Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
24272/18.5T8LSB.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: SOCIEDADE ANÓNIMA DESPORTIVA (SAD)
AÇÕES ESCRITURAIS
TRANSMISSÃO FORA DE BOLSA
FORMA LEGAL
ALIENAÇÃO POR CLUBE FUNDADOR
CONSTITUIÇÃO DUMA NOVA EQUIPA DE FUTEBOL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A divulgação noticiosa de um facto através da comunicação social jornalística, só por si, não converte esse evento em “facto notório”, nos termos do Art. 412.º do C.P.C., por não constituir a prova de que esse facto efetivamente ocorreu, nem que o mesmo seja do conhecimento do público em geral.
2. A transmissão de ações escriturais (portanto, “não tituladas”) fora de bolsa, não está dependente dos requisitos formais do Art. 102.º do CVM, bastando o seu registo a crédito na conta do adquirente (cfr. Art. 80.º n.º 1 do CVM).
3. O negócio jurídico subjacente à transmissão das ações nominativas escriturais não está sujeito a forma legal, podendo ser provado por qualquer meio, como por exemplo pelas cartas, assinadas por comprador e vendedor, a comunicar à CMVM e à sociedade a que se referem as ações, de que a compra e venda ocorreu, em cumprimento da obrigação estabelecida no Art. 16.º do Código dos Valores Mobiliários (CVM);
4. Considerando o elemento histórico da interpretação, o Art. 23.º n.º 1 do Regime Jurídico das Sociedades Desportivas (RSD), aprovado pelo Dec.Lei n.º 10/2013 de 25 de janeiro, que consagra a mesma regra do Art. 30.º do revogado Dec.Lei n.º 69/97 de 3 de abril, não proíbe que o clube fundador da Sociedade Anónima Desportiva, criada por personalização da sua equipa de futebol, possa alinear a totalidade das ações de que é titular na SAD, porquanto a lei deixou de estabelecer que o limite mínimo, atualmente de 10%, de participação no capital social deveria ser respeitado “a todo o tempo”.
5. Considerando o elemento sistemático de interpretação, o Art. 23.º n.º 1 do RSD insere-se na Secção II, Capítulo IV, cuja epígrafe é “Direitos especiais e Desportivos”, o que traduz a ideia de que se trata de norma atributiva de um direito ao clube fundador, tendo em vista a proteção e tutela dos seus interesses, e não a imposição duma ligação perpétua do clube fundador à SAD que fundou.
6. Considerando o elemento teleológico, o Art. 23.º n.º 1 do RSD visou o estabelecimento do equilíbrio entre a promoção da captação de investimento pelos clubes e a proteção da posição e dos interesses do clube fundador perante os demais acionistas, possibilitando-lhe que não fosse descartado o seu interesse em decisões reputadas como mais relevantes (v.g. Art. 23.º n.º 2 al. a) do RSD) e de poder exercer influência decisiva na gestão, através da designação de administrador e da atribuição de um direito de veto em determinadas deliberações.
7. Se o legislador quisesse que os 10% fossem absolutamente intransmissíveis, tê-lo-ia dito no Art. 14.º, onde se regula a “Proibição e limites à transmissão de participações sociais”, sendo que aí se estabeleceu precisamente a regra contrária de que: «As ações das sociedades anónimas desportivas não podem ser objeto de limitações à respetiva transmissibilidade» (v.g. Art. 14.º n.º 2 do RSD).
8. Uma sociedade desportiva não precisa, para ser constituída e existir como tal, de um clube fundador.
9. O clube de futebol não pode estar sujeito à imposição de um vínculo jurídico perpétuo contra a sua vontade, sendo por isso que é proibida qualquer limitação à transmissibilidade das ações no Art. 14.º n.º 2 do RSD.
10. Tendo o clube fundador alienado a totalidade das ações de que era titular na SAD que fundou por personalização da sua equipa de futebol (cfr. Art. 3.º al. c) do RSD), porque perde todos os benefícios legais estabelecidos a seu favor, não fica já sujeito a qualquer limitação legal que lhe imponha a impossibilidade de constituição duma nova equipa de futebol, posto que os elementos que levaram à personalização da sua equipa anterior, foram definitivamente transferidos para a SAD (v.g. Art. 24.º do RSD).
11. Nos termos do Art. 4.º n.º 2 do RSD vigente, o clube pode participar em competições profissionais com essa nova equipa, mas para esse efeito terá de constituir uma Sociedade Desportiva, até para poder satisfazer os requisitos do “Regulamento de Competições” da Liga Portugal (v.g. do seu Art. 9.º n.º 1).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
“Os Belenenses”, Sociedade Desportiva de Futebol, S.A.D. propôs a presente ação de simples declaração e de condenação, em processo declarativo comum, contra o Clube de Futebol “Os Belenenses”, pedindo para se:
a) Declarar que o R. Clube de Futebol “Os Belenenses” é o Clube Fundador da A.;
b) Declarar que a A. é a sociedade desportiva da modalidade de futebol do R. Clube de Futebol “Os Belenenses”;
c) Declarar que a A. foi constituída pela personalização da equipa de futebol do Belenenses;
d) Declarar que o R. só pode participar nas competições profissionais de futebol através de uma sociedade desportiva de futebol e que, para tal participação, o R. já constituiu a sociedade desportiva de futebol ora A., estando impedido de constituir uma nova sociedade desportiva de futebol;
e) Declarar que a A. tem o direito de usar os símbolos do R., desde o seu emblema ao seu equipamento;
f) Declarar que integram o palmarés da A.:
- Ter vencido o campeonato nacional de futebol, então designado por Campeonato da Liga da Primeira Divisão, atualmente designado por I Liga e também por Liga NOS, na época desportiva de 1945/46;
- Ter vencido o Campeonato de Portugal de futebol nas épocas de 1926/1927, 1928/1929 e 1932/1933;
- Ter vencido a Taça de Portugal de futebol nas épocas desportivas de 1941/1942, 1959/1960 e 1988/1989;
- Ter vencido a Taça de Honra da Associação de Futebol de Lisboa nas épocas de 1925/1926, 1928/1929, 1929/1930, 1931/1932, 1943/1944, 1945/1946, 1959/1960, 1960/1961, 1969/1970, 1975/1976, 1989/1990 e 1993/1994;
- Ter inaugurado, em 14 de dezembro de 1947, o Estádio Santiago Bernabéu, num jogo com o Real Madrid FC, a convite deste;
- Ao longo da sua história, ter tido jogadores como Matateu, Vicente, José Pereira, Pepe, Yaúca, Di Pace, Scopelli, Artur Quaresma, Raúl Figueiredo, Capela, Feliciano, Vasco, Godinho, Vasques, Félix Mourinho, João Cardoso, Pietra, Paco Gonzalez, Mladenov, Juanico, José Mário, Sobrinho, Jorge Martins e Silas;
- Ao longo da sua história, ter tido treinadores como Cândido de Oliveira, Fernando Vaz, José Maria Pedroto, Mário Wilson, Jorge Jesus, Marinho Peres, Artur Jorge, Carlos Queirós, Fernando Riera, Helenio Herrera e Otto Glória;
g) Condenar o R. a abster-se de, em qualquer momento ou por qualquer modo, declarar que o R. poderá vir a disputar qualquer competição profissional de futebol, nomeadamente a I ou II Ligas, sem ser através da A. enquanto sua sociedade desportiva de futebol;
h) Condenar o R. Clube de Futebol “Os Belenenses” a, em todos os meios e suportes, designadamente no seu sítio na internet, quaisquer publicações ou declarações, nomeadamente nas redes sociais Facebook, Twitter, Instagram ou outras, em que se arrogue qualquer dos seguintes aspetos:
- ter vencido o campeonato nacional de futebol, então designado por Campeonato da Liga da Primeira Divisão, atualmente designado por I Liga e também por Liga NOS, na época desportiva de 1945/46;
- ter vencido o Campeonato de Portugal de futebol nas épocas de 1926/1927, 1928/1929 e 1932/1933;
- ter vencido a Taça de Portugal de futebol nas épocas desportivas de 1941/1942, 1959/1960 ou 1988/1989;
- ter vencido a Taça de Honra da Associação de Futebol de Lisboa nas épocas de 1925/1926, 1928/1929, 1929/1930, 1931/1932, 1943/1944, 1945/1946, 1959/1960, 1960/1961, 1969/1970, 1975/1976, 1989/1990 ou 1993/1994;
- ter inaugurado o Estádio Santiago Bernabéu, num jogo com o Real Madrid FC, a convite deste;
- ter tido como jogadores de futebol Matateu, Vicente, José Pereira, Pepe, Yaúca, Di Pace, Scopelli, Artur Quaresma, Raúl Figueiredo, Capela, Feliciano, Vasco, Godinho, Vasques, Félix Mourinho, João Cardoso, Pietra, Paco Gonzalez, Mladenov, Juanico, José Mário, Sobrinho, Jorge Martins ou Silas;
- ter tido como treinadores Cândido de Oliveira, Fernando Vaz, José Maria Pedroto, Mário Wilson, Jorge Jesus, Marinho Peres, Artur Jorge, Carlos Queirós, Fernando Riera, Helenio Herrera ou Otto Glória;
Declare nesse mesmo meio ou suporte, com o mesmo relevo e apresentação da declaração de uma só vez, sem interpolações nem interrupções, que tal ocorreu na qualidade de Clube Fundador da A., identificando esta pela sua firma completa;
i) Condenar o R. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de valor não inferior a €1.000 por cada dia de cada violação das condenações referidas nas alíneas g) e h).
Para tal alegou, em síntese, que a A. é a histórica equipa de futebol do Belenenses, sendo o R. o centro insubstituível da identidade da A., já que é o seu Clube Fundador e esta a sua equipa de futebol profissional. A relação entre ambas as entidades é regulada pelo Regime Jurídico das Sociedades Desportivas e tem natureza incindível e tendencialmente perpétua. Porém, desde há alguns anos que o R. tem vindo a praticar atos prejudiciais à equipa de futebol da A. e a assumir uma estratégia que visa a separação das duas entidades, violando aquele regime jurídico, de que se destaca o facto de ter fundado uma equipa de futebol sénior que milita no Campeonato Distrital da Primeira Divisão da Associação de Futebol de Lisboa, afirmando ser esta a legítima e única representante do Belenenses.
O R., citado, na sua contestação, para além de invocar as exceções de incompetência absoluta e, subsidiariamente de litispendência, aceitou alguma da factualidade invocada e alegou, em síntese que sempre manteve, ininterruptamente, a sua atividade no futebol de formação e no futebol sénior até 1999, data em que constituiu e assumiu uma posição de controlo na A. e transferiu para esta um conjunto de ativos e passivos inventariados e avaliados. A partir de 30/06/2018, data em que operou a cessação do Protocolo de Repartição de Direitos e Obrigações (celebrado em Dezembro de 2012), a A. deixou de ter a sua atividade associada à atividade do R. e deixou de representar, entre outras realidades, a história, os valores, os símbolos, a marca e o nome do R. tendo, por essa razão, na época de 2018/2019, regressado ao futebol sénior, inscrevendo-se no Campeonato da 1ª Divisão Distrital da Associação de Futebol de Lisboa. Por sua vez, a A., porque deixou de ter a sua atividade associada à atividade do R., deixou também de ter a sua atividade confinada ao futebol sénior e, mesmo sem suporte no seu objeto social, estendeu-a ao futebol de formação, passando a concorrer diretamente com este nas atividades que o mesmo manteve ininterruptamente. O R. poderá constituir ou participar numa nova sociedade desportiva de futebol quando deixar de deter uma participação igual ou superior a 10% do capital social da A.. Os jogadores (com exceção de Silas) e os treinadores (com exceção de Jorge Jesus) enunciados pela A. não foram jogadores e treinadores da A. mas, sim, do R. e foi este, e não a A., quem ganhou os títulos, alcançou as vitórias e participou nos jogos enunciados pela A.. Terminou, concluindo pela sua absolvição do pedido, devendo ser declarada a incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, para conhecer e julgar os pedidos formulados pela A. nas alíneas e), f), h) e i) [esta última, na parte que se reporta à alínea h)] ou, subsidiariamente, a litispendência quanto a tais pedidos com o processo que corre os seus termos no 1.º Juízo do Tribunal da Propriedade Intelectual da Comarca de Lisboa, procedimento cautelar n.º 215/18.5 YHLSB.
A A. exerceu o direito de resposta, quanto às exceções dilatórias de incompetência relativa do tribunal e de litispendência, deduzidas na contestação.
Findos os articulados, veio a ser realizada audiência prévia, com saneamento do processo, tendo aí sido julgada por procedente a exceção de incompetência do tribunal, em razão da matéria, para apreciar o mérito dos pedidos formulados pela A. sob as alíneas e), f), h) e i) [neste caso, por referência à alínea h)] da petição inicial, ficando prejudicada, em consequência, a apreciação da exceção de litispendência. Após, prosseguindo a instância quanto aos demais pedidos, foi enunciado o objeto do litígio, fixados os factos assentes e os temas da prova, admitindo-se os requerimentos probatórios e designada audiência final.
O R. veio a apresentar articulado superveniente, em momento ainda anterior à realização da audiência final, o qual, liminarmente admitido, foi objeto do devido contraditório, nos termos e para os efeitos do Art. 588.º n.ºs 4 e 5 do C.P.C..
Realizada a audiência final, com produção da prova e discussão da causa, veio a ser proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente por provada, declarando que a A. foi constituída pela personalização jurídica da equipa de futebol do R., mas absolvendo o R. de todos os demais pedidos formulados na petição inicial.
É dessa sentença que a A. veio interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
1. Os factos 30 a 32 da sentença deviam ter sido julgados não provados;
2. Esses factos foram alegados pelo R. Apelado num articulado superveniente, admitido pelo Tribunal a quo por decisão impugnada pela Apelante em apelação autónoma; na presente data, essa apelação autónoma continua a aguardar decisão pelo Tribunal da Relação de Lisboa e a eventual procedência dessa apelação implicará a anulação da sentença recorrida;
3. A sentença previne a possibilidade de a Relação revogar o despacho que admitiu o articulado superveniente acrescentando três novos fundamentos para a integração desses factos no objeto desta ação, independentes da admissão do articulado superveniente, que tornariam inútil a futura decisão da Relação que revogue o despacho que admitiu o articulado superveniente;
4. Essas 3 fontes são as seguintes: (1) a Apelante tinha o ónus de questionar a peça processual em que o Apelado informou o Tribunal da ocorrência desses factos, e o próprio Tribunal tinha esse mesmo ónus, e nem a Apelante, nem o Tribunal a questionaram; (2) os factos em questão são notórios; (3) a Apelante revelou, em diversos pontos dos autos, que tem perfeito conhecimento desses factos;
5. Todavia, esta defesa estrénua, à outrance, pelo Tribunal a quo, do conhecimento desses factos neste processo ainda que a Relação venha a revogar o seu despacho que admitiu o articulado superveniente, levada ao ponto de o Tribunal a quo ter feito uma pesquisa na internet para tentar encontrar posições públicas da Apelante sobre os factos em questão, assim invocando um artigo do jornal Público não junto aos autos para o qual a sentença recorrida remete através de um link, incorre em múltiplos erros de direito;
6. Tendo o Apelado apresentado nos autos um requerimento em que declarou informar o Tribunal de certos factos, tal requerimento, não assumindo a forma de articulado superveniente (que o Apelado só veio a apresentar no processo quase um ano depois), não é meio idóneo para que se considerem validamente alegados esses factos;
7. Não se aceita, e nem sequer se compreende, o ónus que a sentença atribui à Apelante, e muito menos o ónus que atribui ao próprio Tribunal, (“não só estes factos já haviam sido trazidos aos autos em momento anterior, que nem o Tribunal, nem a Autora questionaram”) de questionar factos que tenham sido apresentados numa peça processual em que o Apelado disse vir informar o Tribunal de certos factos, e que não assumiu a forma de articulado, ónus esse que, não sendo cumprido, legitimaria a inclusão de factos no objeto do processo;
8. Só o caso julgado formal poderia limitar os poderes do Tribunal de julgar ou não julgar certos factos; ora, nestes autos não se formou caso julgado, uma vez que o Tribunal a quo não tomou qualquer posição sobre a peça processual informativa do Apelado de 17 de novembro de 2020, nomeadamente não proferiu qualquer decisão sobre os efeitos dessa peça no processo; a única vez que analisou essa peça processual foi a respeito da admissibilidade do articulado superveniente, e este despacho não formou caso julgado formal, uma vez que a Apelante dele recorreu em apelação autónoma.
