 64; Henrique Mesquita, Col. de Jur., 1982, tomo 3, pág. 8; Relação de Lisboa, 23.4.2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo II, pág. 121 e ss; em sentido diverso, por negarem carácter excepcional àquelas normas, por terem da posse uma visão objectivista, dando-a por existente em todos os casos em que alguém exterioriza poderes de actuação sobre uma coisa corpórea nos termos de um direito subjectivo, cfr. Oliveira Ascensão, “Direito Civil, Reais”, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 69 e José Alberto Vieira, “Direitos Reais”, Coimbra Editora, 2008, páginas 557 a 562).
Deste modo, perante o carácter excepcional de tais normas previstas para determinado tipo de contrato estaria excluída a interpretação analógica no âmbito do contrato ora em discussão, ou seja a impossibilidade de conferir ao requerente a possibilidade de se socorrer da tutela possessória, mormente a providência em causa nos autos. Todavia, em tais decisões tendo em vista poder aplicar ao caso tais normas de carácter excepcional, justifica-se o seguinte nomeadamente no último aresto que: “Em todo o caso, as diferenças já supra salientadas existentes entre o contrato de arrendamento e o contrato de utilização de loja em centro comercial, com a atribuição ao gestor do centro de uma decisiva primazia na organização, funcionamento e controle de toda a actividade do centro, com directa e permanente repercussão na actividade dos lojistas, retira às duas figuras a base comum necessária à segura formulação de um juízo de igualdade de razões justificativa da aplicação ao presente contrato do disposto no art.º 1037º nº 2 do Código Civil.
Contudo, o supra exposto não arruma a vexata quaestio sub judice (a da admissibilidade da presente providência cautelar de restituição provisória de posse).
É que a Requerente instalou, no espaço cuja utilização foi contratada com a Promotora do centro comercial, um estabelecimento comercial (ou industrial, para quem entenda que nessa área económica se deve incluir a actividade de restauração). E é óbvio que a Requerente/Apelante não pretende apenas a restituição do referido espaço, que lhe foi entregue em tosco, mas também (e sobretudo) do estabelecimento que aí instalou, com o respectivo recheio.É sabido que é controvertida a possibilidade de se encarar o estabelecimento (comercial ou industrial) como algo unificadamente objecto de direitos reais (nomeadamente a propriedade) e susceptível de posse. (…) O estabelecimento comercial ou industrial tem expressão na vida real através dos seus elementos corpóreos, tais como as suas instalações e os móveis afectos à sua actividade, os quais constituem a face visível, (juntamente com a pessoa ou pessoas que nele laboram), dessa organização de meios, que de outro modo não poderia participar na actividade económica. Essa materialidade do modo de ser do estabelecimento (que é “coisa”, por ser objecto de relações jurídicas - art.º 202º nº 1 do Código Civil), torna-o apto à posse e justifica que beneficie da consequente tutela.
Conclui-se, pois, que a Requerente, titular de um estabelecimento comercial (sito num centro comercial) pode recorrer à providência cautelar de restituição provisória de posse, para defender a sua posse sobre esse estabelecimento (palavra que aqui poderá ser usada como sinónimo de “loja”), na medida em que seja violentamente esbulhada do mesmo.”.
Daqui resulta que tal aresto, convocado pela decisão sob apreciação, tem por base a existência de um estabelecimento comercial montado de raiz no local e é  a partir desse raciocínio que se aferem os requisitos da providência cautelar em discussão, ou seja permitindo a tutela posssessória ao lojista.
Vejamos o que ocorre nos autos.
Importa ter presente que a providencia foi decretada com base nos factos sumariamente demonstrados em 1. a 8., sendo que a requerente invocava no seu requerimento inicial que “Desde que a requerente entrou na posse da Loja, a 7 de Maio de 2021, sempre cumpriu as obrigações emergentes do contrato de utilização de loja”.
Tal afirmação com a oposição e a prova produzida revelou-se falsa, pois logrou-se demonstrar que a requerente está em dívida quer no tocante ao pagamento devido pela utilização da loja, quer das despesas comuns, no valor liquidado de 26.891,45€ a que se somam os valores devidos em Setembro e seguintes. Acresce que não são apenas estes os incumprimentos assacáveis à requerente, mas sim igualmente a falta de entrega de parte das declarações de venda, da garantia bancária e também podemos considerar a ausência de entrega de autorização do débito directo, pois a falta de pagamento aludida não existiria caso tal entrega tivesse sido feita.
No caso, nem a requerente alegou em concreto em que consubstanciava a utilização da loja por forma a caracterizar a existência ou não de um estabelecimento comercial, pois apenas se provou que a requerida deu à requerente a utilização da loja para venda de produtos electrónicos, o que nos leva a considerar que no tipo contratual em causa não se verifica, ou não resulta evidente  a possibilidade de aplicação analógica dos preceitos que lhe permitem lançar mão da tutela possessória.
