Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
305/18.4T8AMD.L1-7
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
CONTRATO ADMINISTRATIVO
EMPRESA PÚBLICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Um contrato de aquisição de serviços por um hospital «entidade pública empresarial» a uma sociedade privada apenas se qualificará como «contrato administrativo» se o hospital celebrar o contrato como «contraente público».
II. Para tal é necessário que se verifique uma das seguintes circunstâncias: i. que as partes qualifiquem o contrato como administrativo ou o submetam a um regime substantivo de direito público; ou, ii. que o contrato seja celebrado no exercício de «funções materialmente administrativas».
III. O contrato de prestação de serviço dos autos, celebrado entre um hospital E.P.E. e uma sociedade comercial, pelo qual esta cede ao primeiro técnicos qualificados durante certo tempo, mediante uma contraprestação pecuniária, e que as partes não submeteram a um regime substantivo de direito público, não se qualifica como contrato administrativo, pelo que o julgamento do litígio dele emergente compete aos tribunais judiciais.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
«BB», Lda., autora nos autos identificados à margem, em que é réu o Hospital «CC», E.P.E., notificada da decisão de 4 de outubro de 2018, pela qual o tribunal se julgou materialmente incompetente, e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.
A autora intentou a ação contra o réu alegando, em síntese, que:
- Em 01/08/2011, celebraram contrato de prestação de serviços médicos com a duração de um ano, renovável por iguais períodos, pelo qual a autora se vinculou a disponibilizar uma médica ao réu, mediante determinada contraprestação mensal;
- O contrato de prestação de serviços foi renovado em 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016, sempre em 1 de agosto de cada ano;
- Por carta registada datada de 2 de setembro de 2016, o réu comunicou à autora a cessação do contrato, alegando “Denúncia do contrato de prestação de serviços”, com efeitos a 1 de outubro de 2016;
- De acordo com a cláusula 2.ª do contrato, o mesmo renovar-se-ia por iguais períodos de um ano e poderia cessar por mútuo acordo ou, na falta dele, através da denúncia do contrato, direito a ser exercido até 15 dias antes de verificado o termo do mesmo;
- Após a cessação do contrato de prestação de serviços, a autora continuou a prestar os serviços contratados, com a concordância e no interesse do réu, disponibilizando uma médica, mas sem que o réu tenha pago qualquer contrapartida ou retribuição.
Terminou, pedindo a condenação do réu a pagar à autora a quantia de € 25.000, acrescida dos juros vencidos e vincendos até integral pagamento.
Citado, o réu contestou, impugnando alguns factos e retirando, dos demais, consequências jurídicas diferentes das pretendidas pela autora.
Terminou, pedindo a sua absolvição do pedido.
Apresentados os autos ao juiz, foi proferido despacho que julgou o tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolveu o réu da instância.
Com este despacho não se conforma a autora.

A recorrente termina as suas alegações de recurso, concluindo:
«A. Com a petição inicial pretende a Autora a condenação da Ré no pagamento da indemnização devida pelo incumprimento contratual.
B. Foi celebrado um contrato de prestação de serviços médicos, entre Autora e Réu.
C. O contrato não foi celebrado nos termos da contratação pública. D. O contrato não foi submetido a um regime substantivo de direito administrativo.
E. Ainda que o legislador tenha submetido a aquisição de serviços por pessoas coletivas de direito público a procedimentos específicos de contratação pública, a verdade é que o mesmo não sucedeu, pelo que não se pode aplicar a al. e) do n.º1 do art. 4.º do ETAF.
F. Foi erradamente julgada a verificação da exceção dilatória de incompetência absoluta pelo Tribunal a quo, com fundamento na a al. e) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF.
G. O tribunal a quo deveria ter atribuído a competência da ação aos Tribunais Judicias, na medida em que foi intenção do legislador subtrair aos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação de litígios que não sejam resultantes de execução de contratos administrativos ou contratos celebrados nos termos da legislação da contratação pública (vide redação originária e subsequente da al. e) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF).
