Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
709/19.5T8LSB-A.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: CABEÇALATO
OBRIGAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
HABILITAÇÃO
SUJEITOS PROCESSUAIS
CONFUSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I– A obrigação de prestar contas tem carácter patrimonial e por isso é susceptível de transmissão para os herdeiros do cabeça-de-casal.

II– Sendo herdeiros da falecida cabeça-de-casal ré na acção de prestação de contas a própria autora e os dois requeridos no incidente de habilitação de sucessores da ré, não poderia a autora ser habilitada como sucessora por se verificar a figura jurídica da “confusão” e nem podem os requeridos ser habilitados desacompanhados da autora, pois são os três, em conjunto, os sucessores dessa obrigação de prestar contas.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–Relatório:


Por apenso à acção de prestação de contas instaurada em 11/01/2019 por C… contra I… na qualidade de cabeça-de-casal da herança deixada por óbito do seu marido V.., veio aquela deduzir incidente de habilitação dos sucessores da ré por esta ter falecido na pendência da causa, requerendo:
«seja VM. declarado Réu, enquanto cabeça de casal da herança aberta da falecida I…, ou, subsidiariamente, que sejam declarados herdeiros da R. V… e P…, sendo a mesma representada, exclusivamente, por VM, enquanto cabeça de casal da referida herança.».

Alegou, em síntese:
- na referida acção foi declarada suspensa a instância por ter falecido a ré;
- em 01/08/2019 foi lavrada habilitação de herdeiros da ré, em que VM... se declarou cabeça-de-casal da herança aberta por morte daquela e declarou como seus herdeiros o próprio declarante, a autora e P…;
- e no processo de inventário aberto por morte de V.. e da ré, VM... prestou declarações como cabeça de casal,
- pelo que é herdeiro e cabeça-de-casal da herança aberta por morte da ré;
- a obrigação de prestar contas é transmissível por via hereditária,
- e por isso, o requerido V... deve ocupar a posição processual da ré;
- o requerido P…, que é irmão da requerente,
- também é herdeiro da ré, e por isso, tem legitimidade passiva por imperativo legal, motivo exclusivo pelo qual este incidente é deduzido também contra si,
-pese embora apenas o requerido V… deva, enquanto cabeça-de-casal da herança aberta por óbito da ré, ser habilitado «no mesmo âmbito» (sic).
*

Citados os requeridos, apenas contestou VM…, terminando assim o articulado:
«devem improceder os pedidos formulados pela requerente, declarando-se extinta a instância nos termos dos artigos 269º, nº 3 e 277º al e) do CPC».

Alegou, em resumo:
- o cargo de cabeça-de-casal é intransmissível por morte,
- extinguindo-se todas as obrigações de natureza pessoa ou patrimonial inerentes a essa qualidade;
- o requerido nem sequer é parte na acção, o que é causa de ilegitimidade activa, como ali foi arguido pela ré na contestação, e nem foi requerida a sua intervenção antes de a lide se ter tornado impossível pela morte daquela;
- atentas as regras da legitimidade na acção de prestação e contas, o requerido só poderia ocupar a posição processual do autor em litisconsórcio com os restantes credores da obrigação de prestação de contas.
*

Foi depois proferida sentença em que se lê, além do mais:
«(…)
Para a decisão do incidente, encontram-se provados os seguintes factos:
1.- A ré na ação principal I… deixou como herdeiros VM… e P….
*

Do Direito

A instância modifica-se quanto às pessoas em consequência da substituição de alguma das partes por sucessão na relação substantiva em litígio, cf. artigo 262.º, alínea a) do Código do Processo Civil.
Na contestação, o requerido V…não impugna a sua qualidade de herdeiro da falecida – antes consigna que no processo principal o Tribunal deveria ter julgado extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, porquanto o exercício do cabeçalato é intransmissível por morte. Tratam-se de questões da ação principal.
Os requeridos são sucessores da falecida, atento o disposto nos artigos 2131.º, 2132.º, 2133.º, n.º 1, alínea a), 2137.º e 2139.º, todos do Código Civil.
Assim, a relação substantiva em litígio transmitiu-se aos requeridos, por sucessão.
Em consequência, os requeridos devem ocupar a posição processual que pertencia à falecida, cf. artigo 262.º, alínea a) do Código do Processo Civil.
***

