Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
433/10.4TYLSB.L1-7
Relator: LUÍS LAMEIRAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
ILEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O processo de insolvência, desencadeado por um credor, só tem condição de viabi-lidade se este vier a justificar o seu crédito, mediante a factualização da sua origem, na-tureza e montante (artigos 20º, nº 1, início, e 25º, nº 1, do CIRE);
II – A justificação, assim exigida, constitui factor de legitimação substantiva, que habilita o requerente a, no prosseguimento do interesse da comunidade dos credores, assumir a iniciativa de suscitar o procedimento insolvencial;
III – Não constitui obstáculo a essa legitimação a circunstância de o crédito invocado assumir natureza litigiosa (porque, por exemplo, o devedor se lhe opõe, negando a sua existência); hipótese em que, por regra, deve ser aberta ao requerente a possibilidade de, no próprio processo de insolvência, poder apresentar prova acerca factos por si alegados
IV – Mas se a controvérsia a respeito da existência do crédito for tal que, obje-ctivamente, permita antever que só mediante uma aprofundada indagação, quer de facto, quer de direito, o assunto pode ser esclarecido; indagação só compatível com as garan-tias próprias de um processo declarativo comum autónomo; e que supera natureza da (mera) justificação (sumária), própria do processo de insolvência; deve então concluir-se que o requerente não preenche a necessária condição de legitimação que o habilita a requerer a concernente declaração;
V – Embora a lei não autonomize, na tramitação do processo de insolvência, um mo-mento autónomo de saneamento, se, na sua fase declaratória (inicial), após a oposição do devedor, for reconhecível que o processo já reúne as condições para o proferimento de uma conscienciosa decisão de mérito, sem necessidade de outra prova, deve o tribu-nal proferir essa decisão, com o valor de sentença (artigos 17º do CIRE e 510º, nº 1, a-línea b), e nº 3, final, do CPC); dado que só essa solução se compatibiliza com o cará-cter urgente é célere do processo (artigo 9º, nº 1, do CIRE) e, por outro lado, permite obviar a actos processuais supérfluos (artigo 137º do CPC).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. A(…) requereu, em 31 de Março de 2010, a declaração de insolvência da B – SGPS SA.[1]  Alegou, em síntese, haver celebrado com a devedora uns contratos de opção de venda e de opção de compra de acções, e mediante o exercício dos quais ficou apetrechado com a faculdade de obter daquela a entrega de 37.825.000,00 €, e juros de 2.221.830,14 €; mas que aquela atempadamente lhe não entregou; além disso, que o activo da devedora não é suficientemente sólido para, no geral, conseguir responder aos vínculos patrimoniais que a oneram.

2. A devedora foi citada (fls. 259).
E deduziu oposição.[2]  Disse que o requerente não é seu credor por qualquer quantia; os contratos que sustentam o alegado crédito são nulos, a vários títulos; ou, no mínimo, são inválidos por anulação, que subsidiariamente invoca; aliás, corre já no tribunal de comércio de Lisboa uma acção, além do mais, contra o requerente, cujo pedido é precisamente que esses contratos sejam declarados nulos e de nenhum efeito (acção ordinária nº 666/10.3TYLSB); ora, se o crédito do requerente não existe, ele não é legítimo para pedir a insolvência. Ademais, o seu único credor é o Banco P… SA, encontrando-se a devedora em situação de solvabilidade. Em suma, deve ser absolvida do pedido ou então ser suspensa a instância até decisão da acção pendente no tribunal de comércio.

3. Com mais ou menos vicissitudes a instância insolvencial foi-se desenrolando.
Por despacho de 27 de Julho de 2010, foi indeferido o pedido de suspensão da instância, constante da oposição, e designada audiência de discussão e julgamento (fls. 982 a 983).
Já no contexto da audiência o requerente veio responder às “excepções peremptórias de nulidade e anulabilidade dos contratos”, que pugnou serem improcedentes;[3] além disso foram desencadeadas vicissitudes processuais. A audiência foi suspensa e marcada data para continuação (fls. 1556 a 1557).
Os trabalhos da audiência foram retomados; proferiu-se saneamento (fls. 1583); e foi seleccionada a matéria de facto (fls. 1583 a 1623). E foram outra vez suspensos os trabalhos (fls. 1624).
O requerente reclamou. Igualmente reclamou a devedora; não sem antes propugnar pelo conhecimento fundamentado da “excepção dilatória” da ilegitimidade do requerente (fls. 1476).[4]  As partes responderam reciprocamente; e o requerente, a respeito da “excepção dilatória de ilegitimidade activa”, para atestar também da sua improcedência (fls. 1496 a 1497).
            Após, novas vicissitudes. Retoma dos trabalhos da audiência, com de-cisão das reclamações apresentadas; e nova suspensão, com marcação de outro dia para a continuação da audiência (fls. 1995 a 2005).
            E mais vicissitudes; conducentes a que, no dia agendado, ainda não tivesse lugar a produção das provas (fls. 2137 a 2146).

            4. Foi então proferida sentença final (fls. 2148 a 2158).
            Nela se iniciou por considerar inequivocamente litigioso o crédito do requerente; circunstância, em princípio, não impeditiva para o impulso da insolvência. Porém, sendo o estatuto de credor elemento constitutivo do seu direito, é necessário uma prova do mesmo; necessariamente sumária; já que só esta compatível com a natureza célere da instância insolvencial e, por outro lado, com as garantias mais ténues concedidas pelo processo de insolvência. Ora, é esta prova que, no caso concreto, está comprometida; em face da controvérsia e da complexidade de um tal apuramento; aliás já objecto de uma acção autónoma pendente em juízo. Nesta, aliás, o aqui requerente suscitou incidente de intervenção de terceiro onde admite que o seu crédito não seja sobre a devedora, mas sim sobre entidade terceira, ali chamada. Em suma, inviável a prova sumária acerca do estatuto de credor do requerente, não tem a acção insolvencial condições de prosseguir. A decisão final foi, por isso, a de indeferir a declaração de insolvência da B… SGPS SA pedida por J(…).

            5. O requerente interpôs recurso de apelação.
            Propugna que “deverá ser revogada a decisão proferida pelo tribunal a quo, devendo os autos prosseguir com vista à continuação das audiências de discussão e julgamento a fim de proceder à audição das testemunhas arroladas por ambas as partes” (fls. 2207).
Ademais, formulou conclusões que se podem distribuir em dois tre-chos; um mais concernente à aferição da existência do crédito do requerente do processo de insolvência; e um mais concernente à verificação da situação de insolvência da devedora.
Dir-se-ia poderem sumariar-se assim as relativas ao 1º trecho:
               
i. O tribunal “a quo” considerou que a prova a produzir, no âmbito do processo de insolvência é uma “prova sumária” e justificou o seu entendimento com a circunstância de o pro-cesso de insolvência ser um processo urgente e implicar menores garantias de defesa das partes;
                ii. Porém, não consta do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas qualquer normativo legal nesse sentido;
                iii. Era à luz do anterior regime da falência, que dispunha o artigo 17º do CPEREF que “o credor que (…) pretenda obter a declaração da sua falência deve (…) fundamentar sumariamente a providência requerida”; o actual regime da insolvência, contudo, não acolhe semelhante disposição legal; nada consta que permita concluir que a prova a apresentar pelo credor deva ser “sumária”;
                iv. Nos presentes autos – e pese embora a devedora recuse a sua validade – o crédito que aqui se discute resulta de forma clara do teor dos contratos de opção de compra e de opção de venda de acções, juntos aos autos;
                v. Nada obsta a que a existência do crédito seja demonstrada, pelo credor, em sede de insolvência; e “in casu” nem está em causa a alegação da existência de um crédito sem um mínimo de sustentação e prova;

vi. São doutrina e jurisprudência comuns, as de que a existência e a validade do crédito podem ser aferidas em pleno processo de insolvência;
                vii. Nem seria comportável que, com a apresentação de um pedido de insolvência, viesse o devedor inundar o tribunal de documentos e requerimentos, complicando o processo e visando impedir uma decisão final, a este propósito, sob o expediente da inexistência de “prova sumária”; estaria em causa uma verdadeira fraude à lei;
                viii. A circunstância de o processo de insolvência consubstanciar um processo urgente (artigo 9º do CIRE), não significa que para tal processo se exija a apresentação de provas meramente sumárias;
                ix. É que então, se a prova em processo de insolvência é meramente “sumária”, mal se compreende a razão pela qual se encontra previsto no artigo 31º do CIRE a possibilidade de aplicação de “medidas cautelares”; vale isto por dizer que não se pode entender que em sede de processo de insolvência – excluindo, claro está, o incidente das medidas cautelares – se exija uma mera prova “sumária” do direito de crédito do credor sobre o devedor em detrimento de uma prova concreta e exacta do respectivo direito;

                x. Aliás, em acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Fevereiro de 2011, proferido nos autos a respeito da aplicação de medidas cautelares, considerou-se que se tratava de uma “provisória antecipação no tempo dos efeitos da decisão a proferir sobre o mérito da causa”; quer dizer admitiu que o “mérito da causa” deveria ser conhecido; o que o tribunal “a quo” não fez;

                xi. Também não é verdade que as garantias de defesa do requerido (devedor) em sede de processo de insolvência sejam menores do que as garantias de que este disporia num processo declarativo;
                xii. A sequência de articulados e de requerimentos apresentados por qualquer das partes nos autos atesta que não houve limitação nos direitos de defesa ou nas garantias da devedora ou do requerente;  
                xiii. Não é admissível que o tribunal “a quo” justifique a necessidade de apresentação de “provas sumárias” em autos de insolvência face à alegada diminuição dos direitos e garantias de defesa das partes, quando nos autos não se encontra  qualquer indício de limitação desses mesmos direitos;

                xiv. Na óptica do tribunal “a quo”, o que “de novo” lhe chegou ao conhecimento e motivou a reviravolta processual tida lugar, foi a circunstância de o recorrente ter apresentado nos autos declarativos do proc.º 666/10.3TYLSB, do 2º juízo do tribunal de comércio, um incidente de intervenção provocada da sociedade U....;
                xv. Significaria tal, na óptica da decisão recorrida, que o recorrente ali admitiu que aquela mesma sociedade pode ser considerada como sua devedora;
                xvi. E, por isso, concluiu que estavam em causa o carácter “sumário” da prova na acção de insolvência, não dispondo o tribunal neste de segurança para concluir se quem deve ao recorrente é a recorrida ou a U... chamada a intervir naqueloutra acção judicial;
                xvii. Porém, ao apresentar aquele requerimento no 2º juízo do comércio, o ali réu, aqui recorrente, foi claro ao evidenciar que aquele pedido de intervenção não significava que o verdadeiro devedor fosse a U...; é este, aliás, o significado da apresentação de pedidos subsidiários;
                xviii. Essa defesa não significou a admissão ou confissão por parte do recorrente de que quem lhe deve é uma outra sociedade diferente da aqui recorrida; donde não faz sentido o argumento do tribunal “a quo” para sustentar a sua decisão de indeferimento do pedido de declaração de insolvência da B...SGPS... SA;
                xix. Aliás, no mesmo processo já havia igualmente requerido a intervenção principal provocada do Banco P...SA (novamente, a título subsidiário) e tendo disso conhecimento o tribunal “a quo”, então,  nada fez e nada decidiu;

                xx. O princípio da segurança jurídica num processo que compromete a declaração de insolvência de sociedades e pessoas físicas implica que a prova a apresentar seja em tudo menos sumária, em tudo menos sintética ou meramente indiciária;
                xxi. A acção de insolvência esgota-se em si; é uma acção com total autonomia e com os seus procedimentos próprios; não consubstancia um incidente nem um apenso; não pode, por isso, prevalecer o entendimento contido na decisão recorrida;
                xxii. Por referência ao artigo 17º do CIRE e considerando que a fase em que as partes se encontravam – haviam sido agendadas quatro audiências de julgamento –, o que corresponde precisamente à fase declarativa do processo de insolvência, era aplicável o Código de Processo Civil;
                xxiii. E neste diploma, na falta de qualquer norma em sentido inverso do Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas, não se encontra qualquer normativo que imponha a apresentação de provas meramente sumárias, em detrimento da segurança jurídica e da estabilidade e adequação das decisões judiciais;