H. A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal é taxativa e está prevista no art. 4.º do ETAF e em legislação especial.
I. Não estando atribuída competência à jurisdição administrativa e fiscal, serão os Tribunais Judiciais os competentes para o julgamento da ação.
J. Errou o Tribunal a quo ao julgar a verificação da exceção dilatória de incompetência absoluta, em consequência, absolver Ré da instância.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Excelências doutamente suprirão, deve a sentença recorrida ser revogada e ser a ação julgada pelos Tribunais Judiciais.»

O recorrido não apresentou contra-alegações.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, a questão que se coloca é a de saber se os tribunais judiciais são competentes para julgar litígio que opõe uma entidade pública empresarial e uma sociedade comercial a respeito do cumprimento de um contrato de prestação de serviço, celebrado entre ambas.

II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes são os que constam do relatório.

III. Apreciação do mérito do recurso
Quer-se saber a que ordem de tribunais cabe o julgamento da ação: se aos tribunais judiciais se aos administrativos.
Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais – assim o expressa o art. 211, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – art. 212, n.º 3, da CRP.
Estas normas são secundadas e densificadas na lei ordinária.
O art. 4.º do ETAF elenca as causas da competência dos tribunais administrativos, sendo de destacar pela relevância no caso que nos ocupa, o seguinte:
«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
(…)» (redação introduzida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro).
O art. 64 do CPC afirma serem da competência dos tribunais judiciais as causas que não são atribuídas a outra ordem jurisdicional. É verdade. Porém, a abrangência do Direito Administrativo faz com que a dita residualidade seja mais aparente que efetiva, e disso é um bom exemplo o caso que nos ocupa. Na verdade, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível, criminal e outras, e os tribunais administrativos são os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal.
A competência dos tribunais em razão da matéria, como os demais pressupostos processuais de uma ação, afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função da causa de pedir e dos pedidos formulados pelo autor na sua petição inicial. Esta asserção é uma decorrência lógica do conceito de pressuposto processual, não é discutida e é recorrentemente afirmada na jurisprudência, incluindo na do Tribunal de Conflitos, como se alcança do pequeno apanhado constante do Ac. TC de 17/05/2018, proc. 052/17 (www.dgsi.pt): AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 03.03.2011, 014/10; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2011, 029/10; AC Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, 02/12; AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, 055/13; AC do Tribunal de Conflitos de 17.09.2015, 020/15; AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14.
No caso em apreço, conforme relato supra, está em causa o cumprimento de um contrato de prestação de serviço entre uma entidade pública empresarial (E.P.E.) e uma sociedade comercial. O réu celebrou o contrato em relação de paridade com a autora, sem que na negociação, na forma de contratação ou no conteúdo do contrato se evidencie especial autoridade ou recurso a normas de direito administrativo. Será isso suficiente para afastar a qualificação como contrato administrativo?
As entidades públicas empresariais constituem, a par das sociedades de responsabilidade limitada constituídas nos termos da lei comercial, uma das formas jurídicas que as empresas públicas podem assumir (art. 13 do DL 133/2013, de 3 de outubro, cuja última alteração foi introduzida pela Lei 42/2016, de 28 de dezembro, e que estabelece o regime jurídico do setor público empresarial – RJSPE).
O art. 23 do RJSPE, epigrafado «Tribunais competentes», determina que para o julgamento dos litígios em que intervenham entidades do setor, respeitantes a atos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade a que se refere o artigo 22, as empresas públicas são equiparadas a entidades administrativas.
Nos demais litígios, diz o n.º 2 do art. 23, seguem-se as regras gerais de determinação da competência material dos tribunais.