Acresce que não convocou o requerente a nulidade das cláusulas do contrato, nem por referência a uma eventual violação das normas relativas ás cláusulas contratuais gerais. Mas mesmo que se pudesse concluir como o Tribunal a quo, e o princípio que sugbjaz a tal invalidade, no caso concreto haverá que considerar o incumprimento  manifesto da requerente, incumprimento esse que inclusive já tinha originado uma comunicação por banda da requerida da resolução do contrato, nos termos constantes do ponto 17., datando tal comunicação de data anterior ao desapossamento ora posto em causa pela requerente e chancelado pela decisão recorrida. Ora, esta não alude ao mesmo nem sequer o contraria com base numa eventual existência de excepção de não cumprimento por banda da requerida, ou outra excepção impeditiva ou restritiva de tal direito convocado pela recorrente, o que poderá determinar um actuação desconforme aos ditames da boa fé.
Outrossim, haverá que considerar a natureza do contrato celebrado e atendendo às características específicas e próprias de funcionamento, organização e exploração de um espaço comercial colectivo como é um Centro Comercial, com uma multiplicidade articulada de lojas, actividades e serviços, onde afluem todos os dias muitos milhares de potenciais consumidores (tendência que, naturalmente, se acentua aos fins de semana e nas datas festivas) e aos complexos reflexos e exigências jurídicas que um tal universo reclama, não vislumbramos como se pode entender que perante um incumprimento não impugnado e manifesto não possa considerar-se válida a norma que permite a actuação da requerida enquanto gestora de tal complexo. Pois como se alude no Acórdão desta Relação, de 24/09/2009 (proc.nº 4477/05.0TVLSB.L1-6, in endereço da net a que vemos fazendo referência), ainda que a propósito da liberdade de contratar se entendeu  pela validade da ”atribuição ao contrato dos autos de um cariz intuitu personae, pois não só a cláusula que o determina não extravasa os limites impostos à liberdade contratual pelo regime jurídico aplicável, como não é injustificada, desproporcionada ou leonina quando confrontada com as características do negócio bem como com os particulares interesses negociais em presença.”. Prosseguindo-se nessa decisão que:”Compreende-se que, com vista a um são, harmonioso, eficiente e optimizado funcionamento do Centro Comercial e das lojas e actividades nele desenvolvidas, se procure estabelecer uma especial relação de confiança e estabilidade entre as partes contraentes durante o relativo curto período de vigência dos respectivos contratos (6 anos, sem prejuízo de futuras renovações), assim se explicando a natureza personalizada do complexo vínculo negocial firmado entre o promotor e os comerciantes que ali vão funcionar, como as especiais restrições impostas pela Ré à transmissão objectiva ou subjectiva da posição contratual da Autora.”.
Na verdade, o gestor do Centro Comercial tem um papel decisivo na criação deste complexo comercial, agindo na implantação das lojas, sua selecção e interconexão, no fornecimento, gestão e fruição de serviços vários e em operações de promoção em ordem a captar o público consumidor e que, no fundo, torne o centro um local privilegiado para compras e economicamente rentável. Segundo Antunes Varela (in RLJ, 122º, pág 58) a instalação do comerciante na loja do centro tem como escopo principal a integração do lojista no conjunto organizado de actividades comerciais que constituem o tenant mix específico de cada nova unidade global.
Logo, o gestor do Centro Comercial, em defesa da qualidade, credibilidade e rentabilidade do Centro, tem a incumbência de seleccionar as lojas a implantar nesse espaço, mas igualmente de gerir tudo o que possa pôr em causa tais qualidades. Por isso, na salvaguarda desses princípios justifica-se que tenha um poder de controlo sobre as pessoas que, de futuro, venham a ocupar as lojas, mas igualmente deve assegurar que todos os lojistas cumpram com as suas obrigações, mormente contribuir para as despesas comuns. Ora, considerar que perante o incumprimento reiterado e manifesto do lojista, o gestor do Centro não possa reagir contra o mesmo atempadamente é permitir um desiquílibrio contratual manifesto e que põe em causa as competências organizativas do gestor, mas igualmente o funcionamento do complexo na sua totalidade. É certo que não descartamos a hipótese de o lojista poder reagir contra o Gestor por eventuais actuações que ponham em causa a sua utilização da loja. Porém, tais situações não podem ser consideradas no caso dos autos, dado o incumprimento das obrigações assumidas por banda do requerente, as quais podem pôr em causa o bom funcionamento do Centro onde se insere a loja, nomeadamente ao deixar de contribuir para as despesas comuns.
Aliás, a sufragar a nulidade de tais cláusulas como resulta da decisão, assente no princípio da impossibilidade de “justiça privada”, seria esvaziar de conteúdo a gestão que pudesse ser levada a cabo no âmbito do complexo comercial, basta pensar num incumprimento contratual  que pusesse em causa todo o funcionamento do Centro Comercial, quer por desacatos no mesmo, prossecução de um ramo de negócio não permitido ou sem cumprimento do tenant mix definido, ou eventualmente o não cumprimento dos horários estabelecidos.
