Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
585/09.6TABNV-A.L1-3
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/09/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- È legalmente admissível a abertura da instrução a requerimento do arguido mesmo que o único objectivo seja a discussão sobre a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação e que a alteração do enquadramento jurídico-penal não evite o julgamento do arguido, ou seja, mesmo que o arguido, aceitando os factos imputados, apenas pretenda ver alterada a qualificação jurídica.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório

No âmbito do processo comum que, sob o n.º 585/09.6 TABNV, corre termos pelo 1.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal da Comarca de Vila Franca de Xira, o Ministério Público, no termo do inquérito, deduziu acusação contra A..., devidamente identificada nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso real, efectivo, de sete crimes de desobediência previstos e puníveis pelas normas conjugadas dos artigos 90.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, e 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

Inconformada, a arguida requereu a abertura de instrução, mas a Sra. Juíza de instrução rejeitou o requerimento, por inadmissibilidade legal da instrução.

Mais uma vez inconformada, a arguida recorreu dessa decisão para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
1. No âmbito dos presentes autos o Digno Magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra a arguida imputando-lhe a prática de sete (7) crimes de desobediência, p. e p., cada um, pelos artigos 90.º da Lei 147/99, de 01/09 e 348.º, n.° 1, al. a) do Código Penal.
2. Não se conformando com os termos da acusação pública, a arguida apresentou requerimento de abertura de instrução através do qual requereu a alteração da qualificação jurídica dos factos, e, nessa sequência, a suspensão provisória do processo.
3. O requerimento de abertura de instrução foi rejeitado pela Mm.ª Juiz de Instrução com o fundamento de que o mesmo é legalmente inadmissível, porquanto a alteração da qualificação jurídica não é fundamento para a abertura de instrução.
4. Entende a recorrente que a Mm.ª Juiz de instrução não tem razão.
5. A Instrução visa a comprovação judicial de uma decisão, que pode ser de acusação ou de arquivamento.
6. É de parecer, salvo melhor e mais douta opinião, que, apesar de no requerimento de abertura de instrução não se contrariarem, grosso modo, os factos vertidos na acusação, tal não significa que o Juiz de Instrução não possa qualificar de forma diferente esses mesmos factos.
7. É legalmente admissível que a Mm.ª Juiz de Instrução aprecie o requerimento de abertura de instrução apenas para concluir se existe ou não, no caso dos autos, um só crime de desobediência na forma continuada, ou sete crimes de desobediência, já que tal decisão é relevante para a justa decisão da causa.
8. Em termos jurídico-penais não será nunca a mesma coisa a arguida ser submetida a julgamento pela prática de um só crime ou de sete crimes de desobediência.
9. Por outro lado, a diferente qualificação jurídica dos factos pode ter, e terá certamente no caso dos autos, consequências a outros níveis.
10. De facto, a decidir-se pela existência de um só crime continuado e a proferir-se despacho de não pronúncia relativamente aos sete crimes de que a arguida vem acusada, abre-se caminho para se conhecer do segundo pedido efectuado pela arguida, perfeitamente admissível nesta fase processual, e que diz respeito à suspensão provisória do processo, visto estarem reunidos, sob o seu ponto de vista, todos os pressupostos legais para o efeito.
11. Ou seja: o conhecimento da matéria submetida à instrução tem relevância e utilidade para efeitos do prosseguimento dos autos, ou não, para julgamento.
12. Não se trata, pois, de nenhuma das causas de inadmissibilidade legal da abertura de instrução previstas nos artigos 286.º, n.º 3 e 287.°, n.º 1, als. a) e b) do CPP.
13. Pelo que, ao decidir o contrário, a Mm.ª Juiz de Instrução violou o que dispõe o artigo 287.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do C.P.P.”.

                                                                       *

O Ministério Público apresentou resposta à motivação da recorrente, que sintetizou nas seguintes conclusões:
1. O requerimento para abertura da instrução foi rejeitado, em síntese, com o fundamento de se verificar a inadmissibilidade legal da instrução (art.º 286.º, do Código de Processo Penal).
2. No presente caso é fácil constatar que no requerimento da arguida, o mesmo se limita a requerer a alteração da qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados na acusação. Tal não é permitido em sede de instrução.
3. Afigura-se-nos que o recurso interposto pela assistente não deve merecer provimento, pelo que deve ser mantida integralmente a douta decisão recorrida.

