Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3122/19.0T8ALM-A.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: CITAÇÃO
NULIDADE
ESTADO PORTUGUÊS
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Não procede a declaração de nulidade da citação do Ministério Público para efeitos dos artigos 786º e 788º do CPC e o indeferimento da citação do Estado Português para o mesmo efeito, com o fundamento de que, sendo o Estado titular de um título executivo, não é de aceitar a reclamação do crédito por o arresto incidente sobre o bem penhorado não constituir garantia real.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO.

Na execução em que é exequente Banco …, SA e executados V… e M… para pagamento de quantia certa no montante de 127 546,24 euros, em que foi apresentada, como título executivo, uma escritura de mútuo com hipoteca incidente sobre um imóvel, foi penhorado este imóvel e, após a citação dos executados e da consulta ao registo predial do imóvel, foi citado o Ministério Público para, nos termos dos artigos 786º e 788º do CPC, reclamar crédito com garantia real sobre o imóvel penhorado, tendo o citando juntado certidão de processo judicial em que era requerente o Ministério Público e requerido o ora executado e em que foi declarado o arresto sobre o referido imóvel e, após serem notificados o exequente, os executados e o Ministério Público para se pronunciarem sobre a modalidade de venda do imóvel, veio o Ministério Público apresentar requerimento para ser efectuada citação do Estado Português nos termos e para os efeitos dos artigos 786º e 788º do CPC e pedindo a nulidade da citação anterior, por ter sido efectuada no Ministério Público que é apenas representante do Estado. 
Sobre este requerimento recaiu o seguinte despacho:
Compulsados os autos no seguimento do requerimento com a ref.ª 23934094, não vislumbro que o arresto em causa tenha sido convertido em penhora.
Temos, assim, que o registo do arresto a favor do Ministério Público, sobre o prédio penhorado nos autos, mantém-se em vigor em face da certidão de teor de todas as descrições e inscrições em vigor relativa ao prédio em crise.
Ora, o arresto não constitui garantia de natureza real, nem a decisão que o decreta pode servir como título executivo em qualquer reclamação de créditos (a este respeito, leia-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 2006, disponível em www.dgsi.pt).
Nestes termos, não constituindo o arresto garantia de natureza real, a citação levada a cabo pelo Sr. SE não tem qualquer cabimento em face do disposto no art.º 788.º n.º 1 do CPC, pelo que, embora com fundamentos distintos, julgo procedente a invocada nulidade e, consequentemente, dou sem efeito a citação com a ref.ª 23309593.
Em face do que antecede, inexistem motivos para ordenar a citação do Estado
Português, pelo que indefiro o requerido.
Sem custas.”
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Inconformado, o Estado Português representado pelo Ministério Público interpôs recurso e alegou, formulando conclusões com as seguintes questões:
- Nos presentes autos de execução foi penhorado, no dia 8 de Maio de 2019, o imóvel - “Fracção Autónoma designada pela letra “B" do prédio em regime de propriedade horizontal, respeitante a moradia lado esquerdo, para habitação com telheiro e logradouro, sita na Rua…, número …, Lugar de Fernão Ferro, 2865-001 Fernão Ferro, descrita na Conservatória do Registo Predial de Seixal sob o número 253 "B"/Fernão Ferro, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo matricial urbano com o número ... "B" da dita freguesia de Fernão Ferro, pertença do executado nestes autos V….
- No âmbito da providência cautelar de arresto (processo n. 941/10.7PILRS–H) intentada pelo Ministério Público, enquanto detentor da acção penal, contra o ora executado, arguido no processo crime nº 941/10.7PIRLS.L1, este imóvel foi arrestado para garantia do pagamento do valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de actividade criminosa, por decisão datada de 16 de Setembro de 2015, tendo o arresto sido registado no dia 24 de Setembro de 2015.
- Nesse processo crime, o acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação Lisboa, transitado em julgado no dia 15 de Fevereiro de 2018, declarou constituir vantagem de actividade criminosa o valor de € 139.465,24, que declarou perdido a favor do Estado, nos termos do disposto nos arts.º 1.º, 7.º e 8,º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro e cujo pagamento se encontra assegurado pelo arresto, que foi decretado nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 10º, da Lei nº 5/2001, de 11 de Janeiro, por referência ao artigo 7º, nº 1 e 1º, nº 1, al. i), da mesma Lei.
- O Estado Português tem assim um titulo executivo (artsº 703.º /704.º do CPC) constituído pelo acórdão condenatório, transitado em julgado, que é o invólucro de um direito de crédito do credor reclamante, incorporando-o, a que corresponde uma dívida do devedor executado e que é certo, líquido e exigível (isto é, vencido).
- Este título, conforme tem sido entendimento maioritário na doutrina e na jurisprudência, integra o conceito de crédito com garantia real previsto nos arts.º 786º e 788º do CPC, devendo ser interpretado em sentido amplo, abrangendo não apenas os credores que gozem de direitos reais de garantia em sentido estrito, mas também aqueles que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência.