Assim, somos em concordar com o decidido no Ac. do STJ 4477/05.0TVLSB.L1.S1, de 01.07.2010, citado pela recorrente, quando alude que “ 2.1.2- A cláusula 19ª confere ao gestor do Centro o direito de resolução do contrato em caso de incumprimento pelo lojista dos deveres e obrigações decorrentes do contrato de utilização, podendo aquela, uma vez resolvido o contrato, reassumir a detenção da loja, usando dos meios necessários.
A partir da resolução do contrato, e só após esta ter operado, consagra esta cláusula a possibilidade do gestor reassumir a detenção da loja, para a hipótese do lojista não a entregar voluntariamente dentro de determinado prazo.
A resolução contratual pode ser atribuída, por convenção, a uma das partes ou a ambas, podendo fazer-se extrajudicialmente, mediante declaração à parte contrária – art.ºs 432º, nº 1 e 436º, nº 1 C.Civil, prossecução operando a partir do momento em que essa declaração chegue ao destinatário ou dele seja conhecida – art.º 224º C.Civil. E a destruição da relação contratual, por força do disposto no art.º 433º C.Civil, já que equipara, quanto aos seus feitos, a resolução à nulidade, obriga o lojista à restituição da loja.
A cláusula aqui em análise permite que o gestor reassuma a detenção da loja, mas apenas após a resolução do contrato e para a hipótese dessa entrega não ser feita dentro de determinado prazo pelo lojista.
Esta cláusula foi livremente negociada entre as partes. E a não haver a possibilidade do gestor obter a desocupação da loja, isso poderia criar embaraços ao normal desenvolvimento do comércio do Centro e, consequentemente, afectar os demais lojistas, quando o gestor tem precisamente por incumbência proporcionar condições a esse normal funcionamento do Centro, mantendo a sua plena vivência.
A actuação do gestor está ancorada numa cláusula consensualmente elaborada pelas partes, de acordo com o princípio da liberdade de fixação do conteúdo dos contratos. E, por outro lado, apresentando-se a reocupação da loja necessária ao regular funcionamento do Centro Comercial, afigura-se justificado e ajustado o teor da cláusula, o que equivale por afirmar a sua não desconformidade com quaisquer princípios legais.”
Com efeito, como deixámos referido em traços gerais, o contrato em causa  caracteriza-se pela cedência do gozo de um espaço - loja — para o exercício de uma actividade comercial ou de prestação de serviços num complexo imobiliário, composto por diversas lojas com comércios e serviços variados e intercomplementares e por espaços comuns de lazer, visando aliar prazer e consumo. Cada lojista realiza individualmente, por sua própria conta e risco, a exploração do respectivo espaço, mas, pelo facto de se integrar numa organização colectiva, vê-se forçado a abdicar de alguma autonomia e a obedecer a regras gerais de funcionamento e organização do centro comercial. A título de retribuição, o lojista paga uma remuneração fixa mínima - como contrapartida da utilização do espaço à qual acresce uma retribuição variável, calculada por referência a uma percentagem do valor da facturação bruta mensal, que só é devida na parte em que exceda o valor da parcela fixa, — como pagamento dos serviços de gestão prestados pela entidade responsável pelo conjunto. Além disso, o lojista tem de contribuir para os encargos com a manutenção e organização do centro comercial (serviços de limpeza, vigilância, promoção e animação).
Como bem explicita Ana Isabel Afonso (in dissertação de mestrado sob o tema “Os contratos de instalação de lojistas em centros comerciais - Qualificação e regime jurídico”, Publicações Universidade Católica, Porto 2003) a gestora e os lojistas partilham um objectivo comum de atracção de clientela para o centro comercial, concertando as suas actividades para alcançar tal objectivo. Logo o lojista empenha-se em exercer uma actividade comercial lucrativa, ciente de que faz parte de um conjunto cujo sucesso global potência o seu próprio. A gestora participa nos lucros da actividade do lojista, cuidando de realizar determinados serviços de gestão que passam, entre outros, por definir rigorosamente as coordenadas da actuação do lojista. Os seus interesses permanecem portanto ligados durante a vida do contrato. Conclui assim, a mesma autora, que tal contrato pode inscrever-se na categoria dos contratos de cooperação, pois as partes não deixam de prosseguir um fim comum, concertando as suas actividades para a obtenção do mesmo, dado que todos beneficiam da actividade desenvolvida.
Deste modo, face à natureza do contrato e provando-se o incumprimento e a resolução em momento anterior à tomada de posse da loja em causa, factos omitidos pela requerente, sem sequer enunciar factos que pudessem determinar a discussão sobre a ausência ou não de fundamento para a resolução, somos em considerar que não lhe assiste o direito de lançar mão da tutela possessória conferida pelo artº 377º do Código de Processo Civil.
Destarte procede a apelação, pelo que se determina pela procedência da oposição com a consequente restituição da loja à recorrente.
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IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela requerida e, consequentemente, ordena-se o levantamento da providência ordenada com a consequente restituição da loja em causa à requerida.
Custas pela apelada.
Registe e notifique.

Lisboa, 18 de Abril de 2024
Gabriela de Fátima Marques
Vera Antunes
Nuno Lopes Ribeiro