Dispositivo:
Atento o supra exposto, declara-se procedente o incidente e julgam-se habilitados os requeridos como sucessores da falecida ré, admitindo-os a prosseguir na ação principal, como seus substitutos, para todos os efeitos legais.
(…)».
*

Inconformado, apelou o requerido V…, terminando a alegação com as seguintes conclusões:

1-O Recorrente, na oposição à pretensão deduzida no incidente de habitação, alegou expressamente que, sendo o cabecelato intransmissível por morte e a obrigação de prestar contas inerente condição de cabeça-de-casal, com o falecimento da R. na acção ocorreu impossibilidade de prosseguimento da lide, devendo o Tribunal a quo declarar extinta a instância ao abrigo dos artigos 269.º n.º 3 e 277.º al. e) do CPC.
2-Sobre as razões da oposição da aqui Recorrente a sentença sub judice regista, unicamente, que “tratam-se de questões da ação principal” sem mais nada revelar.
3-Ao omitir pronunciamento devido sobre questão que obsta ao prosseguimento da lide, de conhecimento oficioso todavia expressamente invocado pelo ora Recorrente, a sentença é nula atento o disposto no artigo 615.º n.º 1 al.s b) e d) do CPC.
4-A douta sentença recorrida incorre em erro de julgamento ao habilitar o requerido, aqui Recorrente, como sucessor da falecida Ré, admitindo-o a prosseguir na acção principal, como seu substituto, para todos os efeitos legais.
5-Como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no Ac. de 29/11/2005 – Proc. n.º 05B3342, “sendo intransmissível o cargo de cabeça de casal, por morte deste extinguem-se também as relações jurídicas atinentes à administração da herança” (consultável em www.dgsi.pt).
6-Atento o disposto no artigo 30.º do Código de Processo Civil, estando o recorrido, que nem sequer foi chamado à acção, na mesma situação jurídica da A., isto é, sendo como ela credor da prestação de contas, só poderia ocupar a posição processual de Autor e nunca a de Réu, posição em que absurdamente o coloca a sentença recorrida.
7-À mesma conclusão se chega se se atender a que a qualidade de cabeça de casal da R., a entretanto falecida I.., deriva do facto de ser, à data, cônjuge sobrevivo do de cujus (artigo 2080.º, n.º 1 al. a) do Código Civil), assumindo por essa via obrigação de natureza pessoal, inerente à qualidade de administradora da herança, insusceptível, pois, de transmissão no plano do direito substantivo.
8-A intransmissibilidade da condição jurídica de cabeça de casal da R. no plano do direito substantivo torna juridicamente inválida a modificação da instância no plano adjectivo declarada na sentença aqui censurada.
9-A douta sentença recorrida faz, pois, errada aplicação do disposto, inter alia, nos artigos 30.º, 269.º n.º 3 e 277.º al. e) do CPC, bem como dos artigos 2079.º, 2080, n.º 1 al. a), 2087.º n.º 1 e 2093.º do Código Civil.
10-O dever do Tribunal a quo declarar extinta a acção e, consequentemente, inútil o incidente, não sofre qualquer limitação pelo facto de ter sido anteriormente exarado despacho determinando a suspensão da instância porquanto o erro não se emenda com outro erro.
11-Com efeito, como se decidiu no Ac. do STJ de 29/11/2005, proferido no Proc. n.º 05B3242 (consultável em www.dgsi.pt) “tendo a ação sido declarada suspensa, em face da função da certidão de óbito da R., nada impede que o respetivo despacho seja substituído por outro a determinar a extinção da instância”.
12-Razões pelas quais, e pelas que, faltando, merecerão o sábio suprimento de Vossas Excelências, deve a sentença recorrida ser revogada, determinando-se em sua substituição a extinção da instância, com as inerentes consequências, como é de justiça.
*

Não há contra-alegação.
*

No despacho que admitiu o recurso, a 1ª instância exarou: «Salvo melhor opinião, inexiste qualquer nulidade da sentença.».
*

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II–Questões a decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são:
-se a sentença recorrida é nula
-se a obrigação de prestar contas pela cabeça-de-casal é intransmissível por sua morte
-se deve ser declarada extinta a instância
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III–Fundamentação

