Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1423/08.2TYLSB-A.L1-8
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
DOMÍNIO TOTAL
AQUISIÇÃO POTESTATIVA
PROCESSO ESPECIAL DE LIQUIDAÇÃO DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAR A DECISÃO
Sumário: 1. O Código das Sociedades Comerciais estabelece as regras para o domínio total superveniente de uma sociedade por outra, aquisição que se traduz não na criação de uma nova sociedade pela sociedade dominante, mas antes numa aquisição integral por esta última de todas as acções ou quotas de uma sociedade já existente.
2. Numa aquisição de participações sociais tendentes ao domínio total de uma sociedade, também apelidada de aquisição potestativa, sempre que o sócio minoritário considere insatisfatória a oferta da sociedade dominante tem ao seu alcance a possibilidade de recorrer à propositura de uma acção e requerer ao respectivo Tribunal que: a) Declare as quotas ou acções como adquiridas pela sociedade dominante desde a propositura da acção; b) Fixe o seu valor em dinheiro; c) E condene a sociedade dominante a pagar-lho.
3. Nestas circunstâncias, a acção a propor consiste no processo especial de liquidação de participações sociais previsto nos arts. 1498º e 1499º do CPC.
4. Resultando dos presentes autos que o A. veio exercer um direito social relativo à aquisição das suas quotas ou acções, decorre da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais que a competência para preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais cabe, in casu, ao Tribunal de Comércio de Lisboa.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – 1. A, empresário, instaurou no Tribunal do Comércio de Lisboa processo especial de fixação judicial do valor de participações sociais contra:

B, S.A.

Pedindo que seja majorada a contrapartida pecuniária oferecida pela Ré pelas 50.000 acções do Autor na sociedade C, S.A. , para 50.000,00 €, por discordar da contrapartida que lhe foi oferecida, sem prejuízo de valor mais elevado que se vier a apurar mediante avaliação judicial, com a condenação da Ré a pagar-lhe aquela quantia, acrescida de juros legais desde a data da propositura da presente acção até integral pagamento.
 
Alega, para o efeito que:
Autor e Ré constituíram, em 18 de Julho de 2007, uma sociedade comercial anónima com o nome C S.A., (actualmente com a denominação supra referida), com o capital social de 250.000,00 €, representado por 250 mil acções de valor nominal de Um Euro, em que o A. subscreveu e realizou o montante de 50.000,00 €, representado por cinquenta mil acções, e a Ré subscreveu e realizou o montante de 199.997,00 €, representado por 199.997 acções.
Acontece que em 15 de Maio de 2008 foi aprovado um aumento de capital social daquela empresa para 975.000,00 €, tendo a subscrição de tal aumento sido realizada em dinheiro pela accionista Ré, no montante de 725.000,00 €.
A partir daquela data a Ré passou a deter 94,8718% do capital social da referida sociedade.
Em 7 de Nov. de 2008 o A. recebeu uma carta da sociedade Ré, na qual lhe comunicava que a partir dessa data a Ré passava potestativamente a titular das 50.000 acções do capital social de que o A. era titular e, em contrapartida, a Ré oferecia ao A. a quantia de 37.868,39 €. Ou seja, 0,7573678 € por acção!
Para justificação de tal contrapartida a Ré entregou ao A. o respectivo Relatório de Avaliação junto aos autos.
Só que tal contrapartida é nitidamente irreal e insatisfatória pois nem sequer corresponde ao respectivo valor nominal, ou seja 50.000,00 €, sem prejuízo de outro valor mais elevado que se vier a apurar mediante avaliação judicial, que desde já se requer.
Conclui pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe uma quantia mais elevada pelas acções que o A. detém.

2. A Ré contestou, quer por impugnação quer por excepção.
Excepcionando refere, em síntese, que o presente processo não é o meio próprio para o Requerente obter a sua pretensão, uma vez que o art. 490º nº 6 do CSC aplica-se apenas às situações referidas no nº 5 do mesmo artigo, não sendo adequado ao presente caso o recurso ao processo especial de fixação judicial do valor de participações sociais regulado nos arts. 1498º e 1499º do CPC.
Por conseguinte, o Tribunal do Comércio também não é o Tribunal competente em razão da matéria para dirimir o presente litígio. O que determina a incompetência absoluta do Tribunal.