9. Este entendimento da sentença viola o disposto no Art. 5º do CPC, e cria um ónus à parte contrária que não existe, por não haver qualquer regra processual que crie ónus, nomeadamente, de impugnação, em relação a peças em que uma das partes informe o Tribunal de algo;
10. E cria um ónus ao próprio Tribunal que muito menos existe, pois a única limitação aos poderes de cognição do Tribunal com alguma similitude é o caso julgado formal, e nestes autos o Tribunal a quo não proferiu qualquer despacho sobre a peça processual informativa, pelo que não estava vinculado pelo caso julgado formal a aceitar que esses factos integrassem o objeto do processo;
11. Ao qualificar os factos 30 a 32 como sendo factos notórios, a sentença recorrida incorre em erro manifesto, violando o disposto no art. 412º do CPC, pois esses factos não são, sob qualquer perspetiva razoável, factos notórios;
12. É apodítico e absolutamente cristalino, no que respeita aos factos 30 a 32 da sentença, (1) nem todos deles se aperceberam diretamente, como de uma guerra, um ciclone, um eclipse total, um terramoto, etc., e (2) nem todos deles se aperceberam mediante raciocínios formados sobre factos observados pela generalidade dos cidadãos;
13. Acresce que, sendo o facto principal a venda de ações nominativas, em relação aos quais os outros são secundários, complementares ou instrumentais, e estando esse negócio, por exigência do Art. 102º, n.º 1, do Código dos Valores Mobiliários, sujeito a forma ou formalidades especiais (declaração de transmissão nas ações e registo das ações a favor do adquirente), é de todo impossível que a observância dessa forma ou formalidade seja do conhecimento da generalidade dos cidadãos;
14. Não constitui fundamento para se poder integrar no objeto do processo um conjunto de factos, dispensando a sua alegação em articulado e, quiçá, a sua prova, que a parte contrária, no caso a Apelante, tenha “revelado, em diversos pontos dos autos, que deles tem perfeito conhecimento; destaca-se, aqui, a menção aos mesmos feita pela testemunha […], no depoimento que prestou em juízo, e a assunção pública, pela Autora, de que tal operação de venda é nula”;
15. Esta afirmação da sentença viola frontalmente o disposto no Art. 5º, n.º 1 e 2, do CPC, e viola até um património da ciência jurídica formado e densificado ao longo de décadas por estudos de insignes autores e por milhares de decisões dos tribunais, pela doutrina e pela jurisprudência;
16. A circunstância de uma parte na ação “revelar conhecer” certos factos não significa que esses factos possam integrar o objeto duma ação dispensando a sua alegação em articulado da causa e a sua prova;
17. Não tem qualquer tipo de cabimento que a circunstância de se apurar que uma das partes tomou conhecimento dum facto legitime que o pretenso facto comunicado seja integrado no objeto duma ação e dispense a sua alegação e prova nos termos da lei de processo civil;
18. Acresce que, no caso, não é sequer correto que a Apelante conheça os factos em causa, pois o que acontece, na realidade, é que se apurou que certos factos lhe foram comunicados; a sentença recorrida interpreta erradamente o depoimento testemunhal que menciona e o artigo de jornal cujo link o Tribunal a quo incluiu na sentença;
19. O que resulta do artigo do jornal Público que o Tribunal a quo pesquisou na Internet e para o qual a sentença recorrida remete, e do depoimento da testemunha que menciona, é que foi comunicada à Apelante a venda das ações e que esta, em face dessa comunicação, tomou uma posição sobre a validade da venda que lhe foi comunicada;
20. A Apelante recebeu uma comunicação da parte interessada declarando que tinha sido celebrada uma venda de ações e atuou – como tem o dever de atuar – de acordo com a informação que recebeu no que respeita à comunicação dessa informação ao mercado;
21. No âmbito do Art. 16º, n.º 1, a) do CVM, que cria o dever de informação, mas não de prova, as partes têm o dever de efetuar comunicações; sucede que o CVM não é o CPC, pelo que a comunicação de um facto ao abrigo do disposto nessa disposição legal do CVM não significa que esse facto possa ser integrado no objeto duma ação civil, não dispensa a sua alegação em articulado da causa, e muito menos significa que o facto comunicado se deva considerar provado;
22. A sentença recorrida confunde o conhecimento pela Apelante de uma declaração do Apelado de que vendeu ações, com o conhecimento do facto de que o Apelante vendeu ações; confunde o facto de ser comunicado à Apelante que terceiros celebraram um contrato de vendas de ações, com a prova, extrajudicial ou extrajudicial, que no caso não existiu, de que foi celebrado um contrato de compra e venda de ações;
23. Por outras palavras, a sentença confunde a comunicação de factos, no exercício da liberdade de expressão do declarante, com a prova desses factos, e considera erradamente que basta a comunicação extrajudicial de factos a uma parte, e a tomada de posição desta parte sobre o que lhe foi comunicado, para os factos comunicados poderem integrar o objeto duma ação e serem analisados e julgados na sentença duma ação civil sem necessidade de alegação em articulado da causa;
24. Os meios de prova em que a sentença assenta o seu juízo de considerar provados os factos 30 a 32, os documentos e o depoimento da testemunha RC, não sustentam nem fundam, antes muito pelo contrário, o juízo de considerar provados esses factos;
25. As comunicações de venda, efetuadas nos termos previstos no CVM, não provam a venda das ações, apenas provam que foi comunicada a venda de ações;
26. Provam a declaração, não provam o facto declarado;
27. O que resulta do depoimento da testemunha, bem como do artigo do Público que o Tribunal a quo pesquisou na internet para fundamentar a sua defesa à outrance, é que o Apelado comunicou à Apelante que vendeu as suas ações; não resulta a prova de que o Apelado vendeu as suas ações;
28. Ora, o facto de alguém dizer que vendeu, ou que comprou, certas ações, ou certo imóvel, ou certo serviço de loiça não prova que tenha comprado ou vendido essas ações, esse imóvel ou esse serviço de loiça, mesmo que se trate duma declaração dirigida à sociedade emitente das ações ou à CMVM;
29. Sendo a Apelante uma Sociedade Anónima Desportiva, o seu capital está representado por ações nominativas (v. docs. 7 e 8 da p.i., escritura de constituição e certidão permanente da Apelante e Art. 10º, n.º 3, do Regime Jurídico das Sociedades Desportivas, o DL 10/2013, a LSD)
30. Nos termos do disposto no Art. 102º, n.º 1, do Código dos Valores Mobiliários (CVM) as ações tituladas nominativas transmitem-se por declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto do intermediário financeiro que o represente;
31. Assim, a prova da transmissão das ações implicaria a prova da declaração de transmissão das ações escrita no título, a favor do transmissário, seguida da prova de registo junto do emitente ou junto do intermediário financeiro;
32. Nestes autos, o Apelante nem fez prova (1) de que a declaração de transmissão foi efetuada; nem fez prova de que (2) as ações deixaram de estar registadas a seu favor e passaram a estar registadas a favor de terceiro;
33. O formulário da operação bancária de transferência da carteira de títulos junto aos autos pela Apelado nada prova;
34. Esse formulário bancário, preenchido não se sabe por quem, ordenando a transferência de ações para uma conta bancária que quem preencheu o formulário (desconhecendo-se quem foi) diz pertencer ao alegado transmissário das ações, não significa nem prova que as ações existissem na conta de origem (podiam estar em qualquer outra conta, nessa ou noutra entidade depositária);
35. Não significa nem prova que a conta de destino seja uma conta do alegado transmissário;
36. Não significa nem prova que as ações tenham sido efetivamente transferidas de uma conta para a outra conta;
37. Com base na análise e ponderação dos documentos, no depoimento da testemunha identificado e transcrito na narração desta alegação, na ausência de prova de que a venda das ações tenha sido inscrita nas ações e na ausência de prova de que as ações deixaram de estar registadas a favor do Apelando e passaram a estar registadas a favor de terceiro, a sentença recorrida deveria ter julgado não provados os factos 30 a 32;
38. Sendo os factos 31 e 32 meramente complementares ou instrumentais do facto 30, não tendo relevância autónoma de per si, não devem ser considerados provados, e de todo o modo, por si só, são irrelevantes para a boa decisão da causa;
39. Em decorrência necessária da eliminação dos factos 30 a 32 da sentença, da qual resulta que não ocorreu qualquer ato de transmissão das ações, deve alterar-se, concomitantemente, a redação do facto 15, passando este a ter a seguinte redação: “o Réu detém 101.153 ações da categoria A do capital da Autora, correspondentes a um pouco mais de 10% do capital desta”.
40. Toda a fundamentação de direito da sentença assenta em que, com a transmissão das suas ações no capital da Apelante a um terceiro, o Apelado deixou de ser o clube fundador da Apelante;
41. Ora, do que anteriormente se expôs resulta que essa factualidade não integra o objeto do processo, por se não ter provado;
42. Tanto basta para que procedam os pedidos a) e b) formulados na p.i., ou seja: a) declarar que o Réu é o Clube Fundador da Autora; b) declarar que a Autora é a sociedade desportiva da modalidade de futebol do Réu.
43. É que não se provou qualquer facto, qualquer meio de defesa que ponha em causa este pedido;
44. Provaram-se todos os factos constitutivos do facto ou direito invocado pela Apelante, máxime os seguintes: (1) A Autora é uma sociedade anónima desportiva cujo objeto consiste na participação em competições profissionais de futebol, promoção e organização de espetáculos desportivos e o fomento ou desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática desportiva profissionalizada da modalidade de futebol; (6) A Autora foi constituída por escritura pública de 18.11.1999 através da personalização jurídica da equipa de futebol do Réu; (15) o Réu detém 101.153 ações da categoria A do capital da Autora, correspondentes a um pouco mais de 10% do capital desta;
45. Como tal, o Apelado é o clube fundador da Apelante, nos termos do disposto na LSD, nomeadamente dos seus Art.s 3º, c), 10º, n.º 1, a), 22º e 23º, e a Apelante é a sociedade desportiva de futebol do Apelado, devendo julgar-se procedentes os pedidos a) e b), por se encontrarem provados todos os seus factos constitutivos;
46. Subsidiariamente: prevenindo a hipótese de se não revogar a decisão de considerar provados os factos 30 a 32 da sentença recorrida, ou seja, se se entender que se provou que o Apelado vendeu a terceiro as suas ações representativas do capital social da Apelante, certo é que essa venda é manifestamente nula, nos termos do disposto nos Art.s 280º e 294º do CC, pelo que não produz efeitos;
47. O artigo 23.º, n.º 1, do DL 10/2013 (a LSD) dispõe o seguinte: “Nos casos referidos na alínea c) do artigo 3.º, a participação direta do clube fundador na sociedade anónima desportiva não pode ser inferior a 10 % do capital social”, e já o Art. 30º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 67/97, de 3 de abril, dispunha o seguinte: “No caso referido na alínea b) do artigo 3.º, a participação direta do clube fundador no capital social não poderá ser, a todo o tempo, inferior a 15% nem superior a 40% do respetivo montante”;
48. É claro e inequívoco que lei expressa dispõe que, nas SAD constituídas pela personalização jurídica de uma equipa que participe em competições desportivas, como é o caso da Apelante, o clube fundador, no caso o Apelado, não pode alienar livremente o patamar mínimo de 10% do capital da SAD que fundou;
49. Sendo essa venda um ato proibido por lei, é nula;
50. Por norma legal expressa, que é o Art. 10º da LSD, o clube fundador só pode onerar as suas ações na SAD que fundou a pessoas coletivas de direito público; mas, sustenta a sentença recorrida, o clube fundador pode vendê-las livremente a quem quiser;
51. Assim, segundo a sentença recorrida, o clube fundador está proibido por lei expressa de empenhar ou constituir usufruto sobre as suas ações na sociedade desportiva, salvo a pessoas coletivas de direito público; mas pode vendê-las livremente a quem quiser;
52. Esta interpretação da lei é manifestamente errada;
53. A regra ou princípio de que quem pode o mais pode o menos, correspondente aos brocardos latinos qui potest majus potest minus e a maiori, ad minus, ou o argumento a fortiori, justificam cabalmente, mediante interpretação enunciativa do Art. 10º da LSD, que a transmissão voluntária das ações do clube fundador, nomeadamente por venda, é proibida por lei;
54. O Art. 10º da LSD apenas refere a oneração e a apreensão judicial das ações, e não a transmissão, pela razão óbvia de que a proibição de venda já está prevista e regulada no Art. 23.º, n.º 1, da LSD;
55. Pôr em causa esta interpretação, ou seja, defender que, pelo Art. 10º da LSD a lei proíbe que o clube fundador onere ou constitua usufruto das suas ações, mas não proíbe a venda dessas ações, atinge as raias do inconcebível;
56. Um dos pareceres juntos aos autos pelo Apelado e citados pela sentença recorrida defende o inconcebível, justificando a defesa do inconcebível com o seguinte argumento: o legislador impediu o clube fundador de empenhar ou constituir usufruto sobre as suas ações para o proteger dos seus credores; assim, os credores do clube fundador não lhe podem exigir um penhor ou um usufruto das ações; mas os credores exigirem que o clube fundador lhes venda as suas ações? Isso já podem, pois para transmitir as ações, o clube fundador já não merece proteção legal!
57. Assim, para esse parecer, o credor não pode exigir ao clube fundador o penhor ou o usufruto das suas ações, porque a lei quer proteger o clube dessa exigência do credor; mas se o credor, em vez de exigir ao clube fundador o penhor ou o usufruto, exigir que o clube lhe venda ou faça dação em pagamento das ações, o clube fundador já não tem a proteção da lei;
58. Em outra hipótese, segundo o que resulta desse parecer, o credor que não seja pessoa coletiva de direito público não pode penhorar, em execução, as ações do clube fundador; mas pode comprar ou receber em dação em pagamento essas mesmas ações, uma argumentação que é absolutamente desprovida de qualquer valor ou razoabilidade;
59. Segundo um dos pareceres juntos aos autos pelo Apelado, a intencionalidade do Art. 10º da LSD não é outra que não a de tutelar o clube fundador, impedindo que, este, contra o seu interesse e a sua real vontade, se veja privado da propriedade das suas ações na sociedade desportiva;
60. Esta interpretação da norma é patente e chocantemente errada; seria este o único caso no nosso sistema jurídico em que a lei proíbe alguém de constituir usufruto ou empenhar ações para proteger o seu titular de praticar esses atos por “falsa vontade”;
61. É inconcebível que o legislador só tenha querido proteger uma entidade da sua “falsa vontade” de onerar ações no caso do clube fundador duma sociedade desportiva, e não em qualquer outro caso de qualquer outra entidade;
62. É inconcebível que o legislador só tenha querido proteger uma entidade de perder as suas ações para os seus credores no caso dos clubes fundadores duma sociedade desportiva, e não em qualquer outro caso de qualquer outra entidade privada, incluindo as associações desportivas que não tenham constituído uma sociedade desportiva;
63. É inconcebível que o legislador só proteja um clube fundador de perder ou onerar as suas ações numa sociedade desportiva, e não confira a mesma proteção a qualquer outro bem desse mesmo clube fundador, inclusivamente às ações que o clube detenha em outras sociedades que não a sociedade desportiva;
64. Na realidade, a ratio do Art. 10º da LSD é a proteção da relação duradoura entre o clube fundador e a sociedade desportiva, atendendo aos princípios essenciais do desporto, nomeadamente a verdade desportiva, a ética no desporto e a verdade das competições;
65. Relação duradoura essa que justifica, também, que o clube fundador não possa vender as suas ações na sociedade desportiva que excedam o patamar mínimo de 10%;
66. Nesse parecer fica também por explicar porque razão a lei só confere essa proteção às ações do clube fundador na sociedade desportiva que fundou;
67. Porque razão a lei não estendeu o mesmo regime a todo e qualquer outro bem do clube fundador, incluindo a ações que o clube possa deter noutras sociedades que não a sociedade desportiva;
68. A relação entre o clube fundador e a SAD que fundou é uma relação duradoura, não sujeita a que, por mero ato de vontade do clube fundador, este se desfaça, quando quiser, como quiser e a favor de quem quiser, da sua participação social na sociedade desportiva que fundou na parte que exceda o patamar mínimo de 10% do capital social da SAD;
69. A sentença recorrida, num efeito que, é claro, não ponderou devidamente, veio legitimar situações como as da cessação da relação entre clube fundador e sociedade desportiva no decurso dum campeonato; a troca entre dois clubes de participações em sociedades desportivas a meio dum campeonato, de modo que, no decurso do campeonato, a SAD desportiva do clube fundador A passa a ser a sociedade desportiva do clube fundador B, e a sociedade desportiva do clube fundador B passa a ser a sociedade desportiva do clube fundador A; que as sociedades desportivas e os respetivos clubes fundadores evitem a aplicação de sanções desportivas, incluindo a descida de divisão ou a expulsão das competições profissionais, mediante a venda pelo clube fundador da sua participação na sociedade desportiva sancionada e a compra simultânea de outra sociedade desportiva, que adota a denominação que pertencia à sociedade desportiva sancionada, recebe os seus jogadores e continua a usar as cores e os símbolos do clube fundador, assim se escapulindo aos efeitos da sanção desportiva aplicada à sociedade desportiva primitiva;
70. A interpretação da lei sufragada na sentença recorrida, apoiada nos pareceres juntos aos autos pelo Apelado, que fugiram como o diabo da Cruz de considerar as posições jurídicas que defendem à luz dos princípios essenciais do desporto, legitima, assim, a batota;
71. O método para se obter este resultado funesto e totalmente proscrito pela lei é extraordinariamente simples, bastando: considerar as sociedades desportivas como quaisquer outras sociedades; ignorar a ética desportiva; ignorar o princípio da verdade desportiva; ignorar o valor da integridade das competições desportivas; ignorar que, quando o legislador criou um tipo de especial de sociedades, chamando-lhes sociedades desportivas, o fez por querer distinguir estas sociedades de quaisquer outras para certos efeitos, efeitos esses que são, precisamente, as especificidades do desporto, nomeadamente os princípios da verdade desportiva e da integridade das competições;
72. A doutrina defendida pela sentença recorrida permite todo o tipo de violações dos princípios basilares e essenciais do desporto, máxime os consagrados no Art. 3º, n.º 1, da Lei de Bases da Atividade Desportiva, que dispõe que a atividade desportiva é desenvolvida em observância dos princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes;
73. Os princípios fundamentais do desporto, que são a ética, a verdade desportiva e a integridade das competições, são incompatíveis com um regime em que um clube fundador constitui, aliena e adquire, no mesmo desporto profissional (no caso, o futebol), as Sociedades Desportivas que quiser, no momento que quiser e a quem quiser;
74. Por respeito para com os princípios essenciais do desporto, a lei impõe que a ligação entre clube fundador e respetiva SAD se mantenha ao longo de toda a vida da sociedade desportiva, sem prejuízo dos casos, previstos na lei, em que essa relação pode cessar, nomeadamente pela extinção de uma das duas entidades ou pela execução da participação do clube fundador na SAD, na medida em que a lei admite a oneração e execução dessa participação;
75. Como corolário necessário desta realidade jurídica, o legislador curou de manter em permanência a presença e a relação do clube fundador com a sociedade desportiva mediante vários aspetos de regime, desde logo, impondo que o clube, uma vez constituída a sociedade desportiva, não goze de um direito de saída: a sua participação não poderá tornar-se inferior a 10% por transmissão voluntária das ações (Art. 23º, n.º 1, da LSD);
76. Um dos pareceres citados na sentença sustenta que como a Apelante e o Apelado, no Protocolo que celebraram, previram a possibilidade de o Apelado perder as suas ações da SAD Apelante, está evidenciado que foi assumido que o clube fundador Apelado podia vender as suas ações na SAD Apelante;
77. Esse parecer esquece que a lei prevê expressamente a possibilidade de o clube fundador perder as suas ações na SAD na sequência da apreensão judicial ou da oneração dessas ações a favor de pessoas coletivas de direito público, a que acresce a possibilidade de as perder em caso de extinção, por exemplo por insolvência, pelo que, quando o Protocolo entre as partes previu a possibilidade de o Apelado perder as suas ações na Apelante, reportava-se a situações previstas na lei e não à situação – proibida na lei! – de o Apelado vender as suas ações; sendo certo que o recurso a este argumento é útil por permitir uma eloquente aferição da objetividade desse parecer;
78. É invocado, a favor da tese que vingou na sentença recorrida, que o Art. 14º, n.º 2, da LSD dispõe que as ações das sociedades anónimas desportivas não podem ser objeto de limitações à respetiva transmissibilidade;
79. Este argumento dos pareceres juntos aos autos pelo Apelado não tem em conta que esta norma só se aplica, é claro, às limitações à transmissibilidade não estatuídas na própria LSD;
80. O diploma ao abrigo do qual a Apelante, SAD do Apelado, foi constituída, o Decreto-Lei nº 67/97, dispunha, sob a epígrafe “irreversibilidade”, que “o clube desportivo que tiver optado por constituir uma sociedade desportiva ou por personalizar a sua equipa profissional não pode voltar a participar nas competições desportivas de carácter profissional a não ser sob este novo estatuto jurídico”.
81. O novo diploma, o DL 10/2013, manteve, no essencial, este regime: “…o clube desportivo que tiver constituído uma sociedade desportiva, ou personalizado a sua equipa profissional, só pode participar nas competições desportivas de carácter profissional com o estatuto jurídico de sociedade desportiva” (Art. 4º, nº 2, em cuja epígrafe se mantém a referência à irreversibilidade).
82. Daqui decorre que o legislador conformou a constituição de uma sociedade desportiva como um passo decisivo e irreversível: o clube fundador, na medida em que congregue os votos necessários para o efeito, pode alterar o como da sociedade que constituiu — podem ser alterados estatutos, ou até a forma societária inicialmente adotada (Art. 4º, nº 1, LSD) —, mas não pode modificar o se da sociedade, isto é, não pode modificar a sua decisão de participar em competições profissionais mediante uma sociedade desportiva — rectius, mediante aquela concreta sociedade desportiva, cuja firma a identifica imperativamente como sendo a sua sociedade desportiva;
83. O pedido d) funda-se no disposto no art. 4º, nº 1, LSD, sendo uma mera decorrência deste preceito legal;
84. Tendo fundado a Apelante, o Apelado participa nas competições profissionais através da Apelante;
85. Não pode modificar a sua decisão de participar em competições profissionais mediante a sociedade desportiva que fundou, cuja firma a identifica imperativamente como sendo a sua sociedade desportiva;
86. Como tal, o pedido d) deve ser julgado procedente.
87. Atenta a procedência deste pedido, o Apelado falta à verdade, viola a LSD e ofende o estatuto e a natureza jurídica da Apelante, enquanto sua sociedade desportiva, e o estatuto e a natureza jurídica do próprio Apelado, enquanto clube fundador da Apelante, se declarar, em qualquer momento ou por qualquer modo, que pode vir a disputar qualquer competição profissional de futebol, nomeadamente a I ou a II Ligas, sem ser através da Apelante enquanto sua sociedade desportiva de futebol; deve assim o pedido e) ser julgado procedente;
88. O pedido f) é uma sanção pecuniária compulsória, tendo aplicação ao caso nos termos previstos no art. 829º-A do CC, por estarem preenchidos todos os seus pressupostos, existe uma obrigação de prestação de facto infungível, positivo ou negativo;
89. Assim, o Tribunal deve condenar o Apelado ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso;
90. No caso, o mais adequado é uma violação por cada infração, como peticionado, pelo que este pedido f) deve ser julgado procedente.