                                                                       *

Admitido o recurso, e já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do artigo 416.º do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.

                                                             *

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

Sabendo-se que são as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, disponível em www.dgsi.pt/jstj) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, está evidenciada a importância desse ónus a cargo do recorrente.

É muito fácil de identificar a questão que constitui o objecto deste recurso: saber quais os limites do requerimento instrutório do arguido, mais exactamente, se é admissível o pedido de realização de instrução, apenas, para discutir a correcção do enquadramento jurídico-penal dos factos feito na acusação e, portanto, para obter a sua alteração.

A decisão impugnada

Para uma correcta decisão da questão equacionada, importa conhecer a decisão posta em crise, que é do seguinte teor (reprodução integral):

“Por pretender a alteração da qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados e, consequentemente, a suspensão provisória do processo requereu a arguida a abertura da instrução.

Dispõe o artigo 286°, do C.P.Penal sob a epígrafe de "finalidade da instrução”, no seu n.º 1, que a instrução visa a comprovação judicial de deduzir a acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Por seu turno, dispõe o art. 287°, n.º 1, al. a) do CPP, no que aqui releva, que o arguido pode requerer a abertura de instrução, no prazo de 20 dias a contar da data da notificação da acusação…  relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

Ora, a arguida alicerça o fundamento para a abertura da instrução na alteração da qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados na acusação, defendendo que a sua conduta consubstancia a prática de um crime continuado. Assim, face ao estatuído no art. 287º, n.º 1, al. b) do CPP, à arguida está vedado o referido acto processual, por visar apenas a alteração da qualificação jurídica, que aliás, é de todo prematura nesta fase, na qual se lida com uma prova de natureza indiciária.

Dispõe o art. 287°, n.° 3, do CPP que “o requerimento para abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução". In casu, conforme decorre do acima exposto, verifica-se a inadmissibilidade legal da instrução (neste sentido vide Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao art. 286° do CPP, in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, p. 750.

Assim, por inadmissibilidade legal da Instrução, rejeito o requerimento para 0 efeito apresentado pela assistente, nos termos do disposto no art. 287.º, n.º 3, do CPP”.

Como decorre do requerimento de abertura de instrução e das conclusões do recurso, a arguida/recorrente não questiona a indiciação dos factos que concretizam a hipótese acusatória de cometimento de crime de desobediência visando obter despacho de não pronúncia.

Também não pretende a neutralização da acusação, quer pela invocação da inadmissibilidade de provas ou de nulidades processuais, quer pela requalificação jurídica dos factos.

O que pretende a arguida é uma diversa valoração jurídico-penal dos factos descritos na acusação para que venha a ser pronunciada pela autoria de um (só) crime continuado de desobediência, ficando assim aberto o caminho à suspensão provisória do processo.  

Como se constata, a decisão recorrida de rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal desta, baseia-se no entendimento expresso por Paulo Pinto de Albuquerque que considera que, em regra, a instrução visa discutir factos, e não apenas a sua qualificação jurídica, acrescentando que “o legislador fez uma opção clara por concentrar na audiência de julgamento a discussão de «todas as soluções jurídicas pertinentes» (artigo 339.º, n.º 4), não se justificando a abertura da instrução com o exclusivo fito da antecipação dessa discussão jurídica” (Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição actualizada, UCE, p. 751).