3. Respondeu o Autor dizendo, em suma, que devem julgadas improcedentes as excepções deduzidas pela Requerida, sendo a forma de processo própria e o Tribunal do Comércio o competente para dirimir o presente litígio.

4. O Tribunal “a quo” julgou improcedentes as excepções arguidas pela Ré e declarou o Tribunal do Comércio de Lisboa competente para conhecer e decidir a presente acção.
E, de seguida, determinou a realização de uma perícia com vista à fixação do valor das participações sociais de que o A. é titular na sociedade aqui em causa.

5. Inconformada a Ré Apelou, tendo formulado, em síntese, as seguintes conclusões:

A. Os processos especiais são aplicáveis estritamente na medida em que um preceito legal especificamente o preveja – art. 460, nº 2, do CPC.
B. O processo de liquidação de participações sociais previsto no art. 1498º do CPC não é adequado à impugnação da contrapartida oferecida no âmbito de operação desencadeada nos termos dos nºs 2 e 3, do art. 490º, do CSC.
C. As situações tratadas nos nºs 2 e 3, por um lado, e 5 e 6, por outro, do art. 490º, do CSC, são diferentes, porquanto no primeiro caso existe avaliação efectuada por ROC independente, o que não sucede no segundo. Essa foi uma opção intencional (e lógica) do legislador.
D. A contrapartida oferecida nos termos dos nºs 2 e 3 do art. 490º do CSC pode ser impugnada (e tem-no sido frequentemente nos Tribunais) através dos meios comuns: por força do princípio da especialidade, não pode haver duas formas de processo destinadas a acautelar o mesmo direito.
E. Em qualquer caso, o processo especial do art. 1498º do CPC destina-se ao exercício de direitos sociais, pressupondo portanto a qualidade de accionista. Desencadeada a operação nos termos dos nºs 2 e 3 do art. 490º do CSC, o accionista minoritário perde ope legis a qualidade de accionista.
F. A competência do Tribunal de Comércio para dirimir este litígio decorre única e exclusivamente da opção pelo processo previsto no art. 1498º do CSC, por força do disposto na alínea c), do nº 1, do art. 89º, da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro.
G. Os Tribunais do Comércio são materialmente incompetentes para decidir a questão de fundo. A competência caberia às Varas Cíveis de Lisboa (art. 97º da Lei nº 3/99, de 13/1).
H. A decisão recorrida violou o disposto nos arts. 26º, 66º, 67º, 101º, 105º, 460º, nº 2, 1498º e 1499º, todos do CPC, o art. 490º do CSC, e os arts. 89º, nº 1, alínea c), e 97º, ambos da LOFTJ.
I. Deve, por isso, ser revogada e, em consequência, a Recorrente absolvida da instância por violação das regras de competência do Tribunal em razão da matéria. 

6. Não foram apresentadas contra-alegações.

7. Corridos os Vistos legais,
Cumpre Apreciar e Decidir.

II – Enquadramento Fáctico-Jurídico:

1. Com relevância para a decisão a proferir destacam-se os seguintes factos provados nos autos:

1. A. e Ré constituíram, em 18 de Julho de 2007, por documento particular, a sociedade comercial anónima denominada “C S.A.), com sede em Lisboa, e com o capital social de 250.000,00 €, representado por duzentas e cinquenta mil acções de valor nominal de UM EURO.
2. O A. subscreveu e realizou o montante de 50.000,00 €, representado por cinquenta mil acções.
3. A Ré subscreveu e realizou o montante de 199.997,00 €, representado por cento e noventa e nove mil, novecentas e noventa e sete acções.
4. Em 15 de Maio de 2008 foi aprovado um aumento do capital social para 975.000,00 €, tendo a subscrição de tal aumento, no montante de 725.000,00 €, sido realizada em dinheiro pela accionista Ré.
5. E a partir daquela data a Ré passou a deter 94,8718% do capital social da referida sociedade.
6. Em 7 de Novembro de 2008, o A. recebeu da sociedade Ré uma carta em que lhe era comunicado que a Ré se tornava potestativamente titular das 50.000 acções representativas do capital social de que o A. era titular, a partir daquela data – cf. documento nº 1, cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido.
7. Como contrapartida da aquisição a Ré oferecia ao A. a quantia de 37.868,39 €.
8. Para justificação de tal contrapartida a Ré entregou ao A. o Relatório de Avaliação junto aos autos – cf. documento nº 2, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

2. Do que antecede verifica-se desde logo que:
a) A contrapartida de 37.868,39 €, oferecida pela Ré ao Autor, constitui um valor inferior ao referido supra no ponto 2);
b) Tal valor é manifestamente inferior ao valor nominal de UM EURO referido supra no ponto em 1).