O art. 22 afirma que as empresas públicas podem exercer poderes e prerrogativas de autoridade de que goza o Estado, designadamente quanto a: a) expropriação por utilidade pública; b) utilização, proteção e gestão das infraestruturas afetas ao serviço público; c) licenciamento e concessão, nos termos da legislação aplicável, da utilização do domínio público, da ocupação ou do exercício de qualquer atividade nos terrenos, edificações e outras infraestruturas que lhe estejam afetas. Os poderes especiais são atribuídos por diploma legal, em situações excecionais e na medida do estritamente necessário à prossecução do interesse público, ou constam de contrato de concessão.
No caso dos autos, o hospital E.P.E. contratou em termos semelhantes aos de entidade privada, como se alcança do texto do contrato junto como doc. 1 com a p.i., que não vale a pena aqui reproduzir, tanto mais que o que acabámos de afirmar não contradiz a contestação do réu.
O presente litígio é, portanto, um dos «demais litígios» a que se reporta o n.º 2 do art. 23 do RJSPE, pelo que a «empresa pública» não é nele equiparada a «entidade administrativa» (veremos se é, ainda assim, um «contraente público», noção para que chamamos desde já atenção pela relevância que, como veremos, terá). Aplicam-se, portanto, as regras de determinação da competência material dos tribunais, a que acima aludimos.
Releva, nomeadamente, o art. 4.º, n.º 1, do ETAF, que contém a lista taxativa de questões litigiosas cuja apreciação compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Lembramos que, antes das alterações introduzidas pelo DL 214-G/2015, de 2 outubro, o n.º 1 do art. 4.º do ETAF tinha a seguinte redação: «Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto:». Após as alterações introduzidas pelo diploma de 2015, passou a ter o seguinte teor: «Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:». Desapareceu o advérbio «nomeadamente».
A única alínea do n.º 1 do art. 4.º do ETAF com a qual o litígio dos autos pode ter correspondência é a al. e):
«e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.» (redação introduzida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro).
Contratos administrativos são os que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos (CCP) ou em legislação especial (art. 200, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo DL 4/2015, de 7 de janeiro).
No CCP estão classificados os seguintes contratos administrativos (arts. 343 e ss.): empreitadas de obras públicas; concessões de obras públicas e de serviços públicos; locação de bens móveis; aquisição de bens móveis; aquisição de serviços.
A aquisição de serviços está regulada nos arts. 450 a 454, aplicando-se-lhe subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto no capítulo sobre contratos de aquisição de bens móveis (art. 451). O art. 450 do CCP contém a seguinte noção: «Entende-se por aquisição de serviços o contrato pelo qual um contraente público adquire a prestação de um ou vários tipos de serviços mediante o pagamento de um preço». Para que uma aquisição (ou, na perspetiva da contraparte, uma prestação) de serviços seja um contrato administrativo é necessária, mas também suficiente, a verificação dos seguintes dois requisitos: i. que o adquirente seja um contraente público; ii. que a aquisição seja feita a título oneroso.
A especial qualidade de uma das partes é, nos contratos administrativos, uma característica do tipo (sobre a qualidade das partes como índice dos tipos contratuais, Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, 1995, pp. 153-5), sem a qual um concreto contrato não se qualificará como tal (sobre a consequência da ausência, numa ocorrência contratual concreta, de uma característica essencial de um tipo contratual legalmente descrito, Pedro Pais de Vasconcelos, cit., maxime pp. 160-182, e Rui Pinto Duarte, Tipicidade e atipicidade dos contratos, Almedina, 2000, pp. 61-130).
Com o CCP, aprovado pelo DL 18/2008, de 29 de janeiro (com várias alterações, sendo a última a do DL 33/2018, de 15 de maio), pretendeu-se uma uniformização de regimes substantivos dos contratos administrativos atomizados até então. Conforme se lê no n.º 6 do preâmbulo, «no campo da aquisição e locação de bens e aquisição de serviços, o primeiro tópico a destacar prende-se com a inclusão dos contratos de aquisição de bens móveis, de locação de bens e de aquisição de serviços no rol dos contratos administrativos por determinação legal. Todos os contratos desse tipo celebrados por um contraente público passam a ser considerados contratos administrativos e a seguir o regime especial estabelecido neste capítulo e no título i da parte iii.».