É esse também o entendimento de Cecília Santana que no seu texto intitulado “Dos limites do requerimento do arguido para abertura de instrução” (que integra a colectânea de textos publicada pela AAFDL sob o título “Questões avulsas em processo penal”) identifica quatro razões para que o juiz de instrução não considere compreendido no âmbito do requerimento de abertura de instrução o pedido que se destine a fazer determinar, na pronúncia, uma alteração da qualificação jurídica:

Queda fora dos limites do requerimento do arguido para a abertura da instrução aquele que, pela apresentação de uma diversa qualificação jurídica para os factos acusados, não faça determinar o despacho de não pronúncia, pelas seguintes razões:

i) Porque, nestes casos, se mantém possível demonstrar e fazer valer em julgamento outra qualificação jurídica e, portanto, também aquela que é proposta pela acusação;

ii) Porque a pronúncia não fixa nela a qualificação jurídica, nem é função da pronúncia fixá-la, mas antes o objecto do julgamento, o qual não varia em razão de uma mera alteração na qualificação jurídica;

iii) Porque obrigaria ao debate antecipado da apreciação jurídica mais correcta para os factos fixados na acusação e essa tarefa é conhecimento do mérito da causa, que é função do julgador;

iv) Porque o arguido não tem, pelas razões referidas, interesse ou vantagem em fixar a qualificação jurídica na pronúncia, sendo o momento oportuno para fazê-lo a contestação, após o saneamento do processo”.

A tese de que a admissibilidade da instrução unicamente com fundamento na divergência sobre a qualificação jurídico-penal dos factos depende de o arguido visar obter uma decisão de não pronúncia foi acolhida no acórdão da Relação de Évora, de 08.05.2012 (Relator: Des. Edgar Valente), disponível em www.dgsi.pt, decisão assim justificada: “…o critério da submissão ou não da causa a julgamento diz respeito, como a literalidade do preceito impõe, um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo. Assim, entendemos que a diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamento da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como resultado almejado a não pronúncia quanto a todos os crimes acusados. Se essa diversa qualificação jurídica dos factos da acusação não é passível de produzir tal resultado, mantendo-se a imputação de um ou mais crimes, sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento e, como tal a instrução é legalmente inadmissível”.

Porém, este não é um entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência prevalece, claramente, o entendimento oposto (cfr. acórdãos do TRP, de 23.02.2005 e de 09.03.2005, do TRL, de 16.11.2006 e de 05.06.2007, do TRG, de 14.11.2005, todos acessíveis em www.dgsi.pt, e ainda do TRC, de 14.03.2007, CJ XXXII, T. II/2007, 41).

Embora não possa afirmar-se com absoluta segurança que seja esse o pensamento do Prof. Germano Marques da Silva, da afirmação que “…a instrução pode ser requerida pelo arguido com o fim de ilidir ou enfraquecer a prova indiciária da acusação, mas também por razões exclusivamente de direito material ou adjectivo, que viciem a acusação” (“Curso de Processo Penal”, III, Verbo, 2009, p. 140) parece poder deduzir-se que propende para uma resposta positiva à questão aqui equacionada.

O texto do artigo 287.º,n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal (o arguido pode requerer a abertura de instrução “relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação”) sugere que a instrução exige controvérsia sobre factos, tem de visar a discussão de factos, e não apenas a sua qualificação jurídica, e por isso Souto Moura afirma (“Inquérito e instrução” in Jornadas de Direito Processual Penal, O novo Código de Processo Penal, CEJ, 121-122) que “parece resultar da lei que a instrução se propõe resolver um diferendo sobre factos, e que onde sobre factos não houver discordância alguma, não deverá haver instrução”. No entanto, o mesmo autor (loc. cit.) interroga-se sobre o que deverá entender-se por facto, se deve ser o facto em sentido naturalístico/histórico ou em sentido normativo e responde nos seguintes termos:

''A discordância do arguido (…) em relação ao M.º P.º, poderá incidir sobre a dimensão normativa do facto. Isto é, sobre o desvalor jurídico-penal do facto. (…) O requerente da instrução quer a não comprovação da decisão do M.º P.º. Ora o motivo dessa não comprovação pode ser uma questão jurídica, assente embora numa factualidade concreta”.

E mais adiante:

A instrução serve uma decisão sobre se há ou não crime, e qual. Se a pretensão dirigida ao juiz é duma decisão que reconhece e qualifica factos, o motivo do requerimento poderá assentar exactamente num diferendo sobre a relevância dos factos, e em mais nada”.