O objecto do presente recurso centra-se na questão de saber se:

a) A aquisição tendente ao domínio total de uma sociedade pode ser exercida através do processo especial de liquidação de participações sociais previsto no art. 1498º do CPC;
b) O Tribunal do Comércio é materialmente competente para decidir a questão de fundo.

Decidindo.

3. Da análise dos elementos inseridos no articulado inicial constata-se que o A. descreve os factos em que funda o seu pedido, culminando nos seguintes termos: pretende obter do Tribunal a fixação de um valor justo para a sua quota, uma vez que a Ré, detentora da maior parte do capital da sociedade a que se referem os autos, decidiu tornar-se titular das acções pertencentes ao sócio minoritário, in casu, o Autor.
Tal prática nada tem de irregular. O próprio Código das Sociedades Comerciais a prevê nos arts. 488º, 489º e 490º. Ponto é que essa aquisição se faça pelo valor justo para o sócio que se quer, por esta via, ver excluído/absorvido.

4. Com efeito, extrai-se da análise dos normativos legais citados que o Código das Sociedades Comerciais contém uma Secção inteiramente dedicada aos grupos constituídos por domínio total regulando tal matéria nos arts. 488º e segts.
Assim, no seu art. 488º, prevê a situação de constituição de grupos por domínio total inicial, que consiste, em síntese, na detenção originária da totalidade do capital social de uma sociedade por outra.
Também o art. 489º do CSC estabelece as regras para o domínio total superveniente, que se traduz, não na criação de uma nova sociedade pela sociedade dominante, mas antes numa aquisição integral por esta última de todas as acções ou quotas de uma sociedade já existente.
Situação em que a participação totalitária detida pela sociedade dominante deriva de uma aquisição de partes sociais, em momento ulterior à constituição da sociedade dominada.
Devendo, em tal circunstância, observar o formalismo que o legislador impõe nos nºs 2 e segts do próprio art. 489º.

5. Por sua vez no art. 490º do CSC veio o legislador regular a forma como se processam essas aquisições de participações sociais tendentes ao domínio total de uma sociedade, também apelidada de aquisição potestativa. [1]
E aí se consagrou que sempre que uma sociedade detenha 90% ou mais do capital social de outra, nasce para a primeira um direito (e em certos casos um dever) de adquirir as fracções remanescentes do capital da segunda mediante uma dada contrapartida patrimonial.
O legislador, na pressuposição de que esse status não é benéfico nem para a sociedade dominante (com o capital de 90% ou mais), nem para os restantes sócios minoritários ou sociedade dominada, em dependência praticamente absoluta, pois apenas possuem o remanescente das participações, até ao limite máximo de 10%), privilegiou uma solução tendente a concretizar uma situação que classificou juridicamente de domínio total.
Nestas circunstâncias, sem embargo da concretização da transferência das participações por livre negociação dos interessados, o legislador conferiu, por um lado, aos sócios minoritários o direito potestativo de alienarem as suas participações, interpelando directamente a sociedade dominante (e, em caso de inércia, suscitando a intervenção do Tribunal para a declaração de transmissão e fixação do respectivo valor); por outro lado, concedeu à sociedade dominante o direito (igualmente de natureza potestativa) de dirigir à dominada uma proposta de aquisição das participações residuais, com indicação da natureza e do valor da contrapartida oferecida, com possibilidade de impor aos sócios minoritários, em caso de recusa, tal aquisição. [2]

6. A justificação para esta solução é avançada pelo citado Autor: sendo função da lei o enquadramento e regulamentação, em termos gerais e abstractos, de determinadas realidades, a ratio da aquisição potestativa encontra-se precisamente na busca de mecanismos tendentes a evitar o perigo de perturbação da sociedade dominada (ou do grupo em que se insere).
Por isso, como refere Raposo Bernardo, o “legislador ponderou os interesses subjacentes à manutenção de uma situação que, possivelmente, não servirá a sociedade dominante nem os sócios minoritários da dominada”. [3]