O que seja um contraente público resulta do art. 3.º do CCP, que vamos reproduzir:
« 1 - Para efeitos do presente Código, entende-se por contraentes públicos:
a) As entidades referidas no n.º 1 do artigo anterior;
b) As entidades adjudicantes referidas no n.º 2 do artigo anterior sempre que os contratos por si celebrados sejam, por vontade das partes, qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público.
2 - São também contraentes públicos quaisquer entidades que, independentemente da sua natureza pública ou privada, celebrem contratos no exercício de funções materialmente administrativas.»
Importa, então, averiguar:
a) quais são as entidades listadas no n.º 1 do art. 2.º do CCP para ver se aí se incluem as entidades públicas empresariais, categoria a que pertence o réu;
b) se o réu pertence a uma das categorias identificadas no n.º 2 do art. 2.º do CCP e, simultaneamente, se o contrato dos autos foi, por vontade das partes, qualificado como contrato administrativo ou submetido a um regime substantivo de direito público;
c) se o contrato dos autos foi celebrado no exercício de função materialmente administrativa.
Lendo o n.º 1 do art. 2.º, temos as seguintes entidades: a) O Estado; b) As Regiões Autónomas; c) As autarquias locais; d) Os institutos públicos; e) As entidades administrativas independentes; f) O Banco de Portugal; g) As fundações públicas; h) As associações públicas; e i) As associações de que façam parte uma ou várias das pessoas coletivas referidas nas alíneas anteriores, desde que sejam maioritariamente financiadas por estas, estejam sujeitas ao seu controlo de gestão ou tenham um órgão de administração, de direção ou de fiscalização cuja maioria dos titulares seja, direta ou indiretamente, designada pelas mesmas.
Concluímos facilmente que as entidades públicas empresariais não fazem parte do elenco.
O n.º 2 do art. 2.º reporta-se às seguintes entidades: «a) Os organismos de direito público, considerando-se como tais quaisquer pessoas coletivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada: i) Tenham sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial, entendendo-se como tais aquelas cuja atividade económica se não submeta à lógica concorrencial de mercado, designadamente por não terem fins lucrativos ou por não assumirem os prejuízos resultantes da sua atividade; e ii) Sejam maioritariamente financiadas por entidades referidas no número anterior ou por outros organismos de direito público, ou a sua gestão esteja sujeita a controlo por parte dessas entidades, ou tenham órgãos de administração, direção ou fiscalização cujos membros tenham, em mais de metade do seu número, sido designados por essas entidades; b) Quaisquer pessoas coletivas que se encontrem na situação referida na alínea anterior relativamente a uma entidade que seja, ela própria, uma entidade adjudicante nos termos do disposto na mesma alínea; c) (Revogada.) d) As associações de que façam parte uma ou várias das pessoas coletivas referidas nas alíneas anteriores, desde que sejam maioritariamente financiadas por estas, estejam sujeitas ao seu controlo de gestão ou tenham um órgão de administração, de direção ou de fiscalização cuja maioria dos titulares seja, direta ou indiretamente, designada pelas mesmas.».
Mesmo admitindo que o hospital E.P.E. pudesse reconduzir-se às entidades do n.º 2 do art. 2.º do CCP, para que fosse «contraente público» no contrato dos autos, seria necessário que as partes tivessem qualificado o contrato como administrativo ou o tivessem submetido a um regime jurídico de direito público, o que, in casu, não sucedeu. O contrato dos autos não foi qualificado pelas partes como contrato administrativo, nem submetido a um regime substantivo de direito público.