91. A sentença recorrida viola todos os preceitos legais citados.
Pede assim que seja julgada procedente a apelação e revogada a sentença recorrida, julgando procedentes os pedidos a), b), d) e) e f) da petição inicial.
A R. respondeu ao recurso, sobrelevando das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
(A) A extensão de prazo constante do artigo 638.º n.º 7 do CPC apenas pode ser legitimamente utilizada quando a reapreciação da prova gravada sirva para impugnar um juízo valorativo que objetivamente exista na Sentença. Não é feito um uso legítimo desse prazo quando o juízo valorativo de facto que é invocado não existe na Sentença, mas é fabricado pela parte recorrente. Neste último caso, a impugnação não tem a materialidade exigível para o acréscimo excecional de prazo, o que sucede manifestamente nas alegações aqui sob resposta - assim, o recurso interposto pela Autora é extemporâneo.
Subsidiariamente,
(B) Por Acórdão de 06.01.2022, no processo n.º 24272/18.5T8LSB-A.L1, a 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa (Senhores Juízes Desembargadores Dr. Nuno Luís Lopes Ribeiro, Dr.ª Gabriela de Fátima Marques e Dr. Adeodato Brotas), foi confirmada a decisão de admitir o articulado superveniente do Réu, pelo que as alegações da Autora a esse propósito estão prejudicadas.
(C) As conclusões das alegações sob resposta não indicam com exatidão as passagens da gravação que sustentam a impugnação da matéria de facto, pelo que tal impugnação deve ser rejeitada (artigos 635.º n.º 4, 639.º n.º 1 e 640.º n.º 1 e 2 do CPC).
(D) A Autora vem, agora, tentar induzir o Tribunal no erro de que as ações representativas do capital social da Autora são tituladas (conclusões 30, 31 e 32 das suas alegações), de modo a tentar obter uma decisão baseada nesse erro; sucede que as mesmas são escriturais, conforme é demonstrado pelos três documentos cuja junção se requer (artigos 651.º e 425.º do CPC) e também pela cláusula 3.ª do documento n.º 9 junto com a petição inicial da Autora. Esta conduta da Autora, para além de constituir uma alegação improcedente, corresponde a um comportamento processual inaceitável.
(E) A Autora viola a regra da igualdade de tratamento previsto no artigo 15.º do Código dos Valores Mobiliários ao ser mais exigente para o Réu do que foi para a própria Autora nesta ação e também para a sua acionista maioritária no que diz respeito à prova de transmissões de ações representativas do seu capital social. Mais uma vez, esta conduta da Autora, para além de constituir uma alegação improcedente, corresponde a um comportamento processual inaceitável.
(F) Os documentos juntos com o requerimento de 17.11.2020, sob a referência 27736118, e, depois, com o articulado superveniente de 01.09.2021, sob a referência 30142776, nunca foram impugnados pela Autora e a mesma nunca fez qualquer tipo de contraprova quanto aos factos aí relatados.
(G) A venda foi amplamente noticiada na comunicação social onde também a Autora tomou posição sobre o assunto, como bem nota a Sentença. Acresce que, no dia 15 de julho de 2020, a Autora divulgou um comunicado através do sistema de difusão de informação da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, disponível em https://web3.cmvm.pt/SDI/emitentes/docs/fsd914068.pdf, tendo reconhecido e informado todo o mercado de que foi notificada pelo Réu e pelo Dr. R.S.F. da venda da participação que o Réu tinha no capital social da Autora.
(H) Desta feita, não se compreende que, agora, a Autora venha impugnar a ocorrência dessa notificação e a identidade de quem a notificou, sendo essa posição em desconchavo total com os documentos que recebeu e com a informação que a própria Autora divulgou ao mercado.
(I) O Réu provou ter praticado todas as formalidades necessárias à transmissão de ações representativas do capital social da Autora, nomeadamente as prescritas pelos artigos 66.º nº 2, 69.º n.º 2, 80.º e 16.º do Código dos Valores Mobiliários.
(J) Desta feita, os factos 15, 30, 31 e 32 devem ser considerados como provados, para além de se deverem extrair as necessárias consequências processuais e legais da circunstância da Autora estar a impugnar factos que anteriormente reconheceu terem ocorrido.
 (K) O RSD é um Decreto-Lei que corresponde a um normativo especial face ao CSC, não teve qualquer pretensão em dispor sobre direitos, liberdade e garantias porque foi aprovado pelo Governo no âmbito das matérias não reservadas à Assembleia da República (artigo 198.º n.º 1 a) da CRP), pelo que é inconstitucional (inconstitucionalidade orgânica) qualquer interpretação do RSD que conduza a uma limitação de direitos, liberdade e garantias.
(L) Acresce que os Tribunais Portugueses estão vinculados ao princípio da interpretação conforme à CRP e ao Direito da União Europeia, recusando-se a aplicar qualquer norma ou interpretação de norma que colida com as regras e princípios desses normativos fundamentais. Por outro lado, caso os Tribunais Portugueses tenham dúvidas interpretativas a respeito da aplicação ou desaplicação de normas face ao Direito da União Europeia, devem promover o reenvio prejudicial da questão para o Tribunal de Justiça da União Europeia. As teses interpretativas da Autora chocam frontalmente com tais regras e princípios, com adiante se explicará.
 (M) A Sentença observa as regras da interpretação das normas jurídicas (artigo 9.º do CC), não abre a porta ao conjunto de extravagâncias jurídicas e sociais preconizadas pelas teses da Autora e respeita a identidade pessoal do Réu, não valida a existência de relações perpétuas, não promove violações da ordem pública e dos bons costumes, respeita o princípio da autonomia privada, respeita a propriedade privada (incluindo o direito de a transmitir em vida), respeita a iniciativa económica privada, o mercado aberto, a livre concorrência e as regras elementares do sistema jurídico onde o RSD se insere.
(N) Já a interpretação do RSD preconizada pela Autora não cumpre com as regras da interpretação das normas jurídicas previstas no artigo 9.º do CC: subverte os seus elementos literais, inverte os seus elementos históricos, persegue avidamente as soluções de menor acerto e ponderação e, acima de tudo, viola gravemente o elemento sistemático, fazendo uma interpretação isolada de regras, desarticulando-as de todo o seu contexto: desde o mais próximo (o preâmbulo e as outras regras do RSD), àquele que está imediatamente a seu montante (o CSC) e todas as restantes onde assenta o ordenamento português (o acervo do Direito da União Europeia e a CRP).
(O) O Réu juntou aos autos quatro pareceres de direito que tratam das diversas matérias relevantes para a boa decisão da causa, nomeadamente a licitude da venda da totalidade das ações detidas pelo Réu, a falta de efeitos adversos dessa venda na continuidade das atividades da Autora, a possibilidade de o Réu constituir uma nova sociedade desportiva, a quebra do nexo identitário entre a Autora e o Réu após a cessação do Protocolo, a inexistência de vínculos perpétuos, o verdadeiro sentido da irreversibilidade nas sociedades desportivas e a concorrência desleal que a Autora desenvolve face ao Réu.
 (P) Há centenas de anos que a ideia de perpetuidade foi afastada das relações entre particulares. O RSD não é um regime excecional, porque não afrontou ou excecionou a ordem pública, os bons costumes e a unidade do sistema jurídico criando uma relação indissolúvel e perpétua entre duas pessoas (neste caso um clube e uma sociedade desportiva). O RSD apenas criou um regime especial de fidelização da sociedade desportiva ao clube fundador, expresso num conjunto de direitos especiais, enquanto o clube fundador detiver uma participação social igual ou superior a 10% do capital social da sociedade desportiva.
(Q) O clube fundador é um “acionista-pessoa” e não um “acionista-coisa”. O RSD não criou uma servidão do clube fundador à sociedade desportiva, nomeadamente transformando o clube fundador numa coisa que é parte integrante da sociedade desportiva, ou seja, num acionista perpetuamente ligado à sociedade desportiva, impossibilitado de reduzir a sua participação social para menos de 10% do capital social da sociedade desportiva.
(R) Se o RSD pretendesse que o artigo 23.º n.º 1 do RSD tivesse uma natureza imperativa, teria utilizado as mesmas palavras que usou no artigo 14.º n.º 1 do RSD; tendo usado palavras diferentes, isso significa que buscou produzir efeitos diferentes. Acresce que o artigo 14.º n.º 1 do RSD não veda a possibilidade de transmissão da participação social a terceiros, bastando, para o efeito, o quotista único transformar a sociedade unipessoal por quotas em sociedade anónima desportiva (artigo 2.º n.º 1 do RSD).
(S) O artigo 23.º n.º 1 não está sistematicamente integrado no Capítulo II (regime jurídico) Secção II (participações sociais) do RSD, mas sim no Capítulo IV (sociedades que resultem da personalização das equipas), Secção II (direitos especiais e desportivos), pelo que isso também significa que faz parte do tecido normativo que visa tutelar o clube fundador, nomeadamente através da atribuição de direitos especiais em certas condições, e não da imposição de uma restrição absoluta à transmissibilidade das ações (o que levaria a que estivesse arrumado no Capítulo II Secção II).
 (T) Como resulta da letra e da ratio do seu preâmbulo e da arrumação sistemática do artigo 23.º n.º 1 e n.º 2, o RSD teve a intenção especial de criar ações privilegiadas, atribuindo-lhe direitos especiais. O pensamento legislativo inerente ao RSD não visou criar ações diminuídas ou postergadas, impondo-lhes o grave encargo de nunca poderem ser transmitidas. O peso e a excecionalidade desse pretenso encargo sobrepor-se-iam largamente ao significado da atribuição dos direitos especiais e, necessariamente, o legislador teria feito menção do mesmo no preâmbulo, tal como sucedeu com a atribuição dos direitos especiais.
(U) O artigo 23.º n.º 1 do RSD estabelece a fasquia de participação mínima para que os direitos especiais atribuídos ao clube fundador no artigo 23.º n.º 2 do RSD possam ser efetivos no grémio social de uma sociedade anónima desportiva. Como diz a Sentença (página 18), «[p]ode concluir-se, portanto, que a detenção mínima dos 10% de participação do capital social na SD corresponde a um requisito para que o clube fundador possa beneficiar do regime especial de proteção que a lei lhe atribui. Mas não se pode partir de um requisito para a dispensa de um regime legal de proteção do clube fundador para o converter numa obrigação de detenção das ações em qualquer circunstância, que não existe e que não está prevista».
(V) A norma 23.º n.º 1 não tem natureza imperativa e o elemento literal do artigo 23.º n.º 2 do RSD, ao se reportar ao «caso do número anterior», admite a possibilidade da existência de outros casos para além daquele que se encontra descrito no artigo 23.º n.º 1 do RSD, nomeadamente participações detidas pelo clube fundador que sejam inferiores a 10% do capital social da sociedade desportiva ou, mesmo, o clube fundador ter deixado de ser acionista da sociedade desportiva. Assim e mais uma vez, o artigo 23.º n.º 1 do RSD deve a sua existência à função de fixar o requisito de materialidade para serem atribuídos os direitos especiais enumerados no n.º 2 do mesmo artigo.
(W) O artigo 30.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 67/97, de 3 de abril, deixou poucos elementos na intenção normativa e no conteúdo do artigo 23.º n.º 1 do RSD: para além de estar sistematicamente arrumado noutro local, de estabelecer outras fasquias, deixou de ser exigir a existência de uma participação mínima do clube fundador «a todo o tempo». Se a correta hermenêutica do artigo 30.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 67/97 já não era favorável para as teses da Autora, muito menos o será o RSD, não podendo (ou, pelo menos, não devendo) a Autora continuar a ler «a todo o tempo» no local onde essa locução foi pura e simplesmente eliminada pelo legislador. O desaparecimento da locução «a todo o tempo» é mais uma razão para admitir e aceitar que também podem existir «tempos» em que a participação deixa de existir.
(X) O RSD não quis criar um regime oposto àquele que consta do artigo 328.º do CSC, nomeadamente proibindo o clube fundador de transmitir a sua participação social e desligar-se da sociedade desportiva. O RSD quis apenas criar um regime especial de atribuição de direitos especiais e nunca um regime contrário ao previsto no artigo 328.º do CSC.
(Y) Não aporta uma solução legal acertada um regime construído sobre duas regras com um conteúdo muito extremado e totalmente oposto: por um lado, proibir totalmente um sócio de alienar 10% do capital social e, por outro lado, proibir todas as cláusulas que, de alguma forma, limitem a transmissibilidade de ações. Esse seria um regime desequilibrado, sem uma qualquer justificação válida e com um conteúdo axiológico de impossível apreensão. Assim, é improcedente qualquer interpretação que conduza a esse resultado, violando o princípio da unidade do sistema jurídico e da consagração legal da solução mais acertada.
(Z) A transmissibilidade é um atributo essencial das ações, enquanto valor mobiliário. A interpretação do RSD no sentido de que este diploma criou um regime contrário ao artigo 328.º do CSC, através do cancelamento do direito à transmissibilidade da participação social detida pelo clube fundador, descaracteriza o conceito legal e doutrinário de ação.
(AA) Ninguém pode ser prisioneiro de uma participação social e esse cancelamento do direito de transmitir viola grosseiramente o princípio da autonomia privada e o próprio RSD (que é uma lei especial e não uma lei excecional). Acresce que o conteúdo do artigo 328.º do CSC está harmonizado com o Direito da União Europeia. Assim, a interpretação que a Autora faz do RSD viola o artigo 50.º n.º 2 g) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o artigo 4.º da Diretiva (EU) 2017/1132 (cuja interpretação conforme é devida pelos Tribunais) e o artigo 62.º da CRP (que garante o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida), com as consequências referidas na conclusão L.
 (BB) O bloqueio perpétuo da titularidade de 10% do capital social de uma sociedade desportiva determina que nenhum acionista alcançará uma participação igual ou superior a 90% do capital social. Esse facto determina o cancelamento dos mecanismos fundamentais de equilíbrio correspondentes à aquisição potestativa (artigo 490.º n.º 2 do CSC / artigo 194.º do Código dos Valores Mobiliários) e à alienação potestativa (artigo 490.º n.º 5 do CSC / artigo 196.º do Código dos Valores Mobiliários), colocando em causa instrumentos protetores de direitos dos minoritários, nomeadamente para situações de reduzida liquidez das ações. Trata-se de um efeito que não faz qualquer sentido.
 (CC) No caso das sociedades anónimas desportivas com valores mobiliários admitidos à negociação, a impossibilidade de aquisição e de alienação potestativa é proibida pelos artigos 15.º e 16.º da Diretiva 2004/35/CE, pelo que uma interpretação do RSD que conduza a este resultado é ilegal, com as consequências referidas na conclusão L. Não tem qualquer sentido ou necessidade ou fundamento uma diferenciação entre sociedades desportivas com ou sem valores mobiliários admitidos à negociação, no que diz respeito à matéria da intransmissibilidade das ações detidas pelo clube fundador.
 (DD) O efeito de impor ao clube fundador uma participação de pelo menos 10% do capital social de uma sociedade desportiva leva à impossibilidade de serem aprovados aumentos ou reduções de capital sempre que essa participação se encontre no limiar mínimo e, no caso de aumento, o clube fundador não queira ou não possa acompanhar o aumento de capital. Esse bloqueio coloca em causa o normal funcionamento de mecanismos fundamentais numa sociedade comercial, nomeadamente a capitalização no caso de necessidade e a cobertura de perdas, gerando fenómenos de muito pouca transparência para os credores sociais e podendo levar à retenção desnecessária de património excedentário. Não faz sentido o legislador recorrer ao arquétipo societário para profissionalizar a gestão do desporto profissional e para incrementar a transparência e, ao mesmo tempo, paralisar instrumentos básicos de funcionamento e de integridade que promovem essa transparência e esse profissionalismo.
(EE) O facto de o artigo 10.º n.º 2 do RSD proibir a oneração ou apreensão das ações do clube fundador não demonstra a sua intransmissibilidade; antes pelo contrário, demonstra a sua transmissibilidade. Sendo a regra geral que apenas quem pode transmitir pode onerar (artigo 667.º n.º 1 do CC) e apenas o que pode ser transmitido pode ser apreendido (artigos 391.º, 403.º e 736º a) do CPC), o artigo 10.º n.º 2 do RSD é necessário para acautelar a impossibilidade de oneração ou apreensão de ações por parte de quem as pode transmitir. Se as ações fossem legalmente intransmissíveis, o artigo 10.º n.º 2 do RSD seria totalmente desnecessário/inútil, porque o assunto já estava resolvido pelos citados preceitos (por exemplo, no caso do penhor, o artigo 667.º n.º 1 do CC bastaria, porque clube fundador não poderia empenhar as ações na exata medida em que não as poderia transmitir).
(FF) Viola os artigos 62.º, 18.º n.º 2 e n.º 3 e 165.º n.º 1 b) da CRP qualquer interpretação do RSD que proíba a transmissão da propriedade sobre as ações de uma sociedade desportiva, nomeadamente por parte do clube fundador. O direito de propriedade, tal como configurado pela CRP, abarca o direito de aceder à propriedade, mas também o direito de a transmitir inter vivos e mortis causa.
(GG) Não se pode afirmar, no plano legal (confrontando o artigo 23.º n.º 2 do RSD com o artigo 486.º do CSC) e no plano fatual, que uma sociedade desportiva é uma empresa de um clube desportivo, quando este apenas detém 10% do capital social da sociedade desportiva, ainda que essa participação tenha associados os direitos especiais previstos no artigo 23.º n.º 2 do RSD. Isso ainda menos se pode afirmar quando deixou de existir qualquer tipo de articulação/concertação entre as respetivas atividades (que era o objeto do Protocolo cuja renegociação foi recusada pela Autora). A liberdade de organização de empresa está profundamente ligada com a liberdade de iniciativa económica e com os princípios da economia de mercado e da livre concorrência.
(HH) Como conclui a Sentença, depois de olhar para os factos constantes dos autos (e que são públicos e notórios) de que a evolução das relações entre a Autora e o Réu se foram desligando ao longo do tempo, ao ponto de hoje serem entidades concorrentes nos vários escalões do futebol: é «caso para dizer, coloquialmente, que “nesta fase do campeonato”, a equipa da SAD já deixou de ser a equipa do clube, já que o nexo identitário entre ambas as entidades já se quebrou definitivamente, desde a denúncia do Protocolo, culminando na alienação total das ações que o Réu ainda detinha no capital social da Autora. Nesse sentido e em conclusão, deve afirmar-se que o Réu foi o clube fundador da Autora, mas já deixou de o ser».
(II) Assim, no que diz respeito à liberdade de iniciativa económica e da organização da empresa, viola os artigos 61.º e 165.º n.º 1 alínea b) da CRP qualquer interpretação do RSD que imponha um vínculo perpétuo do clube fundador à sociedade desportiva, proibindo eternamente um clube desportivo que tenha constituído uma sociedade desportiva pelo mecanismo da personalização de voltar a participar nas competições profissionais, exercendo a iniciativa de organizar uma empresa e constituir uma nova sociedade desportiva, por qualquer uma das modalidades previstas na lei, incluindo depois de alienar a participação detida na sociedade desportiva onde anteriormente participou.