Clarificando a razão de ser de uma medida desta natureza, com reflexos na vida societária dos sócios minoritários, pode ler-se, ainda, em Raul Ventura, a seguinte explicação:
“Não se trata de retirar aos sócios minoritários um bem para dele fazer beneficiar os sócios maioritários, mas sim permitir que a sociedade siga a sua vida sem potenciais conflitos entre tão larga maioria e tão fraca minoria, designadamente que os interesses específicos desta minoria não se oponham à conjugação de interesses entre a sociedade dominante e a sociedade dependente”.[4]

7. O procedimento a adoptar para a concretização desta aquisição potestativa tendente ao domínio total vem descrito na própria norma: art. 490º do CSC. Segundo o qual:
“Uma sociedade que por si ou conjuntamente com outras sociedades… disponha de quotas ou acções correspondentes a, pelo menos, 90% do capital de outra sociedade, deve comunicar o facto a esta nos 30 dias seguintes àquele em que for atingida a referida participação” – cf. nº 1 do art. 490º do CSC.
“Nos seis meses seguintes à data da comunicação, a sociedade dominante pode fazer uma oferta de aquisição das participações dos restantes sócios, mediante uma contrapartida em dinheiro, ou nas suas próprias quotas, acções ou obrigações, justificada por relatório elaborado por revisor oficial de contas independentemente das sociedades interessadas, …” – cf. seu nº 2.
“A sociedade dominante pode tornar-se titular das acções ou quotas pertencentes aos sócios livres da sociedade dependente, se assim o declarar na proposta, estando a aquisição sujeita a registo por depósito e publicação” – cf. nº 3.
“O registo só pode ser efectuado se a sociedade tiver consignado em depósito a contrapartida, em dinheiro, acções ou obrigações, das participações adquiridas, calculadas de acordo com os valores mais altos constantes do relatório do revisor” – cf. nº 4.
“Se a sociedade dominante não fizer oportunamente a oferta permitida pelo nº 2 deste artigo, cada sócio ou accionista livre pode, em qualquer altura, exigir por escrito que a sociedade dominante lhe faça, em prazo não inferior a 30 dias, oferta de aquisição das suas quotas ou acções, mediante contrapartida em dinheiro, quotas ou acções das sociedades dominantes” – nº 5.
“Na falta da oferta ou sendo esta considerada insatisfatória, o sócio livre pode requerer ao Tribunal que declare as quotas ou acções como adquiridas pela sociedade dominante desde a proposição da acção, fixe o seu valor em dinheiro e condene a sociedade dominante a pagar-lho. A acção deve ser proposta nos 30 dias seguintes ao termo referido no número anterior ou à recepção da oferta, conforme dor o caso” – cf. nº 6.
“A aquisição tendente ao domínio total da sociedade com o capital aberto ao investimento do público rege-se pelo disposto no Código dos Valores Mobiliários” – cf. nº 7.

8. Em Conclusão:
- Pode, assim, dizer-se que:
Sempre que o sócio minoritário, nas condições previstas no art. 490º do CSC, maxime seu nº 6, considere insatisfatória a oferta da sociedade dominante, tem ao seu alcance a possibilidade de recorrer à propositura de uma acção e requerer ao Tribunal que:
a) Declare as quotas ou acções como adquiridas pela sociedade dominante desde a propositura da acção;
b) Fixe o seu valor em dinheiro;
c) Condene a sociedade dominante a pagar-lho.
9. Do que antecede depreende-se de imediato que quando a sociedade maioritária decide lançar mão do disposto no art. 490º do CSC, para fazer uma oferta de aquisição das participações dos restantes sócios minoritários, e não apresente ou avance para essa aquisição com um valor que seja aceite pelos restantes sócios, v.g., por o considerarem insatisfatório, podem estes recorrer ao Tribunal.
Deriva daqui que a propositura de uma acção desta natureza visa obter do Tribunal a fixação de um valor mais adequado e justo como contrapartida a pagar ao sócio minoritário pelas acções que detenha na respectiva sociedade dominante.   