xxiv. O tribunal “a quo”, sob pretexto de estar em causa um processo complexo, não decidiu, nada disse, remetendo apenas as justificações do indeferimento do pedido de declaração de insolvência para a tal inexistência de “prova sumária”;
                xxv. O tribunal “a quo” não se pronunciou sobre qualquer questão de mérito; decidiu sem inquirir as testemunhas; sentenciou sem analisar as provas que se encontravam – e encontram ainda – ao seu alcance;
                xxvi. Por conseguinte, a decisão que proferiu é nula por omissão total de pronúncia, ao abrigo do disposto na alínea d), do nº 1, do artigo 668º, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 17º do CIRE;
               
                xxvii. O tribunal “a quo” ao demitir-se de proferir decisão, impondo apertados requisitos procedimentais no seio dos processos de insolvência que não encontram consagração legal, impediu o recorrente de exercer o direito à conservação da sua garantia patrimonial, quando havia (e há) um perigo de lesão da mesma;
                xxviii. Denegou-lhe o acesso ao direito e aos tribunais, preterindo o artigo 20º, nº 1 e nº 5, da Constituição da República;
                xxix. A sua interpretação de que o processo de insolvência exige a apresentação de uma prova meramente “sumária” colide frontalmente com o artigo 203º da Constituição, já que ultrapassa o pensamento da lei;
                xxx. Esta, interpretada em desconformidade com o sentido que dela emana; e por isso em violação do interesse do recorrente em a ver cumprida; em condição de igualdade como todos os cidadãos (artigo 13º da Constituição);
                xxxi. Chegada a esta fase do processo e tendo sido agendadas não uma, mas quatro audiências de discussão e julgamento, o recorrente não poderia senão ter alimentado a expectativa de uma decisão de mérito sobre a acção; estaremos, portanto, em presença da violação de um dos sub-princípios concretizadores do princípio do Estado de Direito Democrático a que se reporta o artigo 2.º da Constituição;
                xxxii. O sentido interpretativo, que subjaz na decisão recorrida, e foi dado aos princípios que dimanam do CIRE, viola o disposto no artigos 20º (em especial, os seus nºs 1 e 2), 203º e 13.º da Constituição; e ainda os princípios da segurança jurídica e das legítimas expectativas dos cidadãos, ínsitos ao artigo 2º da mesma lei fundamental.

Chegados ao 2º trecho conclusivo, que autonomizámos, dir-se-ia poder sumariá-lo, em brevíssima síntese, com os seguintes extractos:

                i. A respeito da situação de insolvência da SLN Valor, o recorrente está convencido que dos autos não resultam quaisquer dúvidas que permitam considerar que a prova não seja “sumária”;
                ii. A devedora onerou todo o seu património e, na pessoa dos seus administradores, não protegeu os interesses da sociedade, assumindo a sua situação de insolvência manifesta;
                iii. A devedora vem praticando evidentes actos de má gestão, os quais impedem a normal actividade societária e o pagamento do crédito de se arroga titular o recorrente;
                iv. Dúvidas não se suscitam quanto àquela situação insolvencial;
                v. A impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, referida no artigo 3º do CIRE, pode consubstanciar o incumprimento do pagamento de uma obrigação vencida;
                vi. Os factos enumerados no artigo 20º do CIRE – que descreve os factos concretos que legitimam a apresentação à insolvência do devedor – constituem meros índices da situação de insolvência, cujo entendimento deverá fazer-se à luz daquele sentido do artigo 3º;
                vii. Esse conceito de insolvência está longe de se aproximar de uma situação de penúria extrema que impossibilite, de facto, o pagamento de quaisquer obrigações, que não apenas de algumas;
                viii. No caso dos autos verifica-se o não cumprimento pontual, não de uma, mas de seis obrigações de pagamento perante o recorrente; quais sejam, o pagamento dos quantitativos correspondentes a cada um dos seis exercícios de opção de venda das acções das sociedades S... e B...SGPS...SA, efectivados pelo recorrente em 2007, 2008 e 2009;
                ix. É imperioso concluir como desadequado considerar que no processo de insolvência se exige um mero “juízo de prova sumária” ou que o devedor tenha de revelar incumprir mais do que uma obrigação para efeitos de declaração de insolvência;
                x. O crédito de que se arroga titular o recorrente existe; a devedora não procedeu ao pagamento de qualquer montante ao recorrente, tendo onerado todos os seus bens em favor do Banco P face a um financiamento bancário; esse financiamento bancário foi contratado pela devedora porquanto a mesma se encontrava impossibilitada de proceder ao pagamento dos subscritores de papel comercial na sequência dos dois programas de papel Comercial que emitira;
                xi. A decisão proferida pelo tribunal “a quo” ser revogada; considerando-se outrossim que a Recorrida se encontra em situação de insolvência (fls. 2233).

            Em suma, as normas violadas são as contidas nos artigos 9º, 3º, nº 1, 17º e 20º, nº 1, do CIRE; artigo 668º, nº 1, alínea d), do CPC; e artigos 2º, 13º, 20º, nºs 1 e 5, e 203º da CRP.
            O recurso de apelação deve ser provido; revogando-se a sentença que indeferiu o pedido de declaração de insolvência da devedora SLN Valor.

6. A sociedade devedora respondeu; e formulou estas conclusões:

                i. O crédito arvorado pelo recorrente cuja validade ou existência se encontra a ser discutida judicialmente, contém fundamento bastante para abalar a sua credibilidade; é um direito litigioso e, como tal, não é judicialmente exigível;
                ii. A principal função social e fundamento da acção de insolvência, revestindo a natureza de uma execução universal, ou seja, em benefício de todos os credores, não é, precisamente, a de um processo de cobrança de dívidas;
                iii. O recorrente carece de legitimidade substantiva;
                iv. Para suprir essa falta de legitimidade é necessário que o crédito invocado pelo recorrente seja reconhecido judicialmente ou aceite pela recorrida, o que não acontece;
                v. Credor é aquele no interesse do qual deve ser efectuada a prestação e que pode exigir o seu cumprimento; devedor, aquele sobre que recai o dever de a realizar;
                vi. Só o incumprimento de obrigações vencidas pode susceptibilizar o requerimento de insolvência por parte do credor;
                vii. A declaração de insolvência pode ser requerida por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, que não considere a requerida economicamente viável (artigo 20º, nº 1, do CIRE); para requerer a insol-vência é ainda necessária a invocação dos factos constitutivos de um dos factos-índice (enumerados nas alíneas a) a g), do nº 1, do artigo 20º, do CIRE), que permitem presumir a insolvência do devedor;
                viii. Só têm legitimidade substantiva para requerer a insolvência os credores com créditos vencidos e exigíveis (artigos 3º, nº 1, 20º, nº 1, e 25º, nº 1, do CIRE);
                ix. Quando o pedido não provenha do próprio devedor, o requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição, a origem, natureza e montante do seu crédito, devendo ainda oferecer todos os meios de prova de que disponha (artigo 25º, nº 1 e nº 2 ,do CIRE);
                x. Pressuposto da acção de insolvência é sempre que o requerente seja credor; isto é, constitui facto constitutivo do direito do credor que requer a insolvência a demonstração da sua qualidade de credor;
                xi. Segundo o quadro normativo da repartição do ónus probatório, incumbe ao credor,  requerente da insolvência, alegar e provar a sua qualidade de credor, e ainda qualquer dos factos-índice da insolvência (artigos 20º, nº 1, 23º, nº 1, do CIRE, e 342º, nº 1, do Código Civil);
                xii. No pedido de insolvência requerido por qualquer legitimado que não o devedor (pelos credores) deve ser alegada, e provada, a sua condição de interessados na declaração de insolvência, por um lado, e a verificação de algum dos factos-índice referidos no artigo 20º do CIRE, por outro lado;
                xiii. No processo de insolvência não se exige título executivo por o crédito ser posteriormente verificado, bastando um juízo sumário para se determinar a legitimidade do credor;
                xiv. Cabe ao tribunal, tal como se entendeu na sentença recorrida, conhecer ou apurar da qualidade de credor do requerente, a fim de concluir pela sua legitimidade; e depois, apurar da verificação dos factos-índice da situação de insolvência que tenham sido alegados;
                xv. Em face da litigiosidade do crédito, que já estava largamente plasmada,  e em face do facto do recorrente, na acção declarativa em que é réu, ter apresentado pedido de intervenção de terceiros, admitindo que o crédito que detém possa não ser sobre a devedora, mas sim sobre a entidade ali chamada, conclui-se que a averiguação sumária, a única permitida nos autos de insolvência, é insuficiente para concluir pela verificação ou não do crédito do recorrente;
                xvi. O próprio requerente da insolvência põe assim em causa o crédito que invoca como fundamento do pedido de insolvência; coloca em dúvida a identidade do devedor, admitindo que o crédito possa não ser sobre a devedora;

                xvii. Os casos de nulidade da sentença estão taxativamente enumerados no artigo 668º do CPC; nos termos do nº 1, alínea d), a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; de entre as questões essenciais a resolver, não constitui nulidade o não conhecimento daquelas questões cuja apreciação esteja prejudicada pela decisão de outra, que é o que se verifica no presente caso;

                xviii. O tribunal “a quo” ao proferir a sentença recorrida, não violou nenhum dos preceitos legais invocados pelo recorrente, reguladores da possibilidade de acesso ao direito e aos tribunais e do vínculo insindicável dos tribunais à lei;

                xix. Só são susceptíveis de impugnação os julgados que forem desfavoráveis ao recorrente, por só se poder recorrer daquilo em que se ficou vencido (artigo 680º, nº 1, do CPC);
                xx. A sentença recorrida contém como julgado, apenas a parte que incide exclusivamente sobre a qualidade ou não de credor do recorrente e consequentemente sobre a inexistência ou não do facto-índice;
                xxi. Não incidiu (não julgou) sobre a matéria relativa à existência ou inexistência da própria situação de insolvência da recorrida;
                xxii. Como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, a criação de decisão sobre matéria (nova ou não) não submetida à apreciação do tribunal “a quo” ou não apreciada por este;
                xxiii. Assim, a matéria que constitui a alegação do recorrente neste recurso, relativa à existência ou inexistência da própria situação de insolvência da recorrida, não é susceptível de impugnação em sede de recurso;

                xxiv. O não pagamento do crédito invocado pelo requerente acontece por a devedora o considerar indevido, não significando que a mesma se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas;
                xxv. A devedora só tem um único credor, o Banco P.... SA e esse crédito é a pagar fraccionadamente, vencendo-se a primeira prestação apenas em 30 de Setembro de 2014;

                xxvi. A situação da devedora não enquadra qualquer dos factos-índice previstos nas diversas alíneas do nº 1, do artigo 20º, do CIRE.

            Em suma, improcede o recurso; e deve subsistir a sentença recorrida.

7. Delimitação do objecto do recurso.

O âmbito do recurso é, numa primeira observação, delimitado pelo conteúdo do acto recorrido; e daí ser comum a ilação de que aquele não visa criar decisão sobre matéria nova. É, portanto, nesse campo (o do conteúdo do acto recorrido) que o apelante vai buscar os concretos assuntos que pretende ver reapreciados, aqueles que narra nas conclusões de alegação que formula; e que, esses agora, constituem o que vai ser o objecto recursório (artigo 684º, nº 3, do CPC).

O apelante, no caso dos autos pretende a revogação da sentença que julgou improcedente o seu pedido de declaração de insolvência da apelada; indica, porém, duas decisões sucedâneas a essa – a do prosseguimento da instância com produção de prova em audiência de discussão (fls. 2207); e a da declaração de que a apelada se encontra em situação de insolvência (fls. 2233).
Naturalmente que a pretensão válida corresponde à primeira.
No contexto da audiência de discussão foi organizada a matéria de facto que constitui a base instrutória da causa, havendo sido elaborados mais de uma centena de quesitos (fls. 1602 a 1623); ademais, estava pendente a produção de provas propostas pelo requerente e pela devedora. Significando isso que, não fôra a sentença entretanto e interlocutoriamente produzida, a instância insolvencial teria tido o sequente progresso; só interrompido por aquela.
A revogação da sentença, que porventura tenha lugar, não terá outro alcance que não seja o da retoma do progresso da instância a partir do momento em que se achou interrompida; com o reinício dos trabalhos ali descontinuados.