(JJ) Também assim, já no que diz respeito à economia de mercado e da livre concorrência, é grosseiramente contraditório com os princípios do mercado aberto e da livre concorrência, em particular com o disposto no artigo 120.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, uma interpretação do RSD segundo a qual um clube desportivo está impedido (seja diretamente, seja indiretamente através de uma empresa/sociedade desportiva por si organizada, detida e/ou controlada) de voltar a competir nas competições profissionais e, como resultado disso, vedando o acesso ao exercício da atividade económica subjacente às competições europeias de futebol (Champions League, Europa League ou Supertaça UEFA). Essa solução interpretativa não pode ser aplicada pelos Tribunais Portugueses, com as consequências referidas na conclusão L.
(KK) A desmesurada e inédita limitação absoluta à transmissibilidade das ações do clube fundador que a Autora pretende impor ao Réu também seria sempre inútil, porque nada impede o Réu de constituir uma outra sociedade desportiva ou participar numa sociedade desportiva donde detenha uma participação maioritária e de domínio (artigo 12.º n.º 1 do RSD) ao mesmo tempo em que detivesse uma participação social de 10% no capital social da Autora, desde que optasse por exercer plenamente os seus direitos de acionista na primeira sociedade desportiva e prescindisse de os exercer na Autora (artigo 19.º n.º 1 do RSD). Esta possibilidade demonstra a total falta de acerto da interpretação promovida pela Autora e gera a evidente conclusão de que o legislador teria em vista consagrar alguma solução mais sensata.
(LL) A personalização da equipa é um nomen juris que distingue uma forma especial de constituição de uma sociedade desportiva. Não corresponde a uma cisão do clube desportivo; não significa a transmigração da personalidade ou da identidade associativa do clube desportivo para a sociedade desportiva; não origina a aparecimento de um alter-ego do clube desportivo. A Autora e o Réu não coincidem em quem as detêm e as gerem. A Autora e o Réu são realidades com uma identidade, uma personalidade e atividades completamente diferentes e sem qualquer tipo de interdependência factual ou jurídica, com exceção das usurpações ilegais que a Autora vem insistindo em fazer do património identitário e industrial do Réu.
(MM) A prova que existe nos autos demonstra que não existe qualquer tipo de identificação ou associação entre a Autora e o Réu. Nem mesmo a detenção de 10% do capital social com os direitos especiais associados atribuídos pelo artigo 23.º n.º 2 do RSD, ainda para mais confrontados com os requisitos do artigo 486.º do CSC, permite afirmar juridicamente que a «Autora é uma empresa do Réu ou a sociedade desportiva do Réu». Acresce que as atividades da Autora e do Réu deixaram de ter qualquer tipo associação (o que culminou com o fim do Protocolo e a recusa da Autora em renegociar o seu conteúdo) e o Réu deixou de ser acionista da Autora.
(NN) Como explica cristalinamente a Sentença (página 21), «[a]qui chegados, à pergunta de saber se a Autora é a sociedade desportiva da modalidade de futebol do Réu, a resposta não poderá deixar de ser: foi, já não é». Mais adiante, a Sentença também conclui corretamente perante a evidência dos factos e do direito: [e]m suma, a Autora já não é a modalidade de futebol do Réu, uma vez que, a partir da cessação do Protocolo e, mais patentemente, depois da alienação das ações, cada uma das entidades (SAD e Clube) passaram a seguir caminhos diferentes e a manter a sua própria atividade de forma independente: tanto o Clube passou à formação da sua própria equipa de futebol sénior, como a SAD continuou com a equipa anteriormente formada e alargou a sua atividade a sectores que, antes, eram da exclusiva esfera do Clube.»
(OO) Assim a afirmação de que a Autora é a sociedade desportiva do Réu é uma falsidade factual e jurídica, que induz em grave erro o tráfego comercial e jurídico.
(PP) O Réu tem o direito à sua identidade pessoal e à sua imagem. A imposição a um clube desportivo de uma representação perpétua por parte de uma terceira entidade numa atividade desportiva retira ao clube, para todo o sempre, a possibilidade de autodeterminar a sua identidade e de projetar uma parte relevante da sua imagem exterior. Assim, viola os artigos 26.º n.º 1 e 165.º n.º 1 alínea b) da CRP a interpretação do RSD (nomeadamente dos seus artigos 3.º alínea c), 6.º n.º 2, 23.º n.º 1, 23.º n.º 2 a) e 24.º) no sentido, isolado ou articulado, de que o RSD não pretende nem visa, com a personificação da sua equipa para a prática desportiva profissional, distinguir a sociedade desportiva do clube fundador, que imponha um vínculo perpétuo do clube fundador à sociedade desportiva, proibindo o clube fundador de transmitir as ações de que é titular na sociedade desportiva e, dessa forma, atribuir à sociedade desportiva um direito perpétuo de representação do clube fundador nas competições desportivas profissionais de certa modalidade desportiva.
 (QQ) O princípio da irreversibilidade tinha utilidade no âmbito do Decreto-Lei n.º 67/97, de 3 de abril, consagrando a impossibilidade dos clubes desportivos que constituíssem uma sociedade desportiva retornarem ao regime especial de gestão – nada mais do que isso. Por outro lado, por muito alto conceito que a Autora tenha de si própria, a mesma nunca pode ser chamada de “estatuto jurídico”. Quando o RSD se refere a um “estatuto jurídico”, não se está a reportar a uma “sociedade desportiva”.
(RR) Um «clube fundador» é o nomen juris utilizado pelo RSD para agregar as referências ao estatuto jurídico de tutela dos interesses do clube que fundou uma sociedade desportiva, cuja manutenção depende da detenção mínima de participação prevista no artigo 23.º n.º 1 RSD. A locução «clube fundador» não existe na lei para assinalar a efeméride da fundação de uma sociedade desportiva. Assim, deixa de existir o estatuto jurídico de «clube fundador» e o clube que fundou uma sociedade desportiva deixa de ser o seu «clube fundador» se a sua participação inicial deixar de ser igual ou superior a 10% do capital social da sociedade desportiva. Como refere a Sentença, olhando para os factos revelados nos autos que demonstram que há muito que a Autora deixou de ser a sociedade desportiva do Réu e que cada entidade decidiu seguir o seu próprio caminho a todos os níveis: «deve afirmar-se que o Réu foi o clube fundador da autora, mas já deixou de o ser».
 (SS) A situação de facto exibida nos presentes autos não é compatível com a possibilidade de a Autora continuar a apresentar-se perante o público em geral e o mundo do desporto em particular como tendo um relacionamento normal com o Réu, como estando a representar o Réu, como sendo a sociedade desportiva do Réu. Tudo quanto materialmente existe é absolutamente o contrário. Esta paradoxal situação não é ética, não defende o espírito desportivo, ofende a verdade (seja ela desportiva ou qualquer outra), gera confusão de identidades e corresponde ao exercício, pela Autora, de uma concorrência desleal face ao Réu, tal como explicam claramente os pareceres juntos pelo Réu.
(TT) Perante as duas alternativas, o interprete deve assumir que o legislador consagrou a solução mais acertada e capaz (artigo 9.º n.º 3 do CC). A existência de um clube fundador no grémio social não é uma característica essencial para que uma sociedade desportiva seja constituída, exista e/ou desenvolva a sua atividade – o RSD prevê a existência de sociedades desportivas de raiz (artigo 3.º). Por outro lado, não se vê que interesse deva ser legalmente acautelado (tanto para o sócio, como para uma sociedade comercial) que leve a impor a alguém, que definitivamente não quer, a obrigação de ser sócio de uma sociedade comercial - como bem assinala a Sentença na página 22, citando o parecer da Senhora Professora Doutora Maria de Fátima Ribeiro.
(UU) A saída do Réu do grémio social da Autora não tem qualquer tipo de efeito adverso relevante na continuidade da atividade comercial da Autora para além de deixar de ter na sua estrutura acionista um sócio com direitos especiais. Já o contrário, ou seja, a imposição de um vínculo perpétuo ao Réu através da proibição absoluta da transmissibilidade das ações que detém no capital social da Autora, é uma solução violenta, antissistemática e absurda.
(VV) Assim, a Sentença decidiu de acordo com a natureza das coisas, respeitou as especificidades atendidas pelo RSD e proferiu uma decisão de acordo com a respiração normal que se pretende para um ordenamento jurídico sistematizado e coerente. Não merece, assim, qualquer reparo o entendimento da Sentença (página 20) em «admitir a possibilidade de o clube fundador pretender abandonar a sua qualidade de sócio através da alienação das suas participações sociais. E isso acontecendo, acarretará a perda dos direitos especiais conferidos por aquelas participações sociais especiais (as de categoria A)»; mais adiante (páginas 21 e 22), a Sentença também explica que essa alienação das participações sociais «(…) não põe em causa a permanência da sociedade desportiva nas competições de futebol profissional (…)» e «nessa decorrência, nada impede a sociedade de prosseguir a atividade desportiva como sociedade anónima desportiva constituída de raiz»; depois (página 25), a Sentença conclui «que o facto de a participação do clube na sociedade vir a tornar-se inferior a 10% do capital (…) não põe em causa a subsistência da sociedade (…), [m]as isso implica, necessariamente, que a sociedade desportiva deixe de estar sujeita ao regime especial [de] proteção do clube fundador, já que deixaram de existir ações de categoria A».
(WW) Podendo uma sociedade desportiva desenvolver a sua atividade sem que tenha um clube desportivo no seu grémio social, não é compreensível o sentido da consagração de um ónus tão gravoso como o da impossibilidade absoluta e perpétua de transmissão de ações representativas de 10% do capital social, ao arrepio completo de outras disposições do próprio RSD, das regras do Código das Sociedades Comerciais, das regras da União Europeia e dos preceitos da CRP.
(XX) A interpretação do RSD promovida pela Autora no sentido de criar uma relação perpétua entre o clube fundador e a sociedade desportiva através da intransmissibilidade absoluta da participação detida pelo clube fundador: (1) opõe-se ao princípio geral do direito privado que não permite a existência de vinculações excessivas, inadmissivelmente duradouras ou perpétuas, princípio esse fundado na ordem pública, nos bons costumes, na autonomia privada, na livre iniciativa, na igualdade de oportunidades, na realização pessoal e na livre concorrência e no respeito pela autonomia privada; (2) opõe-se ao regime geral do direitos das sociedades comerciais que é o de que não se pode excluir a transmissibilidade das ações (artigo 328.º n.º 1 primeira parte do CSC) e que a transmissão em vida é uma garantia inerente ao direito de propriedade (artigo 62.º n.º 1 da CRP); (3) opõe-se à natureza de ação, que tem como atributo essencial a transmissibilidade; (4) cancela institutos fundamentais como a aquisição potestativa e a alienação potestativa; (5) bloqueia a aplicação de institutos fundamentais ao funcionamento saudável de uma sociedade comercial, como é o caso do aumento e da redução de capital, em situações limite, ou seja, quando são mais necessários; (6) remove da esfera jurídica de um particular (o clube desportivo) a liberdade de iniciativa económica e de organização de empresa.
(YY) Tanto a lei especial como a lei excecional visam regular situações específicas, mas enquanto uma lei especial adapta a lei geral a essas situações sem contrariar substancialmente os princípios e regras da lei geral, a lei excecional estabelece um regime jurídico contrário/oposto ou que altera substancialmente a lei geral.
(ZZ) O RSD é e assume-se como sendo uma norma especial face às «regras gerais aplicáveis às sociedades comerciais» (preâmbulo e artigo 5.º do RSD). Nenhuma interpretação pode alterar a natureza da norma interpretada, nomeadamente transformar uma norma especial numa norma excecional. A interpretação promovida pela Autora opõe-se, cancela, bloqueia e remove a lei geral em aspetos estruturais do direito privado e do direito das sociedades comerciais, pelo que transforma o RSD numa lei excecional, efeito que é ilícito e inadmissível.
(AAA) A interpretação que respeita o RSD e a sua declarada natureza especial é a declarada pela Sentença, ou seja, a que vai no sentido de que o RSD: (1) aceita que todas as ações são passíveis de ser transmitidas (como sucede no regime regra); (2) não aceita quaisquer limitações à transmissibilidade da ações nas sociedades desportivas (não contrariando, mas até aprofundando o regime regra que já vai no sentido de restringir fortemente essas limitações); (3) aceita que existem ações com direitos especiais (como sucede no regime regra); (4) faz depender a existência de tais direitos especiais da identidade do titular do direito (elemento definidor do perímetro de situações que constituem a previsão do regime especial) e do requisito de materialidade correspondente à detenção de uma percentagem mínima de capital social pelo seu titular (especificidade que não se opõe ao regime regra); (5) produz o resultado de deixar de existir um clube fundador quando deixa de existir a participação de 10% do capital social que fundamenta a atribuição dos direitos especiais e do regime de proteção dispensado pelo estatuto jurídico de clube fundador.
(BBB) Não existe qualquer tipo de associação institucional entre a Autora e o Réu e inexiste qualquer associação/coordenação das respetivas atividades; a Autora prescindiu de renegociar o Protocolo e decidiu alargar as suas atividades para áreas que, até 30.06.2018, estavam reservadas ao Réu (todos os escalões de formação, envolvendo a atividade de centenas de atletas).
(CCC) Os factos essenciais e instrumentais provados pelos autos demonstram a total falta de interesse da Autora em manter uma associação com o Réu no plano dos factos. Pouco ou nada interessa à Autora o relacionamento com o Réu e a associação da sua atividade com a atividade do Réu. À Autora, apenas interessa prender o Réu à estrutura acionista da Autora e, por essa via, impedir que o Réu regresse, de alguma forma, às competições profissionais de futebol. A Autora pretende alcançar estes efeitos puramente negativos e estes objetivos errados com base numa errada interpretação do RSD.
(DDD) Assim, para além dos direitos invocados pela Autora não terem consagração legal, ainda que o tivessem, estaríamos perante uma chocante situação concreta de exercício disfuncional dos mesmos, manifestamente fora do perímetro marcado pelo «fim social e económico» que presidiria à sua atribuição, o que determina a ilegitimidade concreta do seu exercício e a sua inoponibilidade face ao Réu (artigo 334.º do Código Civil).
 (EEE) Tanto fatual como juridicamente: (1) não existe qualquer associação entre o Réu e a Autora (e vice-versa) para além da concorrência desleal que a Autora desenvolve contra o Réu; (2) o Réu deixou de ser acionista da Autora; (3) o Réu deixou de deter o estatuto jurídico de clube fundador da Autora, tal como o mesmo é definido pelo RSD; (4) o Réu pode livremente constituir ou participar noutra sociedade desportiva, que não a Autora. Por isso, a Sentença julgou bem, não merece qualquer tipo de reparo no plano dos factos e no plano do direito, pelo que deve ser integralmente confirmada.
Pede assim que se reconheça que as alegações apresentadas pela A. são extemporâneas ou, subsidiariamente, que sejam julgadas totalmente improcedentes, devendo a sentença ser integralmente confirmada.
Resta ainda referir que o Relator, por despacho de 7 de abril de 2022, não só confirmou a admissão do recurso por ser tempestivo, tal como decidido pelo tribunal de 1.ª instância, como autorizou a junção da prova documental apresentada pelo Recorrido em conjunto com as suas contra-alegações.
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, prejudicada que está a questão da tempestividade do recurso, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A impugnação da matéria de facto e a sua rejeição;
b) A declaração de que o R. Clube de Futebol “Os Belenenses” é o Clube Fundador da A. e de que esta é a sociedade desportiva da modalidade de futebol do R. Clube de Futebol “Os Belenenses”, tendo em atenção a (in)validade da venda de ações de que o R. era titular na sociedade A.;
c) A declaração de que o R. só pode participar nas competições profissionais de futebol através de uma sociedade desportiva de futebol e que, para tal participação, o R. já constituiu a sociedade desportiva de futebol ora A., estando impedido de constituir uma nova sociedade desportiva de futebol, devendo abster-se de disputar qualquer competição profissional de futebol, nomeadamente a I.ª ou a II.ª Ligas, sem ser através da A. enquanto sua sociedade desportiva de futebol; e
d) A condenação do R. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, de valor não inferior a €1.000,00 por cada dia de violação das obrigações anteriores.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. A A. é uma sociedade anónima desportiva cujo objeto consiste na participação em competições profissionais de futebol, promoção e organização de espetáculos desportivos e o fomento ou desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática desportiva profissionalizada da modalidade de futebol.
2. O R. é uma associação desportiva constituída em 23/09/1919 para a prática do futebol, tendo também, ao longo dos anos, formado equipas de outros desportos.
3. O R. tem uma longa e ampla história de prestígio e notoriedade, da qual se evidencia a atribuição da natureza de instituição de utilidade pública, em 1960, e a atribuição de diversos títulos honoríficos.
4. Atualmente, o R. tem cerca de 2500 atletas, dos quais cerca de 2200 jovens, praticantes de diversas modalidades desportivas, contando-se cerca de 1500 integrados nos escalões de futebol abaixo dos seniores.
5. Ao longo dos seus 100 anos de existência, o R. acumula títulos relevantes em diversas modalidades, incluindo campeonatos nacionais e taças de Portugal.
6. A A. foi constituída por escritura pública de 18/11/1999 através da personalização jurídica da equipa de futebol do R..
7. O R. manteve a atividade no futebol sénior até 1999, ano em que constituiu e assumiu uma posição de controlo da A. e transferiu para esta um conjunto de ativos e passivos inventariados e avaliados, nomeadamente, os contratos que mantinha com os jogadores e técnicos de então e os direitos de inscrição nas competições profissionais de futebol.
8. O R. manteve ininterruptamente a sua atividade no futebol de formação.
9. O R. celebrou um acordo com um clube designado por Mosteirense para usar os direitos deste clube de participação no Campeonato Nacional de Seniores, com o objetivo de inscrever neste Campeonato uma equipa que seria designada por “Belenenses”, não tendo, porém, esta pretensão sido admitida pela Federação Portuguesa de Futebol.
10. Gorada essa tentativa, o R. inscreveu ex novo uma equipa sénior no último escalão dos campeonatos distritais da Associação de Futebol de Lisboa.
11. Até 12/12/2012, data da celebração do contrato de compra e venda de ações entre o R., a “Codecity Sports Management, Lda.” (doravante, apenas CSM) e a sociedade “Beleminvest SGPS, Lda.”, a A. sempre foi dominada pelo R., no que à estrutura acionista diz respeito.
12. A sociedade “Beleminvest, SGPS, Lda.”, era detida, quase a 100%, pelo R. (sendo, em qualquer caso, uma posição de domínio) e era titular de 230.843 ações da A., correspondentes a 61,93% do capital da A..
13. Desde a sua constituição e até 2012, o R. sempre nomeou todos os administradores da A..
14. Em 12/12/2012, a “CSM” comprou ao R. e à sociedade “Beleminvest” 469.077 ações da categoria B, representativas de 46,93% do capital social da A., e, em 02/08/2013, comprou mais 50.040 ações da categoria B, representativas de cerca de 5% do capital social da A., passando assim a deter 519.117 ações da categoria B.
15. Até Julho de 2020, o R. detinha 101.153 ações da categoria A, correspondentes a cerca de 10% do capital social da A..
16. Em 05/12/2012, A. e R. assinaram um “Protocolo de Repartição de Direitos e Obrigações” (fls. 431 a 439 dos autos), que visou «estabelecer e regular os termos em que a atividade da A. ficaria associada à atividade do R.» (cláusula 1ª, n.º 1), em particular, no que releva para os presentes autos: a partilha dos valores e da história do R. (cláusula 9ª, n.º 1); a utilização dos símbolos e do emblema do R. (cláusula 9ª, n.º 2); a utilização da marca e dos símbolos do R., para efeitos de merchandising (cláusula 9ª, n.º 3).