Ora, saber e aferir in concreto qual o valor justo e adequado às participações sociais detidas de molde a reembolsá-las, não constitui tarefa fácil para qualquer Tribunal.
Trata-se, com efeito, de uma matéria complexa, a exigir, por isso, pareceres técnicos e avalizados de outros que são peritos e especialistas nessas matérias, e nas quais assentam o seu exercício profissional.
Obter um quantum exacto, ou pelo menos não desfasado da realidade fáctica e económico-financeira da sociedade, impõe que se chame à colação elementos directos e quantificáveis sobre o valor patrimonial da empresa, com tudo o que um juízo desta natureza encerra.
Não dependendo, por conseguinte, da mera vontade egoística de quem quer submeter ou absorver outras acções ou quotas, mas sim de critérios relacionados com o exercício do direito potestativo de aquisição, a análise da actuação da sociedade maioritária ou a aferição da justiça material das contrapartidas oferecidas numa perspectiva económica visando o objectivo primordial e único da lei: atribuir ao sócio minoritário uma compensação económica adequada e justa. Ou pelo menos, satisfatória, para utilizar a expressão vertida pelo legislador no nº 6 do art. 490º do CSC.
E só uma avaliação judicial da respectiva participação social garante essa determinação isenta, proporcional e adequada à compensação a fixar.

10. Aqui chegados, a questão que se suscita de imediato é a seguinte:
- Mas que tipo de acção deve ser proposta, nestas circunstâncias, e qual o Tribunal para dirimir este conflito?

No que concerne ao tipo de acção a propor, a resposta a esta primeira questão remete-nos para a formulação de um processo especial, próprio: o processo especial de liquidação de participações sociais previsto nos arts. 1498º e 1499º do CPC.
11. Com efeito, o processo especial de liquidação de participações sociais mostra-se regulado pelos arts. 1498º e 1499º do CPC e surge caracterizado, no âmbito do direito processual civil, como um processo especial, relativo ao exercício de direitos sociais.
Processo que tem lugar, segundo o nº 1, do art. 1498º, quando, em consequência de morte, exoneração ou exclusão de sócio, deva proceder-se, nos temos previstos na lei, à avaliação judicial da respectiva participação social, caso em que o interessado requererá ao Tribunal que a ela se proceda.
Caberá então ao Juiz designar perito para proceder à avaliação da respectiva participação social e, ouvidas as partes sobre o resultado da perícia realizada, fixar o valor da participação social, nos termos do nº 3, deste normativo.
Tramitação que é aplicável aos demais casos em que, mediante avaliação, haja lugar à fixação judicial do valor de participações sociais, por força do preceituado no art. 1499º do CPC.

Pode, assim, dizer-se que, com tal processo se visa apurar, através de avaliação judicial, o valor real das quotas ou acções do sócio que se pretende excluir ou absorver, de acordo com a sua participação social, de molde a obter, por essa via, um valor adequado e justo como contrapartida para as acções pertencentes a esse mesmo sócio.

E, nessa medida, é o adequado para o caso sub judice: devendo o sócio minoritário lançar mão de tal processo e solicitar ao Tribunal a sua majoração ao abrigo do processo especial regulado nos arts. 1498º e 1499º, ambos do CPC. [5]

12. Quanto à atribuição da competência em razão da matéria, para decidir e julgar essa acção, temos para nós que deve ser sufragado o entendimento expresso pelo Tribunal “a quo” nestes autos: o de que essa competência material pertence ao próprio Tribunal do Comércio.
Vejamos porquê.

13. Dispõe o art. 67º do CPC que são as leis de organização judiciária que determinam as causas que, em razão da matéria, são da competência dos Tribunais Judiciais dotados de competência especializada.
Remete-nos assim, para a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – a LOFTJ, Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro – que rege a competência dos Tribunais Judiciais, explicitando a forma como a competência se reparte na ordem jurídica interna pelos Tribunais Judiciais – cf. art. 17º.
Entre os Tribunais de competência especializada incluem-se os Tribunais de Comércio – cf. art. 78, alínea e).
Por sua vez nos termos do disposto no art. 89º, nº 1, alíneas c) e d), da Lei nº 3/99, estabelece-se que compete aos Tribunais de Comércio preparar e julgar… “c) as acções relativas ao exercício de direitos sociais; d) e as acções de suspensão e anulação de deliberações sociais, entre outras ali elencadas”.

Complementarmente importa ter presente que em matéria de processo civil, sempre que se suscitem dúvidas, a competência dos Tribunais deve ser aferida pelos termos em que a acção é proposta.
O mesmo é dizer que, em tais circunstâncias, a competência em razão da matéria é determinada em face da relação jurídica tal como o Autor a configura na acção através da sua petição inicial. [6]
Porém, no caso sub judice, não se pode dizer que tais dúvidas se levantem tendo em atenção o teor da alínea c), do nº 1, do art. 89º, da Lei nº 3/99, porquanto o legislador consagrou expressamente a competência dos Tribunais de Comércio para a preparação e julgamento das acções relativas ao exercício de direitos sociais.

14. Ora, neste tipo de acções que abarcam o exercício dos direitos sociais incluem-se, quer os direitos dos sócios consagrados no art. 21º do CSC – direito a obter informações, direito a participar nas deliberações sociais, direito aos lucros…, quer os direitos de acção judicial de sócio, v.g., direito de requerer inquérito judicial por falta de apresentação de contas (art. 67º do CSC), direitos de preferência nos aumentos de capital, etc.
E, resultando dos autos que o A. veio exercer um direito social consagrado no art. 490º, nºs 2 e 5), do CSC,
A conclusão que se impõe é que a acção adequada ao exercício efectivo desse direito está prevista no art. 89º, nº 1, alínea c), da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, que estabelece que o Tribunal do Comércio é o competente para preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais.

In casu, essa competência cabe, pois, ao Tribunal de Comércio de Lisboa.

15. Razão pela qual falece a Apelação e se confirma, in totum, a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”.

III – Em Conclusão:

1. O Código das Sociedades Comerciais estabelece as regras para o domínio total superveniente de uma sociedade por outra, aquisição que se traduz não na criação de uma nova sociedade pela sociedade dominante, mas antes numa aquisição integral por esta última de todas as acções ou quotas de uma sociedade já existente.
2. Numa aquisição de participações sociais tendentes ao domínio total de uma sociedade, também apelidada de aquisição potestativa, sempre que o sócio minoritário considere insatisfatória a oferta da sociedade dominante tem ao seu alcance a possibilidade de recorrer à propositura de uma acção e requerer ao respectivo Tribunal que: a) Declare as quotas ou acções como adquiridas pela sociedade dominante desde a propositura da acção; b) Fixe o seu valor em dinheiro; c) E condene a sociedade dominante a pagar-lho.
3. Nestas circunstâncias, a acção a propor consiste no processo especial de liquidação de participações sociais previsto nos arts. 1498º e 1499º do CPC.
4. Resultando dos presentes autos que o A. veio exercer um direito social relativo à aquisição das suas quotas ou acções, decorre da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais que a competência para preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais cabe, in casu, ao Tribunal de Comércio de Lisboa.

IV – Decisão:

- Termos em que se julga improcedente a Apelação e, por consequência, se confirma a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, declarando-se que o Tribunal de Comércio de Lisboa é o competente para conhecer e decidir a presente acção, devendo, aí, prosseguir os seus termos.

- Custas pela Ré Apelante.

Lisboa, 12 de Novembro de 2009.

Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)
António Manuel Valente
Ilídio Sacarrão Martins

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[1] Sobre esta matéria podem consultar-se diversos autores, nomeadamente: Raposo Bernardo, in “A Aquisição do Domínio Total nas Sociedades Comerciais” – Dissertação de Mestrado, na Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1997, págs. 11 e segts; Menezes Cordeiro, in BMJ., 480º, pág. 19 e segts e “Manual de Direito Comercial”, II vol., págs. 106 e segts; J. Engrácia Antunes, in “A Aquisição Tendente ao Domínio Total – da Sua Constitucionalidade”, págs. 116 e segts.
[2] Neste sentido cf. o Acórdão desta Relação, datado de 29/10/2002, e proferido no âmbito do Processo nº 7195/2002 – 7ª Secção, in www.dgsi.pt, relatado por António Santos Abrantes Geraldes.
[3] Cf. obra citada, págs. 11 e segts.
[4] Neste sentido Raul Ventura, in “Estudos Vários Sobre Sociedades”, pág. 168.
[5] Neste sentido cf. o Acórdão desta Relação, datado de 29/10/2002, relatado por Abrantes Geraldes.
Veja-se também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25/10/2005, proferido no âmbito do Proc. nº 0422142, in www.dgsi.pt.
[6] Cf., neste sentido, o Acórdão do STJ, de 09/05/1995, in CJSTJ, 1995, vol. II.