A)-Está provado (acordo das partes e documentos):
1–V… faleceu em 01/11/2015 no estado de casado com I….
2–I…, VM… C… e P… são herdeiros de V…, estes dois últimos por direito de representação da sua mãe pré-falecida, M….
3–I… era a cabeça-de-casal da herança deixada por V….
4–A cabeça de casal I…faleceu em 23/06/2019.
5–No Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros nº 27285/2019 de I… (da Conservatória do Registo Civil de Lisboa) foi declarado pelo ora apelante VM.., que é cabeça de casal da herança da falecida I..,
6–e que os únicos herdeiros de I…são o seu filho declarante VM… e os seus netos C… e P…, estes dois últimos por direito de representação da sua mãe pré-falecida.

7–Na acção principal foi proferido o seguinte despacho em 10/10/2019:
«Considerando o assento de óbito que antecede, comprovativa do falecimento da ré, declara-se a suspensão da instância, cf. artigo 269.º, n.º 1, alínea a) do Código do Processo Civil.
Notifique-se, sendo a autora com a menção de que o processo aguarda pela dedução do incidente de habilitação de herdeiros da falecida, considerando-se a instância deserta, por negligência da sua parte, no prazo de 6 meses, conforme dispõe o artigo 281.º, n.º 1, e n.º 3, do Código do Processo Civil.».
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B)–O Direito
1.-Da alegada nulidade da sentença recorrida nos termos do art. 615º nº 1 al. b) e d) do Código de Processo Civil
Sustenta o apelante que a 1ª instância omitiu pronúncia sobre as questões por si suscitadas de o cabecelato ser intransmissível por morte e de, por isso, dever ser declarada a extinção da instância da acção de prestação de contas por impossibilidade superveniente da lide devido ao falecimento da ré cabeça de casal, limitando-se a consignar que “tratam-se de questões da ação principal”.
Mas, embora deficientemente fundamentada, a decisão recorrida pronunciou-se sobre essas questões ao manifestar o entendimento de que devem ser conhecidas na acção principal.
Se concluirmos que esse entendimento está incorrecto, será caso de revogar a sentença e não de a declarar nula.
Improcede pois, a arguição de nulidade.
*

2.-Se a obrigação de prestar contas pela cabeça-de-casal é intransmissível por sua morte
O art. 2095º do CC (Código Civil) estabelece:
«O cargo de cabeça-de-casal não é transmissível em vida nem em morte».
Mas daí não decorre a impossibilidade legal de transmissão da obrigação da cabeça-de-casal de prestar contas, pelo que não acompanhamos o entendimento plasmado no Ac do STJ de 29/11/2005 (P. 05B3342 - in www.dgsi.pt) citado pelo apelante.
Na verdade, como se expôs no Ac do STJ de 16/06/2011 (P. 371/05.0TVLSB.L1 - in www.dgsi.pt) «uma coisa é a intransmissibilidade do cargo do cabeça-de-casal e outra bem diferente é a própria obrigação de prestar contas por quem administra património alheio», e «Traduzindo-se a obrigação de prestar contas essencialmente no apuramento de receitas obtidas e despesas realizadas por quem administra bens alheios, com vista a apurar-se um saldo final», trata-se de obrigação de carácter patrimonial e por isso, susceptível de transmissão para os herdeiros do cabeça-de-casal (no mesmo sentido, cfr Ac do STJ de 22/03/2018 - P. 861/08.5TBBCL-E.G1.S1, e Ac da RG de 15/10/2013 - P. 3257/09.5TBBRG-A.G1, e Ac da RC de 28/06/2016 - P. 996/05.6TBACB-B.C1, designadamente, todos em www.dgsi.pt). Também neste sentido se pronunciou João António Lopes Cardoso, escrevendo que essa obrigação «é transmissível via hereditária (ibidem, art. 2025º-1), incumbindo, pois, aos herdeiros do cabeça-de-casal que dela se não desobrigou» (in Partilhas Judiciais, Vol. III, pág. 57).

Concluindo, a obrigação de prestação de contas da ré I… tem natureza patrimonial e não se extinguiu por mero efeito da sua morte, pelo que, em abstracto, é susceptível de transmissão para os seus herdeiros.