17. Nos termos da cláusula 12ª, n.º 2 do Protocolo, «com a entrada em vigor do Protocolo, são automaticamente revogados todos os acordos, contratos e protocolos existentes entre o CFB e a SAD que se encontrem em vigor nessa data, com ressalva do protocolo relativo à formação de futebol».
18. Por carta de 05/02/2018, o R. convidou a A. para um processo de negociação do Protocolo, mais tendo comunicado que «o CF Belenenses denuncia o Protocolo, com o seu atual conteúdo, com efeitos ao dia 30 de Junho de 2018. Nessa data, o Protocolo deixará de vigorar se, até aí, não for alcançado um novo acordo escrito e assinado entre as partes necessárias, visando a sua modificação e manutenção de vigência. Esta é uma vontade perentória do CF Belenenses, que não carece de qualquer outra declaração, confirmação ou formalidade» – cfr. doc. n.º 10 junto com a contestação.
19. Por carta de 07/03/2018, a A. respondeu à missiva recebida do R., na qual, além do mais, transmitiu ao R. que: «(…) dispensando que se teçam muitas considerações, que a denúncia do Protocolo é ilícita. A Belenenses SAD não prescinde dos direitos que lhe assistem, e nada na presente carta significa ou pode ser interpretado no sentido de renúncia a qualquer direito decorrente dessa ilicitude.» – cfr. doc. 11 junto com a contestação.
20. Por carta de 23/03/2018, à qual a A. não respondeu, o R., além do mais, solicitou à A. que lhe enviasse «(…) uma posição completa, clara, precisa, objetiva e escrita sobre o assunto até ao próximo dia 6 de Abril de 2018, para que possa ser encaminhada para a Comissão designada pela Direção e aprovada pelos sócios em Assembleia Geral para prosseguir os contactos e as negociações a que V. Exas. insistem em não corresponder. (…)» – cfr. doc. 12 junto com a contestação.
21. Por carta datada de 10/05/2018, à qual a A. não respondeu, o R. interpelou novamente a A. reforçando «(…) o firme propósito de alcançar uma nova relação contratual a partir de 30 de Junho de 2018». - cfr. doc. 13 junto com a contestação.
22. Por carta datada de 14/06/2018, o R. comunicou à A. que mantinha a disponibilidade para celebrar um novo Protocolo com a A. e ainda, além do mais, o seguinte: «Para o caso de existir um completo desinteresse de V.Exas. em manter um Protocolo com o Clube Fundador e tudo o que o mesmo aporta ao giro comercial da SAD: 1. Convocamos V.Exas. para uma vistoria às instalações que vêm utilizando ao longo destes anos, de modo a preparar atempadamente a sua entrega no dia 30 de Junho de 2018. (…) 2. Recordamos que, a partir do dia 30 de Junho de 2018, para além de cessar qualquer direito de utilização do Estádio do Restelo, cessa qualquer direito da SAD em utilizar os símbolos, sinais distintivos e marcas do Clube de Futebol “Os Belenenses”, incluindo a sua denominação social. 3. Convocamos V.Exas. para uma reunião no dia 12 de Junho de 2018, pelas 10:00 horas, em local a definir, ara avaliação conjunta final dos créditos e débitos recíprocos, sem prejuízo das dívidas da SAD respeitantes a transferências de jogadores deverem ser liquidadas de imediato». – cfr. doc. 14 junto com a contestação.
23. A A. emitiu um comunicado público, em 28/06/2018, com o teor correspondente à cópia do documento n.º 15 junto com a contestação.
24. Entre a data do envio da carta de 05/02/2018 e a data de produção dos efeitos da denúncia, as partes não lograram alcançar qualquer entendimento destinado a modificar e/ou manter em vigor o Protocolo em causa.
25. A partir de 30 de Junho de 2018, a A. deixou de utilizar todas as instalações desportivas e restantes espaços do Complexo Desportivo do Estádio do Restelo e procedeu voluntariamente à entrega das chaves dessas instalações e restantes espaços.
26. A inscrição, pelo R., de uma equipa de futebol sénior no campeonato da 1ª Divisão Distrital da Associação de Futebol de Lisboa, usando o nome, a marca e os símbolos associados ao Clube “Os Belenenses”, foi decidida e realizada após a denúncia do Protocolo.
27. Em 13/07/2018, o R. remeteu à A. a carta cuja cópia consta de fls. 573 – doc. 16 junto com a contestação – na qual, além do mais, insistiu na obrigação de imediatamente cessar «(…) qualquer utilização que vos confunda com “Os Belenenses” e que cessem a usurpação de identidade, marcas e símbolos que vêm promovendo desde o dia 1 de Julho de 2018».
28. A A. convocou e realizou uma Assembleia Geral, em 28/12/2018, com a seguinte ordem de trabalhos: «1. Revogar a deliberação tomada na Assembleia Geral de Sócios de 19 de Novembro corrente relativamente à mudança da sede da Sociedade; 2. Alterar a sede da sociedade para a Rua Fontes Pereira de Melo, Lote 3, loja 1, rés-do-chão, Linda-a-Velha, concelho de Oeiras.» - cfr. doc. 30 junto com a contestação.
29. Nessa Assembleia, fora da ordem de trabalhos, a sócia maioritária “CSM” propôs, e o Presidente da Mesa da Assembleia Geral aceitou e colocou à votação, um “voto de censura ao Presidente do Clube de Futebol Os Belenenses”, depois aprovado com os únicos votos da sócia “CSM”.
30. Em 03/07/2020, o R. alienou ao Dr. R.S.F. que adquiriu, a totalidade da participação que detinha no capital social da A., na sequência do processo de venda que o R. tinha iniciado no dia 27 de Setembro de 2019.
31. O R. e o Dr. R.S.F. notificaram a referida compra e venda à A., enquanto emitente e entidade registadora dos valores mobiliários objeto desse negócio, e à Comissão de Mercado de Valores Mobiliários.
32. O R. solicitou, em 03/07/2020, a transferência das 102571 ações, de que era titular, da conta de registo e depósito de valores mobiliários e que é titular no Banco Montepio para a conta de registo e depósito de valores mobiliários de que o comprador é titular na Caixa Geral de Depósitos.
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A sentença deixou ainda consignado que não existem factos não provados.
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Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas as questões que fazem parte do objeto da presente apelação, iremos então sobre elas nos debruçar pela sua ordem de precedência lógica, começando inevitavelmente pela questão prévia da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
1. Da impugnação da matéria de facto e sua eventual rejeição.
A primeira questão suscitada pela presente apelação refere-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pretendendo a Recorrente, em termos sucintos, pôr em causa o julgamento dos pontos 30 a 32 dos factos provados, relativos à venda de ações representativas do capital social da SAD aqui Recorrente pelo R. a terceiros, com fundamento na circunstância de não poderem esses factos ser admitidos por o não ter sido o articulado superveniente em que foram alegados, sendo que a prova produzida também não poderia permitir julgar os mesmos por provados, muito menos com o fundamento de serem factos notórios, devendo por isso passar a constar dos factos não provados. Pelas mesmas razões, deveria ainda ser alterada, em consequência, a redação do ponto 15 dos factos provados, por forma a ficar por assente que o R. continua ainda a ser titular de 101.533 ações da mesma SAD.
O Recorrido veio chamar a atenção para o facto de o Tribunal da Relação de Lisboa já ter entretanto decidido confirmar a admissão do articulado superveniente, defendendo que o recurso deveria ser rejeitado por falta de indicação precisa nas conclusões do recurso das passagens das gravações de depoimentos em que se sustenta a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Sem prejuízo, sustentou que os factos impugnados deveriam continuar provados em face da prova junta, nomeadamente já com as contra-alegações, e do direito aplicável.
Apreciando, importa ter em consideração que o Art. 662º n.º 1 do C.P.C. estabelece que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
A este normativo acresce que, nos termos do Art. 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Sendo que ao Recorrido caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
A este propósito, escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/5/2016 (Relatado por Maria Amélia Ribeiro - Proc. n.º 1393/08) que: «É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum».
No Acórdão da Relação do Porto de 6/3/2017 (Relator: Miguel Morais, Proc. n.º 632/14), afirma-se que: «tal como se impõe que o Tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas, nos termos do Art. 607º, nº 4), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando, designadamente, reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos ou indicar, de forma acrítica, um determinado documento.
«Deste modo, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados.
«Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo “impunham decisão diversa da recorrida” constante da 2ª parte da al. b) do n.º 1 do Art. 640º, acentuando-se que o cabal exercício do princípio do contraditório pela parte contrária impõe que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante».
No entanto, não basta a explicitação na fundamentação do recurso da discordância quanto à decisão de facto proferida, através da análise crítica da valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, pois importa também sempre especificar os factos que concretamente são impugnados e qual a decisão que, no entender do Recorrente, deveria caber quanto a cada um deles, sustentando a alteração da decisão sobre os factos impugnados em concretos meios probatórios que levem à conclusão pretendida, o que implica que, sempre que esteja em causa erro na apreciação de prova gravada, o Recorrente deva indicar «com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso».
No caso, não há dúvida que a Recorrente cumpriu os ónus estabelecidos nas al.s a) a c) do n.º 1 do Art. 640.º do C.P.C.. No entanto, o Recorrido, veio sustentar que igual conclusão não se poder retirar quanto ao disposto no Art. 640.º n.º 2 al. a) do C.P.C. por falta de indicação precisa nas conclusões das passagens da gravação em que se funda o recurso, o que deveria conduzir à sua imediata rejeição.
Sucede que, nas alegações de recurso da Recorrente é feita uma única transcrição de um depoimento testemunhal, relativo à testemunha RC, tendo sido feita a respetiva transcrição das partes tidas por relevantes para a procedência do recurso, especificando-se que esse depoimento foi produzido na audiência de julgamento de 23/09/2021 e refere-se ao “ficheiro 20210923100501_19651935_2871034”, reportando-se à gravação ocorrida do minuto “43:45 até 47:07”. Portanto, não se pode sequer dizer que não foi cumprido o ónus previsto na al. a) do n.º 2 do Art. 640.º do C.P.C..
Sustenta, no entanto, o Recorrido que o cumprimento desses ónus deveria constar das conclusões do recurso e, como tal não se verificaria, seria motivo suficiente para a sua rejeição. Mas, com o devido respeito, julgamos que não assiste razão ao Recorrido, pois a admitir-se semelhante interpretação levar-nos-ia a soluções excessivamente formalistas, não admissíveis perante a Constituição e a lei.
Em todo o caso, a este propósito, Abrantes Geraldes (in “Dos Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4.ª Ed., pág. 159), quando se reporta à inserção sistemática nas alegações de recurso relativamente à especificação dos concretos meios probatórios e indicação exata das passagens da gravação em que o recorrente funda o seu recurso, não tem dúvida em colocá-las na motivação, ou seja no corpo das alegações, e não nas conclusões, ou seja na parte final conclusiva do recurso. Esclarecendo em anotação (nota 264) que se deve considerar razoavelmente preenchido o ónus de alegação neste campo se, «em lugar de um sincopada e por vezes estéril localização temporal dos segmentos dos depoimentos gravados, o recorrente optar por transcrever esses trechos, ilustrando de forma mais completa e inteligível os motivos das pretendidas modificações da matéria de facto». O mesmo autor, no mesmo lugar, também vinca a ideia de que o propósito da lei é impedir que a impugnação se transforme numa mera manifestação de inconformismo do recorrente, impondo-se por isso um rigor, responsabilizante para o Recorrente, a que deve corresponder um esforço, por parte da Relação, no sentido de reapreciar a decisão recorrida, não se podendo exponenciar os requisitos formais a ponto de ser violado o princípio da proporcionalidade e ser denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto em termos que não se encontram sustentados na letra ou no espírito do legislador.
Na mesma linha, o espírito do legislador é resumido no que a propósito foi dito no Acórdão do S.T.J. de 19/1/2016 (Relator: Sebastião Póvoas – Proc. n.º 3316/10.4TBLRA.C1.S1, também acessível em www.dgsi.pt), onde se pode ler que: «a falta de indicação exata e precisa do segmento da gravação em que se funda o recurso, nos termos da al. a) do n.º 2 do Art. 640.º do C.P.C. não implica, por si só, a rejeição do pedido de impugnação sobre a decisão de facto, desde que o recorrente se reporte à fixação eletrónica/digital e transcreva os excertos que entenda relevantes de forma a permitir a reanálise dos factos e o contraditório». Concluindo depois que, se assim se não entendesse «cair-se-ia num excesso de formalismo e rigor que a dogmática processual, hoje mais agilizada e célere, pretende evitar». (sic)
Dito isto, julgamos que a Recorrente cumpriu suficientemente os ónus estabelecidos na lei de processo, pelo que deveremos apreciar da bondade da impugnação apresentada, não existindo qualquer motivo que justifique a rejeição do recurso.
A primeira questão suscitada pela Recorrente sobre a matéria da impugnação da decisão sobre a matéria de facto parte logo da consideração base de que estes factos não poderiam sequer ter sido relevados, porquanto só foram alegados em articulados superveniente, cuja admissibilidade foi posta em crise pela A., ao recorrer autonomamente do despacho que a autorizou.
Efetivamente, podemos constatar que a A. recorreu desse despacho, mas o correspondente recurso de apelação, que constitui o apenso “A”, veio a ser decidido pela 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 6 de janeiro de 2022, que manteve a decisão de admissão do articulado superveniente, proferida pela 1.ª instância em 23/9/2021.
Tendo em atenção que esse acórdão, entretanto, já transitou em julgado, é inquestionável que a sentença se limitou a relevar factos alegados pelo R. em articulados superveniente, que foi devidamente admitido nos termos do Art. 588.º n.º 3 do C.P.C., tendo assim sido respeitado o Art. 5.º n.º 1 do C.P.C. na fundamentação fáctica da decisão aqui recorrida.
Debruçando-nos agora sobre os fundamentos da impugnação propriamente dita, o Recorrente expende argumentação que gira muito à volta da insuficiência da prova produzida, da impossibilidade de poder ser considerado que a transmissão das ações pode ser tida como facto notório, nos termos do Art. 412.º do C.P.C., e da circunstância desse tipo de transação de valores mobiliários estar sujeita a formalismos que não dispensariam prova documental, não se podendo sequer admitir que esses factos se pudessem ter por assentes só pela alegada admissão de que a A., aqui Recorrente, deles pudesse ter dito que teve conhecimento.
Desde já podemos adiantar que a transmissão das ações em causa nos factos impugnados pela Recorrente, mesmo considerando a notoriedade das entidades envolvidas, só muito discutivelmente poderiam ser tomada como “facto notório”.
Manuel Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil”, Reimpressão 1993, pág. 196) referia-se aos factos notórios do seguinte modo: «são os factos geralmente conhecidos (…) num círculo mais ou menos amplo (…). O seu conhecimento faz parte do saber privado ou cultura geral do juiz. Quanto a saber qual o círculo de pessoas que deve tomar-se em conta para esse efeito, o Prof. Alberto dos Reis ensina que são notórios os factos geralmente conhecidos, em Portugal (não apenas na respetiva circunscrição judicial), pelas pessoas regularmente informadas, isto é, «acessíveis aos meios normais de informação». (sic)
Na verdade, Alberto dos Reis (in “Código do Processo Civil Anotado”, Vol. III, 4.ª Ed., pág.s 259 a 262) identifica na doutrina 2 grupos distintos de posições sobre o conceito de facto notório: os que tomam por base o “critério do conhecimento” e os que tomam por base o “critério do interesse”. Estariam neste segundo grupo Mazzarella e Carnelutti, para os quais relevaria mais o interesse social do facto, do que o grau de conhecimento do mesmo. Factos notórios seria assim “os factos socialmente relevantes” ou “os que interessam à generalidade dos homens e que, por isso, o homem de cultura média tem estímulo de conhecer”. No entanto, Alberto dos Reis considera que as doutrinas exatas são as que põem na base do facto notório a ideia do conhecimento, sendo que «não basta qualquer conhecimento; é indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é, elevado a tal grau de difusão, que o facto pareça, por assim dizer revestido de certeza». Mais à frente refere adotar o conceito preconizado por De Stefano de “facto de conhecimento público”, especificando que não se pode exigir o seu conhecimento pela totalidade dos cidadãos, bastando que a generalidade dos cidadãos de cultura média a eles possa chegar pelos meios normais de informação.
Luís Filipe Pires de Sousa (in “Prova Por Presunção no Direito Civil”, 2013 2.ª Ed., pág.s 73 e 74), explicita que a exigência do conhecimento geral atua em vários âmbitos: a) Na esfera pessoal, o facto notório tem de ser verdadeiro ou falso para a generalidade das pessoas de cultura média, entre as quais o juiz; b) Na esfera cognitiva, tal conhecimento deve integrar a cultura média, de acesso geral e não constituir um saber especializado próprio de um número reduzido de pessoas; c) Na esfera espacial, o facto deve ser conhecido no território que integra as instâncias de recurso. Mas esclarece ainda que: «o juiz não é obrigado a aceitá-los [os factos notórios] se não estiver convencido da verdade da afirmação, não estabelecendo a lei essa imposição ao juiz. Por essa razão, a parte pode litigar em tribunal contra um facto notório, sendo o tribunal soberano mesmo para se impor à vox populi, gozando de liberdade de apreciação. (…) quando o juiz não estiver convencido da veracidade da afirmação notória, admitindo a possibilidade de a afirmação inversa ser verdadeira, deverá inserir esta nos temas de prova (artigo 596.º n.º1 do Código de Processo Civil)».
Ora, no final o que estava aqui em causa era a consideração como facto notório tendo em atenção que o mesmo fora objeto de divulgação noticiosa, nomeadamente pelo jornal “Público”, que reportava determinada transmissão de ações da SAD, operada pelo Clube de Futebol “Os Belenenses” para o Dr. R.S.F.
. Mas essa circunstância dificilmente converte essa divulgação em prova de que o facto efetivamente ocorreu, ou que esse facto seja do conhecimento do público em geral (cfr. Art. 412.º n.º 1 do C.P.C.).
Em todo o caso, encurtando razões, está em causa uma transmissão de ações por parte do R. a favor de terceiro, o que não dispensa o conhecimento sobre a natureza dos valores mobiliários em causa e o modo de transmissão dos mesmos em função da lei aplicável.
O contrato de constituição da A. como sociedade anónima, em anexo ao qual se encontram os respetivos estatutos, apenas refere que a sociedade com a firma “Os Belenenses – Sociedade Desportiva de Futebol, SAD” tem um capital social de 200 milhões de escudos, representado por 200 mil ações nominativas, com o valor nominal de mil escudos, divididas em duas categorias: as de tipo A, detidas diretamente pelo Clube de Futebol “Os Belenenses”, sendo as restantes ações de tipo B (cfr. artigos primeiro, quinto a sétimo dos estatutos da SAD  - doc. de fls. 134 a 146 – v.g. fls. 138 verso a 140). O que pouco esclarece para além de que foi respeitado o Regime Jurídico das Sociedades Desportivas aprovado pelo Dec.Lei n.º 10/2013 de 25/1 (v.g. Art.s 2.º, 8.º n.º 2 e 10.º).
No contrato de compra e venda de ações de 12 de dezembro de 2012, celebrado entre o Clube de Futebol “Os Belenenses”, a Beleminvest SGPS, S.A. e a Codecity Sports Management, Lda., não se identificam as ações como escriturais ou doutra natureza, mas nos considerandos é dito que as ações objeto desse negócio se encontram depositadas em conta no “Banco Invest” (cfr. considerandos 3. e 5. do doc. de fls. 190 a 195 – v.g. fls.191).
