Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
183/19.6GGSNT.L1-3
Relator: RUI MIGUEL TEIXEIRA
Descritores: MAUS TRATOS A ANIMAIS
APRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO NOTÓRIO
TIPO
INCONSTITUCIONALIDADE
REENVIO
ARGUIDO
CONDIÇÃO SOCIAL E ECONÓMICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - Os maus tratos a animais constituem crime;
- Não existe qualquer indefinição no objecto típico quando se tratam de cães, os quais são animais de companhia por excelência.
- O erro notório do artº 410º nº 2 al. c) do C.P.P.  é um erro que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio dele se dá conta, quando a prova é valorada contra as regras da experiência comum.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I- Relatório
Apresenta-se a recorrer perante este Tribunal o Ministério Público discordando da decisão proferida em 12.04.2023 pelo Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 3 – do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste através da qual foram absolvidos da prática de três crimes de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo artigo 387.º, do Código Penal os arguidos CP e GP do crime.
Após motivações conclui o Ministério Público no seu recurso:
1- Dispõe o artigo 410º nº 2 c) do Código de Processo Penal que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento erro notório na apreciação da prova.
2- O indicado em 1 diz respeito à avaliação probatória ao erro que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio dele se dá conta, quando a prova é valorada contra as regras da experiência comum.
3- De acordo com o documento de fls. 100 foi exarado que não é possível estimar o período em que os canídeos evidenciavam tal condição no entanto atendendo à avaliação corporal e ausência de patologia que justifique tal condição, pode afirmar-se que o estado de magreza em que os animais se encontravam resultou da privação de alimento, bem como do grau de parasitismo e consequente diarreia.
4- Resulta também do documento indicado em 3 que o parasitismo e a diarreia são reveladoras de ausência de medidas profilácticas, nomeadamente desparasitação e de ausência de cuidados básicos durante um longo período de tempo.
5- E ainda que o traumatismo provocado pelo mosquetão no pescoço do canídeo já era antigo, desde logo pela presença de fibrose, o animal encontrava-se com o mosquetão encrustado já havia muito tempo estimando-se pelo menos um mês.
6- O documento é emanado de uma autoridade veterinária, cujos esclarecimentos prestados em tribunal pela médica veterinária, não invalidam o indicado em 3 , 4 e 5.
7- Igualmente ao abrigo do principio a que alude o artigo 127º do Código de Processo Penal, o depoimento da testemunha JS , não pode invalidar o constante no documento de fls 100 , porque não dotado de conhecimentos técnicos de igual teor que o possam invalidar.
8- Pelo que não poderia o tribunal “a quo“ ter concluído , da forma como o fez quanto à questão do estado de saúde dos canídeos , com base nos esclarecimentos complementares da medica veterinária , e da testemunha JS.
9- Desta forma incorreu em erro notório na apreciação da prova.
10- Quanto ao elemento subjectivo, concluiu o tribunal que pese embora se tenha provado que os animais pertenciam aos arguidos, e foram resgatados na sua habitação em estado de subnutrição e um deles com uma ferida na zona do pescoço, o contexto de saída não voluntária de casa afastam os elementos do crime, quer objectivos quer subjectivos, e consequentemente o dolo do crime.
11- O contexto de saída de casa da arguida para uma casa de abrigo, e o arguido para uma situação de reclusão, bem como o facto dos canídeos terem ficado sem cuidados de 13 a 18 de Abril de 2019, não configura de acordo com a douta sentença o preenchimento do tipo de ilícito
12- - Não podemos concordar, com o indicado em 11, tendo por base o parecer medico veterinário, constante do documento de fls. 100.
13- Resultou do mesmo que a situação de privação / lesão ocorreu antes da ausência dos arguidos da habitação.
14- A situação de omissão de cuidados iniciou-se antes num período de tempo anterior a 13 – 18 de Abril de 2019, tendo por isso os arguidos o domínio do facto, em data anterior à sua saída da habitação. No caso da privação de alimento muito tempo antes, e no caso do mosquetão pelo menos um mês antes.