O apelante autonomiza nuclearmente uma questão decidenda; a das condições de legitimação que um credor deve reunir para poder, com viabilidade, pedir a declaração de insolvência de um devedor. E, na desconstrução desta, duas outras; em 1º lugar a de saber se o processo de insolvência comporta a averiguação desse estatuto do credor que requeira a respectiva declaração; em 2º lugar, e na afirmativa o tipo de prova ou de demonstração de que, então, é lícito fazer uso; além ainda da questão de saber se, nesse domínio, os mecanismos processuais à disposição salvaguardam, com o devido rigor, as garantias das partes.

Para lá disso, por fim, argui o apelante que a sentença padece da nulidade referida no artigo 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, consistente em omissão de pronúncia; e, por outro lado, propugna que a interrupção no desenrolar dos trabalhos, que a sentença a julgar improcedente o pedido importou, acarreta uma verdadeira denegação do acesso à justiça, valor que lhe assiste e, aliás, de tutela constitucional.

            São estas, em suma, as questões decidendas que importa esclarecer.


            II – Fundamentos

            1. A sentença apelada sustentou-se na seguinte matéria de facto prova-da, que corresponde à que foi seleccionada como assente em audiência de discus-são e julgamento, e segundo a ordem alfabética por que, ali, foi organizada:   