Na cópia do extrato de certidão permanente da matrícula da A. junta a fls. 244 verso, consta que a A. tem o capital social de €4.987.974,06, mas não identifica a natureza das ações. O mesmo se verificando no “Protocolo de repartição de direitos e obrigações” junto de fls. 431 a 439.
Onde aparece referida a natureza das ações é no prospeto de novembro de 2001 relativo à oferta pública de subscrição de ações da SAD (cfr. doc. de fls. 149 a 189). Aí se refere explicitamente que a oferta se reporta a “ações ordinárias, escriturais e nominativas” (vide: fls. 149 verso), o que é repetido na página 14 dos mesmo documento, no ponto 2.3., sob a epígrafe “Categoria e formas de representação”, onde se refere que o capital da SAD emitente é representado por 200.000 ações escriturais e nominativas (cfr. fls. 156).
Essa questão ficou definitivamente dilucidada com a prova documental entretanto junta com as contra-alegações de recurso a fls. 1234 verso a 1235 verso. O primeiro desses documentos então juntos é composto por email dirigido à “IB Central Direitos «centraldieuronext.com» a pedir a confirmação de que as ações representadas pelo código ISIN PTCFBOAM0008 têm natureza escritural, e pela resposta dessa entidade, em email subsequente, a confirmar isso mesmo (cfr. fls. 1234 verso). O segundo é uma declaração do Banco Montepio a certificar que, de acordo com instruções recebidas em 6/7/2021, foram transferidas “102.571 ações escriturais nominativas Belenenses Soc. Desportiva Futebol, SAD” da conta titulada pelo Clube de Futebol “Os Belenenses” para outra conta titulada por R. P.M.S.F. (cfr. doc. de fls. 1235 verso).
Portanto, assentamos na conclusão de que estamos perante uma alegada transmissão de ações escriturais e nominativas.
Conforme refere A. Barreto Menezes Cordeiro (in “Manual de Direito dos Valores Mobiliários”, 2.ª Ed. atualizada, págs. 158 a 160), o termo ação é um vocábulo polissémico que preenche 4 sentidos distintos: (1) como participação social; (2) como fração do capital social; (3) como forma de representação; e (4) como valor mobiliário. Esta última aceção não será verdadeiramente distinta das demais, mas realça a sua caraterística como valor transacionável. Aliás, é logo o primeiro dos valores mobiliários identificados no Código dos Valores Mobiliários (CVM) aprovado pelo Dec.Lei n.º 486/99 de 13 de novembro, que já conta com 47 alterações legislativas (v.g. Art. 1.º n.º 1 al. a) do CVM).
Recorde-se que, por imposição do Art. 52.º do CVM, atualmente todos os valores mobiliários são nominativos, não sendo já permitida a emissão de valores mobiliários ao portador. Mas para além de serem nominativos, de acordo com o Código dos Valores Mobiliários, os valores mobiliários podem ser titulados ou escriturais, o que releva para efeitos da sua representação material e forma de transmissão.
Conforme se estabelece no Art. 46.º n.º 1 do CVM: «1 - Os valores mobiliários são escriturais ou titulados, consoante sejam representados por registos em conta ou por documentos em papel; estes são, neste Código, designados também por títulos». Portanto, sendo as ações em causa nesta ação meramente escriturais, as mesmas estão apenas representadas por registo em conta.
Quanto ao modo de transmissão dos valores mobiliários, reza o Art. 102.º do CVM que: «1 - Os valores mobiliários titulados nominativos transmitem-se por declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o representa.
«2 - A declaração de transmissão entre vivos é efetuada:
«a) Pelo depositário, nos valores mobiliários em depósito não centralizado, que lavra igualmente o respetivo registo na conta do transmissário;
«b) Pelo funcionário judicial competente, quando a transmissão dos valores mobiliários resulte de sentença ou de venda judicial;
«c) Pelo transmitente, em qualquer outra situação. (…).
«4 - Tem legitimidade para requerer o registo junto do emitente qualquer das entidades referidas nos n.os 2 e 3.
«5 - A transmissão produz efeitos a partir da data do requerimento de registo junto do emitente.
«6 - Os registos junto do emitente, relativos aos títulos nominativos, são gratuitos».
«7 - O emitente não pode, para qualquer efeito, opor ao interessado a falta de realização de um registo que devesse ter efetuado nos termos dos números anteriores».
No entanto, o Art. 80.º n.º 1 do CVM estabelece que: «1 - Os valores mobiliários escriturais transmitem-se pelo registo na conta do adquirente». Mecanismos que se aplica igualmente aos valores mobiliários titulados, desde que integrados em sistema centralizado (cfr. Art. 105.º do CVM). Portanto, quanto a estes tudo se passa através duma mera operação de lançamento a débito na conta de origem e a crédito na conta de destino.
 Ou seja, a transmissão de ações escriturais (portanto, “não tituladas”, tendo em atenção a distinção dicotómica estabelecida no Art. 46.º n.º 1 do CVM) fora de bolsa, não está dependente dos requisitos formais do Art. 102.º do CVM, bastando o seu registo a crédito na conta do adquirente (cfr. Art. 80.º n.º 1 do CVM).
Recorde-se ainda que esta matéria da transmissão das ações passou a ser regulada exclusivamente pelo CVM, tendo sido revogadas as normas que anteriormente eram estabelecidas a esse propósito no Código das Sociedades Comerciais.
Partindo destes pressupostos legais, que enquadram em termos muito gerais esta matéria, em causa está a impugnação dos factos provados em 15 e 30 a 32. Sendo que, no ponto 15 está assente que o R. detinha 101.153 ações da categoria A, correspondente a 10% do capital social da A., pois no ponto 30 ficou ainda a constar que em 3/7/2020 o R. alienou essas ações ao Dr. R.S.F. Já no ponto 31 consta que o R., vendedor, e bem assim o adquirente, comunicaram a realização dessa venda à A., enquanto sociedade emitente e entidade registadora dos valores mobiliários, e também à CMVM, sendo que no ponto 32 ficou provado que o R. solicitou a transferência das ações da sua conta para a conta do adquirente.
A sentença sustentou a sua convicção relativamente aos pontos 30 a 32, nos seguintes termos: «(…) a factualidade relativa aos pontos 30. a 32. emerge, consabidamente, do requerimento apresentado pelo Réu em 17.11.2020 (ref. 27736118) e dos documentos aí juntos como doc. 2 e 3 – notificação da compra à Autora e à CMVM, conforme cópias a fls. 743 vº e 744 dos autos – e posteriormente alegado, novamente, em sede de articulado superveniente, com o qual foi junto, em cópia, o comprovativo da operação bancária de transferência da carteira de títulos, mencionada no ponto 32. (fls. 1121 vº dos autos).
«(…)Esta constitui uma factualidade sempre haveria de dever ser adicionada ao elenco de factos apurados no âmbito da presente ação (…). Na verdade, não só estes factos já haviam sido trazidos aos autos em momento anterior, que nem o Tribunal, nem a Autora questionaram (mediante o já referido requerimento de 17.11.2020: véspera da primeira data agendada para realização da audiência final, entretanto dada sem efeito, conforme consta da respetiva ata), como, também, constituem, já, factos notórios, por serem do conhecimento público, aos quais o Tribunal sempre deveria atender (cf. artigos 5º, n.º 2, c) e 412º, n.º 1 do C.P.C.).
«A isto, acresce a circunstância de a própria Autora ter revelado, em diversos pontos dos autos, que deles tem perfeito conhecimento; destaca-se, aqui, a menção aos mesmos feita pela testemunha RC, no depoimento que prestou em juízo, e a assunção pública, pela Autora, de que tal operação de venda é nula – o que pressupõe, naturalmente, o reconhecimento de que tal facto efetivamente ocorreu (veja-se, por exemplo, a notícia do jornal “Público” de 17.07.2017, disponível em https://www.publico.pt/2020/07/17/desporto/noticia/belenenses-sad-considera-nula-venda-accoes-clube-1924784).
«(…)Finalmente, quanto à testemunha RS, que depôs na qualidade de sócio do Réu, com responsabilidades associativas em diversas áreas desportivas do Clube, este salientou, com utilidade, dada a razão de ciência manifestada, que, atualmente e desde a cessação do Protocolo, o dia-a-dia associativo acontece sem qualquer interação entre SAD e Clube, podendo ser considerado como um “não tema”, que apenas é “ressuscitado” a propósito de processos judiciais como o presente».
Antes de avançarmos mais, cumpre aqui chamar a atenção que estamos perante uma impugnação da decisão sobre a matéria de facto, ou seja, perante a valoração da prova produzida sobre a realidade de determinados eventos em concreto, desconsiderando, portanto, qualificações jurídicas dos mesmos, o que afasta apreciações relacionadas com a alegada invalidade formal ou substancial dos negócios que lhes possam estar subjacentes, nomeadamente por se poder entender que possam violar limitações impostas por lei, como sejam a que é estabelecida no Art. 23.º n.º 1 do Regime Jurídico das Sociedades Desportivas.
Dito isto, os documentos juntos com o requerimento de 17/11/2020, de fls. 743 verso e 744 (doc. n.º 2 e 3), no mínimo provam que foram escritas as cartas destinadas ao cumprimento da formalidade legal do Art. 16.º n.º 1 al. a) do CVM, ou seja da obrigação de comunicação da venda das ações, de valor igual ou superior a 10%, à CMVM e à sociedade participada. Sendo que do depoimento da testemunha RC, transcrito nas alegações de recurso da Recorrente, consta pelo menos a confirmação da receção da carta dirigida à SAD (cfr. fls. 1176 verso). Acresce que, no requerimento de 2/12/2020, destinado a exercer o direito de resposta à junção desses documentos (cfr. fls. 889 a 893), resulta que a A. não se opôs à junção dos documentos n.º 2 e 3 atrás mencionados, não impugnou o teor ou autoria dessas cartas, limitando-se a tecer considerações sobre a forma como obteve conhecimento dessa venda, que foi levada pela direção e pelo presidente da assembleia geral da A. para discussão do assunto na assembleia (cfr. fls. 889 verso). Portanto, na verdade, logo que apresentados, esses documentos não foram impugnados, nem os factos que os mesmos poderiam provar, que se resumem à constatação de que por eles se pretendeu dar cumprimento à obrigação constante do Art. 16.º n.º 1 al. a) do CVM, por cartas datadas de 3 de julho de 2020, cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 743 verso e fls. 744.
Os factos ora impugnados neste recurso de apelação, como já vimos, vieram posteriormente a ser expressamente alegados em articulado superveniente a 1 de setembro de 2021 (cfr. fls. 1120 a 1121), o qual foi admitido por despacho de 23 de setembro de 2021, constante da ata de audiência final de fls. 1127, que ordenou o cumprimento do contraditório, sendo que a A. logo apresentou resposta na própria audiência (cfr. fls. 1127 verso).
Portanto, trata-se de matéria de facto alegada, sujeita a contraditório pleno e sobre a qual já havia sido produzida prova, nomeadamente documental (mas também testemunhal) que não tinha sido impugnada.
Assim sendo, em face do teor das cartas de fls. 743 verso e fls. 744, conjugado com o depoimento da testemunha RC, motivos não existem para que o facto constante do ponto 31 não subsista como provado.
De igual modo, ao contrário do que é sustentado nas alegações de recurso, o teor da carta dirigida à A. (doc. de fls. 743 verso), conjugada com o depoimento da testemunha RC, que confirma a sua receção pela A., também suporta a prova do facto mencionado no ponto 32, sendo que a essa prova deve agora ser aditado ainda o teor da declaração do Banco Montepio, junta com as contra-alegações a fls. 1235 verso, que é consentânea com a dinâmica iniciada por aquelas cartas de 3 de julho de 2020. Portanto, o facto constante do ponto 32 também deve subsistir nos factos provados, não vendo nós que tivesse sido posta em crise a convicção a que o Tribunal a quo chegou a este propósito.
É o mesmo conjunto de prova ora mencionado que nos permite julgar que se encontra suficientemente demonstrado que o negócio da compra e venda de ações efetivamente ocorreu (cfr. facto provado no ponto 30), mesmo que possa ser tido por inválido por violação do Art. 23.º n.º 1 da LSD – questão que apenas tem a ver com o direito aplicável e não com a realidade do evento concreto em causa.
De facto, temos de reconhecer que não foi junto aos autos qualquer documento escrito, ou doutra natureza, que formalizasse efetivamente a compra e venda propriamente dita, acordada entre o R. e o terceiro adquirente. No entanto, recorde-se que o contrato de compra e venda, em si mesmo considerado, que estará subjacente à transmissão de ações escriturais, não está sujeito a forma legal.
Ao contrário do que sucede com a transmissão de valores mobiliários titulados nominativos, que pressupõe declaração escrita de transmissão, seguida de registo (cfr. Art. 102.º n.º 1 do CVM), os valores mobiliários meramente escriturais podem ter subjacente qualquer tipo de contrato, para o qual a lei não estabelece a observância de forma necessária, embora depois exija o seu registo na conta do adquirente (cfr. Art. 80.º n.º 1 do CVM).
Em todo o caso, também deveremos acrescentar que as cartas juntas aos autos a comunicar a ocorrência da compra e venda das ações mostram-se subscritas pelo comprador e pelo vendedor (cfr. doc.s de fls. 743 verso e fls. 744), não tendo sido impugnada a autoria e qualidade em que os seus subscritores assim agiram. Mais, em função do seu teor, essas cartas correspondem claramente à manifestação por escrito da confirmação da existência da vontade concordante das partes sobre essa transação. Portanto, mesmo tratando-se de comunicações destinadas a dar cumprimento ao disposto no Art. 16.º n.º 1 al. a) do CVM, essa prova documental expressa simultaneamente a existência entre as partes declarantes de um acordo de transmissão das ações, a que estará subjacente, segundo a comunicação dos intervenientes nesse negócio, um contrato de compra e venda, o que nos permite concluir no sentido de que foi feita prova do facto provado em 30.
Esse acordo de transmissão, em si mesmo considerado, como vimos, não está sujeito a forma legal, mas em todo o caso estará ainda condicionado pela formalidade legal estabelecida no Art. 80.º n.º 1 do CVM. Mas, para este efeito há que ter em atenção que o Banco Montepio já executou formalmente a operação de débito e crédito nas contas tituladas pelo vendedor e pelo comprador (cfr. doc. de fls. 1235 verso), sendo que o registo da operação na entidade emitente das ações, que é a própria A., deverá ser uma mera decorrência da receção da carta de fls. 743 verso, o que foi demonstrado por prova testemunhal produzida em audiência. Portanto, para os efeitos desta ação, porque não estão em causa direitos de terceiros ou a oponibilidade do ato perante terceiros, basta que esteja garantida a eficácia entre as partes aqui litígio da comunicação da transmissão das ações.
Certo é ainda que, uma vez que o Banco Montepio debitou esses valores mobiliários na conta em nome do R. (cfr. cit. doc. de fls. 1235 verso), este já não é “detentor” das ações da categoria “A”, correspondentes a 10% do capital social da A., pois essas ações estarão agora na “detenção”, pelo menos de facto, do Dr. R.S.F. (desconsiderando, portanto, qualquer outra discussão de natureza meramente jurídica). Por isso, não existem motivos para alterar a redação do ponto 15 dos factos provados no sentido, proposto pelo Recorrente, de que ainda hoje continua o R. a ser detentor dessas ações. Aí a discussão subjacente a essa impugnação, na verdade, não é de natureza fáctica ou relativa à valoração da prova, mas apenas jurídica, devendo essas questões serem apreciadas no lugar próprio.
Em suma, pelas razões expostas, não vemos motivo algum para alterar a factualidade dada por provada na sentença recorrida, improcedendo as conclusões que sustentam o contrário.
2. A declaração de que o R. é o Clube Fundador da A. e de que esta é a sociedade desportiva da modalidade de futebol do R., tendo em consideração a (in)validade da venda total das ações pelo R..
Fixados os factos provados, cumpre então agora apreciar o mérito da causa, relembrando que, por força da redução da instância operada no despacho saneador, motivada pela procedência da exceção da incompetência absoluta do Tribunal Cível para apreciar alguns dos pedidos inicialmente formulados pela A., ficaram apenas por apreciar as seguintes pretensões:
a) Declarar que o R. é o Clube Fundador da A.;
b) Declarar que a A. é a sociedade desportiva da modalidade de futebol do R.;
c) Declarar que a A. foi constituída pela personalização da equipa de futebol do Belenenses;
d) Declarar que o R. só pode participar nas competições profissionais de futebol através de uma sociedade desportiva de futebol e que, para tal participação, o R. já constituiu a sociedade desportiva de futebol ora A., estando impedido de constituir uma nova sociedade desportiva de futebol;
e) Condenar o R. a abster-se de, em qualquer momento ou por qualquer modo, declarar que o mesmo poderá vir a disputar qualquer competição profissional de futebol, nomeadamente a I ou a II Ligas, sem ser através da A. enquanto sua sociedade desportiva de futebol; e
f) Condenar o R. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, de valor não inferior a € 1.000 por cada dia de violação da condenação referida em e).
A sentença recorrida limitou-se a declarar que a A. foi constituída pela personalização jurídica da equipa de futebol do R.. Ou seja, apenas julgou procedente a pretensão identificada na alínea c), absolvendo o R. dos demais pedidos.
A Recorrente entende que todos os restantes pedidos, identificados nas alíneas a), b), d), e) e f) deveriam ser julgados igualmente por procedentes, sendo que o Recorrido pugna pela subsistência da sentença recorrida.
Considerando a ordem por que as questões foram agregadas pelo Recorrente nas suas alegações de recurso, cumprirá então começarmos pelos pedidos identificados em a) e b) da sentença recorrida.
Quanto ao pedido de declaração de que o R. é o Clube Fundador da A. (al. a), a sentença recorrida julgou no sentido de que o R. foi o clube fundador da A., mas deixou de ser, tendo em atenção que o R. vendeu as ações que detinha sobre o capital social da A..
A Recorrente não concorda com esse julgamento, porquanto a venda das ações, a ter ocorrido, seria nula, em primeiro lugar, por inobservância das formalidades legais do Art. 102.º do CVM, e em segundo lugar, por violar o Art. 23.º n.º 1 e o Art. 10.º da LSD.
Quanto à validade da venda das ações, por inobservância das formalidades previstas no Art. 102.º do CVM, já vimos no ponto 1. do presente acórdão que, em face da natureza das ações em causa, por serem meramente escriturais, apesar de nominativas, não estão subordinadas ao regime do Art. 102.º n.º 1 da CVM, que claramente apenas se aplica às ações nominativas tituladas. Ás ações nominativas escriturais tem aplicação o disposto no Art. 80.º n.º 1 do CVM, que não exige forma legal ao contrato subjacente à transação desses valores mobiliários, mas condiciona (se não a validade, pelo menos, a eficácia) a sua transmissão ao registo da operação na conta do adquirente. O que já se deve ter por consumado, pelo menos relativamente à A., como resulta da discussão da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e da correspondente prova.