Resta saber o que é uma «função materialmente administrativa», uma vez que o n.º 2 do art. 3.º do CCP estabelece que quaisquer entidades que, independentemente da sua natureza pública ou privada, celebrem contratos no exercício de funções materialmente administrativas, são também contraentes públicos.
A função materialmente administrativa corresponde à função executiva da teoria clássica dos três poderes, modificada e aprofundada pelo Barão de Montesquieu. Trata-se da função que essencialmente compete aos Governos e aos órgãos dos entes públicos administrativos, em execução de decisões, políticas ou judiciais, e das leis. Presentemente, a função é também exercida por pessoas coletivas de direito privado que se encontram sujeitas a regimes especiais de direito público. A sua concretização faz-se por contraposição com as demais funções do Estado. Nas palavras de José Carlos Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, 5.ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, pp. 31-40, disponível online em acesso livre no site https://digitalis-dsp.uc.pt, «a distinção prática entre as funções estaduais não é possível no contexto rigoroso de um modelo definitório, em que se pretenda a verificação integral e exclusiva das características de cada uma das funções, para nelas incluir as várias atividades estaduais, mas apenas no quadro de um modelo tipológico, em que se admita a inclusão de uma atividade em determinada função apesar de não satisfazer a todas essas características, bastando que corresponda a um núcleo significativo delas (Barbosa de Melo). Neste pressuposto, pode dizer-se que a função administrativa abrange a atividade pública (de conteúdo abstrato ou concreto), desenvolvida, em regra, pelo Governo e pelos órgãos dos entes públicos administrativos, subordinada à lei, que, não se destinando a título principal à resolução de «questões de direito», se caracteriza por uma «intenção tecnológico-social» (procura estratégica dos “efeitos”, da “finalidade”, do “útil” – Castanheira Neves), visando a criação de condições concretas de realização do Ideal de Segurança, Justiça e Bem-estar (“promoção do desenvolvimento económico-social e satisfação das necessidades coletivas” – artigo 199.º, g) da CRP), em termos pré-definidos (pelo menos quanto aos fins específicos e às competências) por órgãos com competência política e legislativa».
A função médica ou hospitalar não se considera uma função materialmente administrativa.
Aqui chegados impõe-se concluir que o contrato dos autos não é um contrato administrativo, uma vez que, apesar de ter correspondência parcial com um dos tipos classificados no CCP (aquisição de serviços – art. 450), o réu não assume nele a qualidade de «contraente público». Para que o contrato se qualificasse como contrato administrativo de aquisição de serviços era essencial que uma das partes fosse um contraente público, do ponto de vista objetivo ou situacional, e não é o caso.
Nos termos da já citada al. e) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, aos tribunais administrativos compete julgar a validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. Após o percurso argumentativo expendido, estamos em condições de afirmar que o contrato dos autos não é nem um contrato administrativo, nem um contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública.
A atual redação da al. e) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF foi, como referimos, introduzida pelo DL 214-G/2015, de 2 de outubro. Imediatamente antes estava em vigor o seguinte texto: «e) Questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público». A solução, no caso que nos ocupa, poderia ser outra: apelando às normas de direito público que regulavam procedimentos pré-contratuais de que as entidades públicas poderiam lançar mão para contratar serviços. Bastava, segundo possível interpretação, a mera existência destas normas para que o contrato ficasse submetido à jurisdição administrativa. Sobre a questão à luz do regime anterior, Maria Helena Barbosa Ferreira Canelas, «A amplitude da competência material dos tribunais administrativos em sede de ações relativas a responsabilidade civil contratual», Julgar, 15 (2011) 103-128 (em especial pp. 113-120).

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente procedente, revogando o despacho recorrido, e determinando que os autos prossigam os legais termos no tribunal a quo.
Custas pelo recorrido (sem prejuízo de não dever taxa de justiça – art. 7.º, n.º 2, do RCP).

Lisboa, 19/02/2019

Higina Castelo (Relatora)
José Capacete
Carlos Oliveira