i. B... SGPS SA, NIPC n..., com sede na Rua ..., . ... Lisboa, encontra-se matriculada na Conservatória de Registo Comercial de Lisboa, sob o referido número – alín ) matéria assente.
                ii. A referida sociedade tem o capital social de cento e setenta e dois milhões e duzentos mil euros – alín b) matéria assente.
                iii. A sociedade S...SA tem o objecto social de: “gestão de participações sociais noutras sociedades como forma indirecta do exercício de actividade económicas” – alín c) matéria assente.
                iv. No dia 18 de Abril de 2005, o requerente celebrou com a sociedade U...   SA um acordo escrito denominado “Contrato de Compra e Venda de Acções”, nos termos do qual o primeiro se obrigou a adquirir àquela sociedade 3.020.257 (três milhões, vinte mil e duzentas e cinquenta e sete) acções ordinárias, escriturais e nominativas, com o valor nominal unitário de € 1,00 (um euro), representativas de uma parte do capital social da sociedade SLN  (doc fls. 49 a 50) – alín d) matéria assente.
                v. Para tanto, o requerente procedeu ao pagamento de € 7.399.629,65 na data da celebração do contrato – alín e) matéria assente.
                vi. No mesmo dia, em 18 de Abril de 2005, o requerente celebrou um outro acordo escrito, denominado “Contrato de Opção de Venda e de Opção de Compra de Acções” com a sociedade requerida, B...SGPS...SA, nos termos do qual o requerente adquiriu o direito de vender a esta sociedade 2.500.000 (dois milhões e quinhentas mil) acções, com o valor nominal unitário de € 1,00 (um euro), representativas de uma parte do capital social da sociedade SLN  (doc fls. 52 a 57) – alín f) matéria assente.
                vii. Nos termos do Considerando c), do citado “Contrato de Opção de Venda e de Opção de Compra de Acções”, o exercício do direito de venda das acções representativas do capital social da sociedade S...SA seria exercido por divisão das acções em três lotes – alín g) matéria assente.
                viii. O primeiro lote era composto por 1.000.000 (um milhão) de acções, com o valor nominal unitário de € 1,00 (um euro), denominado de lote A, o segundo lote era composto por idênticas 1.000.000 (um milhão) de acções, com o valor nominal unitário de € 1,00 (um euro), denominado de lote B, e o terceiro, e último, lote era composto por 500.000 (quinhentas mil) acções, com o valor nominal unitário de € 1,00 (um euro), identificado nos termos do contrato como lote C – alín h) matéria assente.
                ix. Ao abrigo daquele acordo, o requerente adquiriu a opção de venda da totalidade das mencionadas 2.500.000 (dois milhões e quinhentas mil) acções da forma, constante da cláusula 1ª do mencionado acordo, que refere:
“Pelo presente Contrato, o Investidor [o requerente] adquire o direito de vender, pelos preços previstos na cláusula 4ª, à B...SGPS...SA [a requerida], obrigando-se esta a comprar, livres de ónus ou restrições, a totalidade das Acções, em cada uma das seguintes hipóteses:
a) No ano de 2007, entre os dias 30 de Maio e 30 de Junho, em quantidade não superior ao Lote A;
b) No ano de 2008, entre os dias 30 de Maio e 30 de Junho, em quantidade não superior ao Lote B;
c) No ano de 2009, entre os dias 30 de Maio e 30 de Junho, em quantidade não superior ao Lote C” – alín i) matéria assente.
                x. No que concerne à opção de compra, foi estabelecido na cláusula 2ª que:
                “Como contrapartida da opção de venda ora concedida à B...SGPS...SA [a requerida] é, por sua vez, atribuído o direito de comprar ao Investidor [o requerente], entre o 1º e o 3º dias úteis contados do dia correspondente à trigésima sessão de bolsa na qual sejam negociadas as Acções, obrigando-se este a vender-lhe, livre de ónus ou restrições, até 50% do total das Acções” – alín j) matéria assente.
                xi. Para efeitos do exercício dos direitos referidos nas acima transcritas cláusulas, as partes determinaram o preço a pagar por cada uma das acções na cláusula 4ª da seguinte forma:
                “(...) a) acções integradas no Lote A: € 2,85 (dois euros e oitenta e cinco cêntimos);
                b) acções integradas no Lote B: € 3,06 (três euros e seis cêntimos);
                c) acções integradas no Lote C: € 3,29 (três euros e vinte e nove cêntimos)” – alín l) matéria assente.
                xii. Acordaram ainda as partes que o exercício dos direitos de opção poderia ser exercido através de comunicações escritas, incluindo “via «fax»” – alín m) matéria assente.
                xiii. Tendo ainda estabelecido, no nº 4, da Cláusula 4ª, que:
                “Sempre que para tanto esteja obrigada nos termos do presente contrato, e sem prejuízo de prazos menores nele fixados, a B...SGPS...SA deverá pagar o preço das Acções ao Investidor [o requerente] no prazo máximo de 30 (trinta) dias contados da data da recepção da comunicação do Investidor para o efeito” – alín n) matéria assente.
                xiv. Por telefax de 28 de Junho de 2007 o requerente comunicou à requerida o exercício do seu direito de venda da totalidade das acções correspondentes ao Lote A (referentes a um milhão de acções), no valor total de € 2.850.000,00 (doc fls. 59) – alín n) matéria assente.
                xv. Nos termos acordados a requerida teria 30 dias contados desde a recepção da comunicação, expressando o exercício pelo requerente do direito de opção de venda das acções compreendidas no Lote A, para proceder pagamento do preço acordado – alín p) matéria assente.
                xvi. O que a requerida não fez – alín q) matéria assente.
                xvii. A requerida requereu ao requerente uma prorrogação de prazo para o exercício da sua obrigação de aquisição das acções – alín r) matéria assente.
                xviii. Prorrogação que o requerente aceitou, tendo dirigido ao presidente do conselho de administração da requerida, a 21 de Janeiro de 2008, uma comunicação (doc fls. 61 a 62) – alín s) matéria assente.
                xix. Até à data em que o requerente exerceu o direito de opção de venda das acções compreendidas no Lote B, a requerida não havia ainda procedido ao pagamento do preço correspondente ao exercício, pelo requerente, da opção de venda das acções correspondentes ao Lote A – alín t) matéria assente.
                xx. Em 16 de Junho de 2008, o requerente comunicou à requerida o exercício do direito de opção de venda do segundo lote das acções representativas do capital social da Sociedade SLN  SA, isto é, do Lote B (doc fls. 64) – alín u) matéria assente.
                xxi. O requerente exerceu o seu direito de opção de venda de um milhão de acções representativas do capital social da S...SA, pelo preço de € 3,06 por cada acção, num total de € 3.060.000,00 – alín v) matéria assente.
                xxii. A requerida não prestou qualquer garantia ao requerente em como aquele pagamento seria efectuado, tal como o requerente havia solicitado na sua comunicação de 21 de Janeiro de 2008 – alín x) matéria assente.
                xxiii. Razões pelas quais o requerente exigiu da requerida o pagamento de dois milhões de acções, correspondentes ao exercício conjunto dos direitos de opção de venda dos Lotes A e B, pelo preço, por acção, de € 3,06 – alín z) matéria assente.
                xxiv. No dia 4 de Junho de 2009, o requerente comunicou à requerida o exercício do direito de opção de venda do terceiro lote das acções representativas do capital social da Sociedade S... SA, Lote C – alín aa) matéria assente.
                xxv. Também neste caso, a obrigação de aquisição das acções correspondentes aos Lotes A e B não foi cumprida pela requerida, pelo que nesta última comunicação remetida pelo requerente, e tal como havia sucedido em relação às acções do Lote A, o requerente exerceu o direito de venda das acções do Lote C e voltou a exercer o direito de opção de venda das acções dos Lotes A e B, cobrando por cada uma daquelas acções o montante mais elevado das acções do Lote C, isto é, € 3,29 por acção (doc fls. 66 a 67) – alín bb) matéria assente.
                xxvi. No Relatório e Contas da requerida B... SGPS SA, correspondente ao exercício do ano de 2007, refere-se no item 31 do anexo às Demonstrações Financeiras com a epígrafe “Valor global dos compromissos financeiros que não figuram no balanço” o seguinte:
                “À data de 31 de Dezembro de 2007, esta sociedade tem os seguintes compromissos conexos com a eventual aquisição de participações sociais:
                Opções relativas à aquisição de 5.345.274 acções da S... SA, com exercício em Junho de 2008, pelo montante global de 17.159.404,20 €” – alín cc) matéria assente.
                xxvii. No Relatório e Contas da Requerida B... SGPS SA, referente a 2008, refere-se no item 31 com a mesma epígrafe:
                “À data de 31 de Dezembro de 2008, esta sociedade tem os seguintes e eventuais compromissos conexos com a eventual aquisição de paricipações sociais:
                Opções relativas à aquisição de 500.000 acções da S... S.A., com exercício em Junho de 2009, pelo montante global de 1.645.000 €” – alín dd) matéria assente.
                xxviii. Em 18 de Abril de 2005, celebrou o requerente um acordo escrito denominado “Contrato de Compra e Venda de Acções” com a sociedade U...SA, nos termos do qual aquele se obrigou a adquirir a esta quinze milhões de acções ordinárias, escriturais e nominativas (doc fls. 132 a 133) – alín ee) matéria assente.
                xxix. Tais acções tinham o valor nominal unitário de € 1,00 (um euro), e eram representativas de uma parte do capital social da sociedade B...SGPS...SA – alín ff) matéria assente.
                xxx. Nos termos da cláusula 1ª, nº 3, do citado acordo, as referidas acções foram alienadas ao requerente pelo preço global de  €33.000.000,00 – alín gg) matéria assente.
                xxxi. O preço global das acções adquiridas foi pago pelo requerente na data da celebração do acordo – alín hh) matéria assente.
                xxxii. No mesmo dia 18 de Abril de 2005, o requerente celebrou um acordo escrito denominado “Contrato de Opção de Venda e de Opção de Compra de Acções” com a sociedade SLN , ao abrigo do qual aquele adquiriu o direito. de vender à requerida 10.000.000 (dez milhões) de acções, com o valor nominal unitário de € 1,00 (um euro), representativas de uma parte do capital social da própria sociedade B...SGPS...SA (doc fls. 135 a 141) – alín ii) matéria assente.
                xxxiii. Também neste caso, o direito de opção de venda das acções representativas do capital social da sociedade B...SGPS...SA poderia ser exercido em três lotes distintos: Lotes A, B e C – alín jj) matéria assente.
                xxxiv. O primeiro lote era composto por 3.000.000 (três milhões) de acções, com o valor nominal unitário de € 1,00 (um euro), denominado de Lote A, o segundo lote era composto por 4.000.000 (quatro milhões) de acções, com o valor nominal unitário de € 1,00 (um euro), denominado de Lote B, e o terceiro, e último, lote era composto por 3.000.000 (três milhões) de acções, com o valor nominal unitário de € 1,00 (um euro), identificado nos termos do contrato como Lote C – alín ll) matéria assente.
                xxxv. No que concerne à opção de venda as partes estabeleceram, no nº 1, da cláusula 1ª, que:
“Pelo presente contrato, o «Investidor» [o requerente] adquire o direito de vender, pelos preços previstos na cláusula seguinte, livres de quaisquer ónus ou restrições, o «Lote A», o «Lote B» e o «Lote C». Consequentemente, a «B...SGPS...SA» [a requerida] obriga-se a comprar o «Lote A», o «Lote B» e o «Lote C» ao «Investidor» [requerente], pelos preços previstos na cláusula seguinte, caso este venha a exercer o seu direito nos termos do presente contrato e as «Acções» se encontrem livres de quaisquer ónus ou restrições” – alín mm) matéria assente.
xxxvi. Tendo determinado, no n° 2 da citada cláusula, e no que concerne à opção de venda, que:
“Como contrapartida da opção de venda ora concedida, à «B...SGPS...SA» [requerida] é atribuído o direito de comprar, pelos preços indicados na cláusula seguinte, livres de quaisquer ónus ou restrições, um número de acções equivalente a 50% (com arredondamento por excesso) do «Lote A», do «Lote B» e do «Lote C» pelo presente contrato, o «Investidor» [requerente] adquire o direito de vender, pelos preços previstos na cláusula seguinte.
Consequentemente, o «Investidor» [requerente] obriga-se a vender à «B...SGPS...SA» [requerida], livres de quaisquer ónus ou restrições e pelos preços previstos na cláusula seguinte, caso esta sociedade venha a exercer o seu direito nos termos do presente contrato, 50% do «Lote A», do «Lote B» e do «Lote C»” – alín nn) matéria assente.
xxxvii. O requerente adquiriu a opção de venda das mencionadas 10.000.000 (dez milhões) de acções da forma referida na cláusula 3ª:
“O direito de venda das «Acções» só poderá ser exercido lote a lote e mediante comunicações escritas enviadas pelo «Investidor» [o requerente] e recebidas pela «B...SGPS...SA» [a requerida] nos prazos seguintes:
a) «Lote A»: após 31 de Maio de 2007 a antes de 30 de Junho de 2007;
b) «Lote B»: após 31 de Maio de 2008 a antes de 30 de Junho de 2008;
c) «Lote C»: após 31 de Maio de 2009 a antes de 30 de Junho de 2009” – alín oo) matéria assente.
xxxviii. As partes determinaram o preço a pagar por cada uma das acções na Cláusula 2ª da seguinte forma:
“(...) a) «Lote A»: € 2,56 (dois euros e cinquenta e seis cêntimos) por acção;
b) «Lote B»: € 2,75 (dois euros e setenta e cinco cêntimos) por acção;
c) «Lote C»: € 2,96 (dois euros e noventa e seis cêntimos) por acção” – alín pp) matéria assente.
xxxix. Mais tendo acordado, no nº 3, da cláusula 1ª, que:
“Os direitos de venda e de compra das «Acções» ora concedidos serão livremente exercidos pelos respectivos titulares mediante comunicações, efectuadas nos termos da cláusula terceira deste contrato, não podendo a outra parte recusar adquirir a totalidade ou vender 50% do «Lote A», do «Lote B» e / ou do «Lote C», consoante o caso, com base em apreciações subjectivas, de facto ou de direito, ou em quaisquer formas de oposição não previstas no presente contrato” – alín qq) matéria assente.
xl. O requerente comunicou à requerida, por meio de telefax datado de 28 de Junho de 2007, o exercício do direito de opção de venda “da totalidade das acções do «Lote A» (3.000.000 de acções a 2,56 € cada)”, num total de 7.680.000,00 € (doc fls. 143) – alín rr) matéria assente.
xli. A requerida não procedeu ao pagamento da referida quantia – alín ss) matéria assente.
xlii. A requerida solicitou ao requerente, verbalmente, uma prorrogação do prazo para pagamento das mencionadas acções cujo direito de venda o requerente exerceu – alín tt) matéria assente.
xliii. Prorrogação essa que o requerente aceitou – alín uu) matéria assente.
xliv. Por referência ao direito de venda das acções correspondentes ao Lote B, no dia 16 de Junho de 2008 o requerente comunicou à requerida o exercício daquele seu direito (doc fls. 145) – alín vv) matéria assente.
xlv. Não foi prestada, qualquer garantia em como o pagamento seria pela requerida efectuado, como o requerente havia solicitado na comunicação de 21 de Janeiro de 2008 – alín xx) matéria assente.
xlvi. O requerente exigiu, com a concordância da requerida, o pagamento por esta das sete milhões de acções, correspondentes ao exercício conjunto dos direitos de opção de venda dos Lotes A e B, pelo preço, por acção, de € 2,75 – alín zz) matéria assente.
xlvii. Já no dia 4 de Junho de 2009, o requerente comunicou à requerida o exercício do direito de opção de venda do terceiro lote das acções representativas do capital social da B...SGPS...SA, Lote C (doc fls. 147 a 148) – alín aaa) matéria assente.
xlviii. Também, a obrigação de aquisição das acções correspondentes aos Lotes A e B não foi cumprida pela requerida, pelo que nesta última comunicação remetida pelo requerente, e tal como havia sucedido em relação às acções do Lote A, o requerente exerceu o direito de venda das acções do Lote C e voltou a exercer o direito de opção de venda das acções dos Lotes A e B, cobrando por cada uma daquelas acções o montante mais elevado das acções do Lote C, isto é., € 2,96 por acção, num total de € 29.600.000,00 (doc fls. 147 a 148) – alín bbb) matéria assente.
xlix. No Relatório e Contas da requerida SLN Valor SGPS SA, correspondente ao exercício do ano de 2007, refere-se no item 31 do anexo às Demonstrações Financeiras com a epígrafe “Valor global dos compromissos financeiros que não figuram no balanço”, o seguinte:
“À data de 31 de Dezembro de 2007, esta sociedade tem os seguintes compromissos conexos com a eventual aquisição de participações sociais:
Opções relativas à aquisição de 7.000.000 acções da S.... . SA, com exercício em Junho de 2008, pelo montante global de 19.250,00 €” – alín ccc) matéria assente.
l. No Relatório e Contas da requerida B... SGPS SA, referente a 2008, refere-se no item 31 com a mesma epígrafe:
“À data de 31 de Dezembro de 2008, esta sociedade tem os seguintes e eventuais compromissos conexos com a eventual aquisição de paricipações sociais:
Opções relativas à aquisição de 3.000.000 acções da S..... S.A., com exercício em Junho de 2009, pelo montante global de 8.880.000,00 €” – alín ddd) matéria assente.
li. No contrato de opção de venda e de opção de compra das acções representativas do capital social da B..SGPS...SA, as partes não fixaram qualquer prazo para a aquisição, pela requerida, das acções objecto do exercício do direito de opção de venda pelo requerente – alín eee) matéria assente.
lii. A requerida tem como activo as respectivas participações sociais noutras sociedades – alín fff) matéria assente.
liii. A requerida detém 31,658799% das participações sociais da sociedade S... SA – alín ggg) matéria assente.
liv. O aumento de capital da sociedade S...SA, de € 470.925.000,00 para € 706.387.500 (setecentos e seis milhões trezentos e oitenta e sete mil e quinhentos euros), tal como referido no acordo denominado “contrato de compra e venda de acções” celebrado entre o requerente e a requerida, ainda que realizado, até à data, na sua primeira tranche (no montante de € 531.667,00) foi anulado – alín hhh) matéria assente.
lv. A sociedade S,,,SA deteve, até à nacionalização, 100% das participações sociais do Banco P... SGPS SA – alín iii) matéria assente.
lvi. A requerida detém também 100% das acções representativas do capital social da sociedade W...... LLC, que consiste numa sociedade locadora de edifícios – alín jjj) matéria assente.
lvii. Esta, por sua vez, detém 20% das acções representativas do capital social da sociedade OPI 92 Sociedade Gestora de Participações Sociais SA – alín lll) matéria assente.
lviii. Sociedade cujo objecto consiste na “(...) gestão de participações sociais noutras sociedades como forma indirecta do exercício de actividades económicas” – alín mmm) matéria assente.
lix. A requerida é já titular de 52,5% das acções representativas do capital social da Sociedade O... SGPS SA – alín nnn) matéria assente.
lx. A sociedade O... SGPS SA. detêm 50% das acções representativas do capital social da sociedade P......Sociedade Gestora de Participações Sociais, SA – alín ooo) matéria assente.
lxi. A qual se dedica à gestão de participações sociais não financeiras, ou seja, e concretamente, à gestão de património – alín ppp) matéria assente.
lxii. Sendo igualmente proprietária, por si ou por intermédio de sociedades com esta em relação de domínio ou grupo, de activos imobiliários no perímetro da antiga Herdade de ..., em ..., local onde futuramente será construído o novo Aeroporto de Lisboa – alín qqq) matéria assente.
lxiii. A sociedade P... Sociedade Gestora de Participações Sociais, SA é titular de um passivo bancário que ronda 450 milhões de euros, encontrando-se o seu património hipotecado como garantia do financiamento por si adquirido para a aquisição de imóveis – alín rrr) matéria assente.  
lxiv. No dia 22 de Junho de 2007 a requerida procedeu à contratação de um Programa de Papel Comercial, ao abrigo do qual procedeu à emissão de papel comercial por subscrição particular no montante de € 50.000.000,00 (doc fls. 190 a 191) – alín sss) matéria assente.
lxv. Tendo, em 24 de Julho de 2008, procedido à contratação de um segundo Programa de Papel Comercial, ao abrigo do qual procedeu à emissão de papel comercial por subscrição particular no montante de € 100.000.000,00 (cem milhões de euros) (doc fls. 193 a 207) – alín ttt) matéria assente.
lxvi. Sendo em ambos os Programas o Banco E... SA o Banco organizador e agente – alín uuu) matéria assente.
lxvii. E o Banco P.... a instituição bancária intermediária e a entidade registadora – alín vvv) matéria assente
lxviii. Para a concretização do financiamento bancário associado a ambos os Programas de Papel Comercial, e como forma de “(...) garantia do bom e pontual cumprimento de todas as responsabilidades e obrigações assumidas (...)” no âmbito dos ditos Programas de Papel Comercial, a requerida constituiu, a favor dos titulares dos Programas de Papel Comercial, penhor sobre o saldo bancário de € 27.600.000,00 (vinte e sete milhões e seiscentos mil euros) disponível na conta nº ... aberta naquele mesmo Banco P.... – alín xxx) matéria assente.
lxix. Penhor que perdurará, conforme consta da Comunicação da requerida dirigida ao Banco P......, de 4.11.2008, “(...) até integral cumprimento de quaisquer obrigações resultantes dos programas de papel comercial para a B..SGPS...SA, designadamente até integral reembolso dos programas em causa” – alín zzz) matéria assente.
lxx. Através deste montante monetário de € 27.600.000,00 foram liquidados, em Julho de 2009, os juros resultantes dos Programas de Papel Comercial e ainda 10% da dívida de papel comercial – alín aaaa) matéria assente.
lxxi. Foi já constituído penhor:
Sobre 30.000 acções da Sociedade O... 92 SGPS SA, até então detidas pela W...... LLC – alín bbbb) matéria assente.
lxxii. A Sociedade S...SA, detida em 31,658799% pela requerida, detinha 100% das participações sociais do Banco P.... SGPS SA – alín cccc) matéria assente.
lxxiii. Inicialmente, a requerida foi constituída como sociedade por quotas, tendo sido posteriormente transformada em sociedade anónima – alín dddd) matéria assente.
lxxiv. A sociedade U...SA tem por objecto social essencialmente a compra e venda de bens imóveis – alín eeee) matéria assente.
lxxv. A U...SA   é detida a 100% pela requerida – alín gggg) matéria assente.
lxxvi. Todas as referidas sociedades e o   Banco P...... SA, e a requerida, tiveram a sua sede desde 2001 até Outubro de ..., na Avenida ..., n° ..., em Lisboa – alín hhhh) matéria assente.
lxxvii. O Sr. Dr. X...... foi até Março de ..., o Presidente do Conselho de Administração de todas as identificadas sociedades – alín iiii) matéria assente.
lxxviii. Em 4 de Junho de 2004 foi celebrado um denominado “protocolo de acordo” (doc fls. 367 a 372) – alín jjj) matéria assente.
lxxix. Com data de 18 de Abril de 2005, o Dr. X... em representação da U... SA, celebrou com o requerente dois acordos escritos de compra e venda de acções:
- Um tendo por objecto 3.020.257 acções da S.... SGPS SA (doc fls. 373 a 374)
- Outro tendo por objecto 15.000.000 de acções da B... SGPS SA (doc fls. 375 a 376) – alín llll) matéria assente.
lxxx. Do mencionado acordo consta que a U...SA “se encontra na fase final das negociações tendentes a aquisição” destas acções – alín mmmm) matéria assente.
lxxxi. Em 27 de Dezembro de 2000, o requerente celebrara com o Dr. X..., sempre em representação externa da requerida, um outro contrato de opção de venda e de opção de compra de acções da B...SGPS...SA (doc fls. 496 a 500) – alín nnnn) matéria assente.
lxxxii. Os estatutos da requerida têm o teor constante do doc fls. 504 a 515 – alín oooo) matéria assente.
lxxxiii. A requerida instaurou contra o aqui requerente e contra o Dr. X... uma acção que corre os seus termos pelo 2º juizo do tribunal do comércio de Lisboa, com o nº 666/10.3TYLSB, na qual foi apresentada petição inicial com o teor constante do doc fls. 516 a 569 – alín pppp) matéria assente.
lxxxiv. Em 30 de Agosto de 2007, o requerente celebrou acordo de cooperação com outros co-accionistas da requerida (doc fls. 613 a 626) – alín qqqq) matéria assente.
lxxxv. Em virtude de prorrogação de prazo subscrita também pelo requerente, em 5 de Maio de 2009, tal acordo vigora até 5 de Maio de 2011 (doc fls. 627 a 628) – alín rrrr) matéria assente.
lxxxvi. Do referido acordo consta um anexo denominado “Anexo 1”, com o teor constante do doc fls. 617 e 622 – alín ssss) matéria assente.
lxxxvii. A requerida apresentou com referência a 31 de Dezembro de 2009, o relatório e contas (doc fls. 653 a 672 e 676 e doc fls. 860 a 892) – alín tttt) matéria assente.
lxxxviii. A S...... SGPS SA apresentou com referência ao exercício de 2009 o relatório e contas (doc fls. 700 a 816 e doc fls. 821 a 858) – alín uuuu) matéria assente.
lxxxix. A requerida apresentou relação de credores na qual fez constar como único credor da sociedade o Banco P...... SA, com um valor de € 140.609.583,00 (doc fls. 677) – alín vvvv) matéria assente.
xc. Foi elaborado o comunicado com o teor constante do doc fls. 1166 a 1167 – alín xxxx) matéria assente.
xci. O requerente endereçou uma comunicação escrita, datada de 18 de Junho de 2009, à Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso Banco P..SA com o teor constante do doc fls. 1169 a 1173 – alín zzzz) matéria assente.
xcii. Em Agosto de 2007 foi celebrado um “Acordo de Cooperação” entre os accionistas S..., .J.., V..., C..., G..., D..., F..., E... e o requerente, e mais tarde Q... (docs fls. 1238 a 1242 e 1244 a 1245) – alín aaaaa) matéria assente.
xciii. A sociedade C... Lda tem como objecto social “compra e venda de imóveis, incluindo a compra para revenda ou arrendamento, gestão e comercialização de imóveis, incluindo a construção e exploração de imóveis e a prestação de serviços conexos com estas actividades ...” – alín bbbbb) matéria assente.
xciv. À data da concessão dos financiamentos mencionados com referência à sociedade C... Lda, o requerente detinha 30% das participações sociais da mencionada sociedade, sendo 50% detidos pelo grupo S... e os restantes 20% pelo grupo I.... – alín ccccc) matéria assente.
xcv. Foi celebrado pela mencionada sociedade, intervindo na outorga do mesmo a gerente SM.... em representação da sociedade, e Banco P...SA,  acordo escrito de mútuo com hipoteca (doc fls. 1267 a 1285) – alín ddddd) matéria assente.
xcvi. A sociedade V...SA tem o objecto social de: “promoção, exploração, construção de campos de golf, exploração de bares e restaurantes, bem como a promoção, realização, exploração e gestão de quaisquer actividades e investimentos turísticos ...” – alín eeeee) matéria assente.
xcvii. Foi celebrado pela mencionada sociedade, intervindo na outorga do mesmo, em representação da sociedade, os Drs. Y e Z, com o Banco P... SA, acordo escrito denominado “contrato de abertura de crédito” (doc fls. 1294 a 1301) – alín fffff) matéria assente.
xcviii. O requerente participou, pela primeira vez, nas reuniões do Conselho Superior da B...SGPS...SA a partir de Setembro de 2005 – alín ggggg) matéria assente.
xcix. À data de Janeiro de 2005 e pelo menos desde 2002, o requerente era sócio e depois accionista, quer da requerida, quer da “SLN”, através de uma sociedade veículo offshore denominado “C... Limited” – alín hhhhh) matéria assente.
c. Sociedade esta da qual o requerente era o único e último beneficiário – alín iiiii) matéria assente.