- A lei hierarquiza o arresto e a penhora e não define os contornos daquele como garantia menor relativamente à penhora, pois ambos conferem a mesma preferência, qualquer deles cedendo perante direitos reais de garantia anteriores, sendo que os artigos 391º nº2 do CPC e 622º nº2 nº do CC mandam aplicar ao arresto as disposições relativas à penhora, assim como as normas relativas aos bens penhoráveis, ao regime de efectivação e aos seus efeitos, nomeadamente o que confere ao arrestante o direito a ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior (artigo 822º do C).
- Pelo que deveria ter sido citado o Estado português nos termos e para os efeitos do disposto nos Artsº 786º e 788º ambos do Código Processo Civil., devendo revogar-se o despacho recorrido, substituindo-se o mesmo por outro que determine a referida citação.
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Não há contra-alegações e o recurso foi admitido como apelação, com subida imediata e efeito devolutivo.
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A questão a decidir é a de saber se deve ser declarada nula a citação já efectuada para o Ministério Público reclamar o crédito garantido pelo arresto e se não deve ser citado o Estado Português para o mesmo efeito por não gozar de garantia real.
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FACTOS.
Dos autos resultam assentes os seguintes factos:
1- O exequente deu à execução uma escritura pública, datada de 21 de Novembro de 2005, de mútuo com hipoteca, que tem por objecto a “Fracção Autónoma designada pela letra “B" do prédio em regime de propriedade horizontal, respeitante a moradia lado esquerdo, para habitação com telheiro e logradouro, sita na Rua …, número …, Lugar de Fernão Ferro, 2865-001 Fernão Ferro, descrita na Conservatória do Registo Predial de Seixal sob o número 253 "B"/Fernão Ferro, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo matricial urbano com o número ... "B" da dita freguesia de Fernão Ferro.
2- Na Conservatória do Registo Predial do Seixal está registada a aquisição do referido imóvel a favor do executado V… pela apresentação 3 de 2000/04/17
3- A hipoteca referida em 1. está registada pela apresentação 24 de 2005/09/23.
4- No dia 8 de Maio de 2019 foi penhorado nos presentes autos o imóvel referido em 1, penhora que foi registada pela apresentação 19 de 2019/05/03.
5- Na providência cautelar de arresto (processo n. 941/10.7PILRS–H), intentada pelo Ministério Público contra o ora executado, este na qualidade de arguido no processo crime nº 941/10.7PIRLS.L1, foi proferida decisão em 16 de Setembro de 2015, transitada em julgado em 7 de Dezembro de 2015, que decretou o arresto deste imóvel para garantia do pagamento do valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem da actividade criminosa do arguido.
6- O arresto foi registado pela apresentação 1021 de 2015/09/24.
7- No processo crime mencionado em 5. foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação Lisboa em 20 de Dezembro de 2017, transitado em julgado no dia 15 de Fevereiro de 2018, que declarou constituir vantagem de actividade criminosa do arguido, ora executado, o valor de € 139.465,24, declarando-o perdido a favor do Estado.
8- Em 18 de Junho de 2019 foi citado o Ministério Público nos termos e para os efeitos dos artigos 786º e 788º do CPC, para no prazo de 15 dias reclamar crédito, tendo em atenção a garantia real que possa ainda perdurar sobre o bem penhorado.
9- Em 4 de Setembro de 2019 foram os executados e o Ministério Publico notificados para nos termos e para os efeitos do artigo 812º do CPC se pronunciarem quanto à modalidade de venda do imóvel.
10- Em 11 de Setembro de 2019 o Ministério Público apresentou requerimento alegando que na citação referida em 8. foi citado o Ministério Público, quando deveria ter sido citado o Estado Português conforme o disposto no artigo 24º do CPC e os artigos 1º, 3º nº1 a) da Lei 47/86 de 15/10 e pedindo a declaração de nulidade de tal citação e a realização da citação do Estado Português nos termos e para os efeitos dos artigos 786º e 788º do CPC. 
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
O despacho recorrido declarou nula a anterior citação do Ministério Público para os efeitos do artigo 788º do CPC e indeferiu a realização de uma citação do Estado Português com a mesma finalidade, o que fez com o fundamento de que não estão reunidos os requisitos legais para realizar a citação, por entender que o arresto não é uma garantia real exigida por esta norma legal para efeitos de reclamação de créditos.
Como requisitos legais para os credores poderem reclamar os seus créditos relativamente aos bens penhorados na execução, exige o artigo 788º do CPC que o crédito reclamado tenha por base um título executivo e que o credor goze de garantia real sobre os bens penhorados.
No presente caso, o Estado Português é titular de um direito de crédito sobre o executado no valor de 139 465,24 euros, conforme decisão proferida em processo crime pelo Tribunal da Relação de Lisboa, transitada em julgado em l5 de Fevereiro de 2018, que declarou este valor perdido a favor do Estado, por o mesmo constituir vantagem da actividade criminosa, ao abrigo dos artigos 1º, 7º e 12º nº1 da Lei 5/2002/de 11/1 (que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económica/financeira).