Resulta dos art. 269º nº 1 al a), 270º nº 1 e 276º nº 1 al. a) do CPC que a instância se suspende com o falecimento de uma das partes e que a suspensão apenas cessa com a notificação da decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida.

E o nº 1 do art. 351º desse Código estatui:
«A habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que sobreviverem como por qualquer dos sucessores e deve ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes».

Sobre norma idêntica do CPC anterior (nº 1 do art. 371) explicou Lopes Cardoso:
«Vê-se que a legitimidade passiva para o incidente de habilitação coincide com a legitimidade activa, na medida em que tal incidente deve ser dirigido precisamente contra aqueles que também o podiam ter requerido. Mas não o requereram.
Enquanto, porém, a legitimidade activa não depende de todos os que podiam requerer a habilitação, a legitimidade passiva exige um litisconsórcio necessário de todos quantos a podiam requerer e não a requereram. A habilitação não produziria efeito útil se não fossem chamados todos a contestá-la.
O imperativo «deve ser promovida», além de estabelecer esse litisconsórcio necessário, impõe ao requerente o dever de, no requerimento inicial, apontar expressamente todos os interessados que a disposição menciona e solicitar a citação ou notificação deles. O juiz não pode substituir-se ao requerente; não pode mandar notificar ou citar os interessados que o mesmo requerente não indique.
Não se ter promovido a habilitação contra algum dos interessados referidos no nº 1 do artigo 371º implica a ilegitimidade dos outros.
O requerimento inicial da habilitação que não seja dirigida contra todos deve ser indeferido liminarmente (…)
Caso o requerimento incompleto passe, por inadvertência, a fieira do despacho liminar, e a habilitação prossiga apenas contra algum dos interessados que a poderiam contestar, a ilegitimidade destes, por desacompanhados, terá de ser declarada na sentença final, impedindo a procedência do incidente» (in Incidentes da Instância, pág. 302/303)

Mas no caso concreto os herdeiros da falecida cabeça-de-casal são a própria autora da acção de prestação de contas e os requeridos - o seu irmão P.. (por direito de representação da sua mãe pré-falecida, que era filha da cabeça-de-casal e do de cujus V…) e o seu tio VM… (filho da cabeça-de-casal e de V...).

Portanto, tanto a requerente como os requeridos sucederam na obrigação de prestação de contas da ré cabeça-de-casal.

Porém, a requerente é a autora na acção principal, pelo que é evidente estar verificada a figura jurídica da «confusão» prevista no art. 868º do CC, nos termos da qual «Quando na mesma pessoa se reúnam as qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, extinguem-se o crédito e a dívida».

Assim, por imperativo legal, não poderia a requerente ser habilitada como sucessora da ré cabeça-de-casal para com ela no lado passivo prosseguir a demanda, mesmo que o tivesse requerido.

Por seu lado, os requeridos não podem ser habilitados como sucessores da ré cabeça-de-casal para com eles no lado passivo prosseguir a acção, desacompanhados da outra herdeira, pois são os três em conjunto os sucessores da obrigação de prestar contas da administração dos bens pela falecida I….

Portanto, o incidente de habilitação tem de improceder.
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3.–Se deve ser declarada neste apenso a extinção da instância na acção principal de prestação de contas
O presente incidente de habilitação de sucessores da parte falecida na pendência da causa mostra-se autuado por apenso por imposição do disposto no nº 2 do art. 352º do CPC. Assim, não sendo o incidente processado nos próprios autos da causa principal (diversamente do que sucede nos casos previstos o nº 1 do art. 353º), não tem fundamento legal a pretensão de que seja aqui decidido se a instância naquela acção deve ser ou não julgada extinta por impossibilidade superveniente da lide por força do disposto no art. 287º al. e) do CPC.
*

IV–Decisão

Pelo exposto, procede parcialmente procedente a apelação, e em consequência julga-se improcedente o incidente de habilitação de herdeiros, absolvendo-se do peticionado os requeridos (….).
Custas pelo apelante e pela apelada na proporção de ½ para cada.



Lisboa, 17 de Junho de 2021



Anabela Calafate
António Manuel Fernandes dos Santos
Ana de Azeredo Coelho