2. O mérito do recurso.

            2.1. Enquadramento preliminar.
            Antes de propriamente avançarmos para o tratamento dos assuntos decidendos rememoremos que a hipótese é a de uma instância insolvencial, suscitada por um credor, sustentado [não apenas, mas em particular] no artigo 20º, nº 1, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Opôs-se a devedora, negando o crédito do requerente e invocando a sua situação de solvência. Iniciou-se audiência de discussão e julgamento, onde foi seleccionada a matéria de facto relevante considerada assente e organizada a base instrutória. E foi já neste contexto, mesmo antes de iniciada a produção das provas, que veio a ser proferida a sentença final a julgar improcedente o pedido da insolvência.

            2.2. A nulidade da sentença.
            Adianta o apelante que o tribunal “a quo” se absteve de produzir as provas que haveria de sujeitar à sua livre convicção; que a sentença que proferiu se não pronunciou sobre qualquer questão de mérito; e que, por essa omissão (total) de pronúncia, enferma de nulidade. Responde a apelada que não ocorre o vício sempre que, como é o caso, as questões não sejam conhecidas por se mostrarem prejudicadas pela apreciação feita de outras.
            Vejamos. Está em causa a disposição do artigo 668º, nº 1, alínea d), início, do Código de Processo Civil;[5] segundo o qual padece de nulidade a sentença quando o juiz nela deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar. É a comummente designada “omissão de pronúncia”, em directa conexão com o comando ínsito no artigo 660º, nº 2, início, do mesmo código; deste resultando que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, a menos que se trate de questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras.
O que significa, então, que se certo assunto, a que se dá solução, tornar desnecessária, por indiferente, a abordagem de um outro, e ainda que este último haja sido levantado pelas partes, não carece (nem deve) o juiz pronunciar-se sobre ele; o que sempre se volveria em esforço inútil já que, seja qual seja a óptica sobre ele adoptada, sempre o desenlace na causa se manterá o mesmo; a resolução da questão prejudicial torna, assim, escusada e supérflua a procura de uma solução a dar para a questão prejudicada. E o não conhecimento de uma questão prejudicada, mesmo suscitada, não faz padecer a decisão que conheça a questão prejudicial de nulidade.
            Nota-se ainda que o sentido do vocábulo “questões”, aí empregue, não é confundível com as “razões” ou “argumentos” que as partes produzam, mas quer significar unicamente os “assuntos solvendos”, que respeitem, em particu-lar, ao pedido, causa de pedir ou excepções deduzidas, que não aos motivos de sustentação de cada um dos pontos de vista.[6]
            É portanto uma imperfeição na forma o que está ali em causa.
            Na hipótese dos autos o apelante pediu a declaração de insolvência da apelada com fundamento, em particular, no artigo 20º, nº 1, alínea b), do CIRE; e a esse propósito desencadeou um acervo de assuntos que fez conter na sua petição, uma boa parte dos quais merecedores de controvérsia. Ora, o tribunal “a quo”, no juízo que entendeu formular, e fez conter na sentença que pronunciou, considerou, no principal, não poder ter por demonstrada a legitimação substantiva do apelante que o habilitasse a, com viabilidade, poder requerer a insolvência da apelada. A questão estaria na impossibilidade de sumariamente se poder apurar, na instância insolvencial, essa legitimação; e, como tal, inverificada aquela qualidade, não havendo viabilidade substancial do pedido. Este assunto de estrita legitimação do requerente, como condição de viabilidade da acção, a ser decidido assim, torna supérfluo o conhecimento dos demais assuntos suscitados e controversos. É que, se o apelante está desenquadrado do estatuto que expressamente se prevê no artigo 20º, nº 1, início, do CIRE, então pouco importa a razão, ou falta dela, nos demais assuntos; a solução que se desse a estas outras questões seria sempre indiferente, atenta a inviabilidade da insolvência.
            Donde, a sentença não padece do vício que o apelante lhe aponta. As questões que foram suscitadas, e não solucionadas, cabem, na economia da decisão, naquelas que o juiz está dispensado de conhecer, por excepcionadas no quadro normativo que emerge do artigo 660º, nº 2, seguinte, do CPC.
            Coisa diferente é atentar se a sentença decidiu bem; mas aqui já não tanto questão de forma, mas verdadeiramente de substância. No contexto decisório, não houve omissão de pronúncia; mas apurar acerca da rectidão desse contexto é a tarefa seguinte; de que se integra o objecto do recurso interposto.
            A sentença apelada não enferma, neste particular, de nulidade.

            2.3. A legitimação do credor como requerente da insolvência.
            O assunto central que o caso vertente suscita é, na nossa óptica, o do conhecimento das condições de legitimação que um credor deve reunir para poder, com viabilidade, pedir a declaração de insolvência de um devedor. Isto é, estabelecendo o artigo 20º, nº 1, início, do CIRE,[7] que “a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida … por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito”, impõe-se saber como deve ele estar habilitado, de que apetrechos deve o seu crédito estar munido, e de que devem os autos dar notícia, que permitam que o processo de insolvência que entenda desencadear possa ser viável.[8]

            A apelada, a dado passo nos autos, fizera reflectir este assunto em sede estritamente adjectiva, como de ilegitimidade activa (fls. 1476); havendo o apelante então respondido com a regularidade da instância (fls. 1496 a 1497). Mas acabando a sentença por redireccionar a questão a uma vertente substantiva (fls. 2151); e correctamente. A disposição do artigo 20º, nº 1, do CIRE, como aliás é expressa a sua própria epígrafe, é de legitimação, que não de legitimidade; isto é, é como faculdade substantiva, radicada na própria esfera jurídica de direitos e de vínculos, de que o credor é portador, que aquela se há-de conter ou não; precisamente consoante reúna, ou não, as condições normativas ali tidas em vista. Coisa diferente, portanto, da posição processual que assuma, e da concernente adequação; esta estritamente reflectiva na recta posição tomada no processo. E, para este derradeiro efeito, na medida em que o requerente na petição se assuma em posição creditícia, capaz de ser compreendida no referido nº 1, do artigo 20º, está salvaguardada a sua legitimidade (artigo 26º, nº 3, final, do Código de Processo Civil); embora não a sua legitimação – esta que, indemonstrada, terá como efeito a improcedência da causa e do pedido de insolvência.[9]

            Dito isto; como deve, então, o credor estar habilitado para poder com viabilidade requerer a declaração de insolvência do devedor?
            O processo de insolvência não se pode identificar como um puro pro-cesso de partes, semelhantemente ao procedimento comum. É até discutível a própria existência de partes no processo.[10]  O processo de insolvência é um pro-cesso de execução universal que tem como finalidade a liquidação de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista em plano de insolvência (artigo 1º do CIRE);[11] o seu mais importante objectivo, aquele desiderato que visa atingir, não é o da realização do interesse daquele credor que desencadeia o procedimento; ao invés, a sua finalidade única é a da satisfação dos credores (de todos), e na medida do possível.[12]  Embora, nessa óptica, processo “sem partes” e estritamente orientado para a satisfação dos direitos da comunidade dos credores,[13] certo é porém que no processo de insolvência, numa sua fase inicial (antes de a sentença ser proferida), há um papel particular que é desempenhado por aquele dos legitimados (sujeito diverso do devedor) que requer a concernente declaração.[14]  Aí se trata de um papel, de um desempenho, que não é sobreposto, nem deve ser assemelhado, ao do comum autor, em qualquer acção declarativa; mas distintamente do que se trata é de um desencadear de um mecanismo que é tendente à salvaguarda de interesses colectivos, que se objectivam separadamente ao que é particular do requerente (credor), quando seja este a assumir essa tarefa. É como que a assunção da defesa de interesses alheios (só acessoriamente privados), autónomos, despegados dos daquele que assume a tarefa e o encargo de propugnar a declaração de insolvência.[15]  Ora, é neste quadro que tem de ser compreendida a legitimação (do credor) estabelecida pelo artigo 20º, nº 1, início, do CIRE.

            Pese embora a apontada índole comunitária (pública, no que se refere à comunidade dos credores) é certo que o processo de insolvência comporta aquela fase inicial, digamos assim, privatística; em que mais se aproxima da acção comum, numa dialéctica processual que se desenvolve entre requerente e devedor, em marcha no sentido da pronúncia final sobre o estado de insolvência. Mas se assim é, comportada aquela tarefa de iniciativa processual que, depois, se complementa no restante da fase privada da instância, certo é que não poderá ser um qualquer sujeito a assumir a tarefa e o encargo.
As repercussões na esfera patrimonial do devedor são concerteza de alcance profundo; e, por outro lado, é imperioso que o sujeito que assume o papel (inicial) privatístico conheça algum nexo, algum elo, com a esfera patrimonial que assim, com a sua atitude, irá tão relevantemente atingir.[16]
            É este o contexto em que se enquadra o estatuto do credor, e que o habilita a ter viabilidade no pedido de insolvência que formule.

Não nos merece particular dúvida a caracterização substantiva da posição creditícia do requerente da insolvência. A lei fala em “qualquer credorqualquer que seja a natureza do seu crédito”. E daí podemos retirar ilações, à semelhança da doutrina corrente; vale, para o efeito, qualquer comum vínculo jurídico de realização de prestação debitória a que se tenha direito (artigo 397º do Código Civil);[17] não se exigindo qualquer especial título ou sequer se impondo o seu real incumprimento, o (já) vencimento da dívida.[18] 
Escreve assim, a propósito, CATARINA SERRA – “Aquilo que o autor, …, pretende é a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência e desencadeie o funcionamento dos mecanismos jurídicos adequados às necessidades especiais de tutela criadas por aquela situação. (…) Daí que, quando se trata de um credor, ele possa requerer o início do processo independentemente do incumprimento, da mora ou mesmo do vencimento do respectivo crédito”.[19] 
E LUÍS MENEZES LEITÃO – “É, assim, necessário, para se poder requerer a declaração de insolvência apenas a existência do crédito, não se exigindo que o mesmo esteja vencido, e muito menos que o credor possua título executivo, devendo o credor justificar na petição inicial, a natureza, origem e montante do crédito (artigo 25º, nº 1), tendo que fazer prova do mesmo (artigo 25º, nº 2). A prova do crédito pode ser realizada por qualquer meio, designadamente por testemunhas, apresentação do contrato que o gerou, ou documentação da conta-corrente”.[20]  
Quer isto significar, do ponto de vista de estrita substância, que a simples latência, na esfera jurídica do sujeito, da faculdade de obter a realização de certa prestação debitória, é a suficiente para preencher a primeira e mais básica das condições de legitimação para o pedido declaratório do estado insolvencial do devedor.

            Porém; a respeito da controvérsia ou litigiosidade que possa estar aliada a essa faculdade, ao crédito, já outras dúvidas se permitem descortinar.[21]
Vejamos. A controvérsia acerca da (in)existência do crédito, em si mesma, é suficiente para afastar a legitimação do (alegado) credor?
Cremos que a resposta é negativa; em lado nenhum a lei exige a incontrovérsia do crédito que sustente a legitimação para o pedido de insolvência; ao invés, apontando os indícios para a suficiência da sua justificação.
Já no (antigo) quadro legal do Código de Processo Civil corroborava PEDRO DE SOUSA MACEDO que “o titular do crédito litigioso deve sujeitar o seu direito a uma apreciação sumária do tribunal para se legitimar, apreciação que só é válida para esse efeito”.[22] 
Por outro lado, a doutrina mais recente vem afirmando estar aberta ao devedor a possibilidade de sustentar a sua oposição ao pedido, para lá do mais, na inexistência dos créditos que o autor se arroga para fundamentar a sua legitimidade;[23] o que sempre constituirá expressão de uma litigiosidade, ou controvérsia, latente.

Mas pode todo o crédito controverso sustentar a legitimação para a viabilidade da pretensão insolvencial?
A resposta é também negativa; certo que só assim não fica vazia de conteúdo a própria exigência – qualquer um que, pura e simplesmente, se arrogasse, sem mais, credor de alguém, estaria legitimado a pedir a sua insolvência, ainda que, com alguma evidência, o (alegado) devedor viesse a negar aquele vínculo. O crédito litigioso, podendo sustentar essa legitimação, tem porém, para esse efeito, de estar revestido de certa tipicidade, imbuído de um certo estatuto.

Na petição inicial em que peça a declaração de insolvência o credor deve, para lá do mais, expor os factos que integram os pressupostos da declaração requerida (artigo 23º, nº 1, do CIRE); em particular, deve justificar a origem, natureza e montante do seu crédito (artigo 25º, nº 1, do CIRE) e, bem assim, oferecer os meios de prova de que disponha (artigo 25º, nº 2). Ao devedor, em oposição, caberá sustentar a inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado (artigo 30º, nº 3, do CIRE); ademais, lhe cabendo o ónus de provar a sua solvência (artigo 30º, nº 4).
Ao que ao crédito do requerente concerne a lei fala em justificação; não em apuramento, demonstração ou em comprovação. E não é indiferente que assim seja. O requerente deve proceder à justificação do seu crédito, através da menção da origem, da natureza e do montante; acto que representa uma espécie de insinuação,[24] uma sugestão de realidade; que é constitutivo do direito de requerer a insolvência do devedor; e deve ser indiciado, induzido, em termos de mostra com tais características; isto é, que, sem atingir o comum patamar de prova, há-de poder superar a dúvida própria do simples vestígio. Esse, na nossa óptica, o sentido da justificação do crédito; que, para lá do mais, há-de então desempenhar a liminar tarefa da legitimação do seu titular, a que nos vimos referindo. Reparemos; está-se no âmbito da instância insolvencial; a justificação que se exige tem lugar no próprio processo de insolvência; e se o crédito for controvertido haverá de proceder-se a audiência de julgamento, e concernente produção de prova,[25] para a determinação daquela sua existência, se bem que nos apontados termos indiciários, em condições de simples sugestão; que, no que concretamente lhe diz respeito, é o que basta.

Mas, como dissemos, pode o devedor opor-lhe a inexistência do facto. Estaremos, então, no campo da contraprova, de que trata o artigo 346º do Código Civil;[26] esta, que pode ser mais ligeira ou mais aprofundada; fazer suscitar algumas reservas acerca do facto probando mas, apesar de tudo, ainda o suportar; ou fazer sustentar uma dúvida mais consistente que, com mais intensidade, o ponha verdadeiramente em causa. Ora, é na intensidade desta dúvida que poderá, ou não, comportar-se a justificação do facto creditório.
Escreve LUÍS MENEZES LEITÃO que, podendo o devedor opor-se com base na circunstância de o requerente não ser seu credor (por conseguinte na base da controvérsia do crédito alegado), e “uma vez que a legitimidade deve ser provada pelo requerente, parece que bastará ao devedor tornar duvidosa a existência do crédito para que o tribunal tenha que indeferir o requerimento da insolvência, sem prejuízo da possibilidade de o credor continuar a poder instaurar processo judicial para cobrança desse crédito”.[27]
Do nosso ponto de vista a mera justificabilidade aponta para uma comprovação não mais do que sumária. Exigindo maior intensidade na dúvida.
E então, no que ao crédito litigioso, controverso, concretamente diga respeito, para a ideia de que a discussão da sua existência só seja comportada no procedimento insolvencial em tais termos, simplesmente sumários, indiciários.

É afinal o que é compatível com os princípios de urgência e de celeridade que subjazem à natureza de tal processo. Esse cariz urgente é expressamente afirmado no artigo 9º, nº 1, do CIRE; e, ademais, é notório a partir do quadro de tramitação acelerada que é imprimido à sua fase (inicial) declaratória, com apenas dois articulados e apresentação da prova neles (artigos 25º, nº 2, e 30º, nº 1); bem como com a imediata audiência de discussão e julgamento, onde tem lugar (sendo caso) condensação, produção de prova e sentença (artigo 35º, nºs 5 a 8). E é essa premência que é paradigma da instância insolvencial.[28]
Ora, nesse enfoque e referindo-se a lei estritamente à justificação do crédito, não se vê que a concernente prova a produzir, neste particular, possa deixar de ser uma prova meramente sumária.[29]
            Como se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa de 2 de Novembro de 2010,[30] que o relator do presente subscreveu, então como 1º adjunto, a demonstração exaustiva do crédito (do requerente) com todas as garantias das partes, como aquelas que lhes atribui um processo declarativo comum, “não se compagina com os termos simplificados do processo especial de insolvência, o qual, no sentido de garantir a celeridade processual, se encontra reduzido a dois articulados e a prazos de oposição extremamente curtos”. Assim, ali se conclui, “e sem prejuízo de se entender que, em regra, nada obsta a que o credor litigioso discuta e possa demonstrar no processo de insolvência a existência do seu crédito”, bem pode acontecer que, atenta a profundidade e a consistência da controvérsia, a ampla e intensa litigiosidade, bem como as mencionadas limitações processuais, imponham que “tal demonstração [tenha] de ser efectuada pel[o] requerente mediante acção declarativa autónoma instaurada especialmente para o efeito”.
            A óptica do devedor há-de ser a de intensificar a incerteza.
            E assim, em súmula, se dirá; numa hipótese em que ao devedor (contra quem haja sido pedida insolvência) se permita argumentar com factos e (ou) com direito que, a procederem, se mostrem capazes de sustentar, com alicerce bastante, uma dúvida consistente acerca da existência do crédito do requerente; só superável mediante mais amplas e aprofundadas indagações e averiguações; que, nessa hipótese, estarão reunidas as condições para não poder ter por (meramente) justificado aquele crédito – dito de outro modo, para não poder ter por apurado com base em prova tão-somente indiciária, sumária, como é, neste particular, apanágio do processo de insolvência.
            Será então de ter por inverificada a legitimação creditícia prevenida no início do artigo 20º, nº 1, do CIRE;[31] e, por aí, julgar improcedente o pedido da insolvência (requerido por quem substancialmente não estava, afinal, habi-litado para a requerer [ou pelo menos o não conseguiu justificar]).
            Naturalmente, e sempre, salvaguardada a hipótese da acção declarativa autónoma; que se suscite, para discutir a existência do crédito. Mas aí já no quadro do procedimento comum, especialmente vocacionado a esse objecto; já fora do procedimento insolvencial, de virtualidades direccionadas noutro sentido.

            2.4. O caso concreto dos autos.
            Apresentado o quadro jurídico retornemos à hipótese dos autos.

            O apelante pediu a insolvência da apelada sustentado em um crédito que esta nega categoricamente. Aliás, essa controvérsia está processualmente retratada em acção declaratória autónoma que, no tribunal de comércio, a apelada interpôs, no dia 21 de Maio de 2010, além do mais, contra aquele, a pedir a declaração da nulidade dos contratos que sustentam o seu alegado crédito ou, subsidiariamente, a sua anulação; esta acção, que é referida na alínea pppp) da matéria assente,[32] está pendente e reveste natureza complexa, quer de facto, quer de direito, como é notório das notícias que, nestes autos, dela foram sendo dadas.[33]  Ademais, e para ilustrar a sua complexidade, foram juntos aos concernentes autos pareceres jurídicos sobre o assunto em questão – o da validade dos contratos geradores da (alegada) relação jurídica creditória –, elaborados com a profundidade devida, por eminentes professores de direito; um pela apelada com data de 22 de Março de 2010;[34] outro pelo apelante com data de 24 de Janeiro de 2011;[35] pareceres – como de alguma maneira seria expectável – de ópticas claramente divergentes a respeito das temáticas decidendas; e, sendo certo que naquele primeiro é peremptória a conclusão de que os contratos apreciados se mostram viciados de nulidade. Ainda a respeito da acção, ali suscitou o apelante, em 10 de Março de 2011, a intervenção principal provocada (ou, ao menos, a intervenção a título de assistência) da sociedade U…SA, prevenindo a hipótese da procedência da tese da invalidade dos contratos, e na base do entendimento de que, assim sendo, então será essa a sociedade devedora.[36] 
            O notório esforço processual despendido na instância da insolvência para atestar o crédito que habilitava a desencadear o processo, se já se manifestara com clareza da petição do apelante e da oposição da apelada,[37] é agora mais do que confirmado pelos indicados elementos complementares. É um esforço que verdadeiramente supera aquele outro dedicado a mostrar que existe uma real situação de insolvência, que a apelada estava, afinal, impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas (artigo 3º, nº 1, do CIRE).
Quando deveria ser este, do nosso ponto do vista, o central, a merecer a principal atenção das partes; como resulta dos interesses substanciais a que o processo está particularmente vocacionado – portanto, o esforço probatório do apelante, para atestar aquela causa de pedir; como, doutra sorte, o da apelada para provar a sua solvência (artigo 30º, nº 4, do CIRE).
            Que não é manifestamente o que ocorre nestes autos.
            Como antes dissemos, a justificação do crédito constitui (apenas) um factor de legitimação activa, substantiva; certamente constitutivo do direito de requerer a insolvência do devedor; mas que apenas carece – e apenas deve – ser justificado, sumariamente comprovado – precisamente, por ser requisito necessário ao desencadear a acção; mas apenas isso; e não mais do que isso; como é atributo dos primordiais objectivos de direito material prosseguidos pelo processo de insolvência.
Sendo aqui que radica a atenuação no escrutínio desse estatuto creditório; como dissemos, compatível com a legal, e mera, justificação e demais particularidades de urgência e celeridade do processo.
            O aspecto nuclear do processo de insolvência – temos de o acentuar –, e que corresponde ao interesse de direito material que é por ele adjectivado, consiste no apuramento do facto do qual decorre a impossibilidade de o devedor poder cumprir as suas obrigações vencidas; sendo certo que, por apelo à dificuldade prática nessa demonstração, o legislador haja optado por eleger e enunciar um conjunto de determinadas circunstâncias ou situações que, vistas à luz da experiência, o permitem fazer vislumbrar – foi o que fez nas diversas alíneas que elencou no artigo 20º, nº 1, do CIRE; aí constando os comummente chamados factos-índice ou factos presuntivos da insolvência, cuja demonstração importa um juízo positivo sobre a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações já exigíveis; quer dizer, sobre a verificação do apontado estado insolvencial.
            Se algum maior aprofundamento pode conhecer o processo será este o campo de eleição. No mais, importa manter a recordação que a insolvência não é um mecanismo de cobrança privada de dívidas; de estrito reconhecimento e efectivação do crédito do requerente – o que este há-de pretender, e apenas isso, é a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência e, em consequência, desencadeie o funcionamento dos mecanismos jurídicos adequados às necessidades especiais de tutela criadas por aquela situação. O que significa que ao agir o credor particular desempenha (tal) a tarefa social, comunitária (a que antes nos referimos), procedendo na prossecução do interesse comum dos credores.
            A sua legitimação para essa tarefa não supera a justificação indiciária.

            Cremos ser este o extracto fundamental para o julgamento do vertente recurso. A óptica que o apelante propugna, de ampla discussão do seu crédito no processo da insolvência, teria até o risco de envolver a sobreposição com a discussão que, na acção declarativa autónoma pendente, prossegue sobre a mesma questão; ou, até, no final, conduzir a uma eventual divergência de julgados (condicionados – quem sabe – por uma diferente dinâmica processual em ambas as instâncias judiciais).

Seja como for; certo nos parece que nem o demais argumentário do apelante é passível de persuadir a uma outra ou distinta óptica.
            Vejamos. O crédito que se discute não resulta “de forma clara” dos contratos em que o apelante o alicerça; pela simples razão de que estes contra-tos, sua fonte, são objecto de uma complexa controvérsia, de facto e jurídica, que só é comportável, numa decisão de fundo verdadeiramente conscienciosa e recta, com um processo judicial (autónomo) especialmente vocacionado a se debruçar sobre eles. Mais; não é a circunstância de o devedor, contra quem se peça a insolvência, vir “inundar o tribunal de documentos e requerimentos, complicando o processo” que obstaculizam à justificação do crédito do requerente no concernente processo, mas a seriedade e a lealdade processual que devem estar subjacentes a esse comportamento. Note-se, no caso dos autos, que a complexidade da situação (que é objectiva) era já indiciada e emergia da própria petição, como houve oportunidade de referir; não sendo portanto qualquer postura (processualmente) desajustada da apelada a contribuir para a “complicação do processo”.
Também; não é a previsão de “medidas cautelares” no processo de insolvência que constitui índice de que a prova do crédito há-de ser concreta e exacta, não estritamente sumária.
            Convém não confundir; o artigo 31º do CIRE, que prevê tais medidas, tem um alcance próprio, visa um fim, que é o de, em termos provisórios e preventivos, impedir o agravamento da situação patrimonial do devedor; e é típico dessa sua virtualidade que se indiciem os requisitos próprios que fundamentem uma decretação de insolvência; mas algo mais, consistente num justificado receio que impele à tomada da medida.[38]  Não se vê de que modo este tipo de procedimento urgentíssimo se contraponha às exigências sumárias da justificação do crédito do requerente; dir-se-ia, ao invés, que por se estar em face de medidas provisórias, mas que podem reflectir-se gravosamente na esfera do devedor, se impõe até mais alguma contenção e cautela, na respectiva abordagem; e nunca dispensando a indiciação do crédito daquele que, porventura, as requeira.
            Não há também preterição do decidido no acórdão de 17 de Fevereiro de 2011. Vejamos; o apelante, na petição, pedira a adopção de medidas cautelares urgentes;[39] opusera-se a apelada;[40] e o tribunal indeferira a pretensão (fls. 976 a 977). Há (apenas) notícia de recurso (fls. 984/1016, 1028/1043, 1575, 1485,[41] 1492, 1494 e 1511); de que, já em sede de alegação no vertente, o apelante junta como documento (doc fls. 2254 a 2269) o referenciado acórdão – sendo essa (aliás) a única fonte do seu conhecimento nos autos.
Ainda assim; o que ali se reconheceu foi a existência de uma “complexíssima situação económico-financeira” e a impossibilidade, nesse contexto, do decretamento das medidas em vista, tanto mais havendo “acção declarativa a correr termos”; e não se mostra que em tal reconhecimento esteja latente a exigência de uma decisão positiva no processo (principal) da insolvência, decretando-a como quer o apelante. Aliás, a própria decisão, aqui apelada, não deixou de conhecer de mérito, julgando a insolvência improcedente – o que, ainda que aqueloutro recurso tivesse tido viabilidade, importaria a extinção das medidas cautelares então decretadas; já que, como é sabido, o nexo de instrumentalidade une estas à própria insolvência; e não a inversa.
            O apelante não tem razão quando pretende encontrar semelhanças nas garantias concedidas às partes, em qualquer acção declarativa comum com aque-las típicas do processo de insolvência. Essa semelhança não existe, desde logo por o requerente da insolvência não prosseguir (primordialmente) um interesse substantivo próprio, como acontece em acção comum; a materialidade subjacente adjectivada nesta, não é assimilável à que é adjectivada naquela; e isso com os naturais reflexos ao nível das faculdades e das garantias das partes, numa e noutra. A justificação do crédito na insolvência não se assimila à sua comprovação em acção declarativa; e se, no caso concreto dos autos, houve aprofundamento e desenvolvimento exaustivo do assunto, à semelhança do processo comum, tal só pode significar que, porventura, assim não devesse ter sido; por não ser essa exaustividade comportada pela índole urgente, célere e sumária da instância insolvencial. Atrevemo-nos a dizer que, a dado passo, talvez fossem até notados indícios que aconselhassem a que provavelmente, ao menos, alguns dos procedimentos suscitados nos autos pelas partes, pudessem ter sido logo rejeitados pelo tribunal, na medida em que ultrapassavam já aquela estrita índole, suportada pelo processo de insolvência.[42]
            Sobre o incidente de intervenção da U… SA, nos autos declarativos autónomos, pendentes no tribunal de comércio, já nos pudemos pronunciar. Acrescentaremos apenas isto; sem significar, só por si, a admissão ou con-fissão do apelante de que quem lhe deve é outra sociedade diferente da apelada, é certo que não deixa de constituir uma admissão – mais ou menos remota – de que assim possa ser; ou seja, constitui um indício – entre outros – que contribui para atenuar a justificabilidade do crédito. Nem mais, nem menos, do que isso. E é com esse alcance (apenas esse) que deve ser observado.
            O apelante mostra perplexidade pela exigência de prova meramente sumária quando, estando-se na fase declarativa do processo e sendo aplicável o Código de Processo Civil, neste nada indicia aquela exigência; que aliás está em detrimento da segurança jurídica e da estabilidade e adequação das decisões judiciais. Retomamos aqui o argumento da não sobreposição, confundibilidade, identificação, da insolvência com o processo comum; este vocacionado à tutela privada; aquele a uma tutela pública, de que a (inicial) intervenção privatística é um mero instrumento de eclosão. Compreende-se, por isso, a necessidade de justificar esta (inicial) intervenção; para que é vocacionada a (tal) prova sumária.
            O apelante diz que o tribunal o impediu de “exercer o direito à conservação da sua garantia patrimonial”; nesse sentido, que lhe quebrou a expectativa de uma decisão de mérito; e lhe negou o acesso ao direito e aos tribunais; preterindo os artigos 2º, 13º, 20º, nºs 1, 2 e 5, e 203º, da Constituição da República. Vejamos. O requerente da insolvência não exerce o direito à conservação da sua garantia patrimonial – já o afirmámos e repetimos. A acção de insolvência não é uma acção de cumprimento (artigo 817º do Código Civil) Naturalmente que por trás do poder de iniciativa do credor há-de radicar alguma expectativa de realização do seu crédito; mas tal apenas acessoriamente; a real tutela requerida em juízo passa pela abertura do processo de insolvência, a que preside outro tipo de vocação e interesse, particularmente de tutela pública, do grupo de credores.[43] 
            Por outro lado, o tribunal “a quo” – também já o dissemos – não se demitiu de conhecer do mérito; conheceu-o; julgou o pedido da insolvência da apelada improcedente – não pode portanto o apelante dizer que se lhe frustrou uma decisão substancial sobre a acção; esta existiu. Acontece é ter sido contrário à por ele pretendida.
Realmente, o que parece que o apelante quer dizer é que, expectável que era o início de produção de prova, para a qual haviam sido feitos os agendamentos, se sentiu algo defraudado com aquela (interlocutória) decisão, que tornou as provas prejudicadas; e daí as preterições normativas da Constituição.
Vejamos então. Numa óptica de estrita gestão da marcha de processo percebe-se o argumentário do apelante; não será vulgar que, no decurso já da audiência de discussão, tudo apontando para ir iniciar a produção das provas, venha a ser produzida sentença final, a julgar a causa, e abandonando a necessidade das provas.
Mas representará, a interpretação das normas que sustenta esse procedimento, alguma preterição constitucional? Tanto mais sendo fundamento da sentença, assim assumida, o alcance probatório de mera sumariedade, que se entende ultrapassado?
O significado que a “reviravolta processual tida lugar” – como o próprio apelante a designa – possa ter, não passa, na nossa óptica, por postergação de algum comando constitucional. A sumariedade da prova, típica da justificação do crédito do requerente da insolvência, já antes evidenciámos; primordialmente atenta a natureza do processo, da intervenção (privada) inicial do credor, e dos objectivos nela em vista, e a própria materialidade subjacente que primacialmente é adjectivada pelo processo insolvencial. A mera justificação do crédito está racionalmente fundada e é razoavelmente explicável.
            O artigo 2º da Constituição reporta-se, ademais, ao respeito e à garantia de efectivação dos direitos dos cidadãos; o artigo 13º propugna o princípio da igualdade de todos perante a lei; o artigo 20º assegura aos cidadãos o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, a todos sem excepção (nº 1), que concretiza em procedimentos judiciais adequados (nº 5); por fim, o artigo 203º impõe a sujeição dos tribunais ao que emerge das normas legais.
            O tribunal “a quo” interpretou os requisitos procedimentais no processo de insolvência em consonância com a natureza e os fins nele visados; o acesso à tutela jurisdicional não foi postergado, apenas se deve realizar nas condições que a lei define e, na hipótese, particularmente, exigindo-se ao credor que faça atestar o seu crédito em sede própria, aliás já pendente, que é a acção declarativa autónoma instaurada (poderá então, se for caso, suscitar uma viável insolvência); é a própria lei, no artigo 25º, nº 1, do CIRE, que manda, não comprovar, mas apenas justificar o crédito, no processo de insolvência; trata-se de uma interpretação que não foi tomada, na hipótese, em discriminação do apelante; e nem a pouca vulgaridade do momento em que a sentença final foi produzida se mostra capaz de fazer vislumbrar a postergação relevante de algum interesse que merecesse protecção na lei fundamental, já que aquela decidiu de mérito, sustentando em razões objectivas a decisão final, e terminando por julgar a improcedência da causa. Donde, nem mesmo o direito a uma decisão foi desrespeitado; essa existiu e, por via do seu conteúdo, o que aconteceu foi que a prova que se produzisse lhe seria (sempre) indiferente; e daí a sua dispensa sustentada no artigo 137º do CPC.
            As normas da Constituição da República estão salvaguardadas.
            Por fim o argumentário acerca da situação do estado de insolvência da apelada; vindo o apelante, em sede de alegação, querer mostrar que, pelo menos em função do seu crédito insatisfeito, ocorre o facto-índice da alínea b) do artigo 20º, nº 1, do CIRE. Diríamos a este propósito que a legitimação do credor, para viabilizar o processo, sempre exige (além do mais) a verificação de um dos factos narrados como facto-índice ou indiciário na lei; isto é, para lá de justificar o seu crédito deve, agora, e ainda, alegar e provar os factos concretos capazes de integrar alguma dessas situações presuntivas da insolvência; e, no que ao facto da alínea b) concerne, caber-lhe-á em particular, juntamente com a alegação de incumprimento, trazer ao processo circunstâncias das quais, uma vez demonstradas, seja razoável deduzir a penúria generalizada do devedor. Ora, a hipótese dos autos não comporta (ainda) essa demonstração; a base instrutória organizada, em muito, por função desta, e em quase centena e meia de quesitos, não foi objecto de julgamento; ficou precludida a concernente produção de prova; que não houve. Não é então possível integrar a norma que estabelece a necessidade de o devedor estar impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (artigo 3º, nº 1, do CIRE); nem pela positiva; nem pela negativa. Aliás, esclarecedor a este propósito o expresso requerimento da apelada que, a coberto do artigo 30º, nº 2, do CIRE, fez juntar aos autos, ostensivamente afirmando não ter nenhum outro credor para além do Banco … SA, pelo crédito de 140.609.583,00 € (doc fls. 677); e ademais disso a certificação que fez questão de realizar de que, seja às finanças, seja à segurança social, nada deve (docs fls. 1578 e 1579), porventura em sentido comprovativo da sua (afirmada) solvência (artigo 30º, nº 4, do CIRE).
            A pronúncia do tribunal, neste particular, sempre seria extemporânea.