Como bem se sustentou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/10/2021 (Proc. n.º 939/16.1T8LSB.L1.S1 – Relator: João Cura Mariano, disponível em www.dgsi.pt): «I. São conhecidas as dúvidas e divergências sobre se a transmissão da titularidade das ações, enquanto valores mobiliários, ocorre solo consensu, ou se, pelo contrário, o contrato em que se acorde essa transmissão apenas tem efeitos obrigacionais, dele apenas resultando o dever e o direito à transmissão pelo modo previsto na lei, que, no caso das ações nominativas, é o previsto no referido artigo 102.º, n.º 1, do Código dos Valores Mobiliários. II. Independentemente do posicionamento adotado na querela acima referida, as formalidades previstas naquele preceito - declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto de intermediário financeiro que o representa não correspondem, em qualquer das referidas perspetivas, a exigências de forma do negócio subjacente, em que as partes manifestam a sua vontade de proceder à transmissão das ações, pelo que a não verificação dessas formalidade nunca poderá afetar a validade formal desse contrato» (sublinhado nosso). Acrescentando-se na fundamentação que: «Na verdade, seja a compra e venda de ações tituladas nominativas um contrato real quoad effectum ou meramente quoad constitucionem, o disposto no artigo 102.º do Código dos Valores Mobiliários, não se lhe aplica, sendo ele regulado pelas regras do Código Civil, designadamente pelo disposto nos artigos 874.º e seguintes, pelo que a não observância dessas formalidades poderá, consoante as perspetivas, não produzir efeitos, relativamente a terceiros e à sociedade, ou traduzir-se num incumprimento do contrato, mas nunca afetará a validade formal do mesmo, não sendo causa da sua invalidade (Neste sentido, coincidem defensores de ambas as teses, como, por um lado, PEDRO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., pág. 98, EVARISTO MENDES, Nota sobre o princípio da consensualidade na transmissão de ações valores mobiliários, cit., pág. 42, e, por outro lado, COUTINHO DE ABREU, ob. cit., pág. 349, VERA EIRÓ, ob. cit., pág. 168, e ANA AFONSO, ob. cit., pág. 71, assim tendo também decidido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.05.2008 (…)».
Portanto, se até para as ações nominativas tituladas o Supremo Tribunal de Justiça, suportado em doutrina que cruza as várias soluções discutidas sobre a natureza real do contrato de compra e venda de ações, admite a inexistência de formalidade legal para a validade do negócio subjacente à transmissão das ações, por maioria de razão se chega à mesma conclusão para a transmissão de ações meramente escriturais, para as quais a lei apenas estabelece a necessidade de registo na conta do adquirente, nada referindo sobre a forma do negócio causal que lhe possa estar subjacente.
Em suma, a questão da validade formal do negócio de compra e venda das ações não se pode colocar, pois está assente que foi operada a transmissão material das ações escriturais em nome do R., as quais já se mostram depositadas em conta em nome do adquirente, o que deve ser conjugado ainda com as correspondentes comunicações à CMVM e à sociedade emitente, no caso, a própria A.. Portanto, está garantida a eficácia entre as partes litigantes da operação de transmissão das ações, sendo esse o objetivo principal do registo.
Assim, a questão coloca-se apenas em termos de validade substancial do negócio de venda das ações do R. a terceiro.
Decorre dos factos provados que a A. é uma Sociedade Anónima Desportiva (SAD) que tem por objeto principal a participação em competições profissionais de futebol (Facto provado 1), tendo sido constituída por escritura pública de 18 de novembro de 1999, pela personalização da equipa de futebol do R. (Facto provado 6), que é uma associação desportiva que foi constituída em 23 de setembro de 1919 para a prática do futebol (Facto provado 2).
A justificação para esta situação atual é-nos identificada em termos gerais por Maria Ana Capelo (in “As Sociedades Desportivas no ordenamento jurídico português” dissertação de mestrado disponível em “https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16444/1/VFINAL%20-%20AS%20SOCIEDADES%20DESPORTIVAS.pdf”), nos seguintes termos: «os clubes desportivos de cariz associativo, participando em competições desportivas de carácter profissional, revelavam necessidade de ajustar a sua estrutura e modo de funcionamento a um nível de profissionalismo e rigor, que não se coadunava com a essência de uma associação, em particular, com uma associação gerida de forma muito emotiva e pouco racional. As SD [Sociedades Desportivas] vieram renovar as organizações desportivas existentes – os clubes desportivos – conferindo-lhes um conjunto de características imprescindíveis à boa gestão da sua participação numa determinada competição desportiva de carácter profissional. Essencialmente surgiram com o intuito de sanar os resultados profundamente negativos da convivência entre estruturas como os clubes desportivos e o desporto profissional, designadamente o endividamento excessivo, especialmente público, e incontrolado em que os clubes desportivos se viam mergulhados, em virtude de modelos de gestão descuidados, pouco transparentes e eficientes».
Na mesma linha refere a Professora Maria Raquel Rei (in “Sociedades Anónimas Desportivas – Fim lucrativo” - Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, vol. IV, pág. 281 e seguintes): «o que moveu o legislador na consagração de um novo modelo de organização desportiva (…), foi (…) em particular o forte endividamento, máxime público (perante o fisco e a segurança social) e a ausência de controlo e gestão de importantes fluxos de dinheiro gerado pela atividade desportiva profissional e de responsabilização das pessoas que geriam esses fluxos».
Ainda neste contexto, a criação da A. acaba também por resultar da circunstância de a participação em competições profissionais desportivas de clubes de futebol, como era o caso do “Belenenses”, ter passado a estar condicionada à constituição duma entidade societária subordinada às regras estabelecidas pelo Regime Jurídico das Sociedades Desportivas.
Veja-se, a este propósito, que, nos termos do “Regulamento das Competições” da Liga Portugal (doc. junto de fls. 354 a 421), que organiza as competições desportivas profissionais de futebol da I liga, II liga e da Taça da Liga (cfr. Artigo 7.º n.º 1 – cit. doc. a fls. 358), os clubes participantes na Liga NOS e na LEDMAN LigaPro devem necessariamente constituir-se, nos termos da lei, sob a forma de sociedades desportivas (cfr. Art. 9.º n.º 1 – cit. doc. a fls. 358 verso).
Toda esta regulamentação veio a nascer no quadro do Despacho n.º 12.692/2011 de 16 de setembro, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 184, de 23 de Setembro, que criou um grupo de trabalho, coordenado por Paulo Olavo Cunha, que elaborou uma proposta para um novo regime geral que, entre outros aspetos, passava pela obrigatoriedade de constituição de sociedades desportivas.
O Regime Jurídico das Sociedades Desportivas (RSD) é hoje estabelecido no Dec.Lei n.º 10/2013 de 25 de janeiro, que revogou o anterior Dec.Lei n.º 67/97 de 3 de abril, alterado pela Lei n.º 107/97, de 16 de setembro, e pelos Decretos-Leis n.ºs 303/99, de 6 de agosto, e 76-A/2006, de 29 de março.
O preambulo desse diploma legal justifica as alterações introduzidas por se ter constatado que a possibilidade do clube se manter como tal para participar nas competições profissionais desportivas, adotando somente um regime especial de gestão veio, devido aos inúmeros e rentáveis interesses, designadamente de natureza económica que gravitam em torno do desporto de alto rendimento, evidenciar uma desigualdade relativamente a entidades desportivas que haviam assumido uma forma jurídica societária, o que desvirtuava a concorrência e prejudicava a competitividade e a verdade desportiva, e o desporto em particular, dado que os preceitos a aplicar entre as várias organizações não eram verdadeiramente idênticos. Assim, tornou-se necessário criar novas formas jurídicas que esbatessem a apontada desigualdade e colocassem todos os participantes dessas competições no mesmo patamar, com obrigações e deveres análogos.
Em conformidade, por esse diploma visou-se regular a forma como os clubes, que pretendam participar em competições desportivas profissionais, se devem organizar como sociedades desportivas (cfr. Art. 1.º n.º 1 do RSD).
Nos termos do Art. 2.º n.º 1 do RSD as Sociedades Desportivas são pessoas coletivas de direito privado constituídas sob a forma de sociedade anónima ou de sociedade unipessoal por quotas, cujo objeto consista na participação numa ou mais modalidades, em competições desportivas, na promoção e organização de espetáculos desportivos e no fomento ou desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática desportiva da modalidade ou modalidades que estas sociedades têm por objeto.
Por força do Art. 3º do RSD, a sociedade desportiva pode ser constituída de raiz, por transformação de um clube desportivo ou, ainda, pela personalização jurídica de uma equipa que participe ou pretenda participar em competições desportivas. No caso, o R. optou pela constituição duma Sociedade Anónima Desportiva pela via da “personalização jurídica da equipa de futebol”. É isso mesmo que resulta da escritura de constituição da A. e do artigo primeiro número dois dos seus estatutos (cfr. doc. a fls. 133 a 146 – v.g. fls.138 verso).
Conforme se refere no parecer jurídico junto aos autos da autoria da Prof.ª Maria de Fátima Ribeiro (fls. 835 a 880), esta opção sustenta-se na possibilidade de um clube poder manter a sua identidade associativa e, simultaneamente, beneficiar de um regime legal que lhe é particularmente favorável enquanto sócio. Mas para esse efeito exige-se que o clube tenha uma participação social de pelo menos 10% (cfr. Art. 23.º n.º 1 da RSD) - (vide: citado parecer a fls. 842). Nestas condições,  «o clube pré-existe à sociedade desportiva (…) subsiste a par da sociedade constituída» (cfr. parecer jurídico do Professor Pedro Maia, junto de fls. 441 a 470, v.g. a fls. 446 verso).
Mas, para haver personificação da equipa é necessário que a equipa seja “identificável”, no sentido de que a unidade que o clube destacou do seu património como sendo a sua equipa, seja reconhecível, depois, na esfera jurídica da sociedade desportiva como sendo a mesma equipa. Trata-se, portanto, de um bem pré-existente na esfera de um clube, que este transfere para a sociedade desportiva, o qual assenta em elementos corpóreos ou incorpóreos (como sejam as posições em contratos de trabalho com os atletas), mas que têm de se acompanhar de elementos que permitam “o reconhecimento externo dessa identidade”, «isto é, elementos que permitam reconhecer e identificar num conjunto de atletas (…) equipa que era do clube e passou a ser da sociedade desportiva»  (cfr. cit. parecer jurídico do Prof. Pedro Maia a fls. 447).
Evidentemente que os atletas do clube que compõem o seu plantel são uma realidade que no senso comum correspondem a uma “equipa”. Mas o legislador não se quis referir a essa realidade. No entender Pedro Maia, seguindo de perto Fátima Ribeiro (in Sociedades Desportivas, Universidade Católica Editora, 2.ª Ed., 2017, pág. 73): «A equipa” é um bem complexo, um conjunto de direitos e obrigações de que um clube é titular e que se encontram afetos à participação na competição desportiva de futebol profissional. A “equipa”, conforme resulta da lei, não se define pelo “quem”, mas sobretudo pelo “para quê”: é um conjunto de meios (direitos de participação numa competição, contratos de trabalho desportivos, contratos de trabalho técnicos, instalações, etc.) destinados à participação na competição desportiva profissional. (…) é como organização (…) vasta e complexa, de meios destinados à intervenção na competição desportiva profissional que a “equipa” tem de ser entendida (…) é muito mais que um mero “plantel” (…). (…) consistindo numa organização de meios, destinada ao exercício de uma atividade de caráter inegavelmente económico, é irrecusável a qualificação da “equipa” (…) como um estabelecimento ou empresa (…) […]uma organização de capital e de trabalho destinada ao exercício duma atividade económica» (cfr. cit. Parecer a fls. 452 a verso). E, «sendo a “Equipa”, para estes efeitos, um estabelecimento comercial (…) a constituição da SAD, baseando-se na transferência da “equipa” do Clube para SAD, assimila-se a um trespasse – posto tratar-se da transmissão, a título definitivo, dessa organização – embora parcial – a posto o objeto transmitido ter sido destacado de uma organização mais ampla em que se encontra inserido (o clube)» (cfr. cit. Parecer a fls. 452).
Nesse negócio de transmissão e personalização da equipa de futebol assumem particular importância os elementos que identificam essa organização e a projetam publicamente, de tal modo que os elementos que servem essa identificação se tornam imprescindíveis para identificar e transportar o valor da posição que a organização goza. Destacam-se nesse particular o uso dos sinais distintivos, como sejam os símbolos do clube, que se referem essencialmente, no caso do “Belenenses”, ao uso de equipamento desportivo com predominância da cor azul, ao símbolo da cruz de cristo e ao emblema característico do “Belenenses”.
Conforme dispõe o Art. 22.º n.º 1 do RSD, no âmbito das sociedades que resultem da personalização jurídica das equipas, o clube fundador pode transferir para a sociedade desportiva a totalidade ou parte dos direitos e obrigações de que é titular que se encontrem afetos à participação nas competições desportivas profissionais da modalidade ou modalidades que integram o objeto da sociedade.
Ainda assim a transmissão da equipa do clube para a SAD pode não comportar necessariamente a transmissão do direito aos símbolos distintivos do clube, mas no mínimo pressupõe que a equipa esteja vinculada ao uso desses símbolos, que pertencem ao clube fundador, ao qual é assegurado o direito de veto relativamente às deliberações da SAD que tenham por objeto precisamente a alteração desses símbolos (Art. 23.º n.º 2 al. a) do RSD).
Sem prejuízo, nos termos do Art. 24.º do RSD, são obrigatória e automaticamente transferidos para a sociedade desportiva os direitos de participação no quadro competitivo em que estava inscrito o clube fundador, bem como os contratos de trabalho desportivos e os contratos de formação desportiva relativos a praticantes da modalidade ou modalidades que constitui ou constituem o objeto da sociedade.
No caso, a escritura de constituição da SAD praticamente nada diz sobre os elementos que objetivamente compõem o “estabelecimento comercial” ou “empresa comercial” em que a “equipa de futebol” se traduzia, mas em complemento foi celebrado entre o Clube fundador e a SAD um “Protocolo de Repartição de Direitos e Obrigações”, com data de 5 de dezembro de 2012 (cfr. doc. de fls. 431 a 439), donde resulta que a SAD teria direito de usar o Estádio do Restelo, propriedade do clube (cláusula segunda); competindo-lhe a si a organização das suas equipas de futebol (cláusula terceira); partilhando ambos dos valores e a história do clube fundador (cláusula nona n.º 1); devendo a SAD obrigatoriamente utilizar os símbolos e emblema do clube (cláusula nona n.º 2); podendo usar a marca “Belenenses”, embora sem direito sobre as marcas registadas (cláusula nona n.º 3 e n.º 4).
Cumpre ainda realçar que também se estabeleceu que esse protocolo vigoraria com efeitos a partir de 1 de junho de 2012 (cláusula décima-segunda n.º 1) e cessaria automaticamente caso o clube deixasse, por qualquer razão, de ser acionista da SAD (cláusula décima-segunda n.º 3 – cit. doc. a fls. 436 verso).
Este foi, portanto, o enquadramento geral suportou a constituição da SAD e que conduziu ao modo como ficou regulada a relação entre aquela e o seu clube fundador.
Certo é que, perante estas realidades jurídicas autónomas e paralelas, mas com ligação umbilical relevante, o legislador sentiu necessidade de fidelizar a sociedade desportiva ao clube fundador, mantendo uma relação de proximidade entre ambos. Por isso, no caso das sociedades desportivas constituídas por transformação do clube desportivo ou pela personalização jurídica da equipa (cfr. Art. 3.º al.s b) e c) do RSD), a denominação da SAD inclui obrigatoriamente menção que as relacione com o clube ou a equipa que lhes dá origem (cfr. Art. 6.º n.º 2 do RSD). Por outro lado, sobreleva ainda que, quanto a SAD é constituída por personalização da equipa do clube fundador (Art. 3.º al. c) do RSD), a participação direta do clube fundador na sociedade não pode ser inferior a 10% do capital social (cfr. Art. 23.º n.º 1 do RSD), sendo que as ações que pertencem ao clube fundador assumem-se como “ações de categoria A” (cfr. Art. 10.º n.º 1 al. a) do RSD), as quais só são suscetíveis de apreensão judicial ou oneração a favor de pessoa coletivas de direito público (cfr. Art. 10.º n.º 2 do RSD).
Sucede que, como vimos, o R., clube fundador da SAD, A. na ação, decidiu vender a totalidade da sua participação social na sociedade que fundou. O que, em função da literalidade da norma estabelecida no Art. 23.º n.º 1 do RSD, pareceria não ser possível. É por força dessa interpretação, que a Recorrente sustenta que essa venda violaria norma imperativa e determinaria a nulidade parcial do negócio de compra e venda das ações do clube a favor de terceiro, na medida em que se compreendessem dentro do limite mínimo de participação social de que o clube fundador deveria ser detentor (cfr. Art. 280.º e 294.º do C.C.).
A sentença recorrida entendeu de forma diversa, considerando que a evolução da lei, no âmbito da proteção do clube fundador, se limita a consagrar um sistema especial de fidelização da sociedade ao clube desportivo de caráter unidirecional, estabelecido em benefício do clube fundador, ao qual é devida fidelidade pela sociedade desportiva. Nessa medida, o conjunto de normas que criam posições jurídicas em benefício do clube fundador não se encontram no perímetro daquelas que a lei ou a doutrina consideram como sendo irrenunciáveis. Por outro lado, entendeu-se que as posições ativas criadas em benefício do clube fundador não são poderes-deveres de exercício vinculado ou de conteúdo de exercício vinculado. Concluiu-se assim que a detenção mínima dos 10% de participação do capital social na Sociedade Desportiva corresponde a um requisito para que o clube fundador possa beneficiar do regime especial de proteção que a lei lhe atribui, mas não se pode partir de um requisito para benefício de um regime legal de proteção do clube fundador para o converter numa obrigação de detenção das ações em qualquer circunstância, que não existe e que não está prevista.
Foi aqui seguido, muito em particular o parecer jurídico junto aos autos pelo Prof. Paulo de Tarso Domingues, quando defende:  «parece indiscutível que ao preceito em questão (o artigo 23º da LSD) preside um intuito de equilíbrio entre dois dos objetivos subjacentes à LSD: por um lado, a promoção da captação de investimento pelos clubes, e, por outro lado, a proteção da posição e dos interesses do clube fundador perante os demais acionistas. No fundo, ao mesmo tempo que criou a possibilidade de um clube fundador de uma sociedade anónima desportiva optar por subscrever tão-só uma percentagem minoritária do capital desta (…), o legislador visou garantir que esta opção não poria em causa a possibilidade de o clube determinar o sentido de certas decisões reputadas como mais relevantes (…) e de poder exercer uma influência decisiva na administração da sociedade (…)» (cfr. parecer a fls. 637 verso e seguintes).
Na verdade Tarso Domingues contesta por completo a natureza imperativa do Art. 23.º n.º 1 do RSD e a conclusão de que estabelece uma regra destinada a vigorar desde a constituição da sociedade até à sua dissolução, sustentando que a interpretação literal desse preceito não seria a mais adequada, no que ao caráter imperativo dessa norma diz respeito.
Assim, sustenta que, em face do elemento histórico da interpretação, o Art. 23.º n.º 1 consagra a mesma regra do Art. 30.º do Dec.Lei n.º 69/97 de 3 de abril, mas com diferença assinaláveis. Por um lado, deixou de haver limite máximo de participação do clube fundador (anteriormente fixado em 40%). Por outro, o limite mínimo baixou de 15% para 10%. Mas, mais relevante foi ainda a circunstância de a lei ter deixado de fazer menção a que esses limites deveriam ser respeitados “a todo o tempo”, expressão que deixou de constar da letra do Art. 23.º n.º 1 do RSD.
Quanto ao elemento sistemático, o mesmo Professor, põe em evidência que o Art. 23.º n.º 1 se insere na Secção II, Capítulo IV, cuja epígrafe é “Direitos especiais e Desportivos”, o que inculcaria a ideia de que se trata de norma atributiva de um direito ao clube fundador, tendo em vista a tutela dos seus interesses.