Também Vinício Ribeiro (Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2. Edição, 783) não tem dúvidas de que “a instrução pode ter apenas como finalidade o debate da qualificação jurídica”, embora advirta que, relativamente ao requerimento do assistente, essa solução é controversa, já que este tem a possibilidade de lançar mão do disposto no n.º 1 do artigo 204.º do Cód. de Proc. Penal.

Apreciados os argumentos a favor de uma e outra tese, inclinamo-nos para a posição que defende a admissibilidade da instrução a requerimento do arguido mesmo que o único objectivo seja a discussão sobre a qualificação jurídica dos factos da acusação e que uma alteração do enquadramento jurídico-penal não evite o julgamento do arguido, embora reconheçamos que não é uma opção isenta de dúvidas.

Embora exista uma corrente doutrinária que advoga que a instrução é uma fase (judicial) que, além de ser de comprovação da decisão tomada pelo Ministério Público no termo do inquérito, tem uma componente de investigação complementar (é “um suplemento de investigação autónoma, feita pelo juiz de instrução”[i]), a doutrina dominante rejeita esse papel de “complemento do inquérito” ou “suplemento autónomo de investigação” e caracteriza a instrução como um mecanismo de controlo, com uma finalidade bem definida: a de comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem à decisão de levar, ou não, o caso a julgamento[ii].  

Na verdade, a fase de investigação por excelência é o inquérito que, nos termos do art.º 262.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal “compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas”.

Contrariamente ao que acontecia no Código de Processo Penal de 1929, em que a instrução contraditória tinha por fim, além do mais, “esclarecer e completar” a prova obtida na fase de investigação (a instrução preparatória, no processo de querela), a filosofia subjacente ao actual Código de Processo Penal é a de que a instrução é um momento processual de comprovação, um mecanismo de controlo judicial da decisão final tomada no inquérito, não visando completar, ampliar ou prolongar o inquérito, ou, muito menos, realizar outra investigação dos factos, agora pelo juiz de instrução, diferente da do Ministério Público.

Normalmente, a pretensão do arguido dirige-se à não pronúncia, com a revelação de novos meios de prova que abalem a versão acusatória.

No entanto, admitindo-se, como se admite (mesmo os defensores da solução contrária à que aqui sustentamos) que a instrução possa ter como único escopo uma diversa valoração jurídico-penal dos factos da que foi feita pelo Ministério Público (ou pelo assistente), não podemos perfilhar o entendimento de que, mesmo assim, o objectivo legitimador da abertura de instrução por parte do arguido tem de ser a obtenção de uma decisão de não pronúncia.

Como se expendeu no já citado acórdão da Relação do Porto, de 09.03.2005, “quer o arguido pretenda, durante a instrução, afastar radicalmente a acusação que lhe é dirigida, quer pretenda apenas arredar uma parcela da gravidade contida nessa imputação, não lhe pode ser negada, em qualquer dessas hipóteses, a instrução. Por isso, não faz sentido que não se discuta, em tal fase processual, a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, factos que, no presente caso, o arguido aceita, como preenchendo a prática de um crime de furto, divergindo porém quanto à forma de cometimento do crime, defendendo que foi apenas tentado, enquanto na acusação lhe é imputado a título consumado.

É que essa diferente qualificação jurídica pode ter consequências a outros níveis. Extravasando para outros casos, embora a diferente qualificação jurídica também não evite a submissão do arguido a julgamento, pode a mesma ser suficientemente relevante para alterar, por exemplo, as medidas de coacção impostas, para que seja outro o tribunal competente para o julgamento (singular em vez do colectivo), para que o crime passe a estar abrangido por eventual perdão, etc. Noutra perspectiva, podendo mesmo evitar o julgamento, pode tal alteração ter como consequência estar o novo crime abrangido por eventual amnistia, ou passar a ser exigível, para esse novo crime, queixa do ofendido, ou fazer com que seja outro (mais curto) o prazo de prescrição, etc. Pelo que, não pode afirmar-se, como princípio geralmente aceite, que a simples pretensão de ver alterada a qualificação jurídica, aceitando os factos imputados, constitui um caso de inadmissibilidade legal da instrução, por esta se revelar inútil, pois julgamos ter ficado suficientemente demonstrada a sua utilidade[iii].