Tem assim o Estado Português título executivo relativamente a este crédito, constituído pela decisão judicial que declarou o valor de 139 465,24 euros perdido a seu favor, integrando esta decisão a previsão do artigo 703º nº1 a) do CPC, que contempla como título executivo as sentença condenatórias, sendo certo que este título faculta ao Ministério Público o direito de intentar execução, como se prevê expressamente no nº5 do artigo 12º da Lei 5/2002.
Tal título executivo é a decisão judicial que definiu o seu crédito sobre o arguido ora executado, transitada em julgado em Fevereiro de 2018 e não a decisão que decretou o arresto (como se refere no despacho recorrido), já que esta última não define nenhum direito de crédito, decretando antes uma medida de conservação da garantia patrimonial.
Havendo título executivo, resta saber se existe uma garantia real conforme exigido pelo artigo 788º do CPC.
É discutida a questão de saber se o arresto constitui uma garantia real para efeito de reclamação de créditos em execução (contra, considerando o arresto uma mera providência cautelar de conservação da garantia patrimonial, ac, STJ 3/5/2007, p. 07B747 em www.dgsi.pt; a favor, considerando que o arresto constitui causa legítima de preferência de credores a que se refere o artigo 604º nº2 do CC, cuja enunciação não é taxativa e, como tal é uma garantia real, Amâncio Ferreira Curso de Processo de Execução, 2000, Pág. 222, Salvador da Costa, Concurso de Credores, 3ª edição, pág. 13, Lebre de Freitas, Acção Executiva, 5ª ed., Pág. 310).
Poderá efectivamente ser discutível o efeito do arresto como garantia real quando o credor ainda não tem título executivo (cfr. ac. RL 10/11/2015, p. 6735/11, relativamente ao incidente do artigo 792º do CPC, em www.dgsi.pt) mas, possuindo título executivo, não há razão para o credor não poder reclamar o seu crédito e aproveitar a preferência conferida pelo arresto relativamente aos outros credores que não tenham garantia real anterior (cfr. P. Lima e A. Varela, CC Anotado, 4ª edição, pág, 639 e 640, em anotação ao artigo 622º).
Na verdade, “os actos de disposição dos bens arrestados são ineficazes em relação ao requerente do arresto” (nº1 do artigo 622º do CC) e “ao arresto são extensivos, na parte aplicável, os demais efeitos da penhora” (nº2 do mesmo artigo), ou seja, tal como sucede com a penhora nos termos do artigo 819º do mesmo código, são inoponíveis ao arrestante os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens arrestados e, por força do artigo 822º nºs 1 e 2, aplicável ao arresto, o exequente adquire pelo arresto “(…) o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior”, sendo que “tendo os bens do executado sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto”.  
No presente caso, o crédito do Estado Português está baseado em título executivo e, tendo sido decretado arresto sobre o imóvel penhorado que lhe confere o direito de ser pago antes dos credores que não tenham garantia real anterior, haverá que considerar estarem verificados os dois requisitos do artigo 788º do CPC para a reclamação do seu crédito.
Por outro lado, no caso dos autos o arresto foi decretado ao abrigo do artigo 10º da Lei 5/2002, para garantir o pagamento do valor perdido a favor do Estado, fixado em 139 465,24 euros por sentença transitada em julgado, pelo que, à protecção conferida pelo arresto acima descrita, acresce o direito de o Estado declarar perdido a seu favor o bem arrestado ao abrigo do artigo 12º nº4 da Lei 5/2002, se o arguido não pagar voluntariamente o montante em dívida nos termos do nº3 deste artigo 12º.
Na situação em apreço o recorrente não alega nem prova que tenha sido proferido o despacho declarando perdido o bem arrestado ao abrigo do nº4 do artigo 12º da Lei 5/2002, não estando demonstrado que o imóvel dos autos foi declarado perdido a favor do Estado (caso em que a execução teria de ter sido intentada também contra o Estado na qualidade de dono do prédio onerado, nos termos do artigo 54º nº2 do CPC), pelo que, enquanto não for feita tal demonstração, nestes autos o direito que tem por base o título executivo consubstanciado na decisão do acórdão da Relação de Lisboa, transitado em julgado em 15/02/2018, só poderá beneficiar de protecção mediante a reclamação do respectivo crédito no âmbito do artigo 788º do CPC.       
Deste modo, procedem as alegações de recurso na parte em que se pede a revogação do despacho recorrido por ser improcedente o fundamento em assenta a respectiva decisão (inexistência de garantia real), havendo, porém, que tomar posição sobre a questão de apreciar da validade da citação já efectuada ao Ministério Público para reclamar o crédito e da necessidade de citar o Estado Português para este efeito, a ser submetida de novo à apreciação do tribunal recorrido.
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DECISÃO.
Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que se pronuncie sobre os concretos pedidos de declaração de nulidade da citação do Ministério Público e de realização de citação do Estado para efeitos dos artigos 786º e 788º do CPC e respectiva fundamentação.     
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Sem custas.  
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2021-10-07
Maria Teresa Pardal
Anabela Calafate
António Santos