15- Após a saída de casa da arguida e a reclusão do arguido a sua conduta omissiva perdurou, e agravou o estado de saúde dos animais, pois não diligenciaram no sentido dos cuidados necessários devidos e impostos lhes serem prestados.
16- Daí se poder concluir que se tratou em ambos os caos de uma omissão relevante do ponto de vista do direito penal, tendo aqueles agido voluntaria e conscientemente tendo a sua omissão sido causal em relação ao estado de saúde dos animais que os arguidos admitiram como consequência necessária das suas condutas omissivas.
17- Devem os arguidos ser condenados pela pratica de um crime p. p nos termos do artigo 387º nº 1 do Código Penal.
Ao assim recorrido os arguidos não responderam.
O Ministério Publico junto desta instância lavrou parecer onde refere: “A posição da Magistrada do Ministério Público na 1.ª instância, expressa na motivação de recurso, merece a nossa concordância, uma vez que, de acordo com elementos probatórios carreados para os autos, designadamente do parecer médico-veterinário, resulta com clareza que a situação de privação e de cuidados de saúde remontaram a período anterior ao do resgate dos cães.
Assim e sem necessidade de apresentar considerações adicionais, emitimos parecer no sentido da procedência do recurso.”
Os autos foram a vistos e à conferência.
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II - Fundamentação
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artº 412º nº 1 do Código do Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Pretende o recorrente ver apreciadas as seguintes questões:
a) A existência de erro notório na apreciação da prova;
b) A proceder tal questão as consequências daí advenientes, mormente a questão da subsunção jurídica e a escolha da pena.
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III- Da decisão recorrida
Previamente às questões suscitadas, vejamos quais os factos provados e não provados e a sua fundamentação.
Assim, fez-se constar na decisão (transcrição):
“Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados e não provados os factos que seguem, com interesse para a decisão[1], sendo os restantes factos alegados conclusivos[2] e/ou matéria de direito:
1. Os arguidos GP e CP detiveram consigo, em conjunto, na sua residência sita no nº … da Rua …., na localidade de Almargem do Bispo, desde data não concretamente apurada, no ano de 2013 até 13 de Abril de 2019, três canídeos de raça indeterminada.
2. A arguida CP deixou de residir naquela residência desde 13 de Abril de 2019.
3. No dia 18 de Abril de 2019 os canídeos apresentavam-se subalimentados, com as costelas e vértebras lombares, ossos pélvicos e todas as saliências ósseas visíveis à distância e com parasitas.
4. Um dos canídeos apresentava ainda uma ferida na zona central do pescoço causada por mosquetão que perfurava a pele do pescoço de um lado a outro, desde data não concretamente apurada.
Mais se provou que:
5. A arguida CP deixou a habitação na data acima referida, em contexto de violência doméstica pela qual denunciou o arguido e que deu origem ao processo n.º ….., do Juízo …. vindo a ser acolhida em Casa Abrigo.
6. Nessa data o arguido ausentou-se também da habitação comum, não mais aí se tendo dirigido e vindo a ser detido e preso preventivamente, à ordem do referido processo, em 17.05.2019.
7. Os canídeos foram resgatados pelas autoridades competentes após alerta dos vizinhos dos arguidos, que se aperceberam que os animais se encontravam sozinhos há cerca de uma semana, sem a presença/cuidados dos donos.
2. Factos não provados
A. Desde 13 de Abril de 2019, os canídeos ficaram ao cuidado do arguido GP.
B. O estado de magreza que os referidos canídeos evidenciavam resultou da privação prolongada de alimentos, bem como do parasitismo e consequente diarreia e estas patologias da ausência de medidas profiláticas, nomeadamente desparasitação.
C. O canídeo referido supra em 4 encontrava-se com o mosquetão encrustado no pescoço desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde um mês antes da data da sua verificação, ou seja, desde 18 de Março de 2019.
D. Os arguidos actuaram com o propósito concretizado de privar os três canídeos que detinham, da alimentação de que necessitavam, bem com os cuidados de vacinação e assistência médica veterinária regular, admitindo como possível que dessa conduta viesse a resultar dor e sofrimento, tendo-se conformado com o resultado.
E. Agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
III. Motivação da matéria de facto
A formação da convicção do Tribunal teve por base a apreciação crítica da globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, à luz das regras da experiência comum e segundo juízos lógico-dedutivos.
A arguida CP, apesar de regularmente notificada, não compareceu em julgamento, nada tendo contribuído para a prova dos factos.
Por sua vez, o arguido GP prestou declarações em que negou ter assumido uma acção maltratante para com os canídeos, os quais admitiu serem seus e da sua ex-companheira; justificou o estado de subnutrição/parasitação com que os animais foram resgatados, com o facto de ser a arguida quem providenciava pelas suas idas ao veterinário, assim tentando desresponsabilizar-se por eventuais problemas de saúde dos mesmos; mais referiu que CP saiu de casa após uma queixa contra o mesmo por crime de violência doméstica que despoletou o respectivo processo criminal, no âmbito do qual veio a ser preso preventivamente – tendo sido por força desse facto que deixou de se deslocar à habitação comum, em simultâneo com a co-arguida.
Foi ainda inquirido JS, vizinho dos arguidos, o qual referiu ser usual ver o arguido GP passear os seus canídeos na rua, nunca se tendo apercebido de que os animais eram maltratados, nomeadamente que se encontrassem subalimentados; explicou que em determinada ocasião, e tendo de deixado de ver os arguidos, seus vizinhos, que foi alertado por uma outra vizinha – a testemunha NN, entretanto falecida - de que os canídeos se encontravam sozinhos na habitação há uns dias sozinhos, o que os levou a chamarem as autoridades que os vieram a resgatar.
Ora, perante tais relatos e analisada a prova documental e pericial dos autos, concretamente o auto de notícia de fls. 04 a 04v; as fotografias de fls. 07 a 17; e os relatórios relativos condição clínica e assistência prestada aos canídeos de fls. 91 a 93, 100 a 102, a médica veterinária que examinou os animais aquando o resgate e que subscreveu tais relatórios foi chamada ao julgamento a fim de ser ouvida em esclarecimentos complementares; em audiência, tal profissional confirmou o teor dos relatórios por si subscritos e explicou que a magreza dos animais poderia dever-se à presença de parasitas, sendo a ausência de fezes diarreicas o que a levara a considerar que se trataria de uma situação fosse crónica; no entanto, analisados os seus relatórios, verificou-se que um dos canídeos apresentava diarreia (o que contradiz tal conclusão); a referida médica referiu também que o metabolismo dos animais é bastante rápido, podendo atingir estado magreza apenas em alguns dias; quanto ao canídeo cuja mosquetão se encontrava encrustado no pescoço referiu que tal poderia dever-se ao facto de a coleira do animal ser manifestamente pequena para o seu porte, estando também ela parcialmente encrustada.
Ora perante tais esclarecimentos, o facto de a testemunha JS acima indicada – a qual se considerou espontânea – nunca se ter apercebido de que os animais dos arguidos não se encontravam de boa saúde, admitiu-se como possível que a má condição física com que os mesmos se encontravam quando foram resgatados se tenha ficado a dever ao período em que os arguidos se ausentaram da habitação – entre o dia 13 de Abril e o dia 18 de Abril, data do seu resgate, após alerta da vizinhança;
Além disso, encontrando-se a arguida em fuga do arguido em contexto de violência doméstica tendo, após, sido acolhida em casa abrigo e aquele denunciado por estes factos (o que o terá levado a não mais ir à habitação, vindo a ser preso preventivamente em 17.05.2019 (cfr. informação e acórdão do processo n.º … do Juízo …., juntos aos autos durante o julgamento), considerou-se que tais ausências e a consequente omissão de prestação de cuidados aos animais poderão ter estado na origem da sua má condição física e não uma conduta maltratante e intencional dos arguidos.
Em consequência, assim resultaram os factos não provados pelo Tribunal.”
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IV – Da análise dos fundamentos do recurso
Como é sabido, e resulta do disposto nos artº 368º e 369º ex-vi artº 424º nº 2 , todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do Código do Processo Penal.