Cremos ser de primeira evidência que, para o arguido, não é indiferente a subsunção jurídico-penal dos factos indiciados, já que, mesmo não evitando a pronúncia, pode evitar o julgamento.

Basta pensar na hipótese de o arguido estar acusado da prática de um crime de burla qualificada e, aceitando os factos descritos na acusação, pretender obter uma decisão de pronúncia por crime de burla simples. Se reparar o prejuízo causado e conseguir que o ofendido desista da queixa, não evitará o julgamento se estiver acusado por crime de burla qualificada, pois só depois do julgamento poderá o tribunal convolar a incriminação para a burla simples, mas já não assim se, tendo requerido a instrução, tiver obtido uma pronúncia pelo crime base ou fundamental, caso em que o tribunal poderá, desde logo (isto é, mesmo antes do julgamento), homologar a desistência, considerando-a válida e relevante.

Não se ignora que o Tribunal Constitucional tem entendido que a Constituição da República não estabelece o direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento e há mesmo quem defenda que, actualmente, têm “menos peso as razões de política criminal que, em última análise, sustentam o direito do arguido requerer a realização de instrução para não ser sujeito a julgamento” (“Mudar a Justiça Penal”, Linhas de reforma do Processo Penal Português, Coord. António João Latas, Almedina, 2012, p. 85).

A verdade é que a submissão a julgamento em processo crime é sempre socialmente estigmatizante.

Por isso justifica-se que ao arguido não sejam coarctados mecanismos processuais que lhe permitam evitar, quando politico-criminalmente desnecessário, o contacto com o sistema de justiça, sobretudo evitar a infâmia e os incómodos de um julgamento público.

Ora, a recorrente não se limita a pedir no requerimento de abertura de instrução a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação (recorde-se, de sete crimes de desobediência para um só crime continuado de desobediência), também defende que a melhor solução do ponto de vista político-criminal é a suspensão provisória do processo e coloca à apreciação judicial o uso desse poder/dever.

Com Fernando Torrão (A Relevância Político-Criminal da Suspensão Provisória do Processo, Almedina, 277) diremos que constitui uma verdadeira garantia de defesa a possibilidade, que ao arguido deve ser facultada, de promover a intervenção judicial com vista à aplicação da medida de suspensão provisória do processo (cfr. artigos 307.º, n.º 2, e 281.º do Cód. Proc. Penal).

Como se escreveu no citado acórdão desta Relação de Lisboa, de 16.11.2006, “se, no final da instrução, o MP mantiver a posição que adoptou ao acusar, não se estabelecendo o consenso pretendido, ficando inviabilizado o modelo consensual, a possibilidade de diversão deixa de constituir fundamento para a não sujeição da causa a julgamento, devendo o juiz, nessa circunstância, pronunciar o arguido”.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que admita o requerimento instrutório, declare aberta a instrução e determine as diligências tidas por convenientes.

Sem tributação.

(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).    

                                                                          Lisboa, 9.04.2013

                                                                          Neto de Moura

                                                                           Alda Tomé Casimiro


[i] Assim, Anabela Miranda Rodrigues, “O inquérito no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, 77), Ivo Miguel Barroso, “Estudos sobre o objecto do processo penal”, VisLis Editores, 2003, 135, e M. Simas Santos e M. Leal-Henriques, “Código de Processo Penal Anotado”, II, 158.
[ii] Cfr. Jorge Figueiredo Dias (“Os princípios estruturais do processo e a revisão de 1998 do Código de Processo Penal”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, Fasc. 2.º, Abril-Junho de 1998, 211), J. Souto Moura (“Inquérito e Instrução”, Jornadas de Direito Processual Penal”, CEJ, Almedina, 1989, 125), Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, III, Verbo, 129 e segs.) e Gil Moreira dos Santos (“O Direito Processual Penal”, ASA, 357).
Na jurisprudência, cfr., entre outros, o Ac. do STJ, de 24.09.2003 (Relator: Cons. Henriques Gaspar), disponível em www.dgsi.pt.
[iii] Perfilhando o mesmo entendimento, o acórdão desta Relação e desta Secção, de 05.07.2007 (CJ XXXII, T. III, 130).