Quanto ao elemento teleológico, conduz-nos à ratio do preceito, já anteriormente transcrita, relativa aos objetivos prosseguidos pelo legislador de equilíbrio entre a promoção da captação de investimento pelos clubes e a proteção da posição e dos interesses do clube fundador perante os demais acionistas, possibilitando-lhe que não fosse descartado o seu interesse em decisões reputadas como mais relevantes (v.g. Art. 23.º n.º 2 al. a) do RSD) e de poder exercer influência decisiva na gestão, através da designação de administrador e da atribuição de um direito de veto em determinadas deliberações.
A tudo acresce que, se o legislador quisesse que os 10% fossem absolutamente intransmissíveis, tê-lo-ia dito no Art. 14.º, onde se regula a “Proibição e limites à transmissão de participações sociais”, nos seguintes termos: «1 - A quota única é intransmissível. 2 - As ações das sociedades anónimas desportivas não podem ser objeto de limitações à respetiva transmissibilidade». Ou seja, nas Sociedade Desportivas constituídas sob a forma de sociedade por quotas unipessoais, a quota única do clube é intransmissível, vincando assim o caráter pessoal desse tipo de sociedades. Mas, para as sociedades anónimas a regra é a livre transmissibilidade.
No mesmo sentido vai o parecer jurídico de Maria de Fátima Ribeiro (junto de fls. 836 a 880) que afirma desde logo a posição de princípio que uma sociedade desportiva não precisa, para ser constituída e existir como tal, de um clube fundador, sendo que o clube de futebol não pode, como nenhum outro sócio poderá, estar sujeito à imposição de um vínculo jurídico perpétuo e contra a sua vontade, na medida em que isso violaria grosseiramente o princípio da autonomia privada. Sendo por isso que é proibida qualquer limitação à transmissibilidade das ações no Art. 14.º n.º 2 do RSD (cfr. cit. Parecer a fls. 855 verso a 856). A tal acresceria que o próprio protocolo celebrado entre o Clube Fundador e a SAD previam na cláusula 12.ª n.º 3 que o clube poderia deixar, por qualquer razão, de ser acionista da SAD (cfr. cit. parecer a fls. 856 verso).
Ainda no mesmo sentido, o Professor Pedro Sousa e Silva (cfr “Parecer Jurídico” de fls. 1132 a 1152) também defende que a referência ao limite de 10% do capital social constante do Art. 23.º n.º 1 do RSD não parece impedir o clube fundador de alienar a totalidade da sua participação social numa SAD. Esse limite só terá de ser observado no momento inicial da sua constituição, mas não se impõe uma ligação eterna entre as duas entidades, pois comparando a redação do anterior preceito, estabelecido no Art. 30.º n.º 1 do Dec.Lei n.º 67/97, com a redação atual do Art. 23.º n.º 1 do RSD, é sintomática a eliminação da expressão “a todo o tempo”, o que é reforçado pelo disposto no Art. 14.º n.º 2 que impõe a livre transmissibilidade das ações das sociedade anónimas desportivas. A isto acresce que não é prevista qualquer sanção ou consequência jurídica para a redução da participação social do clube fundador abaixo do limiar dos 10% (cfr. cit. Parecer a fls. 1144 verso nota 26).
No parecer do Prof. Pedro Maia (cfr. fls. 431 a 470), que tem um objeto diverso do da presente ação, realça que no Dec.Lei 67/97, ao abrigo do qual a SAD foi constituída, a lei dispunha especificamente sobre a inexistência de um direito de saída do clube fundador, que assim, não gozava sequer do direito ao arrependimento, consagrando a regra da “irreversibilidade”. Mas depois, debruçando-se sobre a nova lei, acaba também por reconhecer que o legislador derrogou em larga medida o direito geral das sociedades no sentido de “fortalecer a posição do sócio-clube”, atribuindo-lhe um conjunto de direitos especiais, essencialmente de cariz negativo relacionados com direitos de veto em assuntos de particular importância.
Nesse parecer é sustentado que a lei impôs uma especial relação entre o clube e a sociedade desportiva, que se caracteriza pelos seguintes princípios:
(i) Princípio de identificação ou afinidade – a sociedade desportiva emana do clube e tem de reconhecer-se, desde logo  através da firma, essa ligação genética ou originária;
(ii) Princípio de unicidade e exclusividade – o clube só pode constituir uma única sociedade desportiva;
(iii) Princípio de irreversibilidade - uma vez constituída a sociedade desportiva, o clube não goza de um direito de saída, nem de um direito de arrependimento;
(iv) Princípio de poder especial negativo – o clube goza de direitos especiais na sociedade desportiva para impedir que sejam alterados determinados aspetos da conformação originária da sociedade, mas não goza do poder de impor decisões.
Ponderando o aí exposto, não há dúvida que à luz do Dec.Lei n.º 67/97, ao abrigo da qual foi constituída a SAD a que se reportam os presentes autos, a questão da irreversibilidade parecia evidente, tendo em atenção que o seu Art. 30.º n.º 1, estabelecia que: «1 - No caso referido na alínea b) do artigo 3.º [sociedade desportiva emergente da personalização da equipa], a participação direta do clube fundador no capital social não poderá ser, a todo o tempo, inferior a 15% nem superior a 40% do respetivo montante»; e ainda do disposto no Art. 4.º, onde se previa que: «O clube desportivo que tiver optado por constituir uma sociedade desportiva ou por personalizar a sua equipa profissional não pode voltar a participar nas competições desportivas de carácter profissional a não ser sob este novo estatuto jurídico». Mas a igual conclusão não se pode chegar necessariamente em face do Art. 23.º n.º 1 do RSD vigente, que, como já vimos, deixou de estabelecer a obrigação de manter a participação social ( agora de valor não inferior a 10%) “a todo o tempo”, sendo que no Art. 4.º n.º 2 deixou de dizer que “não pode voltar a participar nas competições desportivas”, limitando-se a dizer que “só pode participar nas competições desportivas de caráter profissional com o estatuto jurídico de sociedade desportiva”. São subtis as diferenças na letra da lei, mas elas existem e são muito relevantes, na medida em que revelam o espírito das alterações legislativas.
Por outro lado, salvo o devido respeito, o disposto no Art. 10.º n.º 2 do RSD nada tem a ver com a livre transmissibilidade das ações, que é regulada no Art. 14.º n.º 2 do RSD. O propósito do Art. 10.º n.º 2 é apenas o estabelecimento de limites à oneração das ações do clube fundador, que só é permitida relativamente a pessoas coletivas de direito público. Desse preceito, que uma vez mais é estabelecido no propósito de proteger o clube-fundador, enquanto acionista da SAD, relativamente aos interesses de terceiros, nomeadamente de credores, nada se pode concluir sobre a impossibilidade de alienação total das suas participações sociais, que implicam a perda necessária de todos os benefícios inerentes à qualidade de “sócio-fundador”.
Em suma, também tendemos a concordar com as bem fundadas razões expostas no parecer do Prof. Paulo Tarso Domingues, que não podem deixar de nos convencer pelo seu acerto.
No quadro da lei vigente, não se encontra qualquer proibição de um clube de futebol, que já constituiu uma SAD pela personalização da sua equipa, voltar a ter uma nova equipa, sendo certo que para o fazer ao nível profissional terá de ter o estatuto jurídico de uma sociedade desportiva, nomeadamente para participar nas competições organizadas pela Liga Portugal, tendo em atenção o Art. 9.º n.º 1 do seu “Regulamento das Competições” (cfr. doc. a fls. 358 verso).
Julgamos assim que o clube fundador pode abandonar a sua qualidade de acionista, através da alienação das suas participações sociais na SAD, o que determinará a perda dos direitos especiais conferidos por aquelas participações sociais especiais (de categoria A), passando todas as ações a ter categoria B (cfr. Art. 10.º n.º 1 al. b) do RSD).
Em função de todo o exposto, a venda das ações pelo clube R. não viola norma imperativa e, consequentemente, é substancialmente válida. Pelas mesmas razões, quanto ao primeiro pedido formulado pela A. nesta ação, que tem em si ínsita a conclusão de que o R. foi, e continua a ser, o clube fundador da A., julgamos concordar com a sentença quando decidiu julgar esse pedido por improcedente, porquanto, apesar de o R. ter sido o clube fundador da A., agora já não o é, porque perdeu esse estatuto legal com a venda da totalidade das ações de que era titular na SAD, já não podendo beneficiar dos direitos e deveres inerentes a essa qualidade.
Por outras palavras, a A. é uma SAD que se constituiu pela personalização da equipa de futebol do clube R., mas deixou de ter clube fundador, na medida em que já não é seu acionista, tendo deixado de existir ações de “categoria A”, com privilégios, nomeadamente de veto, para determinado tipo de deliberações características da existência de um “sócio-fundador”.
Na verdade a A. não tem, nem precisa de ter, um clube fundador, para continuar a existir como Sociedade Anónima Desportiva. Pelo que, por força da venda da totalidade das participações sociais de que o R. era titular na SAD que constituiu, esta sociedade deixou de ter um “clube fundador”. É nesse sentido que improcede o pedido que identificámos na alínea a) e, bem assim, as conclusões de recurso que sustentam entendimento contrário ao exposto e que pugnavam pela procedência desse pedido.
Quanto ao pedido da alínea b), no sentido de se reconhecer que a A. é a sociedade desportiva da modalidade de futebol do R., a questão coloca-se em termos relativamente semelhantes.
Efetivamente, a A. resultou da personalização da equipa de futebol do R., o que implicou a transmissão para a A. da “empresa comercial”, ou “estabelecimento” em que se traduzia essa “equipa” do R., no sentido já atrás dilucidado. Em consequência, a organização destinada ao exercício da atividade desportiva prosseguido pela “equipa” de futebol do R. passou a integrar a esfera patrimonial da A., o que compreende desde logo os direitos desportivos (cfr. Art. 24.º do RSD), que são obrigatória e automaticamente transferidos para a sociedade desportiva. Aí se incluem «os direitos de participação no quadro competitivo em que estava inserido o clube fundador, bem como os contratos de trabalho desportivos e os contratos de formação desportiva relativos a praticantes da modalidade ou modalidades que constitui ou constituem objeto da sociedade». Ou seja, pelo menos estes direitos foram transferidos definitivamente do R. para a A. no momento da sua constituição, pela escritura de 18 de novembro de 1999 (cfr. doc. de fls. 134 a 146).
Ao tempo, essa transmissão poderia não ocorrer logo no ato da escritura de constituição da sociedade (cfr. Art. 32.º n.º 1 do Dec.Lei n.º 67/97 de 3 de abril), mas era obrigatória, por força do Art. 33.º do Dec.Lei n.º 67/97 de 3 de abril, e não tinha qualquer possibilidade de reversão, pois nos termos do Art. 4.º do mesmo diploma (então vigente): «O clube desportivo que tiver optado por (…) personalizar a sua equipa profissional não pode voltar a participar nas competições desportivas de carácter profissional a não ser sob este novo estatuto jurídico». Isto para além de ter de manter “a todo o tempo” uma participação mínima de 15% no capital social da SAD (Art. 30.º n.º 1 do citado diploma).
Sucede que, pelas razões já atrás expedidas, essas limitações legais vieram a merecer alterações significativas na lei, permitindo ao clube fundador deixar de ser acionista da SAD, sendo que o protocolo celebrado entre o Clube e a SAD salvaguardou precisamente essa situação na cláusula 12.ª n.º 3, prevendo que se fariam cessar as obrigações existentes entre Clube e SAD no caso do primeiro, por qualquer razão, deixasse de ser acionista da SAD.
Ora, esse protoloco veio a ser denunciado pelo R. (Factos provados 18 a 24). O que teve como consequência que a A. deixou de usar as instalações desportivas do Estádio do Restelo, restituindo as respetivas chaves ao R. (Facto provado 25); o R. veio a inscrever uma nova equipa de futebol na 1.ª Divisão Distrital da Associação de Futebol de Lisboa, usando a sua marca e símbolos distintivos (Facto provado 26); a A. mudou a sua sede social (Facto provado 28), tendo inclusivamente feito aprovar um voto de censura ao clube (Facto provado 29).
Atualmente, e, isso sim, é facto público e notório (Art. 412.º do C.P.C.), existem duas equipas de futebol sénior, uma do R., outra da A., sendo patente o manifesto “divórcio” entre as duas instituições que não logram entender-se entre si.
Aliás, não deixa de ser curioso que, pelo menos na competição de clubes da Taça de Portugal, organizada pela FPF, podem, por sortilégio do sorteio, vir a competir uma contra a outra!
Portanto, está claro A. e R. que seguiram destinos separados e, portanto, atualmente o Clube de Futebol “Os Belenenses”, associação desportiva constituída em 23 de setembro de 1919, tem uma equipa de futebol nova, própria, a competir em escalões inferiores, completamente distinta da “equipa de futebol” que personalizou para efeitos da constituição da SAD, A. na ação.
Na verdade, o R. não estava legalmente impedido de constituir uma nova “equipa de futebol”. O que a lei estabelece a este propósito é que um clube só pode dar origem a duas ou mais sociedades desportivas se cada uma delas tiver por objeto uma única modalidade desportiva (Art. 2.º n.º 3 do RSD). Por outro lado, o clube desportivo que tiver personalizado a sua equipa profissional só pode participar nas competições desportivas de caráter profissional com o estatuto jurídico de sociedade desportiva (Art. 4.º n.º 2 do RSD). O que permite pelo menos a conclusão de que o clube poderá constituir uma equipa de futebol para participar em competições desportivas não profissionais ou em competições para as quais a entidade organizadora não exija o requisito do estatuto jurídico de “Sociedade Desportiva” como condição de participação na respetiva competição.
Uma coisa é certa, neste momento, a A. é uma entidade distinta do R., não carece deste para subsistir como sujeito de direitos de obrigações próprias distinto do clube fundador, sendo que por força da venda das participações que o R. detinha nessa sociedade, a A. já não é a “Sociedade Desportiva” da modalidade de futebol do R..
A tal acresce que o R. denunciou o protocolo que havia celebrado com a SAD, tendo esta deixado de usar as instalações e os elementos característicos e identificadores da equipa de futebol do “Belenenses”, de acordo com o que foi decidido por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de março de 2019, proferido no âmbito do Proc. n.º 215/18.5YHLSB.L1, que confirmou a sentença proferida nesse sentido pela 1.ª instância (cfr. doc. de fls. 757 a 783). Nessa sequência, a A. já fez aprovar e registar uma nova denominação social: “BSAD – Sociedade Desportiva de Futebol, SAD” para o desenvolvimento da mesma atividade (cfr. doc. de fls. 785 verso). Pelo que, neste momento, nem sequer usa a denominação “Belenenses”, que sempre pertenceu ao clube R., e está inibida de usar os seus sinais identificativos característicos, como a cruz de cristo e o emblema.
Em suma, a A. é uma realidade distinta do R. e a equipa que foi personalizada pelo ato da sua constituição é, neste momento, pela dinâmica e evolução dos factos, uma empresa, ou estabelecimento, completamente descaraterizado da “modalidade de futebol” identificável com o clube-fundador. O que nos permite igualmente concluirmos pela improcedência da pretensão identificada na alínea b), improcedendo as conclusões que sustentam o contrário do exposto. Nessa medida, julgamos também confirmar nesta parte a sentença recorrida.
3. Da declaração que o R. só pode participar em competições profissionais através duma sociedade desportiva que é a A., estando impedido de constituir uma nova SAD para o futebol profissional, devendo abster-se de disputar qualquer competição profissional, nomeadamente nas I e II Ligas.
Passando agora aos pedidos que identificámos sob as alíneas d) e e), a sentença recorrida julgou-os improcedentes em consequência da improcedência dos pedidos anteriores, tendo em atenção que era legalmente admissível a venda integral da totalidade das participações sociais de que o R. era titular na SAD, A. na ação. Por outro lado, considerou não existe proibição legal para a possibilidade de o R. poder ser titular de ações em mais que uma sociedade anónima desportiva que tenha por objeto a mesma atividade desportiva. No entanto, o que não pode é ter os privilégios inerentes à qualidade de clube-fundador em mais de uma sociedade anónima desportiva, conforme defende a Prof. Maria de Fátima Ribeiro, na página 51 do seu “Parecer Jurídico” (cfr. cit. doc. a fls. 860).
Também se defendeu aí que tendo a A. sido constituída pela personalização da equipa de futebol do R., o que implicou a transmissão dos ativos mencionados no Art. 24.º do RSD, não poderia haver dúvida que esses elementos da “equipa” deixaram de existir na esfera jurídica do R., que assim teve de criar “ex novo” uma nova equipa, reiniciando o seu percurso nas competições desportivas não profissionais de escalões inferiores, o que eventualmente lhe permitirá ascender às competições profissionais.
A Recorrente volta a contrapor que o R. não goza de direito de saída, sendo a constituição da SAD um passo irreversível, como decorria do Regime jurídico estabelecido no Dec.Lei n.º 67/97 de 3 de abril, ao abrigo do qual foi constituído, o que se manteve no atual regime aprovado pelo Dec.Lei n.º 10/2013, nomeadamente no seu Art. 4.º n.º 2.
No entanto, como já vimos, a lei atualmente vigente permite um direito de saída do clube fundador, o que tem apenas como consequência a perda dos privilégios que a lei lhe atribuí na SAD que criou como “sócio-fundador”.
Também é claro que não existe qualquer limitação legal que imponha ao clube a impossibilidade de constituição duma nova equipa, posto que os elementos que levaram à personalização da sua equipa anterior, foram definitivamente transferidos para a SAD (v.g. Art. 24.º do RSD).
Ao exposto acresce que já pusemos em evidência a subtileza das alterações legislativas em matéria de possibilidade de o clube poder intervir numa competição desportiva profissional. Assim, enquanto nos termos do Art. 4.º do Dec.Lei n.º 67/97 o clube desportivo que tivesse optado por personalizar a sua equipa de futebol não podia voltar a participar nas competições desportivas de caráter profissional a não ser sobre esse novo estatuto, já no Art. 4.º n.º 2 do RSD atualmente vigente limita-se a lei a dizer que “só pode participar nas competições desportivas de caráter profissional com o estatuto jurídico de sociedade desportiva. Portanto, o R. pode participar nessas competições profissionais, mas para esse efeito terá de constituir uma Sociedade Desportiva, até para poder satisfazer os requisitos do “Regulamento de Competições” da Liga Portugal.
Este processo, pelas formalidades legais que implica, é completamente transparente e não põe em causa os princípios da verdade ou da ética desportiva e da integridade da competição, ao contrário do que é sustentado pela Recorrente, pois em causa estão duas entidades, perfeitamente autónomas entre si, que estarão ambas subordinadas às mesmas regras de rigor de gestão e de responsabilidade, sendo que o R. já não goza de qualquer privilégio na SAD que em tempos fundou, não sendo sequer titular nela de qualquer participação social.
Em conformidade, também concordamos nesta parte com a sentença recorrida, improcedendo as conclusões que sustentam posição contrária.
5. Da condenação em sanção pecuniária compulsória.
Finalmente, resta o pedido que identificámos na alínea f), que se traduz na condenação do R. em sanção pecuniária compulsória, ao abrigo do Art. 829.º-A do C.C., com vista a compelir o devedor a cumprir com as obrigações a que se reportavam os pedidos anteriores. No entanto, como os pedidos anteriores improcedem, não se reconhecendo as correspondentes obrigações a cargo do R., mais não resta que julgar improcedente também esta pretensão e as conclusões que a sustentam.
Tudo sopesado, a sentença recorrida deverá ser mantida integralmente, improcedendo a apelação apresentada.
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente por provada, quer quanto à impugnação da matéria de facto, quer quanto ao mérito da causa, mantendo-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.
- Custas pela Apelante (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
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Lisboa, 26 de abril de 2022
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva