Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
576/14.5GEALR-F.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
REQUISITOS
PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ACTIVIDADE CRIMINOSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I- Na ponderação da verificação do perigo a que se refere a alínea c) do artigo 204º do Código de Processo Penal, o Juiz de Instrução deve ser prudente e cauteloso já que o mesmo tem na base um perigo futuro incerto, ainda que assente em factos actuais concretos, sendo, por isso, maior o grau de incerteza na sua verificação, próxima de dotes de adivinhação. Inexistindo tal cautela pode-se transformar as medidas de coacção em verdadeiras medidas de segurança, não compatíveis com um processo penal democrático.

II- O raciocínio a efectuar ao momento de aplicação de uma medida de coacção é, constatada a sua necessidade e dentro das legalmente admissíveis, qual aquela que melhor se adequa à atenuação ou eliminação dos perigos que se visam acautelar, tendo presente os princípios de concordância prática de interesses ou princípios constitucionais conflituantes (segurança/liberdade; realização da justiça/direitos fundamentais) e é, ao mesmo tempo, proporcional à gravidade do crime e às sanções previsivelmente aplicáveis a esse concreto arguido, tendo sempre em conta que a prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação só devem ser aplicadas se as demais forem inadequadas ou insuficientes.

 

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Nos presentes autos de recurso acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I           Relatório

Nos autos de inquérito que correm termos nos serviços do Ministério Público do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), com o número supra identificado, após ter sido submetido a primeiro interrogatório judicial subsequente à sua detenção, no Tribunal Central de Instrução Criminal (TICC), da Comarca Lisboa, foi determinada a sujeição do arguido LM..., após a verificação das condições necessárias da sua aplicação, à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com recurso a meios de vigilância electrónica (OPHVE) e proibição de contactar com qualquer dos co-arguidos, bem assim como qualquer dos trabalhadores e dirigentes das sociedades de Tr..., Ag..., Am... e, bem assim, com quaisquer responsáveis e dirigentes e colaboradores do Instituto do IEFP e do IMS- Instituto Médico Scalabitano e do SEF e da Embaixada Portuguesa em Nova Deli, nos termos constantes do seguinte despacho:
(transcrição parcial respeitante a este recurso e com interesse para esta decisão)

«Validam-se as detenções dos arguidos porquanto efectuadas no cumprimento de mandados de detenção fora de flagrante delito, nos termos dos arts. 257º do CPP.
                Foi observado o prazo a que alude o artº 141º do CPP.
                Ao abrigo do disposto no artigo 141º, nº 4, alínea d), do CPP para efeitos de realização do 1º interrogatório judicial de arguidos detidos, comuniquei e interroguei os arguidos sobre os factos referidos.
*
               No tocante à validade da detenção fora de flagrante delito, considera-se relevante dar por reproduzida, transcrevendo-a, alguma da jurisprudência que foi possível recolher a tal respeito.
               Tendo presente a redacção dada ao artigo 257º do Código Processo Penal, pela Lei 26/10 de 30/08, há que ponderar sobre a verificação em cada caso das circunstâncias, agora erigidas pelo legislador para que possa, ainda, o Juiz ou o Ministério Público e, em casos especiais, a autoridade de polícia criminal deter um cidadão fora de flagrante delito.
=****=
                Respigámos, pois, alguns doutos arestos:
(…)
Verifica-se assim que, no caso concreto que foram cumpridos os preceitos legais atinentes, razão porque se reitera.
**
Do despacho de apresentação elaborado pelo MP e sopesando as declarações prestadas pelos arguidos, neste interrogatório cotejadas aqueloutras com os meios de prova apresentados inicialmente para interrogatório, considero fortemente indiciados os seguintes factos:
Pelo menos desde meados do ano de 2012 que os arguidos FB... e JB...se dedicam à oferta, entrega, aliciamento, aceitação, transporte, alojamento e/ou acolhimento de cidadãos estrangeiros, nomeadamente o ofendido SR... e os demais ofendidos identificados nos autos, com vista à exploração da sua mão-de-obra, de molde a obterem elevados proveitos financeiros.

Essa exploração tem sido realizada mediante a utilização de força, ameaças e coacção, aproveitando a especial vulnerabilidade dos trabalhadores ofendidos que se encontram num país totalmente estranho, onde não dominam a língua local.
A estes trabalhadores foi exigido um trabalho contínuo, muito para além do humana e legalmente permitido, mediante um pagamento irrisório, alheio ao número efectivo de horas trabalhadas.
Com o fito de maximizarem os respectivos lucros, os arguidos instalaram os ofendidos em alojamentos sem o mínimo de dignidade, exíguos, sem condições sanitárias e sem lhes ser fornecida alimentação adequada.

Efectivamente, os arguidos FB... e JB...associaram-se a dois indivíduos de nacionalidade israelita, AB... e de IR..., e constituíram nos inícios de 2013 uma sociedade – “Tr...” -, cujo objecto era a angariação de trabalhadores para serem colocados em empresas agrícolas que necessitassem de mão-de-obra; os trabalhadores ficariam afectos à “TR...”, que lucraria com o avultado diferencial entre o valor pago pelas empresas clientes e o valor dos salários dos trabalhadores.

Os arguidos AB..., VS..., LM..., JS... e NT... também passaram a colaborar nesta actividade, constituindo vínculo laboral com a “TR...”.
Os trabalhadores eram angariados no Nepal, Bangladesh e Tailândia, onde AB... tinha contactos com empresas recrutadoras, sendo o montante pago pelos trabalhadores para conseguirem um emprego em Portugal dividido entre todos os intervenientes.

Em Portugal, os arguidos estabeleceram ligações com as empresas que necessitavam de trabalhadores, encetando os procedimentos necessários para possibilitar a contratação de trabalhadores estrangeiros.

Para o efeito, munidos com uma procuração outorgada pela empresa necessitada de trabalhadores, os arguidos deslocaram-se a diferentes Centros do Instituto do Emprego e Formação Profissional para obterem trabalhadores. Esta entidade publicou, então, um anúncio de emprego, válido por trinta dias, com vista à atribuição de trabalho prioritário a cidadãos nacionais ou a cidadãos com autorização de residência no espaço comunitário. Todavia, durante as entrevistas com os trabalhadores nacionais ou equivalentes, com vista ao preenchimento das vagas de emprego, o representante da “TR...” (num primeiro momento esta, subsequentemente a “AG...”), na qualidade de cliente, apresentava condições que dificilmente seriam aceites por um cidadão nacional. Na ausência de candidatos nacionais ou com autorização de residência na União Europeia para a vaga de emprego, o Instituto de Emprego emitia uma declaração atestando a impossibilidade de recrutar em Portugal, essencial para que os arguidos pudessem encetar os procedimentos necessários para trazer trabalhadores estrangeiros, não residentes no espaço comunitário.

Então, os contactos dos arguidos no Nepal, Bangladesh ou Tailândia iniciavam o recrutamento de trabalhadores para Portugal, cobrando a cada candidato cerca de € 10.000,00 (dez mil euros).

Na posse dos nomes dos candidatos estrangeiros e da declaração do Centro de Emprego, um dos arguidos, dirigia-se ao Departamento de Emprego para obter uma autorização para empregar os trabalhadores estrangeiros identificados, sendo esses nomes comunicados à respectiva embaixada.

Posteriormente, os contactos dos arguidos no Nepal, Bangladesh ou Tailândia orientavam os trabalhadores candidatos para se dirigirem à embaixada portuguesa, em Nova Deli ou em Bangkok, para serem entrevistados. A embaixada articulava-se, então, com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e este emitia os vistos para que os trabalhadores candidatos pudessem viajar para Portugal.

Embora numa primeira fase da sua actividade os arguidos FB... e JB...e os referenciados indivíduos israelitas actuassem sob a alçada da sociedade “Tr...”, com sede na (...), posteriormente separaram-se, constituindo sociedades autónomas, embora no mesmo ramo de actividade: a prestação de serviços agrícolas com recurso a mão-de-obra estrangeira.

Assim, os arguidos FB... e JB..., com o intuito de obterem mais proventos, constituíram a sociedade “AG... – Serviços Agrícolas, Lda”, em 28 de Outubro de 2013, com sede em Almeirim (cfr. teor de matrícula a fls. 153/156), para a qual transferiram bens e trabalhadores da “TR...” (entre eles, os arguidos AB..., VS..., LM..., JS... e NT...), à revelia de AB... e de IR..., sócios-gerentes desta última, utilizando abusivamente a procuração outorgada ao arguido FB..., para administrar a “TR...” (cfr. produto 28886 do Alvo 70393060).

Por seu turno, com o esvaziamento da actividade da “TR...”, RB... aliou-se a um novo sócio português, formando com outros cidadãos estrangeiros a sociedade “JQ...”.

IR... constituiu a sociedade “S...” com outro sócio estrangeiro.

No âmbito das respectivas funções na “AG...” incumbia ao arguido FB... a parte comercial da actividade, efectuando a ligação com as explorações agrícolas empregadoras/clientes.

Ao arguido JB...cabia efectuar a ligação formal e burocrática com os trabalhadores agrícolas, formalizando os respectivos contratos de trabalho e efectuando o pagamento dos salários.
(cfr. produtos 4269, 12964 e 43363 do Alvo 70393060; e produtos 4169, 6047, 6048, 6049, 7599, 8181, 10335, 10336, 10337, 11129, 13247, 13248, 13249, 13250, 13251, 13290, 28222 do Alvo 72543060 - “…já percebi o que é que se passa com os salários… Então é assim: Há uma coluna… não tem dia, é a seguir ao dia trinta… Uso essa coluna para dar umas horas, para por umas horas. Umas vezes ponho, outras tiro e tal e coiso, para aquilo acertar, para fazer o… a Segurança Social… E há gajos agora que têm as mesmas horas, é pá, e que têm ali diferenças de dez ou quinze euros… Uns meses arredondo tudo para cima, outros meses assim, outros meses assado…” – “…estes tem que compreender assim, não compreendem vão com o caralho, não posso fazer de outra maneira, eles não querem pagar IRS, não querem pagar IRS e querem receber tudo, não podem, eu não posso pagar do meu bolso, não pago mais… Tu tens que dizer oh meu amigo você recebe aqui no recibo, e no mês que tem dois ou três dias a menos, compensa…”).

Todavia, sempre que havia que resolver questões com os trabalhadores, cabia ao arguido FB... essa resolução.
(cfr. produtos 495, 624, 839, 899, 2043, 2136, 3431, 3461, 3465, 3566, 3645, 4975, 5677, 7259, 8990, 12964, 13278, 24278, 28667, 30072, 30088, 30277, 30282, 31161, 31169, 32456, 33662, 33675, 37852, 38479, 38686, 38717, 38861, 40772, 41257, 41978, 43333, 43363, 45398, 45400, 54555, 54560, 54745, todos do Alvo 70393060; produto 8118 do Alvo 72543060; e produto 117 do Alvo 76063040)
(“…Ó pá, precisamos de arranjar mais uma casa, caralho… para a gente pôr gajos… Isso é pores… dez contentores… fazes os esgotos. A partir dai está feito… e se cada um pagar dez euros… Vinte euros, ganhas dinheiro…” – “…as casas… lá aquilo não tem condições nenhumas, caralho… os gajos vão-se todos embora, naquelas condições… acho que é frio de morte… morrem de frio… então aquele telhado… aquilo é céu aberto. Eles estão a dormir ao relento…” – “…esses gajos vão chegar às nove da noite né?… assim não há camas para essa gente, vão ter que ficar lá pelo chão se calhar né?... e nem há espaço para por quatro colchões ao lado das camas…” – “…ele ainda devia passar pela Agrojob, pá, que aquilo não ‘tá nada bem! Há doze gajos sem cama! Eu fui buscar colchões ao armazém, p’ra ver se eles dormiam em cima do colchão lá no chão…” – “…o FB... recebe um sms em que o trabalhador queixa-se que só tem à disposição uma casa-de-banho, que tem de ser repartida por 60 trabalhadores…” – “…pior tão os gajos do café, aquilo tem que se mandar abrir lá uma janela, senão os homens morrem com falta de ar lá dentro daquilo, tu agora se lá fores aquilo está uma sauna autêntica lá dentro, os homens já dormem lá quase todos nus lá dentro daquilo…”)
(“…O proprietário da fábrica… disse-me que duas raparigas não estão a trabalhar tanto… Temos de melhorar, caso contrário, ele vai despedir duas raparigas…” – “…Tens de apanhar 300 quilos… Trabalham amanhã?... todas as pessoas também disseram que estão cansadas, querem descansar amanhã… Querem descansar? Quem dá as instruções? Os trabalhadores ou o agricultor?... Quero os nomes daqueles que estão cansados!... ponho-os em Lisboa para descansarem durante três meses!...” – “…qual é o ritmo de trabalho dos seus trabalhadores, vão folgar dois dias por semana também… conforme as suas necessidades Senhor Doutor… se tiverem que trabalhar todos os dias também não tem problema…” – “…Ligou-me uma Portuguesa… a dizer se a gente não tem vergonha, porque os homens estão a passar fome, não têm dinheiro, e que não receberam o ordenado todo … Foram-se queixar, não sei quem é, nem preciso de saber, é vão com o caralho… não dou hipótese esses estão fodidos…são empregados meus… problemas disciplinares, despedidos…” – “…Precisamos de fazer… o dobro… Temos duas maneiras… ou substituo todos os tipos… ou só consigo pagar 50%...” – “…as costas… Todas as semanas estás um dia doente?... Precisas de ir para casa e descansar um mês?... E ponho outro tipo no teu lugar?... É a tua última hipótese… Ok, patrão. Amanhã vou trabalhar...” – “…O F... pergunta ao trabalhador se ele pediu ao F... ou ao Jaime para folgar… trabalhador diz que já da outra vez tinha pedido e não foi autorizado a folgar… queixa-se que o F... quer que eles trabalhem “que nem burros” (sic)… O F... não o deixa explicar, gritando que para a próxima pode levar as malas porque está despedido…” – “…o F... torna-se bastante agressivo com um trabalhador, chamando-lhe "Filho da Puta", e ameaça-o que na manhã seguinte tem de pedir desculpa à “C...” e admitir que é "muito estúpido" ou o F... vai lá pessoalmente "agarrá-lo" e "fodê-lo"…” – “…O F... diz ao trabalhador que quando chegar a casa pode fazer as malas… O trabalhador pede desculpa mas o F... não aceita e acrescenta que amanhã vai à casa e se o “Migo” ainda lá estiver "vai ver o que são problemas"…” – “…o F... ordena a um trabalhador que tem de fazer o trabalho o melhor que conseguir e acabar o trabalho, caso contrário é despedido e não recebe nada. Ameaça ainda que lhe cancela o contrato e que o vai "foder no SEF”…” – “…O empregado diz que quer falar pessoalmente com o F... mas este continua apenas a gritar "não falo nada contigo, vais com o caralho. Tás armado em parvo? Queres problemas? Eu arranjo-te.").

No escritório da “AG...” em(…), exerciam ainda funções, entre outros, a arguida AB... (mulher de FB...) e a arguida VS... (namorada de JB...).

A arguida AB... desempenhava funções no escritório, tratava do serviço externo, designadamente efectuando os registos dos trabalhadores na Segurança Social e na Autoridade Tributária, e, quando necessário, transportava os trabalhadores e contactava-os directamente nas explorações e habitações. Esta arguida era um elemento fulcral na actividade da “AG...”, sabendo de toda a actividade da mesma, não fosse ela a mulher de um dos “patrões”, e tinha, ainda, autonomia para tomar algumas decisões sobre os trabalhadores.

(cfr. resumo do produto n.º 38717 do alvo 70393060 – “…eu tenho estado a falar com o L…, e a tentar ligar pó Nepal e pó R...…” – “…Há aqui problemas com os salários delas, é?... Estão aqui só a fazer fita… olhem, vocês falam assim ou põem-se a falar assim… se não estão bem, pá rua. Foi logo o que eu disse…”)

Além do serviço de escritório, cabia à arguida VS... auxiliar o arguido JB...na contabilidade da sociedade, acompanhando-o, ainda, nas respectivas deslocações às explorações agrícolas e às casas onde os trabalhadores ficavam alojados, efectuando, também, o transporte destes, quando necessário. Era igualmente um elemento fulcral na actividade da “AG...”, sabendo de toda a actividade da mesma, não fosse ela, tal como a arguida AB..., “mulher” de um dos “patrões”, tendo autonomia para tomar algumas decisões sobre os trabalhadores.
(cfr. resumos dos produtos n.ºs 705, 2660, 4269, 31161 e 31169 do alvo 70393060 – “…Ouve lá uma coisa, agora aquelas contas que a V... me deu ontem do Carlos… Mas isso é sempre o problema da V..., não lhe custava nada explicar essas parcelas… ela lida às vezes com a gente parece que está a lidar com os Nepaleses...” – “…Quatro gajos que na receberam um tosto… Quem sabe isso tem que ser a V.... A V... diz que não sabe…”)

Tanto a arguida VS... como a arguida AB... tinham conhecimento total das condições de contratação e alojamento dos trabalhadores agrícolas associados à “AG...”.
(cfr. produtos 705, 3461, 3566, 4269, 31161, 38717 e 41257 do Alvo 70393060; produto 13290, relativo ao Alvo 72543060; RDE de fls. 836/837; e Reportagem Fotográfica de fls. 839 a 856).

Como operacionais no terreno, com funções de coadjuvação e substituição, no impedimento dos arguidos FB... e JB..., havia os funcionários e também arguidos LM..., JP… e NT....
(cfr. produtos 705, 3431, 3465, 3645, 5677, 8990, 13278, 29699, 30072, 30088, 30277, 31890, 32456, 38479, 38686, 43333, 54555 e 54745 do Alvo 70393060; produto 11129 do Alvo 72543060; e produto 117 do Alvo 76063040).

O primeiro, o arguido LM..., actuava habitualmente na zona de Almeirim, transportando os trabalhadores e fiscalizando o trabalho dos mesmos. Tinha perfeito conhecimento das condições em que se encontravam os trabalhadores, porque lidava com eles diariamente, conformando-se com o facto de estes estarem a ser explorados.

Era outro elemento fulcral na actividade da empresa, tendo autonomia para tomar algumas decisões relacionadas com os trabalhadores.
(cfr. resumos dos produtos n.º 495, 752, 3645, 29699, 31890, 38479 e 38686 do alvo 70393060 – “…os gajos que estão a ser ameaçados estão a apanhar mais, percebes?... quem não tiver dinheiro para as compras, faz as malas e deixas na “bus station”…” – “Correu tudo bem de manhã?... há lá um gajo que se queixou das costas… Foda-se!!!! Quer dizer, vai-se queixar das costas… vai-se queixar das costas em nome do outro?! Foda-se! C’a burros do caralho!...” – “…Opa precisas de estar na “IMS” com quatro indivíduos daqui a uma hora, à tua escolha….” – “…o pessoal da Fazenda Nova está com febre viral… Precisam de “medicines” (medicamentos)… Se tiveres aí comprimidos para a diarreia dá aos gajos e dizes que é para a febre e isso passa à mesma… Está bem. Eu agora estou aqui a montar aqui uns… aqui uns apetrechos, fogões e não sei quantos e depois já lá passo. Para ver o que é que se passa…” – “…Eu vou-te dizer gajos que está aí na lista que já fizeram exame médico… Estes gajos não sabem mas já fizeram… Eles vão dizer que não fizeram mas já fizeram…”).

O arguido JS... desempenhava tarefas semelhantes às do arguido LM...; no entanto, por estar maioritariamente no Algarve, tinha necessidade de uma autonomia maior que a daquele, atendendo a que também era ele quem tomava conta do escritório do Algarve.

Igualmente, tinha perfeito conhecimento das condições em que se encontravam os trabalhadores, porque lidava com eles diariamente, sendo o próprio quem tratava, por vezes, das condições de alojamento daqueles.

Era, também, um elemento fulcral na actividade da empresa, assegurando a efectivação das ordens dos arguidos FB... e JB...no terreno, tendo grande autonomia para tomar algumas decisões relacionadas com os trabalhadores.
(cfr. resumos dos produtos n.º 495, 705, 3431, 3465, 5677, 8990, 30072, 30088, 31161, 32456, 54555 e 54745 do alvo 70393060 e resumo do produto n.º 4585 do alvo 72543060 – “…esses gajos vão chegar às nove da noite né?... não há camas para essa gente, vão ter que ficar lá pelo chão se calhar né?... nem há espaço para por quatro colchões ao lado das camas, nem há espaço para isso, mas pronto eles que, fica para depois… deixa lá que está orientado…” – “…tens que ir a Tavira resolver os tailandeses… é arregaçar as mangas e é à chapada com aqueles gajos… Pois, é que agora são preciso aquelas camas que lá ‘tão e eles ‘tão armados em parvos…” – “…temos que deixar de falar a brincar com o João Paulo… Vamos começar a falar à patrão… Foda-se. Outra vez com uma parga de papeis. Eu assim: ó João Paulo é assim… não precisas da tablet, pois não? Não precisas da tablet, pá, porreiro, eu começo a andar eu com a tablet… É pá, mete isso na tablet. Mete uma folha de excel na tablet… Eu sempre notei isso no João. E com os papéis e com os contratos e com o caralho. Depois assinou, não assinou. Está, não está…” – “…aquilo não ‘tá nada bem! Há doze gajos sem cama! Eu fui buscar colchões ao armazém, p’ra ver se eles dormiam em cima do colchão lá no chão…”).

Da mesma forma que os últimos dois, o arguido NT... desempenhava funções de serviço exterior, no Alentejo e Algarve, transportando os trabalhadores e fiscalizando o trabalho dos mesmos. De igual modo que os seus colegas, tinha perfeito conhecimento das condições em que se encontravam os trabalhadores, porque lidava com eles diariamente, conformando-se com o facto de estarem a ser explorados.

Era igualmente um elemento fulcral na actividade da empresa, tendo alguma autonomia para tomar decisões relacionadas com os trabalhadores.
(cfr. resumos dos produtos n.º 463, 13278, 30072 e 43333 do alvo 70393060 e resumo do produto n.º 11129 do alvo 72543060 – “…Olha, outra situação, eu vou tirar daqui um gajo para levar para lá para o Paço do Conde e dois do Vale de Água, aqueles com experiência, para ir para lá. Está bem?...” – “…Ok, chefe, portanto… hei de mandar um tipo hoje… Não! Ouve, quem muda é o Nuno, tu não.” – “…Oh pá! a gente já tamos aqui esta casa nunca deu problemas, tá a começar a dar né? Pus aqui aquele Nepalês que lá tava na casa em frente à Agrival e agora vou buscar os outros… que… não podem cozinhar nos nossos tachos… e que não sei quê… que o frigorifico é pequeno e que tem que se ir buscar outro frigorifico… isso o meu irmão dá já tudo o que eles querem… e olha tiraste-me as palavras da boca. O teu irmão vai-lhe já dizer a eles que… pede-se já tudo amanhã, e fogareiro e isso, e aquilo e o outro… Atão dá um toque ao tê irmão, qué pra ele… saber já, que se não ele diz já que dá isto e dá aquilo…” – “…Pronto vais em direção à Casa Café… passando à Casa Café… andas paí cem metros ta ai um primeiro andar amarelo… e estão se a queixar de quê ai?... Tão-se a queixar que não têm ventilação… Pois aquilo era para dezoito, vinte no máximo… Oh Jaime mas aquilo tem parcas de ventilação Jaime, pior tão os gajos do café, aquilo tem que se mandar abrir lá uma janela, senão os homens morrem com falta de ar lá dentro daquilo, tu agora se lá fores aquilo está uma sauna autêntica lá dentro, os homens já dormem lá quase todos nus lá dentro daquilo, isso ta bem…”)

Fora da estrutura da “AG...”, mas igualmente com funções de coadjuvação, surgia o arguido JP…, director comercial no “Instituto Médico Scalabitano”, em Santarém, a quem cabia desbloquear os mecanismos necessários à pronta obtenção de fichas médicas para os trabalhadores da “AG...”.

Para o efeito, eram-lhe facultadas identidades diferentes daquelas correspondentes aos trabalhadores que se apresentavam a exame médico, sendo a ficha médica elaborada com as identidades dos terceiros indivíduos, previamente facultadas.

Em concreto, no dia 9 de Março de 2015, pelas 08h30, o arguido LM... dirigiu-se àquele Instituto Médico, acompanhado por três indivíduos de características físicas típicas dos países do centro asiático, que se apresentaram a exame facultando a identidade de terceiros indivíduos, em conformidade com o acordado entre o arguido FB... e o arguido JP....

No dia 19 de Março de 2015, cerca das 11h00, o arguido LM... voltou a deslocar-se ao “Instituto Médico Scalabitano”, desta feita acompanhado por quatro indivíduos de características físicas típicas dos países do centro asiático, que também se apresentaram a exame médico facultando a identidade de terceiros indivíduos.

(cfr. resumos dos produtos n.º 29214, 29230, 29306 e 29699 do alvo 70393060 – “…está haver aqui uma inspecções aos nossos clientes e preciso de fazer, a três gajos que estão aqui num cliente não têm ficha, eu amanhã não posso ir aí com outros três e dar os nomes ao contrário?... Segunda sim… mandava-te os nomes por mail… depois se for preciso lá ir os gajos vão… Não, tem que ser. Com este médico tem que ser. Mas mandas-me os dados todos dos teus verdadeiros e depois mandas cá três falsos mas a dizer o nome deles, o nome dos outros né?... tens é que me mandar isso amanhã… senão eles depois chegam ali ao balcão, elas começam-lhes a pedir os documentos e eles não os têm, ou dão os deles e não bate certo, tás a ver?... Assim se já tiver tudo preenchido não há crise…”).
(cfr. resumos dos produtos n.º 31889, 31890, 31899, 32000, 38686, 54555 e 54560 do alvo 70393060 – “…Opa precisas de tar na “IMS” com quatro indivíduos daqui a uma hora, há tua escolha…” – “…não repitas isto muito mais vezes, não, é?... A responsabilidade, n’é? Pá, ‘tar a trocar esta merda toda! É uma vez de vez em quando…” – “…Eu vou-te dizer gajos que está aí na lista que já fizeram exame médico… Estes gajos não sabem mas já fizeram…” – “…Oh pá pronto, mas tenho ai um problema, não é?... Agora, era o Luís agora ia pra ir ao exame médico co outro gajo na é? Na consegue ter gajos com cinquenta e quatro anos…” – “…Temos que suspender os exames hoje, sabes porquê?... é um gajo com quarenta e nove anos e um com cinquenta e quatro, não posso ir lá com putos de vinte anos, não é?... Senão tou a chamar burro ao médico…”).

A pedido do arguido FB..., o arguido JP... também se deslocou, com mais funcionários do “Instituto Médico Scalabitano”, aos locais onde a “AG...” tinha trabalhadores a laborar, para serem realizados exames médicos.

Assim aconteceu, designadamente, nos dias 26 e 27 de Março de 2015, deslocando-se JP... e mais dois outros indivíduos, clínicos do Instituto Médico, à localidade de Mar e Guerra, em Faro, e a Luz de Tavira, também no Algarve.

O corpo clínico foi acompanhado pelos arguidos JB...e VS....
(cfr. resumo do produto 32000 do alvo 70393060; Autos de Relato de Diligência Externa a fls. 836 e 837 e a fls. 849; e Reportagens Fotográficas de fls. 839 a 848 e de fls. 850 a 956)

O arguido JP... assumia, também, a responsabilidade formal pela segurança no trabalho nas propriedades onde os trabalhadores da “AG...” desenvolviam a sua actividade, assegurando a assinatura dos pertinentes relatórios de segurança, previamente elaborados pelo arguido FB..., quando havia necessidade, mercê da ocorrência de algum acidente, de os apresentar à Autoridade para as Condições do Trabalho.

Assim aconteceu, em concreto, na sequência do acidente havido com um trabalhador, AB…, em 23 de Março de 2015, numa propriedade localizada nos Foros de Arrão, Concelho de Ponte de Sor, em virtude de aquele ter caído de uma altura de cerca de dez metros, enquanto se encontrava no cimo de um pinheiro, a efectuar a apanha de pinhas, sem que tivesse colocado nenhum equipamento de protecção/segurança (v.g. arnês).
(cfr. produtos 29214, 29230, 29306, 29699, 31889, 31899, 32000, 33675, 38686, 54555, 54560 relativos ao Alvo 70393060; RDE de fls. 690/691 e 836/837; Reportagem Fotográfica de fls. 692/702 e 839/848; e relatório clínico de fls. 1318)

(cfr. resumo do produto n.º 33675 do alvo 70393060 – “…Tive um acidente anteontem, um gajo caiu dum pinheiro abaixo… Agora a ACT vai fazer uma inspecção amanhã, ao local de trabalho… e quer um relatório do acidente feito pelo meu técnico de segurança… Um relatório? Então, tens que o fazer tu, e assinar a gente…”)

Os ofendidos, trabalhadores agrícolas, embora se sentissem explorados e fossem tratados com rudeza e, muitas vezes, violência, não abandonavam o trabalho porque se encontravam com os salários sempre em atraso, receando não os receber e não conseguir arranjar outro trabalho num país onde desconheciam a língua, onde não possuíam a sua permanência regularizada e onde não possuíam ligações.

Acresce que estes ofendidos contraíram dívidas avultadas no seu país de origem para pagarem os quantitativos que lhes foram exigidos por um contrato de trabalho em Portugal, receando não conseguirem assegurar o seu pagamento, caso abandonassem o trabalho.
(cfr. produtos 24278, 28667, 37852, 38861, 40772, 41978, 45398, 45400, relativos ao Alvo 70393060; produtos 13247, 13248, 13249, 13250, 13251, relativos ao Alvo 72543060)

Em concreto, no final de 2012, o ofendido SR..., nepalês, viu um anúncio num jornal nepalês, aliciando indivíduos para irem trabalhar para a agricultura em Portugal, a troco da remuneração de € 485,00 (quatrocentos e oitenta e cinco euros) mensais, benefícios, contrato de trabalho legal e autorização de residência.

Atraído pela perspectiva de vir auferir em Portugal aquele quantitativo - no Nepal, por serviço idêntico, auferiria por mês cerca de € 70,00 (setenta euros) ou € 80,00 (oitenta euros) –, o ofendido S... contactou o anunciante, a sociedade “MP...”, em Kathmandu, no Nepal, para que tratasse da documentação necessária à sua entrada em território nacional (designadamente o passaporte e visto de trabalho), bem como da viagem, só de ida, por avião.

Para o efeito, até Março de 2013, o ofendido pagou € 10.000,00 (dez mil euros), em numerário, à “MP...”.

Para obter tal quantitativo, o ofendido vendeu o negócio que detinha no Nepal.

Assim, no sentido de obter a documentação necessária à sua vinda e por indicação da “MP...”, o ofendido deslocou-se à Embaixada Portuguesa em Deli, na Índia, para ser entrevistado.

Mais tarde, já no Nepal, foi novamente entrevistado, agora na “MP...”, por um indivíduo de nacionalidade israelita, AB..., que foi apresentado como o proprietário da empresa empregadora em Portugal.

Na ocasião foram entrevistados mais cerca de 40 (quarenta) indivíduos, todos nepaleses.
Quando a “MP...” informou o ofendido S... que já estava na posse do seu passaporte e visto (o visto de entrada em Portugal foi obtido no dia 21 de Dezembro de 2012, em Nova Deli, com validade até 3 de Julho de 2013 – fls. 67), celebraram nas instalações daquela, em Kathmandu, um contrato de trabalho com a sociedade “MF...”, o qual, segundo o informaram, apenas seria válido para entrar em Portugal (cfr. contrato a fls. 69 – no contrato constava um vencimento mensal de € 485,00, para 8 horas/dia e 5 dias/semana de trabalho, sendo as horas extra e as férias pagas de acordo com a legislação portuguesa; o alojamento, transportes e cuidados de saúde seriam prestados pela empresa, ficando a alimentação a cargo do trabalhador).

No dia 22 de Março de 2013, cerca das 16h00, o ofendido SR... viajou para Portugal, por avião, fazendo escala na Tunísia.

Com ele seguiram mais dois indivíduos nepaleses, HK…e MP…, que também haviam sido entrevistados pelo referenciado AB....

Já em Portugal, foram recebidos no aeroporto de Lisboa pelo arguido FB..., que se apresentou como o gerente da empresa para a qual iriam trabalhar, entregando a cada um dos ofendidos um cartão telefónico e € 50,00 (cinquenta euros), como adiantamento ao salário, e levando-os para uma pensão, em Santarém, onde pernoitaram dois dias.

Enquanto ali permaneceram, os ofendidos contactaram com o irmão de FB..., o arguido JB..., e o ofendido S... assinou novo contrato de trabalho, desta feita com a sociedade “Tr...”, o qual se encontrava redigido em português (cfr. contrato a fls. 82/87 – nesse contrato constava que o ofendido receberia € 485,00, a pagar no último dia de cada mês, por meio de cheque, numerário ou transferência bancária; o horário de trabalho seria de 40 horas semanais, de segunda a sexta-feira, podendo ser organizado noutras modalidades).

Embora não compreendendo o teor do contrato, o ofendido assinou-o, porque estava sem dinheiro e num país desconhecido.

No dia 24 de Março de 2013, o ofendido S... e companheiros foram levados pelo arguido FB... para a zona de Faro, ficando alojados numa casa junto à quinta onde iriam trabalhar, na Estrada Mar e Guerra, no Patacão, concelho de Faro.

O arguido FB... deixou-os ali, dizendo que iriam colher framboesas e que não deveriam efectuar qualquer tipo de queixa aos proprietários da quinta. Mais, disse-lhes que a alimentação deveria ser adquirida, paga e confeccionada por cada um.

Na semana em que ali permaneceu o ofendido S... foi contactado pelo arguido JB..., que ali se deslocou e lhe fez a entrega de um documento da Segurança Social (a 2 de Abril de 2013 o ofendido constava inscrito na Segurança Social com o número 12054042318 – cfr. fls. 88).

No fim dessa semana o ofendido S... foi levado pelo arguido JB...para outra quinta, pertencente à sociedade “F...Lda”, também situada na zona de Faro, no Monte da Ria, no Montenegro. Foi o único trabalhador a mudar de local.

O ofendido S... permaneceu nesta quinta cerca de cinco meses, procedendo à apanha de melão, tomate, curgete, pimento e outros vegetais.

Trabalhavam nesta quinta cerca de 35 (trinta e cinco) a 40 (quarenta) pessoas de nacionalidade estrangeira, sendo supervisionadas por um cidadão romeno.

De modo idêntico à anterior, nesta quinta todos eram responsáveis por adquirir e confeccionar a respectiva alimentação; o ofendido S... ficou alojado num quarto com outros doze trabalhadores, partilhando todos uma casa de banho e uma pequena cozinha.

Os salários eram pagos cerca de duas semanas depois do mês terminar, não correspondendo o pagamento ao que constava nos recibos.

Assim, no mês de Abril de 2013 o ofendido recebeu € 404,60 (quatrocentos e quatro euros e sessenta cêntimos) e não os € 502,00 (quinhentos e dois euros) que constavam do recibo (cfr. fls. 90); no mês de Maio recebeu € 567,05 (quinhentos e sessenta e sete euros e cinco cêntimos) e não os € 505,35 (quinhentos e cinco euros e trinta e cinco cêntimos) constantes do respectivo recibo.

O vencimento era alegadamente pago em função do número de horas trabalhado, recebendo € 2,65 (dois euros e sessenta e cinco cêntimos) à hora, no horário normal, e € 3,00 (três euros) à hora, fora do horário normal, do qual era descontado o montante a pagar à Segurança Social.

Apesar de constar no recibo uma verba respeitante a subsídio de alimentação, esta nunca foi entregue ao ofendido S....

No mês de Abril de 2013 o ofendido trabalhou 183 (cento e oitenta e três) horas, a valor normal, e 16 (dezasseis) horas, em período extraordinário (cfr. fls. 90-vº). Atente-se, todavia, que Abril de 2013 teve 21 (vinte e um) dias úteis, o que, a 8 (oito) horas dia, daria o total de 168 (cento e sessenta e oito) horas e não 183 (cento e oitenta e três) horas.

Por seu turno, no mês de Maio de 2013 o ofendido trabalhou 216 (duzentas e dezasseis) horas normais e 16 (dezasseis) horas extra (cfr. fls. 91 e 91-vº). Todavia, Maio de 2013 teve 22 (vinte e dois) dias úteis, o que, a 8 (oito) horas diárias, daria o total de 176 (cento e setenta e seis) horas e não as 216 (duzentas e dezasseis) horas indicadas no seu recibo de vencimento.

A partir do momento em que foram abertas contas bancárias para cada um dos trabalhadores, o ofendido S... deixou de receber o recibo com o vencimento.
(cfr. informação bancária do ofendido constante de fls. 412 a 438: no dia 18 de Julho de 2013 foi-lhe pago o salário de Junho, no valor de € 379,93; no dia 13 de Agosto de 2013 foi-lhe pago o salário de Julho, no valor de € 316,58; no dia 16 de Setembro de 2013 foi-lhe pago o salário de Agosto, no valor de € 451,39; no dia 8 de Outubro de 2013 foi-lhe pago o salário de Setembro, no valor de € 502,00; no dia 8 de Novembro de 2013 foi-lhe pago o salário de Outubro, no valor de € 250,00; no dia 11 de Dezembro de 2013 foi-lhe pago o salário de Novembro, no valor de € 362,28; no dia 10 de Janeiro de 2014 foi-lhe pago o salário de Dezembro, no valor de € 385,57; no dia 10 de Fevereiro de 2014 foi-lhe pago o salário de Janeiro, no valor de € 272,49; no dia 8 de Março de 2014 foi-lhe pago o salário de Fevereiro, no valor de € 79,50; não houve salário referente ao mês de Março de 2014; no dia 16 de Maio de 2014 foi-lhe pago o salário de Abril, no valor de € 100,00; e no dia 21 de Julho de 2014 foi efectuada uma transferência da conta do arguido JB...para a conta do ofendido, no valor de € 350,00)

Enquanto permaneceu no Algarve o ofendido revalidou o seu visto, em Faro, no dia 4 de Julho de 2013, com validade até 1 de Outubro de 2013 (cfr. fls. 66).

Decorridos cinco meses, o ofendido foi transportado para uma quinta em Évora, com outros sete trabalhadores. Por não ter dinheiro, o ofendido foi levado para esta nova quinta num veículo da “TR...”, conduzido por BERNARDO NEVES, sobrinho do arguido FB...

O ofendido permaneceu quinze dias na quinta de Évora, procedendo à apanha de melão e melancia.

Ficou alojado num contentor, com mais cinco trabalhadores, existindo uma cozinha comum e seis casas de banho para cinquenta e cinco pessoas. A comida era adquirida e paga por cada um.

Seguidamente o ofendido voltou a ser transportado pelo referenciado BERNARDO para a zona da Comporta, onde permaneceu cinco dias, na apanha de pimentos.

Ficou alojado em contentores, desta feita dotados de ar-condicionado.

Da Comporta o ofendido S... foi levado, por outro condutor da “TR...”, para uma residência que a sociedade possuía nas Fazendas de Almeirim (na Rua xxx), destinada ao alojamento dos trabalhadores impossibilitados, por alguma razão, de trabalhar.

Após ali pernoitar, o ofendido foi transportado pelo arguido FB... para a herdade “PP...”, em Torres Vedras, local onde passou a proceder ao embalamento de fruta.

Permaneceu neste local cerca de catorze dias, ficando alojado num antigo armazém com mais sessenta trabalhadores. Estas instalações possuíam uma cozinha, dois chuveiros e quatro sanitas para todos. Todavia, distavam cerca de meia hora do local de trabalho, sendo todos transportados para este num camião fechado.

Em Setembro de 2013, no período em que permaneceu na “PP...”, o ofendido precisou de revalidar novamente o visto no SEF, razão porque lhe foi entregue o recibo de vencimento correspondente a esse mês. Todavia, embora no mesmo constasse a importância de € 502,00 (quinhentos e dois euros), na verdade o ofendido só recebeu € 474,08 (quatrocentos e setenta e quatro euros e oito cêntimos).

Para tratar de toda a documentação necessária àquela revalidação o arguido JB...cobrou € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) ao ofendido.

De acordo com o respectivo recibo, no mês de Setembro de 2013 o ofendido trabalhou 134,5 (cento e trinta e quatro e meia) horas, a valor normal, e 57 (cinquenta e sete) horas, em período extraordinário (cfr. fls. 93 e 93-vº). Atente-se, todavia, que Setembro de 2013 teve 21 (vinte e um) dias úteis, o que, a 8 (oito) horas dia, daria o total de 168 (cento e sessenta e oito) horas e não 134,5 (cento e trinta e quatro e meia) horas.

De seguida o ofendido S... foi novamente levado para a casa da “TR...” em Fazendas de Almeirim, local onde permaneceu cerca de um mês.

Diariamente era transportado para uma quinta, situada a uma hora de distância, onde procedia à apanha de pimentos.

De Fazendas de Almeirim o ofendido seguiu para Armação de Pêra, no Algarve, fazendo a viagem até Faro de comboio, juntamente com outro trabalhador.

Em Faro foram recebidos por C…, outro funcionário da “TR...”, que os transportou para Armação de Pêra.

Permaneceu em Armação durante uma semana, na apanha de framboesas e na plantação de morangos.

Decorrida essa semana, o arguido FB... apareceu em Armação de Pêra e disse ao ofendido S... que iria para Beja. Para o efeito, foi transportado até Faro pelo C… e apanhou um autocarro para Beja.

Já em Beja, foi recebido pelo arguido JP…, funcionário da “TR...”, e transportado até Serpa, onde ficou alojado e onde trabalhou na apanha de azeitona, durante dois dias.

De seguida o ofendido foi transportado pelo arguido FB... para Baleizão, onde ficou durante os meses de Novembro e Dezembro de 2013, também na apanha de azeitona.

Ficou alojado numa habitação afastada de qualquer povoação, composta por três quartos, uma cozinha e uma casa de banho. Não havia água quente e a casa era partilhada com cerca de trinta e cinco trabalhadores nepaleses. Também não havia comunicações telefónicas, fixas ou móveis, encontrando-se a cerca de uma hora de caminho do mercado mais próximo.

Decorridos esses dois meses, o ofendido e mais nove trabalhadores foram levados para a localidade de Parreira, em Beja, local onde ficou alojado num contentor, dividido com mais cinco indivíduos. No total encontravam-se setenta trabalhadores no local, todos alojados em contentores. Não dispunham de água potável, nem de chuveiros.

Ficou neste local sete dias, sem trabalhar, sendo os trabalhadores que ali se encontravam orientados pelo arguido NT..., também funcionário da “TR...”.
Foi o arguido N… quem disse ao ofendido que teria de ir para Faro e que desta cidade alguém o levaria para a Luz de Tavira.

O ofendido S... deslocou-se para Faro de autocarro, pago por si, sendo dali levado para a Luz de Tavira pelo funcionário C….

Ficou uma semana na Luz de Tavira, a apanhar framboesas.

Da Luz de Tavira seguiu para a Estrada Mar e Guerra, em Faro, novamente para a quinta onde já havia estado. No entanto o arguido FB... não lhe deu qualquer trabalho, nem vencimento ou comida, e esteve três meses a viver da ajuda dos outros trabalhadores que trabalhavam e recebiam salário.

No dia 31 de Março de 2014 o ofendido S... sentiu-se mal, sendo levado para o Hospital Distrital de Faro pelo citado C…, onde ficou internado até 13 de Maio de 2014. Foi-lhe diagnosticada uma insuficiência renal, passando a ter que fazer hemodiálise, para o resto da vida, três vezes por semana (atente-se que a desidratação é causa de lesão renal aguda, sendo esta um factor de risco para o surgimento de doença renal crónica, acelerando, por si só, a perda da função renal provocada pelo envelhecimento – cfr. relatório de perícia de fls. 510/513).

Dois dias depois de ser internado foi visitado pelo arguido JB..., que pretendia saber em que condições se encontrava.

Quando teve alta hospitalar o ofendido S... ligou para o arguido FB... e disse-lhe que iria sair do hospital.

Um funcionário da “TR...” de origem indiana foi buscá-lo ao hospital e levou-o novamente para a quinta na Estrada de Mar e Guerra. Esteve nesta quinta até 5 de Setembro de 2014, sem trabalho, sem salário e sem lhe ser facultada comida. Voltou a viver da ajuda dos seus colegas.

No dia 5 de Setembro de 2014, o arguido FB... foi ter com o ofendido e disse-lhe que tinha um trabalho, levando-o até ao terminal rodoviário, em Faro, para apanhar um autocarro para Lisboa.

Apesar de ter dito que não tinha dinheiro, o arguido FB... não lhe deu dinheiro para o autocarro, deixando-o sozinho no terminal rodoviário.

Passadas duas horas, foi contactado pelo arguido JB...e disse-lhe que não tinha dinheiro para ir para Lisboa.

Assim, decorridas mais umas duas horas, o arguido FB... regressou ao terminal rodoviário, pediu o cartão multibanco e respectivo código ao ofendido, e deslocaram-se a uma ATM, onde o arguido procedeu ao levantamento dos únicos € 20,00 (vinte euros) que o ofendido tinha na conta. Entregou-lhos e disse-lhe que eram suficientes para chegar a Lisboa, onde o R... o aguardaria.

Chegado a Lisboa, pelas 22h30 desse dia, ninguém aguardava o ofendido S... na Gare do Oriente; ainda ligou para o R… mas este desligou-lhe as chamadas.

Nessa noite dormiu na rua e no dia seguinte procurou um hospital, para fazer hemodiálise; no Hospital de Santa Maria entenderam que deveria permanecer internado, mas transferiram-no para Faro, por ser aí que se encontrava o seu processo hospitalar.

Em Faro foi-lhe dada alta e, com a ajuda da assistente social e de uns amigos, regressou a Lisboa de transportes públicos.

No final do dia foi contactado pelo R... que foi ter consigo e lhe deu € 50,00 (cinquenta euros) para passar a noite numa pensão, referindo que voltaria para o buscar no dia seguinte, de manhã.

No dia seguinte, 8 de Setembro de 2014, o R... foi buscá-lo e levou-o para uma quinta, na zona de Santarém, onde ficou no alojamento dos trabalhadores agrícolas.

Permaneceu naquele alojamento durante três dias, sem ter contacto com os patrões e sem trabalho e dinheiro, comendo aquilo que os outros trabalhadores lhe dispensaram.

Ao terceiro dia o ofendido logrou contactar o tal R... e disse-lhe que não podia continuar a faltar aos tratamentos; no dia seguinte o R... foi buscá-lo e deixou-o à porta do Hospital de Santarém, dando-lhe € 20,00 (vinte euros).

Foi transferido para o Hospital de Torres Novas, porque em Santarém não faziam hemodiálise, e ficou internado durante seis dias.

O R... contactou o ofendido, durante o período em que esteve internado, e quando teve alta foi levado pela arguida AB... para a quinta onde esteve antes do internamento, para levantar as suas malas, sendo novamente transportado para a casa de Fazendas de Almeirim, situada na Rua xxx, onde permaneceu sem trabalhar e a alimentar-se apenas de pão e água.

Durante o período em que ali esteve continuou a fazer os tratamentos de hemodiálise no hospital de Torres Novas, sendo transportado por uma ambulância.

No hospital queixou-se das condições em que estava e forneceram-lhe uma caixa com bens alimentares suficientes para três dias.

Todavia, alguém do hospital terá contactado a “AG...” para indagar sobre a sua situação, facto que desagradou à arguida AB..., que o contactou na casa, pela manhã do dia 24 de Setembro de 2014, discutindo e dizendo que não podiam ter problemas com a Segurança Social.

Ainda nesse dia, 24 de Setembro de 2014, cerca das 14h00, quando se encontrava num café nas imediações da casa, o ofendido foi contactado pelo arguido LM..., e, a pedido do mesmo, acompanhou-o à casa, onde o arguido FB..., que já havia falado com a sua mulher, o aguardava.

Na casa, no interior de um dos quartos, o ofendido SR... foi atingido na face, pernas e tronco, por diversos pontapés e murros desferidos pelo arguido FB..., por se ter queixado no hospital das condições em que se encontrava.

O ofendido gritou por ajuda, mas o LM... e um técnico de esquentadores, que também se encontrava na casa, não o acudiram.

Acabou por perder os sentidos, na sequência de o arguido FB... lhe ter apertado o pescoço com as mãos e de lhe ter colocado uma almofada sobre o rosto, enquanto dizia que o iria matar.

Quando recuperou os sentidos, o arguido FB... disse-lhe para ir lavar a cara, que estava coberta de sangue, e que o iria levar ao hospital.

Antes de saírem, o arguido FB... disse ao arguido LM... para limpar o sangue que se encontrava no quarto onde haviam estado.

Todavia, o arguido FB... não levou o ofendido ao hospital; ao invés, transportou-o na sua viatura até a um local ermo, onde imobilizou o veículo e lhe desferiu mais umas pancadas na cabeça, dizendo-lhe que o mataria se contasse o que se passara a alguém – “Se fores fazer queixa sobre o que se passou aos teus amigos, à Embaixada, à Segurança Social ou a alguém, e eu souber, pago € 300,00 a um assassino e mato-te. E de seguida mando o teu corpo para o Nepal.”

Regressaram de imediato à casa de Fazendas de Almeirim, onde o arguido LM... ainda se encontrava a lavar o quarto.

No local, no exterior da casa, também se encontrava a arguida AB..., que viu o ofendido com a roupa suja de sangue, sem nada perguntar.

Mais tarde, quando os arguidos já tinham abandonado a casa, chegou ao local a ambulância que levaria o ofendido ao hospital, para o tratamento de hemodiálise.

O ofendido deu entrada no Serviço de Urgência do hospital de Santarém às 18h56 do dia 24 de Setembro de 2014. Do relatório do Episódio de Urgência constavítima de agressão vem com traumatismo com ferida nos lábios e dor cervical por tentativa de asfixia”; refere, ainda, “apresentava escoriações transversais no pescoço, sem edema significativo” (cfr. fls. 135/138).

O ofendido S... apresentou queixa na GNR, ainda nesse dia, e abandonou a casa de Fazendas de Almeirim, convicto que o arguido FB... o mataria se ali permanecesse.

Os demais ofendidos identificados nos autos vivem em situação similar à do ofendido S..., encontrando em Portugal condições de trabalho bem diversas das que lhes foram prometidas no país de origem, só recebendo pelas horas trabalhadas e sem direito a folgas ou subsídios de férias, Natal e de refeição, e ficando alojados em espaços insalubres, sem instalações sanitárias adequadas.

Assim, aconteceu com os cerca de 70 (setenta) trabalhadores, de origem indostânica, que, no dia 28 de Junho de 2013, foram detectados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Guarda Nacional Republicana e pela Autoridade para as Condições do Trabalho na exploração agrícola “M…”, sita na Aldeia do Pico, em Grândola.

Todos os trabalhadores, mesmo os que se encontravam com a sua permanência no país irregular, tinham contrato de trabalho com a “TR...”.

Aquelas entidades consideraram que as condições de trabalho e de alojamento dos trabalhadores eram precárias, sem horário de trabalho e dias de descanso/férias definidos, e sem alimentação.

Os trabalhadores estavam alojados num restaurante desactivado, adaptado a dormitório, onde cada divisão albergava entre quinze a vinte beliches.
(cfr. participação de fls. 2/3 do Apenso 1)
(…)
(Promoção do Ministério Público sobre as medidas coactivas e posições dos Ilustres Defensores).
(…)
Os fortes indícios acham-se sustentados nos meios de prova que neste acto foram comunicados aos arguidos e seus mandatários, conforme se alcança do despacho de apresentação do Ministério Público, os elencados nos autos de interrogatórios e que neste acto foram dados a conhecer a cada um dos arguidos, nomeadamente:
ü Inquirição de SR..., a fls. 4, 55, 74, 114 e 126;
ü Autos de reconhecimento fotográfico de fls. 97, 103, 113-A e 125;
ü Relatório clínico de fls. 135/138 e 407/411;
ü Documentos de fls. 139/140 e 141;
ü Documentação bancária de fls. 414/438;
ü Relatório da perícia de avaliação do dano corporal em Direito Penal de fls. 511/513;
ü RDE de fls. 552, com referência à reportagem fotográfica de fls. 553/556;
ü Cópia de relatório de ocorrência de fls. 1875/1876;
ü Autos de inquirição de fls. 1924/1927 e 1936/1938;
ü Documentação constante do Apenso A (facultada pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional); e
ü Resultado das buscas, realizadas no dia de ontem, constantes dos Apensos C1, C2, D1, E1, F1, G1, H1, I1, J1, K1, L1, M1, N1 e O1.
ü As declarações dos co-arguidos, respectivamente proferidas e que foi dado sequentemente conhecimento.
(…)
O arguido LM..., declarou relativamente às suas condições pessoais que:
                Vive maritalmente há cerca de 5 anos com Maria Dulce Nunes.
                Tem 2 filhos de 17 e 13 anos a viverem com a sua mãe biológica, pagando um apensão alimentar de cerca 300€.
                Trabalha para a AG... desde Novembro 2013, auferindo 650€ mensais.
                Tem o 11º ano de escolaridade.
       (…)
Os factos enunciados pelo Ministério Público agora completados em sede indiciária pelos aportados pelos arguidos, consubstanciam fortes indícios da prática pelos seguintes cidadãos dos crimes respectivamente invocados:
(…)
LM..., em concurso real, dos crimes de tráfico de pessoas (p. e p. pelo art.º 160, nº 1, alíneas b) e d) do Código Penal), falsificação de documentos (p. e p. pelo art.º 256.º, nº 1, alínea d) do Código Penal) e (adesão a) associação criminosa (p. e p. pelo art.º 299.º, nº 2 do Código Penal);
(…)
Quanto aos fortes indícios diremos e citando o Acórdão de 20 de Setembro de 2012, relatado pelo, então, Excelentíssimo Desembargador Gabriel Catarino: “Constituem-se em vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer da existência de um facto jurídico-penalmente relevante e de que deve ser imputável a alguém determinado, devendo ou podendo ser previsível que, num juízo de prognose solidamente estruturado escorado, a manterem-se em julgamento, ocorrerão fundadas e sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelos factos típicos que lhe são imputados.
Na indiciação em fase de inquérito, ou seja numa fase em que os elementos colectados ainda não foram objecto de contraditório, o grau de convencimento do juiz e de ponderação de imputação causal de determinado agir a um concreto sujeito está dependente das regras da experiência e do sentido lógico representativo com que uma dada realidade percepcionada se prefigura ao discernimento e compreensibilidade do julgador.
O juiz pode, nesta fase, socorrer-se das inferências permitidas por um conjunto de elementos  que soem ocorrer em situações ou casos similares, observando sempre que as máximas de  experiências atinam com factores de aleatoriedade que podem conduzir a juízos erróneos ou de defeituosa avaliação.”
Segundo Luís Osório no seu Comentário ao CPP, IV, pág. 411 refere que “ devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia, a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”
A este propósito, cita-se ainda no Acórdão do Tribunal da Relação nº 128/11.1TELSB-J.L1 de 11.04.2013 de acordo com o qual:
 “É pressuposto da aplicação da medida de coacção de prisão preventiva a
existência de fortes indícios da prática do crime.

No entendimento de Germano Marques da Silva, que por inteiro se subscreve, “A indiciação do crime necessária para a aplicação de uma medida de coacção significa “probatio levior”, isto é, a convicção da existência dos pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais, mas em grau inferior à que é necessária para a condenação. (....) não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado crime.
Noutro passo:
embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que face aos elementos de prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição”[Curso de Processo Penal, II, 2a ed., pág. 240]. (…)
(…) O Prof. Germano Marqués da Silva, por sua vez, e como referido, obra cit., pág. 240, diz também que “(...) no momento da aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, que pode ocorrer ainda na fase de inquérito ou da instrução, fases em que o material probatório não é ainda completo, não pode exigir- se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção objectivável com os elementos recolhidos nos autos de que o arguido virá a se condenado pela prática de determinado crime.
Nos casos em que a lei exige fortes indícios a exigência é naturalmente maior, embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que face aos elementos de prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição”.
Vital Moreira e Gomes Canotilho, a fis. 185 da Constituição da República Portuguesa (anotada), 1993, por sua vez, dizem também que “quando a lei fala em fortes indícios pretende exigir uma indiciação reforçada, filiada no conceito de provas sérias”.
Do mesmo modo, fortes indícios, ou indícios suficientes, na definição dada pelo art° 283°, n° 2, do CPP, existem sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.” (fim de cit.) 
Conforme resulta do descritivo da narração do despacho de apresentação e que aliás corresponde aos indícios já recolhidos e aos quais o MP faz apelo, não se pode olvidar que a presente indiciação, imputa aos arguidos prática dos factos em co-autoria e, deste modo, subscrevendo o Acórdão da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo 7383/2008-3 (consultável em fonte aberta in www.dgsi.pt) importa, ainda que sinteticamente, fazer uma breve referência sobre a figura da co-autoria.
“As incriminações constantes da parte especial do Código Penal, salvo quanto aos crimes de comparticipação necessária, descrevem os comportamentos proibidos como se eles fossem integralmente realizados por um único agente.
Se o juiz apenas aplicasse essas normas não poderia, por certo, punir pela prática de cada um desses crimes o agente que, nomeadamente, não tivesse chegado a consumar o crime, aquele que apenas tivesse prestado auxílio ao seu cometimento, quem tivesse omitido o comportamento que lhe era imposto ou o que tivesse, em colaboração com outro ou outros e por acordo com eles, realizado apenas uma parte da conduta típica, praticando os restantes os demais actos necessários à consumação do crime.
Neste último caso, o da co-autoria (3º segmento do Artº 26º do Código Penal), nenhum dos agentes teria, só por si, praticado os actos descritos na norma incriminadora. Nenhum deles poderia, por isso, ser punido.
Isto não é assim porque o nosso legislador incluiu, na parte geral do Código Penal, disposições que constituem verdadeiras cláusulas de extensão da tipicidade, ou seja, que alargam cada uma daquelas previsões da parte especial de forma a permitir a punição, nomeadamente, da tentativa (artigos 22º e 23º), da cumplicidade (artigo 27º), da omissão (artigo 10º) e da co-autoria (artigo 26º).
Se o agente praticar todos os actos previstos na norma incriminadora não se torna necessária qualquer extensão da tipicidade. A sua conduta realiza, só por si, todos os elementos descritos na norma da parte especial do Código.
Assim, quando se deduz uma acusação, se pronuncia ou se condena um arguido pela prática de um crime em co-autoria torna-se necessário descrever a contribuição de cada um dos co-autores. Cada parte do conjunto é imputada ao outro ou outros que a não realizaram pessoalmente porque eles actuaram por acordo, assumindo todos o domínio funcional do facto. Porque a narração foi feita desta forma, pode então concluir-se, no plano normativo e não no da matéria de facto, que todos praticaram aquele crime em co-autoria.
Esta forma de comparticipação não se traduz, portanto, ao contrário do que uma deficiente técnica utilizada na elaboração de muitas peças processuais poderia fazer crer, na realização conjunta de tudo por todos, o que, muitas vezes, se não é impossível ter acontecido, desvirtua por completo a realidade.
Se cada um, só por si, praticou todos os actos típicos, deve ser punido como autor imediato.
Se se limitou a praticar parte das condutas descritas no tipo e se outros, por acordo, realizaram as restantes, todos devem ser punidos como co-autores.”
Prosseguindo o referido Acórdão, relativamente ao preenchimento do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP, em situações de co-autoria, e para fundamentar o juízo aqui cabido que é de indiciação, em sede de verificação da existência de fortes indícios do cometimento dos crimes imputados no despacho de apresentação há que fazer apelo a outro excerto do mesmo aresto aonde se propugna em moldes que espelham, igualmente, a nossa opinião:
“Para narrar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, como impõe a alínea b) do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, tem o Ministério Público e o assistente, num caso de co-autoria, que descrever, com mais ou menos individualização, a participação de cada agente e de imputar a todos uma actuação conjunta que dá execução a um acordo, expresso ou tácito.
Não quer isto dizer que, se tal não for feito, o acto praticado padeça da nulidade prevista no corpo do n.º 3 do citado artigo 283º do Código de Processo Penal.
Tal só aconteceria, a nosso ver, se a acusação omitisse qualquer narração dos factos imputados, o que não é, manifestamente, o que acontece nestes autos.”
Ora, para a co-autoria não é indispensável que cada um dos agentes intervenha, como se disse, em todos os actos a praticar para a obtenção do resultado, bastando que a actuação de cada um seja elemento componente do todo, pois como se vêm salientando em outras decisões proferidas pelos nossos tribunais, já que nos casos de associação criminosa também não se exige que cada associado intervenha em cada um dos actos decididos pelo grupo ou participe em todos os crimes praticados pelos outros associados.
A questão ora em apreço, reconduz-se ao conceito de co-autoria e à amplitude desta modalidade de comparticipação no facto criminoso.
A propósito do conceito de co-autoria importa ainda referir que:
Como se escreveu em anotação ao art. 26º do CP de Leal Henriques e Sima Santos, “ (…) Há co-autoria material quando, embora não tenha havido acordo prévio expresso, as circunstâncias em que os arguidos actuaram indiciam um acordo tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras da experiência comum.
Com efeito, para incorrer na co-autoria de um crime precedido de um plano, quando nele participaram vários agentes, não é necessário que todos eles tenham tido intervenção na elaboração desse plano. Basta que vários agentes participem na execução de actos que integrem a conduta criminosa, não sendo, contudo, necessário que intervenha em todos eles, desde que actue conjugadamente e em comunhão de esforços, no sentido de alcançar o objectivo criminoso…. (…)”.
Também Faria Costa in  “Formas do crime, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, pág. 170:…..escreveu: “Para definir uma decisão conjunta parece bastar a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime juntamente com outros… (.)”

A este propósito cita-se ainda o Acórdão nº 0140948 de 13-03.02 do TRL, 2.,Recurso nº JTRP00034186, de acordo com o qual:
o “(…)Há co-autoria material quando, embora não tendo havido acordo prévio expresso, as circunstâncias em que os arguidos actuaram indiciam um acordo tácito, assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas, à luz das regras da experiência comum. Da co-autoria há que distinguir a mera actuação paralela, que ocorre quando diversos agentes praticaram, sem prévio acordo, actos concorrentes para um resultado criminoso. (…)”.
Acresce que, é também co-autor de um crime, todo aquele que deu causa ou participou na sua concepção e na delineação do respectivo plano, mesmo que não chegue a tomar parte directa nos seus actos de execução. Neste sentido, veja-se Ac. STJ de 14.11.1984, in BMJ 341/202.

Nestes termos e, considerando o conceito de comparticipação acima referido, é evidente que se indicia que os aqui apresentados comparticiparam na prática dos referidos crimes, como co-autores, nos precisos termos em que se acham indiciados no despacho de apresentação.
*
              Para além disso, não pode pensar-se de outra forma, face à restante evidência de provas e porque foi respeitado o princípio do contraditório, como acima se explicitou e perante tais indícios, que se têm de considerar fortes, temos por indiciados os seguintes crimes:
(…)
No tocante ao crime de tráfico de pessoas: 
               Dispõe o art.º 160º do Código Penal, sob a epígrafe: “Tráfico de pessoas”
  “1. Quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extracção de órgãos ou a exploração de outras actividades criminosas:
a) (…)
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) (…)
d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou
e) (…)”
~~~~
                “Conforme brilhantemente se respiga de:
- M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal Parte geral e especial, com notas e comentários, Ed. Almedina, 2014, págs. 664, 665, 666 e 669. 
(…)
3. Com o termo tráfico de pessoas entende-se um conjunto de situações em que a pessoa ou pessoas (de qualquer idade, de qualquer sexos) são aliciadas, transportadas, alojadas, acolhidas, entregues, oferecidas, aceites ou alojadas, para fins de exploração sexual, exploração do trabalho, mendicidade, escravidão ou extracção de órgãos. A nova redacção contém, a mais disso, a expressão “ou a exploração de outras actividades criminosas”, constituindo uma indeterminada que, para valer, tem de encontrar nas anteriores o seu modelo de conformação. Influencia-se a vontade da vítima por meio de violência, rapto ou ameaça grave; de ardil ou manobra fraudulenta; ou com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar; ou com aproveitamento de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da mesma; ou ainda mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima.
                4. Uma tal definição leva em conta o vertido no art.º 4º, al. a) da Convenção de Varsóvia e no art.º 3º do Protocolo anexo à Convenção de Palermo quanto ao tráfico de pessoas para fins de exploração. Esta engloba, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura, a servidão ou a extracção de órgãos. O consentimento da vítima na exploração não releva quando tiver sido empregado qualquer dos meios (coercivos ou enganosos) enunciados na alínea a). Nos termos do art. 3º, c), o recrutamento, transportes, transferência, alojamento ou acolhimento de uma criança (isto é, de uma pessoa com menos de 18 anos, conforme definição da alínea d) (sempre da Convenção) para fins de exploração são considerados tráfico de pessoas, menos se não tiver sido utilizado qualquer dos meios enunciados na alínea a), EUCLIDES DÂMASO SIMÕES, 1999.
                5. As incriminações do tráfico de pessoas compreendem mais do que uma forma básica: caso dos nºs 1 e 2, ambos com a mesma pena; (…)
a) Nos nºs 1 e 2, as actividades são típicas de quem trafica (oferece, entrega, alicia, etc.), (…….)                  
6. Tal como desponta da complexidade do art.º 160º, o bem jurídico do crime de tráfico de entes humanos faz jus à dignidade da pessoa. O traficante está consciente dos fins da sua actividade: a exploração sexual, laboral ou de extracção de órgãos, ou outra de igual gravidade, quando não também como objecto de adoção traficada. Dizer que o bem tutelado é a dignidade da pessoa humana pouco adiante, face a uma norma de múltiplas imbricações; a dignidade humana não sendo propriamente um bem jurídico, ainda assim, encaminha o estudioso para a aproximação às novas e refinadas situações de escravidão ou servidão, e por essa via, aos crimes contra a liberdade pessoal, liberdade de acção e saúde e integridade corporal da vítima. Há quem lembre a autodeterminação sexual, a disposição sobre a própria força de trabalho, o próprio património da pessoa explorada (KINDHAUSER, 2010, p. 801; JOACHIM Renzikowski, 2005, p. 879).
7. No que respeita ao tráfico de adultos ou menores de 18 anos para fins de exploração sexual, exploração de trabalho ou extracção de órgãos (n.ºs 1 e 2), as condutas normativamente enunciadas não levantam problemas interpretativos ou de mera compreensão, exceto no respeitante à sua forma comissiva por omissão, de molde a responsabilizar, nos termos gerais, quem seja portador de um dever de garante (art.º 10/2).
(….)
14. O tipo subjectivo admite qualquer forma de dolo, exceto quando se trate de actividade ardilosa ou fraudulenta, tida por incompatível com o dolo eventual; ao lado do dolo, deteta-se a intenção de exploração (elemento subjectivo implícito).
(….)”    
~~~
A este propósito, cita-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no processo nº 150/12.0JAFAR.E1 de 20-01-2015 aonde se propugna:
“I - Tendo presente o disposto no artigo 26º do Código Penal, que manda punir como autor quem tomar parte directa na execução do facto, por acordo ou juntamente com outro/s, para verificação de tal execução conjunta não se exige que todos os agentes intervenham em todos os actos delitivos, mais ou menos complexos, organizados ou planeados, destinados a produzir o resultado típico pretendido, bastando que a atividade de cada um dos agentes seja parcela do conjunto da ação, desde que indispensável à produção do fim e do resultado a que o acordo se destina, valendo o princípio da imputação objetiva recíproca, no sentido da imputação da totalidade do facto típico a cada um dos comparticipantes, independentemente da concreta fração do iter delitivo que cada um haja realizado.
II - A circunstância “especial vulnerabilidade da vítima” (artigo 160º, nº 1, al. d), do Código Penal) não pode deixar de ser interpretada no sentido de se estender a todas as situações em que a pessoa visada não tenha outra escolha real nem aceitável senão a de submeter-se ao abuso, conformando-se a ideia de aceitabilidade a um critério de razoabilidade, e ao humanamente aceitável, designadamente em casos de emigração ilegal, podendo a situação de vulnerabilidade verificar-se, menos na aceitação de determinado trabalho, antes durante a execução das tarefas consignadas, designadamente porque decorre da permanência precária ou ilegal num país estrangeiro e culturalmente estranho.
                (….)
85 – Afigura-se, sem desdouro para o esforço argumentativo dos recorrentes, que tal circunstância não pode deixar de ser interpretada no sentido de se estender a todas as situações «em que a pessoa visada não tenha outra escolha real nem aceitável senão a de submeter-se ao abuso», conformando-se a ideia de aceitabilidade a um critério de razoabilidade, e ao humanamente aceitável, designadamente em casos de emigração ilegal, podendo a situação de vulnerabilidade verificar-se, menos na aceitação de determinado trabalho, antes durante a execução das tarefas consignadas, «designadamente porque decorre da permanência precária ou ilegal num país estrangeiro e culturalmente estranho» – neste sentido, cfr. M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, em «Código Penal, Parte geral e especial», Almedina, 2014, nota 6, pág. 666, e Pedro Vaz Patto, em «O crime de tráfico de pessoas no Código Penal revisto», Revista do Centro de Estudos Judiciários, n.º 8/2008, pág. 194.
(…)”
Perante tais entendimentos que o signatário que, modestamente acolhe, e dando-se aqui por reproduzida, neste tocante da fundamentação da existência de fortes indícios do cometimento deste ilícito, oferecido em sede de promoção sobre o estatuto coactivo, pelo Ministério Público, forçoso é constar quer os arguidos aqui presentes, todos eles, embora com graduações de culpa que, noutra fase melhor se aquilatarão, tinham perfeita consciência das circunstâncias em que estes trabalhadores eram recrutados, aquilo que lhes era prometidos e das condições que lhes era oferecidas.
Debalde se poderá esconjurar tais vulnerabilidades com a alegação de que os arguidos são de uma zona do globo aonde os critérios de disciplina e de motivação para o trabalho são diferentes dos vigentes das sociedades ocidentais, como também são diferentes, sendo se diz os hábitos de higiene.
Debalde se procurará justificar que as casas oferecidas para alojamentos desta centenas de indostânicos, foram daqui à atrasados, entregues recuperais e limpas e que eles as vandalizaram e que eles destroem uma maquina de lar roupa por semana.
As imagens contidas nas reportagens fotográficas, insertas nos RDE’s e nas descrições constantes das buscas, não são de molde a consentir no juízo indiciário probatio levior, dúvidas sobre as circunstâncias em que estas pessoas são colocadas, em pilhas, de baixo de tenha, mas em espaços fechados, sem qualquer ventilação, ou em bliges em varandas, sem qualquer cobertura, independentemente da estação do ano vigente.
Dizer que isto é livremente consentido e que, quem não estiver satisfeito com as condições oferecidas, pode sempre ir-se embora é ignorar o óbvio, e um insulto à inteligência, quer dos visados quer quem analisa por dever de ofício as suas condições de trabalho e de alojamento.
Os depoimentos já colhidos não permitem substantivar esta liberdade de que falam os arguidos e as respectivas defesas, sendo aliás, corroborados os indícios pelo tom, por vezes jocoso e por vezes desprezível surpreendido no conteúdo das intercepções telefónicas, indicados como meio de prova indiciária.
É desta vulnerabilidade que falam os Preclaros Desembargadores de Évora e não só, nem apenas de qualquer vulnerabilidade em razão, designadamente, da idade, deficiência, doença ou gravidez, por alegada identidade de razões com o estatuído nos arts. 155º, n.º 14, al. b), 158º, n.º 2, al. e) e até com o art.º 218º, n.º 2, al. c) como se refere ser o pensamento, ora, propugnado pelo Insigne Juiz do Tribunal Europeu, Dr. Paulo Pinto de Albuquerque, em comentário ao inciso respectivo no Código Penal que anotou.               Destarte, entendemos que, na esteira da jurisprudência de Évora, supra citada, ocorre, outrossim, uma situação em que as pessoas visadas não têm outra escolha real, nem aceitável, senão de submeter-se ao abuso. Pois disso depende a sua permanência precária e muitas vezes ilegal num país estrangeiro e culturalmente estranho.
É por isso que, entre outras razões, se têm na mão as pessoas que necessitam periodicamente, mas muito frequentemente (com intervalos de 3-6 meses) de vistos para trabalho, surpreendendo-se aqui também a necessidade de ter boas cunhas, como dizem os intervenientes nas intercepções telefónicas junto do IEFP, das Embaixadas ou do SEF, tudo articuladinho, entre si, como é mister.
A organização a que acima fizemos referência chega estender a longa manos com idas, via aérea de propósito a Nova Deli, à Embaixada Portuguesa para entregar documentos.
Perante estas considerações sumárias, o JIC signatário, entende, outrossim, também este ilícito se encontra fortemente indiciado relativo aos arguidos aqui presentes de tal imputados.
*
             Quanto ao crime de falsificação de documentos:
O preenchimento do tipo pressupõe a verificação cumulativa das seguintes circunstâncias: que o agente use documento fabricado por outra pessoa onde constem falsamente factos juridicamente relevantes, que tais condutas sejam abarcadas pelo dolo do agente, por qualquer das formas previstas no artigo 14º do Código Penal e que tais comportamentos sejam levados a cabo com a intenção de causar prejuízo patrimonial ou de alcançar, para si ou para terceiro uma vantagem ilícita ou injusta.

In casu as idas ao IMS e a elaboração de documentos, fichas médicas e outros a elaboração de escrita das firmas, com alegados pagamentos que não têm aderência à realidade no bolso dos destinatários, configuram, indiciariamente, assim se entende, o imputado ilícito.
*
No tocante ao crime de Associação Criminosa
Penaliza-se ai actividade criminosa desenvolvida por associações constituídas com o objectivo de levarem a cabo, com certo carácter de permanência, actividades delituosas.
   O bem jurídico que se pretende tutelar é, no dizer de Beleza dos Santos “… a ofensa da tranquilidade pública e o grave perigo da prática de crimes que oferece um agrupamento formado para a realização de ilícitos penais, com uma cooperação que se apresenta com uma certa estabilidade ou permanência”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 70, pág 130.
   Ou, mais recentemente, Figueiredo Dias considera ser “… a paz pública….”, in Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo II, pág. 1157.
O crime de associação criminosa estrutura-se por referência aos seguintes elementos objectivos: a existência de uma associação que, através de um acordo colectivo, pratique crimes.
A doutrina e a jurisprudência assentaram já há algum tempo na definição do conceito jurídico-penal de associação.
É pacífico considerar que aquele conceito se traduz numa união de diversas pessoas, actualmente – com um mínimo de três pessoas, para, com um carácter de estabilidade e permanência, prosseguirem um fim comum, através de uma actuação conjunta e concertada de cada uma delas.
E, Figueiredo Dias, diz ainda “ob. citada” – “Elemento comum a todas as modalidades de acção que integram o tipo objectivo de ilícito é a existência de uma associação – cujo encontro de vontades dos participantes origine uma realidade autónoma, diferente e superior às vontades e interesses dos singulares membros”, ou seja, “que do encontro de vontades tenha resultado um centro autónomo de imputação fáctica das acções prosseguidas ou a prosseguir em nome e no interesse do conjunto”.
Refere, também, que esse objectivo da prática de crimes “pode ter logo presidido à fundação ou criação da organização ou ter somente surgido mais tarde, como “desvio da finalidade” de uma associação legalmente constituída.
Figueiredo Dias, in Col. Jur., Ano X, tomo 4 explica, ainda “Não se exige pois – nem tal seria possível, que a associação apareça dotada de personalidade jurídica, nem sequer que releve juridicamente em termos, v.g, de figurar como referência de um património autónomo.
Também – e ao contrário do que vimos suceder em períodos ultrapassados da experiência jurídica – não se referenciam limites mínimos de organização, hierarquização ou divisão de trabalho.
Mas do que não pode prescindir-se é de que a associação surja, nas representações dos seus membros, nas suas experiências individuais ou de interacção, como um centro autónomo de imputação e motivação, como uma entidade englobante, com metas ou objectivos próprios. Objectivos a que devem subordinar-se – pelo menos até à medida da sua integração na associação – os objectivos pessoais dos seus membros singulares”.
É da verificação ou não, casuística, deste facto, que nos permitimos aferir, do ponto de vista jurídico - criminal, da sua existência. 
Tal, tem sido a orientação do STJ e, no mesmo sentido, foi decidido, nomeadamente, nos Acórdãos de 26.05.1993 (Ac do STJ, II, pág. 237) e de 26.05.1994 (CJ II, Tomo II, pág. 233).
   Ainda com interesse, Leal Henriques e Manuel Simas Santos, no Código Penal Anotado (3ª Edição) que diz expressamente “…, nem sequer será de exigir o conhecimento mútuo entre todos os associados, nem a necessidade da sua reunião, sendo indiferente o momento em que cada um aderiu ao projecto criminoso.
   Acrescenta, depois, que o crime de associação criminosa se consuma independentemente do começo de execução de qualquer dos delitos que se propôs levar a cabo, bastando-se com a mera organização votada e ajustada a esse fim, sendo certo que o facto de a associação ser já de si um crime conduz a que os participantes nela sejam responsabilizados pelos delitos que eventualmente venham a ser cometidos no âmbito da organização, segundo as regras da acumulação real”. (sic).
   Na mesma linha e a este propósito refere Rosário Colaço nas alegações do proc nº. 5 293/83 – 1ª Secção da Relação de Lisboa que a associação criminosa “funciona como um elemento integrante «renovando» o seu próprio objectivo e finalidade em cada nova actuação delitual, por acção de cada componente do grupo”, havendo assim “tantos crimes autónomos quantas as actuações anti-sociais a considerar».
   O facto da associação ter como objectivo funcional a prática de crimes não oferece grandes dificuldades de delimitação, na medida em que os factos qualificados como crimes encontram-se definidos, como tal, na lei penal.
   Para além disso, outro elemento relevante a considerar, prende-se com a natureza da relação entre a já definida associação e cada um dos elementos concretamente considerados como fazendo parte da mesma.
   Isto é, se a pessoa em concreto se configura em relação àquela como fundador, membro, apoiante, chefe ou dirigente.
   Estes diferentes vocábulos exprimem distintas formas de realização do comportamento típico substantivado pela lei penal. Não é, portanto, uma mera circunstância modificativa da pena, o facto de alguém ser fundador, membro, apoiante, chefe ou dirigente de uma associação criminosa.
   Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense do Código Penal, em anotação ao Artº. 299º, define-os, assim:
   - Fundador é a pessoa que participa activamente no processo de criação da “ideia criminosa” da organização criminosa, mesmo que não tenha qualquer actividade subsequente nela;
   - Membro é a pessoa que faz parte da associação, encontra-se incorporado na organização, subordinando-se à vontade colectiva e desenvolvendo uma qualquer actividade, principal ou acessória, para prosseguimento do escopo da associação.
   No que respeita à actividade a desenvolver pelo membro não será de exigir nem a concreta participação nos crimes da associação, nem sequer o concreto conhecimento dos crimes planeados.
Bastará – mas também será essencial – que o agente, conhecendo e aceitando o fim criminoso da associação, desempenhe tarefas gerais no seu seio e em prol da mesma, qualquer que seja o carácter (operacional, logístico, ideológico, etc.) daquelas tarefas.
- Apoiante é a pessoa que presta auxílio moral ou material aos membros da associação, não estando subordinado à vontade colectiva e, por isso, não está à disposição da associação;
- Chefe ou Dirigente é o responsável – ou co-responsável – em particular medida, pela formação da vontade colectiva, ou funciona como “pivot” essencial à sua execução (centralizando informações, planeando acções concretas, distribuindo tarefas, dando ordens). É, em suma, um membro especialmente qualificado.

  O crime de associação criminosa, ao nível do elemento subjectivo, é punido apenas a título de dolo. Este define-se em função da questão de saber qual o conteúdo volitivo, do facto de ser “fundador, membro, apoiante, chefe ou dirigente” de uma associação criminosa. Isto é, o que há de cada um destes “querer” para poder ser considerado preenchido o elemento subjectivo deste tipo legal?
Não exigindo o tipo legal um dolo específico, o elemento subjectivo desta infracção preencher-se-á com qualquer das formas de dolo, incluindo o dolo eventual.
Assim, bastará, que o agente conheça, ao nível próprio das suas representações, que é fundador, membro, apoiante, chefe ou dirigente de uma associação que se destina à prática de “crimes” (elemento normativo do tipo) – Neste sentido Figueiredo Dias, ob. cit) e que é ilícita a sua conduta.
Não será despiciendo recordar que a noção de crime organizado se configurou durante a «lei seca» nos anos 30, nos EUA.
Como então, no caso dos presentes autos, é inegável ser necessário encontrar a verificação de um plano criminoso, congregador de esforços e de vontades, tendentes à consumação dos crimes que vêm imputados aos concretos autores.
Ex-abbundanti diz-se, ainda:
João Davin, num estudo publicado sob o titulo “A Criminalidade Organizada Transnacional – A Cooperação Judiciária e Policial na EU (Almedina p. 53/54) adianta uma definição de criminalidade organizada:
Grupo estruturado, estável e tendencialmente permanente ou vitalício que se dedica à prática de infracções, visando obter benefícios financeiros ou materiais.
Como primeiro elemento, de cariz estrutural, referencia-se a associação de duas ou mais pessoas, afastando-se as uniões transitórias, colocando-se o assento tónico no surgimento de uma entidade distinta e autónoma em relação a cada um dos seus «formadores» que lhe transmite um «corpo» e uma autonomia próprias, um outro elemento, de cariz finalista, entendendo-se que a associação deve (tem de ser) criada com o objectivo/finalidade de cometer crimes/infracções.
Uma das características mais significativas deste tipo de criminalidade é a procura sistematizada de uma relação óptima de custo/benefício, atendendo-se no risco (leia-se pena aplicável ao crime em apreço) e aos possíveis benefícios da sua prática.
Tudo isto tem de ter um carácter estável. E aqui está indiciado que o tinha.
Que há uma organização estável e hierarquizada, não temos dúvidas, pois o temor reverencial perante o indicado FB... é transversal a todos os arguidos, mesmo ao seu irmão, alegadamente detentor de 95% do capital da sociedade dominante há namorada deste V... e à própria esposa D.ª Ana que, como surpreende das intercepções telefónicas, cumprem à risca as orientações daquele.
O arguido F... assumiu, ele próprio, ser um pouco explosivo com os trabalhadores, atribuindo tais características, entre outras, à rudeza do trabalho a desenvolver e às características idiossincráticas dos indostânicos que, a seu ver, não querem trabalhar, vêm em magotes, diz ele que, maioritariamente do Martim Moniz e do Rossio, aonde dormem em sótãos, em pilhas, só para conseguir o visto para rumarem ao Norte da Europa onde os salários são de 7€/hora e não de 3€, como o arguido diz que paga.
   Trata-se de um contrasenso, pois ninguém de boa fé, acredita que no norte da europa, se ganhe dinheiro, assim, sem trabalhar o que, a experiencia comum e os relatos dos que aí vivem e que nos trazem é que são sociedades bastante geométricas em relação ao trabalho com os correspondentes benefícios em sede de welfare state.
O temor reverencial ao arguido resvala para o medo e não é só dos indostânicos, os arguidos que estão à ordem da gerência, os senhores LM... S… e T… também se prestam “a falar à patrão” para os indostânicos para cumprir, quiçá não acevolamente as ordens dos patrões Baptistas
Os arguidos, veja-se o caso do Sr. LM... até “olham para o lado”, mesmo que vejam agressões, gritos entre o patrão F... e o indostânico, insuficiente renal, Sudrat, ocorridas a metros de 10 metros, no interior de uma casa.
O JIC signatário manifesta a sua perplexidade perante estes “colaboradores” das sociedades arguidas declararam quanto a “castigos”, a trabalharem mais aqueles que são apertados, tudo num quadro de extrema vulnerabilidade, pelas razões que eloquentemente o Ministério Público aduziu no seu requerimento de estatuto coactivo.
Esta hierarquização de tarefas que claramente se surpreende, para além das fronteiras de organização das sociedades.
O Sr. JA… aderiu como pujantemente declarou, aos métodos da empresa, pondo à disposição daquelas sociedades, em razão do seu conhecimento com JB...o instituto médico, onde trabalha em Santarém, como “Director Comercial”.
Não colhe aqui o argumento aduzido de que acedeu a tudo para não perder o cliente.
Com isto pode-se comparticipar ou contribuir activamente no cometimento de crimes.
   O JIC atentou a que o arguido CA... reconheceu que, em alguns casos pontuais foram certificadas fichas médicas de pessoas que não efectivamente examinadas.
  O JIC foi dando conhecimento do que os arguidos foram declarando ao que lhes sucediam no decurso dos trabalhos pelo que também essas declarações foram conjugadamente sopesadas.
De tudo ousamos dizer, decorre corroborados, o afirmado pelo Ministério Público quanto à existência em sede de forte indicação do cometimento pelos aqui presentes, entre outros, do crime de associação criminosa.

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Das medidas de coacção:
Sem embargo e ex-abbundanti, consignando-se expressamente que o juízo indiciário e de aplicação de medidas de coacção, nesta sede efectuado, tem apenas por base todos os elementos de prova apresentados aos arguidos, nos exactos termos subsumidos à consideração do JIC pelo M.º P.º, quando submeteu estes arguidos a interrogatório judicial, e as declarações que os arguidos entenderam prestar nesta sede, quer quanto aos factos, quer quanto às suas condições pessoais e económicas, importará ter presente a ocorrência ou não dos invocados perigos.
Na verdade, se é direito do arguido no hodierno e reputado avançado direito processual penal vigente, na redacção dada ao CPP pela Lei 48/07 de 29/08, considerada a declaração de rectificação n.º100-A/2007 e a rectificação da rectificação nº 105/2007, o arguido nada declarar, não pode deixar de ser sopesada com o articulado constitucional atinente, menos certo não é que, resolvendo os arguidos declarar o que tiverem por conveniente, ao JIC é exigível analisar criticamente e no uso dos seus poderes de cognição, a substancia e credibilidade do que sucintamente disseram e da sua concatenação com os restantes elementos dos autos.

Os arguidos prestaram declarações e vieram aos autos trazer as suas versões dos factos, as quais não afastaram a indiciação, já recolhida, como se infere do que supra dissemos, sendo as explicações apresentadas, designadamente, quanto teoria da cabala, feita pelo Sr. FB..., incongruentes com o que na prática efectivamente acontecia, ou seja, até podia fazer sentido que um competidor que, alegadamente se separara de um dos arguidos em ruptura, viesse aleivosamente imputar-se más práticas, o que este claramente, afastaria demonstrando à saciedade que tal não ocorre.
Ora, não é isso que os autos indiciam, como deixámos supra exposto.
O JIC respeita a liberdade de determinação mas, perante as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer entende que, outrossim se mostram é fortemente indiciados os crimes.
Está por densificar nos autos tal asserção das defesas e o JIC signatário mais do que perplexo, está esmagado pela crueza da situação que se propalou por todo o país e que vendo-se, agora, ao que parece, que é um nicho de actividade altamente rentável, a fazer fé do que dizem os arguidos já existem 30 empresas, 12 delas constituídas há menos de 3 meses.
Tudo a demandar, uma consequente e assertiva investigação, com a parte do OPC e do Ministério Público que o coordena, na tentativa de se saber de quem são essas sociedade, se é que existem e que práticas seguem.
Não é esta a convicção do JIC signatário, face aos indícios até agora recolhidos.
O que aqui cumpre, no entanto, fazer, é verificar a consistência dos indícios e aquilatar da verificação dos perigos, aos olhos e sentidos do JIC, como sendo indícios insofismáveis “probatio levior”.
É sintoma dos elevados perigos de perturbação do inquérito a que a promoção faz apelo e que não se atenuaram, agora, com a realização deste conjunto ainda alargado de buscas e detenções/ constituições de arguidos e com os interrogatórios, ora efectuados.
O JIC não pode ignorar estes e outros “encontros/ contactos” reflectidos nos autos e citados pelo Ministério Público em lugar próprio e agora mencionados junto aos factos indicados, tanto quanto possível.
Quanto aos factos que lhe foram imputados, os arguidos avançaram explicações que surgem contrariadas pela restante prova indiciária recolhida, constante do despacho de apresentação.   
Para tal desiderato há que garantir ao detentor da acção penal que os arguidos não perturbem o inquérito, nem se ausentem sem o escrutínio cabal dos indiciados actos delitivos.    
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Quanto às medidas de coacção estribamo-nos no entendimento propugnado no Acórdão da Relação de 11.04.2013 proc. 128/11.1TELSB-J.L1, que diz:

“Fernando Gonçalves e Manuel João Alves, in “A Prisão Preventiva e as Restantes Medidas de Coacção”, pág. 87, dizem que “as medidas de coacção são meios processuais penais limitadores da liberdade pessoal, de natureza meramente cautelar, aplicáveis a arguidos sobre os quais recaiam fortes indícios da prática de um crime”.
Por outro lado, também dispõe o art° 191º, n° 1, de CPP que “a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei”.
É  a consagração do Princípio da Legalidade.
Porém, o art° 193º, do CPP, por sua vez, consagrando os Princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, já preceitua no seu n° 1 que “as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas “.
No que à prisão preventiva diz respeito, o n° 2 também dispõe que “a prisão
preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser’ aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção “.

Resulta ainda do art° 204°, do CPP, prevendo este os chamados requisitos
gerais de aplicação das medidas de coacção, que “nenhuma medida de coacção, excepção da prevista no art° 196°, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:

a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas ‘
Quanto à hipótese de aplicação da “prisão preventiva”, por sua vez, dispõe o art° 202°, n° i, ai. a), do CPP que, “se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos (...)“
Contudo, e como se referiu, para que se opte pela prisão preventiva como a medida de coacção é necessário que se verifique, cumulativamente com qualquer um dos pressupostos constantes do referido art° 202°, também, e pelo menos, uma das condições ou requisitos descritas no citado art° 204°.
Temos assim que, a prisão preventiva, enquanto medida de coacção, só poderá ser aplicada quando todas as outras se mostrarem inadequadas ou insuficientes, tendo a mesma, como diz Tolda Pinto, in “A Tramitação Processual Penal”, 2a ed., um carácter residual ou subsidiário, o que resulta, aliás, do princípio constitucional consagrado no art° 28°, da CRP.
“O recurso aos meios de coacção deve orientar-se pelos princípios da sua necessidade e menor intervenção possível (...) e é no âmbito da prisão preventiva (enquanto meio de coacção mais gravoso) que se afirmam com particular intensidade aqueles princípios, especialmente o da necessidade”, refere ainda aquele autor.
Também Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, 2a ed., II
vol., pág. 250, diz que “não pode nunca esquecer-se o princípio constitucional da presunção de inocência que impõe que as medidas de coacção e de garantia
 à patrimonial sejam na maior medida possível compatíveis com o estatuto processual de inocência inerente a fase em que se encontram os arguidos a quem são aplicadas e por isso que, ainda que legitimadas pelo fim, devam ser aplicadas as menos gravosas, desde que adequadas”.

Depois, e como também resulta do texto da lei, para a aplicação da prisão preventiva exige-se ainda que fortes sejam os indícios da prática de crime doloso punível com prisão de máximo superior a 5 anos.
Leal Henriques e Simas Santos, “Código de Processo Penal Anotado”, vol. 1, 3a ed., pág. 1270, nas suas anotações ao referido ait° 202°, dizem que o mesmo “(...)
inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura. Isto é: não basta que essa suspeita assente
(...) em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade (…)”
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Os arguidos poderiam ter optado por se remeterem ao silêncio, quanto aos factos apresentados pelo M.P, mas optaram por prestarem declarações.
Com efeito, do exercício do direito do direito a prestar declarações, não se presume o afastamento da existência do perigo de perturbação do decurso do inquérito.
O que fazemos é apenas a síntese de um percurso lógico que, em si mesmo, nos parece correctamente formulado.
O que aqui foi ponderado foi a natureza altamente complexa dos factos indiciados e a circunstância de os arguidos terem exercido o direito a declarar e portanto, de terem feito constar dos autos a sua versão dos acontecimentos e com ela, dessa forma, se comprometendo, para daí inferir que, o total descomprometimento para si resultante daquele exercício, iria facilitar a intensificação da continuação da pressuposta actividade criminosa.
Daqui resulta que, objectivamente, o exercício do direito não prejudicou os arguidos. O que acontece, é que também não os beneficia, no concreto aspecto processual.
O JIC ao longo dos diversos interrogatórios foi significando aos respectivos aquilo que a respeito de cada tema da prova coincidente fora proferido pelos outros co-arguidos a respeito, o mesmo tendo feito o Ministério Público nos pedidos de esclarecimento.
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                Veja-se neste tocante que o JIC prolator deste despacho sabe que se trata de declarações do co-arguido.
Se bem que o depoimento de um co-arguido não constitua, no direito processual penal português, «uma prova proibida no sentido do art. 126º do CPP» (TERESA BELEZA, Revista do Ministério Público, nº74, ps. 45/48), a verdade é que a sua «diminuída credibilidade» (idem, ps. 48/49), a «impossibilidade de depoimento sobre juramento do arguido no direito português» (idem, ps. 49/59), o «direito do arguido ao silêncio» (idem, ps.50/51), a «exigência legal de coerência de todas as confissões» (idem, ps. 51/57), a «impossibilidade de submissão ao contraditório em caso de depoimento de co-arguidos» (idem, p.s. 57/58) e a «impossibilidade de um cross-examination em caso de depoimento de co-arguidos» têm conduzido a doutrina à conclusão de que:
v «o depoimento do co-arguido não sendo, em abstracto, uma prova proibida, é no entanto um meio de prova particularmente frágil que não deve ser considerado suficiente para basear uma pronúncia e, muito menos, para sustentar uma condenação»;
v «Não sendo esse depoimento (…) corroborado por outras provas, a sua credibilidade é nula»;
v «A sua valoração seria ilegal e inconstitucional» (TERESA BELEZA, Revista do Ministério Público, nº74, ps. 58/59);
v «A regra da corroboração traduz de modo particular uma exigência acrescida de fundamentação devendo a sua falta merecer a censura de uma fundamentação insuficiente» (ANTÒNIO ALBERTO MEDINA DE SEIÇA, O Conhecimento Probatório do Co-Arguido, Coimbra Editora, 1999, ps. 205 e ss.)

No entanto entendemos que ainda assim devem ser valoradas.
E não é a livre convicção que o dita apenas, são também as regras da experiência comum que nos dizem que evidentemente que assim é.

E não se argumente que o depoimento do arguido não faz prova. Como já decidiu o nosso Colendo Tribunal (ex. Ac STJ de 20.6.2001 CJ Ano IX Tomo 11 pag. 230, ) - a lei processual. com todas as garantias a que o arguido tem direito -  entre as quais se destaca a de guardar silêncio sobre os factos, não vai ao ponto de impedir a prestação espontânea, sejam elas ou não incriminatórias ou agravantes da responsabilidade de outros intervenientes nos factos criminosos.

Assim, as declarações do co-arguido são meio admissível de prova e, como tal, podem ser valoradas pelo tribunal para fundar a sua convicção acerca dos factos que dá como indiciados.

                Para além disso, não pode pensar-se de outra forma, face à restante evidência de provas e porque foi respeitado o princípio do contraditório, como se passa a explicitar.
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Os arguidos agora conhecedores dos factos já apurados e das dosimetrias penais que lhes correspondem, a serem mantidos com o estatuto processual decorrente do TIR e seguindo-se mais uma vez, ao que se crê, a preclara jurisprudência dos Tribunais Superiores maximé do TRL, indicia-se que nos casos apontados pelo MP (vidé art.º 194º, n.º 1 do CPP) têm todas as condições para obstruírem a prova, atento os ascendente que têm para com os indostânicos.
E, nesta parte, o perigo de continuação da actividade criminosa, não se confunde, necessariamente, com a consumação de novos actos criminosos.
Devendo antes ser aferido em função de um juízo de prognose a partir dos factos indicados e personalidade do arguido por neles revelada - - “em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido”.
Como observa o Ac. RC. de 02.06.99, sumário disponível em  htt://www.trc.pt. “lerá de ser aferido a partir de elementos factuais que o revelem ou o indiciem e não de mera presunção (abstracta ou genérica) …... o perigo terá de ser apreciado caso a caso, em função da contextualidade de cada caso ou situação, pelo que não cabem aqui juízos de mera possibilidade, no sentido de que só o risco real (efectivo) de continuação da actividade delituosa pode justificar a aplicação das medidas de coacção, maxime a prisão preventiva”.
Ainda no enquadramento legal da al. c) do art. 204.°, reporta-se ao “Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas”; sendo esta condição, que deve igualmente ser concretizada, tem em vista a salvaguarda futura da paz social, que foi afectada com a conduta criminosa revelada pelo arguido e que tem potencialidades, objectivas (natureza e circunstâncias) ou subjectivas (personalidade), para continuar a alarmar.
Para o efeito torna-se necessário efectuar um juízo de prognose de perigosidade social do arguido recorrente, atendendo às circunstâncias anteriores ou contemporâneas à sua indiciada actividade delituosa.
Diga-se que tal juízo de perigosidade social deverá estar sempre conexionado com a existência dessa conduta ilícita e não com quaisquer preocupações genéricas de defesa social, que sejam jurídicopenalmente neutras.
Por outro lado, este pressuposto da perturbação grave da ordem e tranquilidades públicas, ainda que despido do “cunho estritamente objectivo” que decorria da anterior redacção deste segmento normativo, deve ser insuflado ou estar relacionado com o direito à liberdade e à segurança, instituído pelo art. 5.°, da C.E.D.H., mas, não apenas na perspectiva do arguido, mas também dos cidadãos que possam ser potenciais vítimas da conduta  criminosa praticada por aquele e que se encontra indiciada . Daí que este pressuposto se revele na função preventiva do processo penal face à perigosidade social mostrada pelo arguido, seja mediante um controlo cautelar e prépunitivo (medidas de coacção), seja de contenção do conflito social provocado pela correspondente conduta delituosa.
Sobre o princípio da proporcionalidade, cabe ainda dizer que através da prognose baseada nos dados existentes no processo, que ao arguido irá ser muito provavelmente aplicada, a final, pena condizente com a prisão preventiva. Na verdade, não faria sentido que ao arguido fosse aplicada uma medida preventiva mais gravosa do que aquela em que se prevê ele venha a ser condenado.
Também pelo que dissemos atrás, no caso do recorrente e nesse aspecto, não nos parece que a prisão preventiva seja de afastar no presente caso. (parte final do n°. 1 do artigo 193 do C.P.P.).
Ou seja, mesmo que a prisão preventiva se revele no caso como medida necessária, por ser a única adequada a prevenir os perigos referidos no artigo 204°, não poderá ser decretada se não se verificarem os pressupostos exigidos pelo princípio da proporcionalidade, nos termos dos artigos 202°, alínea a), e parte final do n° 1 do artigo 193°, isto é, por não haver forte indiciação da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos nem se prever que o arguido venha a ser condenado a final numa pena de prisão efectiva.
Já vimos a aplicabilidade deste entendimento no caso em apreço.
Sobre o perigo de perturbação do decurso do inquérito teremos de averiguar dos factos que revelem que os arguidos poderão prejudicar a investigação.

     O JIC signatário como vem salientando em outros autos está a tentar coordenar-se com os tribunais de cima que são os Tribunais Superiores e que são, na oportunidade, os Veneráveis Desembargadores em conferência ou não dos Tribunais da Relação dos diferentes distritos judiciais.

                Sem prejuízo das medidas de coacção propostas pelo MP e dos perigos que pretendem acautelar entende o JIC que tais finalidades se acautelarão eficazmente com a imposição das medidas de coacção propostas quanto a estes arguidos.
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Relativamente ao perigo de perturbação do inquérito, que igualmente entendemos verificar-se, em relação a todos os arguidos ora presentes, aproveitamos para salientar alguns aspectos já aludidos pelo M.º P.º, no âmbito de outros autos que, tal como os presentes, também acompanhamos jurisdicionalmente e aos quais nos arrimamos.
Destarte, o perigo de perturbação do inquérito como fundamento para a admissibilidade de aplicação de uma qualquer medida de coacção, à excepção do termo de identidade e residência, concretiza-se na verificação de factos que nos permitam indiciar que o arguido tem capacidade e pode prejudicar, de forma desconexa com a necessidade da sua Defesa, a actividade de recolha da prova e a eficácia probatória da prova indiciária já adquirida.
 Com efeito, há que distinguir esta actuação dos arguidos, dolosamente contaminadora da investigação, daquelas outras condutas que, no âmbito do exercício do direito de defesa, representam uma postura activa na recolha da prova e na identificação de novos factos, sendo que só aquela e não esta última é susceptível de legitimar a aplicação de uma medida de coacção.
A este propósito exemplifica a doutrina as seguintes situações susceptíveis de evidenciar perigo de perturbação do inquérito: combinação com os outros arguidos de uma determinada versão para os factos, simulando novos factos ou falsos álibis, atemorização ou suborno das testemunhas, fazer desaparecer documentos probatórios ou até produzir documentos falsos — conforme afirma o Prof. Germano Marques da Silva no seu “Curso de Processo Penal”, volume II, 3.ª edição, 2002, página 267.
O perigo de perturbação do inquérito é maior nas fases preliminares do processo e diminui com o decurso do tempo e com a realização das diligências probatórias mais importantes, o que aliás se compreende pela própria dinâmica processual e de solidificação da prova — veja-se, neste sentido, o acórdão do TEDH no caso Clooth v. Bélgica, citado por Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª edição, pág. 576.
Por outro lado, a protecção da prova é dirigida não só à prova já recolhida nos autos, mas também à prova a recolher.
Com efeito, visa-se não só salvaguardar o material probatório já recolhido nos autos, de forma a evitar que possa ser inquinado pelos arguidos, mas também aquele que se espera vir a adquirir, através da realização de diligências futuras e em curso, de forma a evitar que os arguidos possam frustrar os resultados visados com essa obtenção.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo 0410450, datado de 17-03-2004, disponível em www.dgsi.pt, “estando em investigação uma actividade que se desdobra por diversas pessoas e com ramificações e pontos de contacto em vários locais, incluindo no estrangeiro, havendo certamente elementos ainda por explorar e verificar, e sendo que, como já decorre dos elementos carreados para os autos, a arguida é figura de relevo em toda a engrenagem, é naturalmente de recear que, em liberdade, conhecendo bem, como conhece, os meandros da actividade desenvolvida e os elementos que possam ser decisivos para a sua aclaração, tente dificultar o esclarecimentos dos factos e a aquisição de provas ainda não exploradas”.
Da narração facilmente se alcança que há outros comparticipantes.
E, também resulta evidente que, esses comparticipantes tal como os aqui apresentados têm uma rede de conhecimentos que cumpre acautelar não perturbem o desenvolvimento da aquisição, conservação e V...cidade da prova.

Pela nossa parte o inquérito, face a tudo o que se apurou, está agora a começar.
Depois dos sistemas de contactos terem actuado há que evitar que prossigam.

Não se pretende deter para investigar.
Pretende-se garantir como reiteradamente se diz que o OPC e o MP que o coordena tenham tempo suficiente para prevenir os perigos invocados, in casu aquele em que nos pronunciamos agora que é o de perturbação da aquisição, conservação e V...cidade da prova.
Sem pretender fazer juízos de valor, no juízo indiciário, único que aqui é cabido, o JIC signatário está perplexo com todo este circunstancialismo agora assumido em parte pelos arguidos.
Daí que em conclusão se entende que os perigos invocados pelo MP se reconheça que se satisfazem, por ora, só com a aplicação de medidas privativas de liberdade nos casos indicados, ou seja, estabelecendo aqui o JIC no seu critério uma diferença entre o grau de perigosidade de afectação do inquérito e de continuação, pelas pessoas que são a copela destas sociedades, a saber os indicados FB..., JB..., AB... e VS... que, pelas funções que desempenham, fieis, alias ao aforismo até propalado no Parlamento por vetustos senadores da politica portuguesa “quem paga, manda”, têm uma capacidade de influência superior em termos de fazer perigar a aquisição, conservação e V...cidade da prova muito superiores às dos outros 4 arguidos, aqui se englobando quer os operacionais colaboradores das sociedades, quer o Sr. Caeiro Alexandre, até pelo diferente grau de intervenção com o acabado de mencionar supra versus os restantes.
Do mesmo passo se considera que a colocação em liberdade dos arguidos sem limitações concorreria fortemente para serem dificultadas as diligências conducentes à aquisição de provas, sua conservação e V...cidade, permitindo até a concatenação de versões, com respeito aos intervenientes cuja responsabilidade e grau de participação estão a ser objecto de investigação, já que o inquérito ainda não está encerrado.
Entendemos que os perigos elencados e que se reconhecem quanto a si, na economia do princípio do pedido ainda vigente no CPP Português, apenas se bastarão por ora, com a aplicação das medidas de coacção doutamente promovidas.
Consequentemente, concorda-se com a avaliação e alegação do M.º P.º quanto aos perigos que invoca e parcialmente quanto às medidas de coacção que considera adequadas, proporcionais e suficientes, a preveni-los, até em rigorosa aplicação do nº 2 do artº 194º do CPP ainda vigente, pelo que se dá aqui por reproduzida tal promoção nesse tocante, aguardando os arguidos os ulteriores termos do processo com sujeição às medidas de coacção propostas.
A remissão, parcial, supra operada para a douta promoção do MºPº é-o no quadro admitido pelo próprio Tribunal Constitucional (vide Ac. De TC de 30-07-2003, proferido no Pº 485/03, publicado no DR de II série de 04-02-2004 e pela própria Relação de Lisboa, vide Ac. TRL de 13-10-2004, proferido no Pº 5558/04-3).
Tal remissão é feita não por falta de avaliação e ponderação própria da questão mas por simples economia processual.
Consequentemente ao abrigo das disposições conjugadas com referência ao artº 194º, nº2, do CPP, determino que os arguidos FB..., JB..., VS... e AB... aguardem os ulteriores termos do processo sujeitos à seguinte medida de coacção:
* a de prisão preventiva -
                - cfr. artºs 191º, nº1, 193º, nº1,  e 2; 199º, nºs 1 e 2, 204, als. b) e c), todos do CPP.
No tocante aos arguidos JÁ…, LM..., JS…  e NT…:
- a aplicação de prisão preventiva, podendo a mesma ser substituída pela sucedânea OPHVE, logo que estejam reunidas todas as condições para a aplicação da mesma,
Cumulativamente com medida de proibição de contactos com:
Os restantes co-arguidos, supra identificados, bem assim como qualquer dos trabalhadores e dirigentes das sociedades Tr... e AG..., A… e, bem assim, com quaisquer responsáveis dirigentes e colaboradores do Instituto do IEFP e do IMS – Instituto Médico Scalabitano e do SEF e da Embaixada Portuguesa em Nova Deli
– ex vi artºs 193; 194, n.º 1 e 2, 200º, nº 1, al. d), 201, nº 1 e 204º, als. b) e c) do CPP;
*
Sendo ainda necessário, quer no quadro da 18ª revisão do CPP, e agora não olvidando que a entrada em vigor da 19ª, 20ª e 21ª revisões aprovadas pelo órgão legiferante e promulgadas pelo PR, que a tal respeito nenhuma alteração produziram, ser obrigatório, ao JIC, mesmo que aplique a medida de prisão preventiva por a considerar a única adequada, proporcional e suficiente dever dizer se pode ou não a mesma ser substituída pela sucedânea OPHVE, forçoso é faze-lo, em relação aos arguidos FB..., JB..., VS... e AB..., referindo que, pelas razões supra mencionadas, se entende que, no actual quadro de elementos á disposição do JIC, no âmbito deste primeiro interrogatório, a aplicação da sucedânea OPHVE não se mostra adequada, proporcional e suficiente pelas razões que exactamente motivaram a decretação da prisão preventiva.

Pelas razões aduzidas pelo MP que não se vê razões para contrariar – ex vi do art.º 194º, n.ºs 1 e 2, pois, se por um tal lado medida logra conter os arguidos nos seus domicílios, contribuindo assim para prevenir os perigos aduzidos, o mesmo não sucederia de per si com as circunstâncias que motivaram a alegação dos indicados perigos de continuação e bem assim de perturbação para a aquisição, conservação e V...cidade da prova, pelas razões que, na promoção se aduzem e que se acolheram, e pelas que agora se acabam de indicar, razão pela qual e, mais uma vez, perante os elementos neste momento ao dispor do JIC não se substituirá a prisão preventiva pela sucedânea OPHVE, no caso dos arguidos FB..., JB..., VS... e AB....
No tocante aos arguidos FB..., JB..., VS... e AB..., e perante a posição das suas defesas no sentido de admitir, no limite a aplicação da medida de OPHVE a fim de habilitar o MP, oportunamente e decidir-se ou não pela substituição, solicite-se o relatório a que alude o art.º 7º da Lei 33/10 de 02.09 logo que se mostrem juntas as declarações de consentimento dos arguidos.
No tocante aos arguidos JÁ…, LM..., JS… e NT…, solicite-se o relatório a que alude o art.º 7º da Lei 33/10 de 02.09, logo que se mostrem juntas as declarações de consentimento dos arguidos.
Passe os competentes mandados de condução ao EP.
Cumpra o artº 194º, n.º 10 do CPP.
Comunique ao TEP.
*
Notifique.
D.N.» (fim de transcrição parcial)
***
            Inconformado o arguido LM... interpôs recurso, retirando das respectivas motivações as seguintes conclusões: (transcrição)

«1º - Através dos despachos proferidos pelo Mto JIC em 31 de Julho de 2015 e subsequentemente e no âmbito de interrogatório judicial ocorrido nos termos do artº141º e 194º do CPP, foi o recorrente submetido à medida de coação de OPHSVE, alicerçada nos factos considerados indiciados e na subsunção jurídica realizada, sedimentando-se nos perigos vertidos nas alíneas b) e c) do artº204º do CPP, concretamente nos perigos de perturbação do decurso do inquérito, para a aquisição, conservação ou V...cidade da prova, assim como no perigo de continuação da atividade criminosa;

2º - As medidas a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, sendo que a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação, tudo nos termos do artº193º-1 do CPP;

3º - Por seu turno, quando couber ao caso medida privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares, nos termos do nº3 do mesmo inciso legal; porém, tal medida de OPHSVE só será aplicada nos termos e circunstâncias vertidos no artº201º e 204º do CPP;

4º - Nenhuma das medidas de coação, à exceção do termo de identidade e residência, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou V...cidade da prova ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas, tudo nos termos do artº204º do CPP;

5º - Em paralelo com tais requisitos gerais acima mencionados, se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso (e perante pena de prisão de máximo superior a 3 anos), as medidas anteriormente previstas, o juiz pode impor ao arguido a obrigação de não se ausentar, ou de não se ausentar sem autorização, da habitação própria ou de outra em que de momento resida, sendo esta medida de obrigação de permanência na habitação cumulável com a obrigação de não contactar com outras pessoas e suscetível de ser fiscalizada através da utilização de meios técnicos de controlo à distância, tudo nos termos do artº201º do CPP e da legislação especial aplicável a esse mesmo controlo; todavia, tal medida privativa da liberdade, atendendo às contingências de matriz Constitucional será uma medida excecional, baseada na consideração de serem inadequadas ou insuficientes as demais medidas de coação anteriormente previstas do código;

6º - Indícios suficientes são precisamente os que traduzem uma probabilidade razoável de vir a existir condenação futura, necessariamente, os fortes indícios terão de ser mais do que isso, não se quedando já por uma possibilidade razoável de condenação, antes revestindo a eventualidade de uma possibilidade mais do que razoável de existir condenação; os fortes indícios previstos como requisito específico, naquelas circunstâncias, para fundamentarem a prisão preventiva, são indícios mais consideráveis, mais mensuráveis, mais diretos, mais visíveis, do que os meros indícios suficientes que durante o Inquérito fundamentam a dedução de acusação pelo detentor da ação penal;

7º - Inexistem fortes indícios no âmbito dos autos relativamente aos crimes indiciados; poderá existir uma genérica suspeita, que mais não é do que a consideração da existência de um indício de que uma pessoa cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar, nos termos do artº1º-e) do CPP;

8º - Os elementos fornecidos a contraditório são os que constam de fls. 42 (campo inferior direito) e 43; nenhum desses elementos permite concluir-se pela existência de fortes indícios quanto aos crimes de tráfico de pessoas e quanto ao crime de associação criminosa, respetivamente disciplinados nos artºs 160º e 299º do CP;

9º - Pelo que se mostra errático quer o apuramento dos factos indiciados, quer a subsunção jurídica realizada;

10º - Não se verificam os perigos mencionados nas alíneas b) e c) do artº204º do CPP, inexistindo perigo de perturbação do Inquérito em qualquer uma das modalidades ali consignadas, nem o perigo de continuação da atividade criminosa (inexiste naqueles ilícitos);

11º - Pelo que se mostram violados os artºs 191º, 193º-2, 201º e 204º do CPP e nomeadamente os princípios da adequação, suficiência, necessidade e proporcionalidade, atentos os demais ilícitos imputados inclusivamente;

12º - Sendo adequado, suficiente e proporcional, perante os corretos factos a definir, as medidas de TIR, proibição de contactos (no limite) e proibição de atividade nos termos dos artºs 196º, 199º-1-a) e 200º-1-d) do CPP.

13º - Pelo que nessa conformidade, deve o despacho do Mtº JIC ser revogado nos sobreditos termos, alterando-se as medidas de coação aplicadas;

                                                                                              Eis, quanto nos parece,
                                                                                              Vossas Excelências, apreciando e decidindo,
                                                                                              Farão JUSTIÇA.» (fim de transcrição)
***
      A Digna Magistrada do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso com as seguintes conclusões: (transcrição)

«1. O arguido e ora recorrente veio recorrer da decisão judicial que determinou que aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva até à sua substituição pela medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica (entretanto efectivada), procurando demonstrar, sem sucesso, que não estavam reunidos as condições e pressupostos legais para a aplicação de tal medida;

2. O ora recorrente foi presente a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, sendo que, no final dessa diligência, o Mm.º Juiz de Instrução Criminal entendeu encontrar-se fortemente indiciada factualidade susceptível de integrar a prática, por aquele, em concurso real, de 1 (um) de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º, nº 1, alíneas b) e d) do Código Penal, de 1 (um) crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art.º 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal, e de 1 (um) crime de adesão a associação criminosa p. e p. pelo art.º 299º, nºs 1 e 2 do Código Penal;

3. Com base nas declarações que o arguido recorrente prestou em sede de primeiro interrogatório judicial (e nas declarações prestadas pelos outros arguidos), no teor das conversações telefónicas, nas imagens contidas nas reportagens fotográficas insertas nos RDE’s e nas descrições constantes dos apensos organizados com o resultado das buscas, o Mm.º Juiz de Instrução Criminal considerou fortemente indiciada a prática pelo arguido da factualidade que lhe foi imputada na apresentação efectuada pelo Ministério Público, integrante dos crimes que lhe foram imputados, inferindo, ainda, os perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação do inquérito;

4. Assim e quanto ao crime de associação criminosa, de tais meios de prova decorre que o arguido recorrente actuou concertadamente com os arguidos BAPTISTA, de modo prolongado no tempo, executando ordens daqueles e sabendo que a sua actuação permitia concretizar a actividade de exploração da mão-de-obra estrangeira que angariavam;

5. Existia uma disponibilidade de uma estrutura montada para a actividade lícita de disponibilização temporária de trabalhadores para a prestação de serviços agrícolas (a sociedade AG... e as demais sociedades às quais os arguidos estiveram associados), a qual foi aproveitada por todos os arguidos para, a coberto dela, desenvolvera.m uma outra actividade paralela que ia além disso e que se traduzia na exploração da mão-de-obra estrangeira que angariavam, lucrando com o diferencial entre o valor cobrado aos clientes e aquele que pagavam aos trabalhadores;

6. Todos os arguidos sabiam qual a sua posição na estrutura e a quem reportavam;

7. Assim, o imputado crime de associação criminosa resulta do facto de se indiciar que o recorrente se tenha associado, a coberto de um vínculo laboral, à organização criada pelo arguidos BAPTISTA, a qual funcionava a coberto da actividade (lícita e ilícita) levada a cabo pela AG...;

8. Por outro lado e quanto ao crime de tráfico de pessoas que foi imputado ao recorrente, entendeu o Mm.º Juiz de Instrução Criminal que “(…) todos os arguidos aqui presentes tinham (…) perfeita consciência das circunstâncias em que estes trabalhadores eram recrutados, aquilo que lhes era prometido e das condições que lhes eram oferecidas;

9. As imagens contidas nas reportagens fotográficas, insertas nos RDE’s e nas descrições constantes das buscas, não são de molde a consentir no juízo indiciário probatio levior, dúvidas sobre as circunstâncias em que estas pessoas são colocadas em pilhas, debaixo de telha, mas em espaços fechados, sem qualquer ventilação, ou em bliges em varandas, sem qualquer cobertura, independentemente da estação do ano vigente. Dizer que isto é livremente consentido e que, quem não estiver satisfeito com as condições oferecidas pode sempre ir-se embora é ignorar o óbvio e um insulto à inteligência, quer dos visados, quer de quem analisa por dever de ofício as suas condições de trabalho e alojamento. Os depoimentos já colhidos não permitem substantivar esta liberdade de que falam os arguidos e as respectivas defesas, sendo aliás, corroborados os indícios pelo tom, por vezes jocoso e por vezes desprezível surpreendido no conteúdo das intercepções telefónicas (…). Destarte, entendemos que, na esteira da jurisprudência de Évora, supra citada, ocorre, outrossim, uma situação em que as pessoas visadas não têm outra escolha real, nem aceitável, senão submeter-se ao abuso. Pois disso depende a sua permanência precária e muitas vezes ilegal num país estrangeiro e culturalmente estranho (…). O JIC signatário manifesta a sua perplexidade perante o que estes “colaboradores” das sociedades arguidas declararam quanto a “castigos”, a trabalharem mais aqueles que são apertados, tudo num quadro de extrema vulnerabilidade (…)”;

10. Determinante para a aplicação da medida de coacção privativa da liberdade a que o arguido recorrente se encontra actualmente sujeito foi o assumir-se que o que importava acautelar no caso era, não só a cessação da actividade dos arguidos (único modo de vida de todos os arguidos, à excepção do arguido JP..., existindo uma organização montada – a AG... –, à qual se encontram associados cerca de 400 trabalhadores, que permite a continuação da actividade de exploração levada a efeito até ao momento das detenções), mas também e principalmente a protecção dos ofendidos face às possíveis represálias ou acções de intimidação por parte dos arguidos;

11. Falar de tráfico de seres humanos é falar de vítimas e de medidas de apoio e protecção a estas vítimas. A vítima tem que sentir que as autoridades policiais e judiciárias estão a fazer todos os esforços possíveis no sentido de chegar à prova do crime e à responsabilização do traficante, sem olvidar a sua protecção;

12. Considerando a personalidade revelada pelo arguido nos factos (atente-se que o arguido recorrente já teve actuações concretas para com os ofendidos, que o temem), o Tribunal entendeu existir uma forte probabilidade de este, uma vez devolvido à liberdade, prejudicar a recolha da prova pessoal, pressionando ou exercendo acções de violência contra as vítimas já identificadas (e todas aquelas que a investigação terá, ainda, de identificar e localizar, as quais são bem conhecidas do arguido);

13. De uma atenta leitura do despacho recorrido decorre que o Mm.º Juiz de Instrução apreciou devidamente os elementos de prova indiciária constantes dos autos - em especial os elementos probatórios obtidos com as intercepções telefónicas, as buscas, as imagens contidas nos RDE’s e as próprias declarações dos arguidos – para com base nos mesmos concluir pela forte intensidade dos perigos elencados no art.º 204º, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal;

14. Verificando-se as condições gerais e pressupostos para aplicar ao arguido uma medida de coacção, deve, em concreto, ser-lhe aplicada, entre as previstas na Lei, aquela que se revelar mais adequada a salvaguardar e realizar, in casu, as finalidades da sua aplicação e se mostrar proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (cfr. art.º 193º, n.º 1 do Código de Processo Penal);

15. Analisando todos os factos em jogo, concorda-se inteiramente com o Mm.º Juiz de Instrução Criminal, na parte em que este considerou que apenas a medida de coacção de prisão preventiva era suficiente e adequada para esconjurar a concretização dos perigos referenciados atrás, sendo que a menor intensidade com que se apresentaram os indicados perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação do inquérito relativamente ao recorrente, permitiram que se optasse pela Obrigação de Permanência na Habitação, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, uma vez comprovada pela DGRS a verificação dos respectivos requisitos;

16. Pelo exposto, estamos em crer que o douto despacho recorrido não merece qualquer reparo, quer na apreciação dos indícios existentes nos autos e também quanto à verificação, em concreto, dos perigos indicados e de todos os restantes pressupostos de facto e de direito que determinaram a aplicação ao recorrente da medida de prisão preventiva, substituída pela sua sucedânea OPHVE.

Razões pelas quais se entende que o recurso não merece provimento em qualquer das questões suscitadas pelo Recorrente, devendo ser julgado totalmente improcedente, por não ter sido violada qualquer norma legal imperativa que possa ter como efeito a revogação do douto despacho recorrido.
Vossas Excelências porém, com mais elevado critério farão, como sempre

JUSTIÇA!» (fim de transcrição)
***
         O Exmº Srº Juiz omitiu, tanto consta da certidão enviada, o cumprimento do disposto no artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal, o qual reveste natureza facultativa, sendo por isso irrelevante para o efeito do presente recurso.
      Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto aderindo à resposta apresentada pelo Ministério Público em primeira Instância manifestando-se pela improcedência do recurso.
       Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do Código de Processo Penal, não tendo havido resposta. 
       Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II          Fundamentação

1. É pacífica a jurisprudência do STJ[1] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer[2].
Da leitura das conclusões do recorrente o mesmo pretende ver apreciada por este Tribunal de Recurso a bondade e justeza da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com recurso a meios de vigilância electrónica (OPHVE) aplicada e a sua substituição por uma menos gravosa, entendendo que inexistem indícios fortes em relação à prática do crime de tráfico de pessoas e associação criminosa e ainda que não se verificam os perigos das alíneas b) e c) do artigo 204 do Código de Processo Penal – “perigo de perturbação do inquérito em qualquer uma das modalidades ali consignadas, nem perigo de continuação da actividade criminosa”.
Vejamos, ambas as questões, iniciando a sua apreciação pela questão da verificação ou não de existência de indícios fortes, em relação aos dois crimes colocados em crise pelo recorrente e pelos quais foi indiciado.
2. O recorrente coloca em crise a existência de fortes indícios da prática pelo mesmo, em co-autoria e concurso real, dos crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160, nº 1, alíneas b) e d) e de adesão a associação criminosa e p. e p. pelo art.º 299.º, nº 2 ambos do Código Penal.
Com o devido respeito não tem razão o recorrente, pelo menos em relação ao crime de tráfico de pessoas.
Vejamos.
No que respeita ao crime de tráfico de pessoas, ainda que o arguido tivesse com os principais co-arguidos e com as empresas que os mesmos criaram para angariação e colocação no mercado de trabalho de emigrantes, uma relação de subordinação decorrente de um contrato de trabalho, a verdade é que o mesmo conhecia as condições de dependência e especial vulnerabilidade das vítimas, incluindo os maus tratos em que as mesmas eram sujeitas (v.g. a agressão perpetrada pelo co-arguido FB... ao ofendido S... no dia 24 de Setembro de 2014 pelas 14.00 horas) e, apesar disso, transportava as mesmas para as explorações que o co-arguido FB... lhe determinava.
Este conhecimento e transporte resulta fortemente indiciado das intercepções transcritas nos autos entre o recorrente e o co-arguido FB..., nos dias 21, 22, e 23 de Julho de 2015, constantes do VOL II do presente recurso a páginas 516, 534, 566, 586, 600 verso e 602, das quais também resultam indícios fortes no que respeita ao crime de falsificação que não coloca em crise.
Mas, para além destes indícios existem ainda as declarações da vítima S... (constantes de fls. 78 verso do VOL I deste recurso) a qual declara que o aqui recorrente, apesar de ter presenciado as agressões do co-arguido FB... no referido dia 24 de Setembro, nada fez para lhe por cobro, tal como o canalizador que arranjava o esquentador da habitação, tendo ainda procedido à limpeza do sangue no quarto onde ocorreu a agressão.
Todos estes indícios constantes dos autos e não contraditados ou abalados permitem-nos concluir, nesta fase embrionária do processo e perante a definição legal e densificação jurisprudencial sobre o que se deve entender por fortes indícios, que o arguido, sabendo que os trabalhadores que transportava, estavam a ser vítimas de exploração do trabalho decorrente da situação de especial vulnerabilidade em que se encontravam e em que foram colocados, nem por isso deixou de fazer esse transporte.
Perante esta factualidade fortemente indiciada não pode deixar de se concluir pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime, pelo qual o recorrente foi indiciado no despacho em crise.
Na verdade, o artigo 160º do Código Penal basta-se, ao nível da co-autoria e do elemento objectivo, com a actividade de “transportar”, exigindo, ao nível do elemento subjectivo, o dolo genérico em qualquer uma das suas modalidades. Conhecendo o recorrente a especial vulnerabilidade das vítimas e os maus tratos a que eram sujeitos e, mesmo assim, procedia ao transporte das mesmas, facilmente se intui que o elemento subjectivo exigido no tipo não pode deixar de se considerar presente, já que o mesmo, “(…) embora seja um acto interno revela-se pelos factos externos que precedem ou acompanham o facto criminoso”.[3]
O que fica dito para o crime de tráfico de pessoas, no que respeita aos indícios não pode ser usado, como aconteceu no despacho recorrido, mutatis mutandis para o crime de associação criminosa, ainda que o arguido tenha sido indiciado ao nível da adesão a uma associação criminosa.
Neste contexto e especificamente em relação a este crime, os indícios não podem ser desligados dos existentes no processo em relação à existência da própria associação criminosa, ou seja, aos demais indícios existentes nos autos, alguns dos quais, admitimos, não constem do presente recurso, nem são objecto do mesmo.
Mas, mesmo admitindo que estamos em presença de indícios fortes da verificação do crime se associação criminosa em relação a outros co-arguidos, o que importa saber, em relação a este concreto arguido, é se o mesmo para além de praticar, numa situação de co-autoria, os actos integradores do crime de tráfico de pessoas, sabia ou podia saber que existia essa associação criminosa e se tal facto está fortemente indiciado nos autos.
Como muito bem se refere no douto despacho recorrido, quando se analisam os elementos do crime de associação criminosa e citando o Professor Figueiredo Dias, “(…) No que respeita à actividade a desenvolver pelo membro não será de exigir nem a concreta participação nos crimes da associação, nem sequer o concreto conhecimento dos crimes planeados.
Bastará – mas também será essencial – que o agente, conhecendo e aceitando o fim criminoso da associação, desempenhe tarefas gerais no seu seio e em prol da mesma, qualquer que seja o carácter (operacional, logístico, ideológico, etc.) daquelas tarefas”[4]. O mesmo autor acrescenta, com o qual concordamos, ao nível do elemento subjectivo do tipo, que o mesmo é doloso e, “No que respeita ao elemento intelectual do dolo o tipo subjectivo supõe, por isso, o conhecimento (a representação) pelo agente de todos os elementos constitutivos do tipo objectivo de ilícito: que existe uma organização de que o agente é promotor ou fundador, membro, apoiante, chefe ou dirigente; e de que constitui escopo da organização a prática de crimes. (…) Porventura mais correcto se afigurará no entanto afirmar ser necessário que o agente conheça, ao nível próprio das suas representações, que a associação se destina à prática de “crimes” (elemento normativo do tipo. (…) No que respeita ao elemento volitivo, ele deixará integrar-se por qualquer uma das formas de dolo, incluindo o dolo eventual”.[5][6]
Tendo em conta estes ensinamentos e as correntes jurisprudenciais citadas no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, impõe-se perguntar: o recorrente aqui arguido, tinha conhecimento da existência de tal associação criminosa para a prática de crimes e de que ele próprio era membro ou apoiante da mesma? Existem nos autos fortes indícios de tal conhecimento?
A resposta, tendo em conta os indícios constantes do processo, só pode ser negativa.
Desde logo o recorrente tinha um contrato de trabalho com uma das empresas constituídas pelos co-arguidos e era remunerado pelo trabalho que prestava, tal como reconhece o próprio Meritíssimo Juiz de Instrução no seu despacho, ao dar por assente, no que respeita às condições pessoais do arguido, que o mesmo, “(…) Trabalha para a AG... desde Novembro de 2013, auferindo 650€ mensais”. É estranho e contraria as regras da experiência comum que o membro ou apoiante de uma organização criminosa, tenha com a mesma um contrato de trabalho reduzido a escrito e uma remuneração mensal fixa declarada para efeitos de impostos e de segurança social. Não nos parece, como faz o Ministério Público na sua resposta ao recurso, que o contrato de trabalho fosse uma espécie de “cobertura” ou encenação. Não nos parece razoável e contraria todas as regras da experiência e da lógica que alguém constitua um conjunto de empresas para a prática de actos ilícitos (que mais não são, na tese que resulta dos autos, do que a materialização da própria associação criminosa) e depois contrate um conjunto de colaboradores assalariados, aos quais dá conhecimento do propósito criminoso das empresas.
Mas, para além da existência desse contrato de trabalho que aponta no sentido do desconhecimento por parte do recorrente que estava a colaborar, pelas razões aduzidas, por qualquer forma, com uma associação criminosa, a verdade é que não existem nos autos, nomeadamente nas intercepções telefónicas ou dos RDE,s qualquer outro indício que possa levar-nos a concluir em sentido contrário.
Não podemos esquecer que ainda que o dolo pertença à vida interior de cada um e seja, por isso, insusceptível de apreensão directa, o mesmo é captável através de factos materiais praticados pelo agente e, a partir dos mesmos, através de presunções conexas com as regras da experiencia e da normalidade, possa ser dado como provado. Ora, no caso dos autos não logramos descortinar quaisquer factos materiais que resultem de indícios verificados nos autos que nos permitam concluir que o recorrente deva ser indiciado pelo crime de associação criminosa.
Em resumo, entendemos não resultarem dos autos fortes indícios da prática pelo recorrente do crime de associação criminosa, p.p. pelo artigo 299º, nº 1 e 2 do Código Penal por que foi indiciado, mantendo-se apenas a indiciação do mesmo, em concurso real, pelos crimes de tráfico de pessoas p.p. pelo artigo 160º, nº 1 alíneas b) e d) e falsificação de documentos p.p. pelo artigo 256º, nº 1 alínea d) ambos do Código Penal.

3. Tendo em conta esta indiciação está preenchido o pressuposto objectivo de que depende a aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com recurso a meios de vigilância electrónica (OPHVE) (artigo 201º nº 1 do Código de Processo Penal).
Mas estarão preenchidos os pressupostos gerais e específicos da aplicação da medida de coacção previstos nos artigos 193º e 204º do CPP?
Na decisão recorrida entendeu-se estarem verificados os requisitos das alíneas b) e c) do artigo 204º.
Resulta do artigo 204º do CPP a necessidade de ocorrência de pelo menos uma das circunstâncias previstas neste preceito legal, para que a medida de coacção, no caso em apreço, da obrigação de permanência na habitação, possa ser imposta. Não são pois cumulativos os requisitos previstos no preceito.
Para além da verificação obrigatória de, pelo menos um dos requisitos do preceito, impõe-se, para a aplicação da (OPHVE), que as restantes medidas de coacção previstas nos artigos anteriores ao artigo 201º, se revelem “inadequadas e insuficientes” atenta a “natureza excepcional” da prisão preventiva e a sua subsidiariedade - já que a OPHVE mais não é do que uma prisão preventiva cumprida na habitação - que decorre dos artigos 27º e 28º da Constituição da República e 191º, 193º, nº 2 e 202º, nº 1 ambos do CPP.[7]
Para além do que fica referido impõe-se ainda que na aplicação das medidas de coacção sejam levados em conta os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade densificados, em relação às medidas de coacção, no artigo 193º do Código de Processo Penal e que decorrem directamente do artigo 18º da Constituição, no que respeita à restrição dos direitos fundamentais (neste caso o direito à liberdade do artigo 27º), ao consagrar que essa mesma restrição apenas pode ser feita, “nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
 Feito este enquadramento, no que respeita aos grandes princípios legais de aplicação das medidas de coacção, impõe-se ainda salientar que a verificação dos perigos previstos nas várias alíneas do artigo 204º deve ser aferida em concreto, isto é, os perigos previstos pelo legislador têm que ser densificados pelo intérprete e aplicador do direito perante situações concretas e materializáveis - perigos concretos - a partir dos quais se pode extrair uma conclusão objectiva e objectivável, motivada e motivável, passível de escrutínio seja pela via do recurso, seja pelo destinatário a que se dirige e não meras abstracções ou presunções que apontam para meras probabilidades de difícil ou impossível sindicância.[8]
Esta exigência decorre hoje, indirectamente, das várias normas sobre a aplicação de medidas de coacção, com a utilização pelo legislador da referência à palavra “concreto” e, directamente, da alínea d) do nº 6 do artigo 194º do Código de Processo Penal ao estatuir que: “A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:
(…)
d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º.” (negrito e sublinhado nosso).
Feito este enquadramento, vejamos cada um dos requisitos de pericula libertatis para a aplicação da medida.
Como já ficou referido o Tribunal a quo considerou verificadas as alíneas b) e c) do no artigo 204º.
Vejamos cada uma delas.
O Tribunal a quo no seu despacho, na esteira do Ministério Público, entendeu que se verificava o perigo de perturbação do inquérito em qualquer uma das suas modalidades previstas na alínea b) do artigo 204º.
Na verdade o perigo de perturbação de inquérito ou da instrução do processo, nomeadamente no que respeita ao perigo da aquisição, conservação ou V...cidade da prova, apenas é equacionável, como aliás decorre do despacho em crise e da resposta do Ministério Público ao recurso, ao nível da aquisição da prova pessoal (identificação e inquirição dos ofendidos) já que no que respeita à restante prova, sendo o recorrente um mero colaborador e não tendo funções executivas em nenhuma das sociedades, não nos parece que possa colocar em causa, por qualquer forma, a aquisição, conservação ou V...cidade da prova.
No que respeita neste particular à aquisição, conservação ou V...cidade da prova pessoal, tendo em consideração que o recorrente conhecia os ofendidos e privava com os mesmos, existe o fundado receio, isto é, o perigo concreto, de o mesmo poder perturbar o inquérito. Neste caso, por força desse conhecimento e da necessidade processual de aquisição de prova pessoal, já não estamos no domínio da mera probabilidade comum a qualquer processo mas antes de um perigo concretizado e concretizável e, nessa medida, concordamos com a decisão proferida e consideramos verificado o perigo da perturbação de inquérito da alínea b) do artigo 204º.
Contrariamente ao decidido, entendemos não se verificar o perigo de continuação da actividade criminosa da alínea c) do preceito.
O arguido recorrente tinha como rendimentos o salário na AG..., tem como escolaridade o 11º ano, vive maritalmente e tem dois filhos de 17 e 13 anos que vivem com a mãe biológica. Não tem antecedentes criminais conhecidos.
Estes factos associados ao corte de relação e dependência com os demais arguidos, permitem-nos fazer um juízo de prognose positivo em relação ao seu comportamento futuro, no que respeita à continuação da actividade criminosa em relação aos crimes em que está indiciado. Na verdade, não existem nos autos quaisquer factos concretos ou indícios, para além dos crimes por que se mostra indiciado, que nos permitam fazer um juízo de prognose negativo.
Como refere o Prof. Germano marques da Silva “O fundamento da medida de coacção referido na alínea c) do art. 204º deve ser cuidadosamente interpretado, em termos que o seu âmbito se restrinja ao de verdadeiro instituto processual, com função cautelar atinente ao próprio processo, e não de medida de segurança alheia ao processo em que é aplicada (…) A aplicação de uma medida de coacção não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado”.[9] Defender-se tese contrária à do insigne professor, seria transformar as medidas de coacção em verdadeiras medidas de segurança, não compatíveis com um processo penal democrático tal como se encontra estruturado constitucionalmente. Na ponderação deste pressuposto não podemos esquecer que o mesmo tem na base um perigo futuro e incerto, ainda que assente em factos actuais concretos, sendo, nessa medida, maior o grau de incerteza na sua verificação. É esta incerteza, próxima de dotes de adivinhação, que impõe a prudência.
Ora, tendo em conta estes ensinamentos, os factos e indícios constantes dos autos não logramos descortinar a verificação do perigo concreto de o arguido recorrente poder continuar a sua actividade criminosa pelos crimes que se mostra indiciado ou crimes conexos e análogos.
Em resumo, entendemos, contrariamente ao decidido, que não se verifica o perigo da alínea c) do artigo 204º do Código de Processo Penal.
4. Chegados aqui impõe-se saber se a medida de obrigação de permanência na habitação é adequada e proporcional ou, pelo contrário, como alega o recorrente, é excessiva e desproporcionada.
Como se refere em acórdão deste Tribunal de Relação, «O princípio da “adequação” das medidas de coacção exprime a exigência de que exista uma correspondência entre os interesses cautelares a tutelar no caso concreto e a medida imposta ou a impor nesse caso». E acrescenta-se, no que respeita ao princípio da proporcionalidade, «estreitamente relacionada com a precedente, de que, em cada estado ou grau do procedimento, exista uma relação de proporcionalidade entre a medida aplicada ou a aplicar e a importância do facto imputado e a sanção que se julga que pode vir a ser imposta».[10] Exige-se aqui uma relação de proporcionalidade e adequação entre o sacrifício que a medida de coacção implica, a gravidade do crime e a natureza e medida da pena que, previsivelmente, virá a ser aplicada ao arguido. É no balanço entre estas realidades que deve ser encontrada a solução adequada, proporcional e justa que impeça o livre arbítrio.
Como refere Germano Marques da Silva, o princípio da adequação “(…) significa que a medida a aplicar ao arguido deve ser idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso e, por isso, há-de ser escolhida em função da cautela, da finalidade a que se destina (..) tem carácter empírico, apoia-se no esquema meio-fim, segundo o qual a adequação há-de ser analisada em relação com a sua finalidade.”[11]
Em consonância com estes princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade, o legislador remete a privação da liberdade, por força da sua natureza excepcional e ultima ratio, para a última fronteira, a qual só será alcançada se considerar inadequadas ou insuficientes as medidas de coação de “liberdade provisória”, desde o simples TIR, passando pela caução, obrigação de apresentação periódica, suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos, proibição e imposição de condutas artigos 196.°, 197.º 198.°, 199.°e  200.º todos do Código de Processo Penal.
Perante este quadro normativo, jurisprudencial e doutrinal, o raciocínio a efectuar ao momento de aplicação de uma medida de coacção é, constatada a sua necessidade e dentro das legalmente admissíveis, qual aquela que melhor se adequa à atenuação ou eliminação dos perigos que se visam acautelar, tendo presente os princípios de concordância prática de interesses ou princípios constitucionais conflituantes (segurança/liberdade; realização da justiça/direitos fundamentais) e é, ao mesmo tempo, proporcional à gravidade do crime e às sanções previsivelmente aplicáveis a esse concreto arguido, tendo sempre em conta que a prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação só devem ser aplicadas se as demais forem inadequadas ou insuficientes.
Ora, tendo em conta este raciocínio não nos parece que a obrigação de permanência na habitação seja a única adequada ao presente caso, apesar das exigências cautelares que resultam dos autos (artigos 191.° a 196.º, 201.º, n.° 1 e 204.° alínea b) do Código de Processo Penal, e 28.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa).
O arguido está indiciado, em concurso real, pela prática de um crime de tráfico de pessoas p.p. pelo artigo 160º, nº 1 alíneas b) e d) um crime de falsificação de documentos p.p. pelo artigo 256º, nº 1 alínea d), ambos do Código Penal.
O perigo que se visa acautelar é o perigo de perturbação de inquérito, nomeadamente o perigo de aquisição e V...cidade da prova testemunhal dos ofendidos, ainda não ouvidos no inquérito.
Ora, tal perigo concreto de o arguido poder condicionar os depoimentos das vítimas ainda não ouvidas no inquérito, apesar de ser real, pode ser acautelado com a aplicação ao mesmo das medidas já decretadas em cumulação com a obrigação de permanência na habitação, que são de manter, acrescidas da obrigatoriedade de apresentação diária no posto policial da sua área de residência e de não se ausentar da freguesia do seu domicílio sem autorização (artigos 198º e 200º do Código de Processo Penal).
Podendo o perigo que se visa acautelar ser cabalmente acautelado com medidas de coacção não detentivas, nomeadamente as aplicadas no despacho recorrido, cumuladas com as apresentações e não ausência da freguesia do seu domicílio sem autorização, não é adequado nem proporcional sujeitar o arguido a uma medida privativa de liberdade, dada a natureza excepcional das mesmas (artigo 28º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa e artigo 193º nº 2 do CPP).

Em resumo, considera-se procedente o recurso e, em consequência, deve o arguido aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à proibição de contactos, já decretados na decisão recorrida e ainda da obrigatoriedade de apresentação diária no posto policial da sua área de residência e de não se ausentar da freguesia do seu domicílio sem autorização.

III         Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido LM..., revogando-se parcialmente o despacho recorrido, no que respeita à indiciação do recorrente, a qual se mantém apenas em relação à prática pelo mesmo, em concurso real, de um crime de tráfico de pessoas p.p. pelo artigo 160º, nº 1 alíneas b) e d) e um crime de falsificação de documentos p.p. pelo artigo 256º, nº 1 alínea d) ambos do Código Penal, revogando-se igualmente a medida de coacção de obrigação de permanência em habitação que lhe foi imposta e aplicando, em sua substituição, as seguintes obrigações:

a) proibição de contactar com qualquer dos co-arguidos, bem assim como qualquer dos trabalhadores e dirigentes das sociedades de Tr..., Ag..., Am... e, bem assim, com quaisquer responsáveis e dirigentes e colaboradores do Instituto do IEFP e do IMS- Instituto Médico Scalabitano e do SEF e da Embaixada Portuguesa em Nova Deli;

b) apresentar-se diariamente no posto policial da sua área de residência;

c) não se ausentar da área da freguesia do seu domicílio sem autorização.
***
Sem custas por não serem devidas.
Notifique nos termos legais.
***
Passe mandado de soltura, para imediata libertação do arguido (salvo se a prisão se dever manter por outro processo) remetendo-o, com cópia da presente decisão, à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) para execução, certificando-se do seu efectivo cumprimento.
 (o presente acórdão, integrado por sessenta e duas páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 7 de Janeiro de 2016

Antero Luís
João Abrunhosa

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[1]  Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006 Proferido no Proc. Nº O6P2267. Simas Santos e Leal Henriques in recursos em Processo Penal pág. 48; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. II, 2ª Edição, 200, pág. 335.
[2]  Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/1988, citado pelo Prof. Carlos Lopes, in, Guia de Perícias Médico-Legais, pág. 294
[4] Prof. Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Pág. 1166 e 1167, comentário ao artigo 299º.
[5] Prof. Figueiredo Dias, ob. Cit. Pág. 1169.
[6] Para análise da temática do crime de Associação Criminosa, veja-se, por todos, pela forma extensa e assertiva de análise o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2010, proferido no processo 18/07, em que foi relator o Exmº Conselheiro Raúl Borges.
[7] Neste sentido e por todos ver Acórdão do TRL de 11/02/2009, Proc. 11271/2008-3  in www.dgsi.pt e José António Barreiros in As medidas de Coação e de Garantia Patrimonial no Novo Código de Processo Penal.
[8] Neste sentido Prof. Germano Marques da Silva  Curso de Processo Penal                                                                          
[9] In Curso de Processo Penal, Vol II, pág. 359, Verbo
[10] Acórdão do TRL de 11/02/2009, Proc. 11271/2008-3 em que foi relator Carlos Almeida.
[11] Ob. Cit. Pág. 361