Por fim, das questões relativas à matéria de Direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas pelo recorrente.
Assim, e no que tange ao erro notório.
O art. 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito».
A apreciação destes vícios não implica qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque envolve apenas a análise do texto da decisão recorrida, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo. Apenas as regras de experiência comum podem servir de critério de aferição da sua existência.
Assim, o que releva para este vício é o que consta da decisão e não o que esta ou aquela testemunha ou documento referem pois que estes foram anteriormente considerados para afirmar o facto.
A única forma de atacar os factos por via do artº 410ºnº 2 do C.P.P. é a de demonstrar que os factos estão em desacordo com as regras da experiência ou com a leges artiis (se for o caso). Á parte disto os factos têm de ser incoerentes por si próprios.
O erro notório na apreciação da prova supõe que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, deflua de forma fácil, evidente e ostensiva que factualidade ali exarada é arbitrária, contrária à lógica, a regras científicas ou de experiência comum, ou assenta na inobservância de regras sobre o valor da prova vinculada, ou das leges artis (Acs. do STJ de 12.03.2015, processo 40/11.4JAAVR.C2; de 06.12.2018, processo 22/98.0GBVRS.E2.S1 e de 03.04.2019, processo 38/17.9JAFAR.E1.S1 e Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77).
«Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que está notoriamente errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando de um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (…)» (Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 740, em anotação ao artigo 410º).
«É o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta» (Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol III, pág. 341).
«O “erro notório na apreciação da prova” constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio» (Ac. do STJ de 06.10.2010 Proc. n.º 936/08.0JAPRT.P1.S1. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 20.11.2014, processo 87/14.9YFLSB e de 13.03.2019, processo 2400/11.1TASTB.E1.S1, in http://www.dgsi.pt).
Vejamos, pois.
O raciocínio do Tribunal para dar como não provados os elementos estruturantes do tipo foi o seguinte:
- Os canídeos existem e eram pertença dos arguidos.
-Sob os mesmos impendia o dever de deles cuidar.
- Os canídeos foram surpreendidos em “maus estado” (chamemos-lhe assim).
- Os arguidos saíram de casa a 13 de Abril para não mais regressar;
- A 18 de Abril os animais foram resgatados;
- Os animais apresentavam sintomas de má nutrição mas esta magreza dos animais poderia dever-se à presença de parasitas, sendo que o facto de um dos animais apresentar diarreias excluiria que a situação fosse crónica (assim contradizendo o relatório médico inicial que apontava para que o estado débil dos cães durasse há meses;
- O metabolismo dos animais é bastante rápido, podendo atingir estado magreza apenas em alguns dias, sendo que existe um lapso de tempo entre 13 e 18 de Abril em que a situação se pode ter revelado, sem que se tivesse revelado antes;
- Quanto ao canídeo cuja mosquetão se encontrava encrustado no pescoço referiu que tal poderia dever-se ao facto de a coleira do animal ser manifestamente pequena para o seu porte, estando também ela parcialmente encrustada.
- Quanto ao elemento subjectivo a razão da saída de casa dos arguidos demonstra que não quiseram o resultado.
Ora, cumpre desde logo dizer que o decidido padece do vício que o recorrente lhe assaca.
Na verdade, o Tribunal põe a questão na existência de uma putativa dúvida sobre a verificação de um estado de magreza e má nutrição dos animais pois que afirma não saber o sucedido entre 13 de Abril e 18 do mesmo mês, período em que os cães, comprovadamente, estiveram abandonados.
Ora, em primeiro lugar, os animais têm de ser tratados e alimentados todos os dias. O estado que as animais apresentavam não decorreu de cinco dias. Pode até só se ter apresentado naqueles cinco dias mas decorre de uma ausência de atenção e dever de cuidado que se estendeu a datas anteriores a 13 de Abril. O estado dos animais à data da intervenção das autoridades é o resultado de abandono que se prolongou por muito e que ocorreu sistematicamente muito antes da saída de casa dos arguidos.
Diga-se ainda que os esclarecimentos prestados, da forma como constam da fundamentação da decisão, em nada abalam as conclusões iniciais do relatório em que a decisão se alicerça.
Aliás, a questão da diarreia apenas surge num dos cães ficando por explicar a má nutrição e debilidade dos outros dois, questão que a sentença não aborda.
Repete-se: a situação débil dos canídeos deve-se a um descurar de cuidados permanente e ao longo do tempo. Viver com e possuir um animal é um labor diário: alimentar, medicar, cuidar, passear e dar atenção são tudo requisitos para se ter animais, sejam eles quais forem. Só quem nunca teve a seu cuidado um cão poderá pensar que cinco dias de abandono resultará no estado em que os animais aqui em causa foram encontrados.
A questão do mosquetão é ainda mais gritante: o animal tinha o mosquetão incrustado na carne e o mesmo perfurava a pele do pescoço de um lado a outro. Foi sugerido, segundo o Tribunal na fundamentação, que tal se poderia ter ficado a dever á coleira estar demasiado apertada. Ora, tal não faz sentido. Em primeiro lugar se a coleira estava demasiado apertada, alguém a apertou. E alguém a apertou antes de 13 de Abril e não depois. Em segundo lugar os animais estavam mal nutridos logo só emagreceriam diminuindo o perímetro do pescoço donde quem apertou a coleira fê-lo com o intuito do bicho ficar apertado no pescoço.
Por fim, a questão subjectiva.
Com o devido respeito pela opinião deixada expressa na decisão mal se compreende que o Tribunal não tenha dado por assente estes elementos do tipo.
Ambos os arguidos saíram de casa a 13 de Abril. A arguida foi para uma casa de abrigo e o arguido não se sabe para onde tendo sido preso preventivamente em 17.05.
Acontece que nada disto explica como é que se deixou a saúde dos animais chegar ao ponto a que chegou. Os arguidos sabiam que tinham os cães, sabiam dos deveres que sobre si impendiam e sabiam o estado em que estes se encontravam a 13 de Abril.
Não consta que a arguido haja saído de casa numa situação de emergência em que não podia ter cuidado dos cães. Não consta que o arguido não tenha, por qualquer razão, podido tratar dos animais. Não consta que nenhum deles haja feito o que quer que fosse para cuidar dos animais.
Na verdade, tudo se passou da seguinte forma: até 13 de Abril não se trataram os animais de molde a que os mesmos já estivessem malnutridos; daí para a frente os arguidos descartam as suas responsabilidades e não quiseram saber dos cães tanto lhes fazendo a sorte dos mesmos.
Mal se compreende que tais factos hajam sido dado como não provados.
Assim, e sem necessidade de recurso a elementos exteriores à decisão é possível dar como assentes os seguintes factos:
“Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados e não provados os factos que seguem, com interesse para a decisão , sendo os restantes factos alegados conclusivos  e/ou matéria de direito:
1. Os arguidos GP e CP detiveram consigo, em conjunto, na sua residência sita no nº … da Rua …., na localidade de Almargem do Bispo, desde data não concretamente apurada, no ano de 2013 até 13 de Abril de 2019, três canídeos de raça indeterminada.
3. No dia 18 de Abril de 2019 os canídeos apresentavam-se subalimentados, com as costelas e vértebras lombares, ossos pélvicos e todas as saliências ósseas visíveis à distância e com parasitas.
4. Um dos canídeos apresentava ainda uma ferida na zona central do pescoço causada por mosquetão que perfurava a pele do pescoço de um lado a outro, desde data não concretamente apurada
5. O estado de magreza que os referidos canídeos evidenciavam resultou da privação prolongada de alimentos, bem como do parasitismo e consequente diarreia e estas patologias da ausência de medidas profiláticas, nomeadamente desparasitação.
6. O canídeo referido supra em 4 encontrava-se com o mosquetão encrustado no pescoço desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde um mês antes da data da sua verificação, ou seja, desde 18 de Março de 2019.
7. Os arguidos actuaram com o propósito concretizado de privar os três canídeos que detinham, da alimentação de que necessitavam, bem com os cuidados de vacinação e assistência médica veterinária regular, admitindo como possível que dessa conduta viesse a resultar dor e sofrimento, tendo-se conformado com o resultado.
8. Agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal
Mais se provou que:
9. A arguida CP deixou de residir naquela residência desde 13 de Abril de 2019.
10. A arguida CP deixou a habitação na data acima referida, em contexto de violência doméstica pela qual denunciou o arguido e que deu origem ao processo n.º …. Juízo …., vindo a ser acolhida em Casa Abrigo.
11. Nessa data o arguido ausentou-se também da habitação comum, não mais aí se tendo dirigido e vindo a ser detido e preso preventivamente, à ordem do referido processo, em 17.05.2019.
12. Os canídeos foram resgatados pelas autoridades competentes após alerta dos vizinhos dos arguidos, que se aperceberam que os animais se encontravam sozinhos há cerca de uma semana, sem a presença/cuidados dos donos.
Factos não provados
A. Desde 13 de Abril de 2019, os canídeos ficaram ao cuidado do arguido GP
Sendo esta a factualidade tida por assente a mesma é subsumível ao disposto no artº 387º nº 3 do Código Penal (e não nº 1 como erradamente se fez constar da acusação sendo que a pena dos dois crimes é idêntica.
Dispõe o artº 387º nº 3 do Código Penal que “Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias.”
Ante tal não se nos suscitam quaisquer dúvidas quanto ao preenchimento do tipo já que cães são, por definição, “os” animais de companhia e que a morte á fome é causadora de dor e sofrimento a qualquer animal e que não existe qualquer motivo legítimo para os arguidos terem actuado da forma que o fizeram.
Este Tribunal não desconhece o teor do Ac. do T.C. nº 843/2022 de 20.12.2022 mediante o qual foi decidido “julgar inconstitucional, por violação do princípio da legalidade resultante do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia, contida no artigo 387.º, n.º 3 do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de Agosto, em conjugação com o artigo 389.º, n.os 1 e 3, do Código Penal, igualmente na redacção introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de Agosto”.
Ora, acontece que tal decisão foi tirada em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade valendo, pois, apenas e só no âmbito do processo em que foi proferida.
Não obstante cumpre analisar os fundamentos da decisão para se concluir que, independentemente da bondade da mesma, a sua ratio não tem aplicação in casu.
Na verdade, o TC questiona primeiramente o que deve ser considerado um animal de companhia e a abrangência ou falta de definição do conceito do artº 389º do Código Penal. Questiona o TC se, por exemplo, podem formigas num terrário ser consideradas como animais de companhia? E os animais destinados a outras funções, como de guarda, não são também animais de companhia ou não são abrangidos por esse conceito? Os ‘animais de companhia’ devem ser encarados como uma categoria genérica ou deve atender-se à singularidade de cada espécie? E em que consiste, em concreto, esse “entretenimento” (aparentemente humano)? E o que é “lar” neste âmbito? É o mesmo que residência ou domicílio? E o “designadamente” pretende estender este tipo legal a todos e quaisquer espaços em que se encontrem esses animais? E se for assim qual a necessidade desse “designadamente” (e até do “lar”)?
Ora, independentemente da bondade das dúvidas o certo é que ninguém parece escamotear que cães e gatos são os animais de companhia desde tempos imemoriais e que mesmo quando os humanos habitavam nas cavernas e os primeiros lobos foram domesticados estes sempre serviram a dupla função de guardas e companhia.
A objecção não se aplica, pois, ao nosso caso.
O TC refere ainda, como segundo argumento em defesa da bondade da sua decisão, que, “prosseguindo com a análise do n.º 3 do artigo 387.º do CP, as questões e dúvidas relacionadas com a descrição legal do tipo-de-ilícito objetivo são muitas. Infligir dor é diferente de infligir sofrimento? A alusão a “sofrimento” quererá significar que a criminalização abrange maus tratos psicológicos ou emocionais? Toda a inflição de dor constitui, sem mais, maus-tratos? Deverá atender-se à resistência da concreta espécie à dor (por outras palavras, deverá ter-se em conta as características etológicas do animal) ou será toda e qualquer dor animal sempre equiparável e integrará logo este tipo legal? A tutela criminal é uma tutela contra a dor e o sofrimento ou protege, de igual modo, de forma mais ampla, o bem-estar físico e psíquico (pode, por exemplo, defender-se existirem maus-tratos naqueles casos em que aos animais de companhia não seja proporcionada uma dieta alimentar tida como adequada para evitar o sobrepeso?)? As condutas omissivas – deixar o animal sofrer – também são punidas? Em caso afirmativo, apenas as omissões conscientes? E podem considerar-se circunstâncias atenuantes? (pode uma pessoa que vive abaixo do limiar de pobreza ser acusada de não providenciar um tratamento caro ao seu animal de companhia?). As tradições culturais, nacionais ou locais, podem ser excepcionadas, sendo a cultura um valor constitucional?
Aliás, as dúvidas são ainda maiores quando se procura apurar o que seja um “motivo legítimo”, que parece ser um elemento negativo do tipo-de-ilícito, delimitando, portanto, pela negativa, a respetiva fattispecie – se existir esse motivo legítimo, mesmo que se verifiquem as restantes componentes do tipo-de-ilícito objectivo, este tipo legal não estará nunca integralmente preenchido. Como refere MARIA DA CONCEIÇÃO VALDÁGUA (ob. cit., p. 1854), “Outro elemento comum aos vários crimes previstos no art. 387º é o “motivo legítimo”. E motivos legítimos para a prática de maus tratos a um animal de companhia infelizmente há muitos”. Ocorre que o legislador não concretizou sequer o que é “motivo” e porque deve ser (ou não) “legítimo”.
Efectivamente, se é possível, como o fazem vários autores, encontrar uma série múltipla (e nem sempre coincidente entre autores) de motivos que devem ser considerados motivos legítimos para efeitos de impedir o preenchimento integral deste tipo legal objectivo, a verdade é que nada consta a esse respeito do texto legal, havendo sempre, necessariamente, dúvidas sobre o que são esses “motivos” e em que consiste essa legitimidade (e em que radica a falta dela). Será legítimo alterar a voz dos cães de companhia para assegurar a tranquilidade e o bem-estar emocional e físico dos vizinhos? Será legítimo cortar a causa ou as orelhas a um cão com o intuito de o embelezar, ou, em todo o caso, de o fazer actuar em espectáculos, invocando-se, para o efeito, a liberdade artística? Vejamos mais dois exemplos que patenteiam as dificuldades com que se podem debater os operadores jurídicos: “Existem ainda duas outras questões que não se encontram legalmente tratadas, mas que cabe trazer à discussão nesta sede. A primeira questão encontra-se directamente relacionada com a existência do chamado dever de correcção do animal, face ao dever legal de vigilância que impende sobre o seu detentor. Pese a legislação nacional nada dizer, a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia refere, no seu art.º 7.º, a propósito do treino do animal, que «Nenhum animal de companhia deve ser treinado de modo prejudicial para a sua saúde ou o seu bem-estar, nomeadamente forçando-o a exceder as suas capacidades ou força naturais ou utilizando meios artificiais que provoquem ferimentos ou dor, sofrimento ou angústia inúteis». A outra questão prende-se com a utilização de animais na manutenção de práticas sexuais. Ao contrário de outros países, Portugal ainda não pune de forma expressa tais comportamentos, afigurando-se que apenas poderão ser punidos no âmbito desta norma quando inflijam dor, sofrimento ou outras formas de maus tratos físicos ao animal” (cfr. RAUL FARIAS, “Dos crimes contra animais de companhia – Breves notas”, in MARIA LUÍSA DUARTE/CARLA AMADO GOMES (coord.), Animais: Deveres e Direitos, Lisboa, 2015, p. 145).
Tantas são as dúvidas que suscita a atual tutela jurídico-penal do bem-estar dos animais de companhia que é legítimo perguntar: se é duvidoso, para autores que se dedicam a estas matérias específicas e com formação jurídica, o que deve (ou não) constituir um “motivo legítimo” e o que cai (ou não) no âmbito desta fattispecie, questionando-se se abrange (ou não ou até, previamente, se existe esse dever) o dever de correcção do animal (e também o seu treino e os castigos a que pode ser sujeito nesse âmbito ou até na sua própria vida diária) e a segunda prática mencionada, com ampla tradição histórica (que se manterá, aparentemente, actualmente) e já punida, por exemplo, nas várias Ordenações portuguesas, comummente designada de bestialidade (onde, em Espanha e Portugal, o animal, na expressão constante das Ordenações, “a alimária”, era queimado juntamente com o homem que praticava esse crime), não se vê como o destinatário ‘comum’ desta norma – o vulgarmente designado bonus pater familias – pode ‘ler’ esta norma e saber, sem mais, quando poderá (ou não), v.g., infligir dor ou sofrimento (pressupondo que são algo de diverso no âmbito deste crime) a um animal sem cometer este crime (e até, desde logo, saber o que é – ou não – um animal de companhia), sendo antes indeterminável o conteúdo e, consequentemente, também o âmbito impositivo e punitivo resultante deste tipo penal.”
Ora, neste particular teremos de convir que alguma razão existe por parte do TC mas, e com o devido respeito, o que se questiona não é tanto a definição ou indefinição da Lei mas sim o pensar-se que a mesma é de tal modo fluída que não permite delimitar as condutas.
Ora, mais uma vez se diz com o respeito pela posição que fez vencimento neste aresto, que no nosso caso é tão flagrante a definição da conduta que ter-se-á, sem mais de enquadrar no tipo.
Os arguidos iam deixar os cães morrer à fome !!!
Não estamos a falar em cortar as orelhas para fazer o cão bonito, não falamos em treino de canídeos. Estamos a falar em dar comida a animais e em tratar das suas mazelas e em vacinar e desparasitar os mesmos.
Em suma: o tipo não é inconstitucional atenta a conduta em causa nestes autos a qual é definida e clara. Na verdade, o argumento da indefinição da conduta é tão válido para este crime como o era para o crime de maus tratos (entre pessoas) e o é para o crime de violência doméstica. O preenchimento de conceitos como dor, sofrimento e outros sempre foi o labor dos Tribunais e o apanágio da jurisprudência a qual tem densificado conceitos e aprimorado posturas e assim contribuindo para o avanço civilizacional.
Regressando ao caso concreto.
Mostrando-se preenchido o tipo cumpriria agora definir a medida da pena.
Ora, neste particular a sentença recorrida é absolutamente despida de factos. Aliás, o Mmº Juiz fez mesmo constar na decisão que, ante a absolvição que se anunciava, não iria deixar consignados nenhuns factos relativos às condições sócio-económicas dos arguidos.
Fez mal. A cautela ditaria que tais factos fossem incluídos na sentença pois que, se assim tivesse sido, não teria este Tribunal de ordenar a baixa dos autos à 1ª instância para que se suprisse a falta e se decidisse a medida da pena.
Contudo, é o que se impõe.
*
Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar provido o recurso interposto e, consequentemente:
a) Alterar a factualidade provada e não provada nos termos sobreditos;
b) Declarar que os arguidos cometeram, por via de tais factos, em co-autoria material, três crimes de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo artigo 387.º, nº3 do Código Penal;
c) Determinar, nos termos do disposto no artº 426º e 426º-A, ambos do C.P.P., o reenvio parcial para que o Tribunal a quo, composto pela mesma juíz, obtidos que sejam os elementos necessários a conhecer as condições sócio-económicas dos arguidos, profira nova decisão relativa à medida das penas (singulares e única)
d) Sem custas por não serem devidas.
Notifique.

Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pelos Venerandos Desembargadores Adjuntos.

Lisboa e Tribunal da Relação, 27 de Setembro de 2023
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Cristina de Almeida e Sousa
Francisco Henriques
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[1] Em face dos factos não provados a matéria relativa às condições pessoais e económicas dos arguidos deixou de assumir relevância para a decisão por isso não foi levada à fundamentação.
[2] A referência a uma ferida profunda e sinais de lesão antiga foi excluída da fundamentação porquanto se considerou conclusiva.