            Uma derradeira palavra sobre o momento processual de proferimento da sentença. O CIRE não autonomiza, com expressividade, uma fase de saneamento na acção; e percebe-se porquê. Para lá da sua natureza urgente, não é claro que se esteja num comum processo “de partes” E se a sua fase inicial (declarativa) apresenta algumas semelhanças com o processo comum; certo é que há também dissenções no particular condicionadas pela sua específica vocação.
            Ainda assim; prevê o CIRE que, numa fase liminar, o pedido seja indeferido, se for manifestamente improcedente ou se notarem, com clareza, obstáculos processuais insuperáveis (artigo 27º, nº 1, alínea a)).
Mas que acontece se, por exemplo, tais obstáculos ultrapassam esta fase liminar e, só adiante, vêm a ser notados? Não merece dúvida que se apliquem, neste campo, as ajustadas regras processuais civis;[44] e nestas encontramos disposição que estabelece que se não consideram precludidas as questões que podiam ter sido motivo de indeferimento liminar (artigo 234º, nº 5, final, do CPC). O significado é o de que, em outra fase, subsequente, o processo pode findar porque, por exemplo, é óbvia a improcedência do pedido.
Mas que fazer se, embora sem a evidência própria da rejeição liminar, todavia, houver motivos para, logo depois da oposição, poder decidir essa inviabilidade (ou, numa óptica mais abrangente, conhecer do mérito), reunindo o processo elementos para tal, à semelhança do que, em processo comum, acontece a coberto do artigo 510º, nº 1, alínea b), e nº 3, final, do CPC? A lei não responde com expressividade; se bem que encontremos indícios de resposta quando, por exemplo, se permite o conhecimento do mérito na situação em que, tendo dedu-zido oposição, devedor venha a faltar à audiência (artigo 35º, nº 2, e nº 4, iní-  cio, do CIRE). Como também a melhor doutrina também parece admitir que, no momento próprio, o juiz proceda ao saneamento do processo.[45] 
E é essa, de facto, a solução mais razoável; a única, aliás, compatível com os comuns princípios do processo (até insolvencial).
Vejamos porquê. A lei não concede (expressamente) ao processo de insolvência o despacho saneador tal como, para o processo comum, se encontra definido no artigo 510º do CPC. Todavia, na sua fase inicial, aquele processo tem as características privatísticas, que antes lhe apontámos; desenvolvendo-se em litígio restrito ao requerente e devedor, e a desenrolar-se em termos similares aos do processo declarativo comum. Ora, nada obsta a que, apresentada a oposição, chegando o juiz à conclusão de que o processo contém, desde logo, e sem necessidade de mais provas, de todos os elementos necessários a conhecer de alguma excepção peremptória, ou do próprio pedido de declaração de insolvên-cia, o não faça. Cremos até que se lhe impõe mesmo fazê-lo, em obediência às eleitas urgência e celeridade, que melhor serão satisfeitas através da imediata decisão se o processo a comportar; e evitando a prática de (outros) actos inúteis, que a lei proíbe. Assim, nada obsta a que – e embora no processo de insolvência não se encontre previsto, como regra, a existência do denominado “despacho saneador”, por questões de celeridade processual – se conheça do pedido de declaração de insolvência, findos os articulados, desde que o processo contenha todos os elementos, sem necessidade de mais provas, para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.[46]

            A hipótese dos autos é porém ainda mais específica; deixou-se ultra-passar o momento imediatamente seguinte ao da oposição da apelada; aí se proferiu aliás despacho saneador tabelar, à semelhança da acção comum (fls. 1583); e condensou-se o processo. E, foi só após, quando já agendadas estavam audiências de discussão, destinadas a produção de prova, antes de dar início a esta, que se proferiu a sentença final (fls. 2148 a 2158).
            Sem embargo do reconhecimento de um momento normal para o pro-ferimento da sentença,[47] e daquele outro, quando seja caso, subsidiariamente adquirido do processo civil,[48] não vemos obstáculo decisivo à admissibilidade desse proferimento numa outra qualquer ocasião da instância, na medida em que as condições, de facto e de direito, o comportem ajustadamente, permitindo satisfazer os interesses de direito material subjacentes, e de que o processo é sempre um (mero) instrumento.
O processo de insolvência permite a sentença, tipicamente, em vários momentos; ela pode proferir-se em despacho liminar, se for caso de declaração insolvencial imediata (artigo 28º); pode ser proferida na sequência de confissão ficta, por falta de oposição de devedor (artigo 30º, nº 5); e pode ser proferida, como vimos, na sequência da falta de comparência à audiência de discussão.[49] 
Pois bem; estas disposições não comportam uma tipicidade fechada; nem há razões que o justifiquem. Se nalguma outra ocasião estiverem reunidas as condições que, semelhante às dalgum daqueles típicos momentos, sejam aptas a permitir o proferimento da sentença (de mérito), parece-nos que se impõe ou, ao menos, se admite, que se proceda a um tal proferimento. São pois razões de adequação dos instrumentos processuais aos valores substantivos o principal critério a prosseguir nesta matéria.
Ora, vimos repetindo a matriz urgente, a garantia da celeridade processual, que o Código da Insolvência reitera em imprimir à instância; dessa forma, reunidas aquelas condições, e como óbice à prática de actos inúteis ou, pelo menos, indiferentes à sorte da causa, na medida em que reunidos todos os pressupostos idóneos a sustentar a decisão (final) conscienciosa da acção, não pode merecer acolhimento a tese da inadequação de uma sentença final concernente, apenas pela estrita razão de forma, de se não comportar num daqueles momentos que tipicamente, por mais comuns, a lei elege.

            E foi o que aconteceu nos autos. Sem embargo de não ser vulgar proferir sentença dentro das condicionantes em que se o fez, atendendo a que a prova que se produzisse não era idónea a poder-se reflectir eficazmente na sorte da causa (era incomportável a prova sumária própria da justificação do crédito do apelante, como condição da sua legitimação – objecto aliás já em discussão num outro processo [comum] declaratório autónomo), bem se andou (ou ao menos sem merecimento de censura) em evitar o prosseguimento do processo da insolvência – não destinado ao exercício creditório do requerente, mas vocacionado (apenas) ao desencadear da execução universal apontada no artigo 1º do CIRE.

            Dir-se-ia que a falha – se alguma houve – terá ocorrido a montante. Isto é, já quando – bem ou mal – se saneou o processo havia nítidos indícios da controvérsia profunda a propósito do crédito que o apelante invocara para sustentar o pedido de insolvência; e, face nítida desse indício, era a acção declarativa autónoma pendente no 2º juízo do tribunal de comércio (proc.º 666/10.3TYLSB) onde o objecto decidendo era (e é) aquele, precisamente.
Talvez, logo aí, tivesse sido o momento certo de sentenciar; sem deixar prosseguir noutros termos.  

            Em suma, e na conclusão do essencial; o pedido de insolvência da apelada não tem, de facto, viabilidade; e isso não tanto pelo facto de o crédito do apelante ser litigioso, mas de se indiciar que esse litígio se funda numa complexa controvérsia de cariz económico-financeira, de contornos profundamente especializados, portanto não comportáveis com uma mera justificação como base legitimadora de um pedido de insolvência (com todo o alcance a este inerente).
            E, neste momento, na actualidade, a situação é exactamente essa. A apelada não reconhece o apelante como seu credor; o que, desde logo, é razão para lhe não pagar. A demonstração do crédito não pode deixar de ser feita mediante acção declarativa autónoma, vocacionada especialmente a esse efeito.

            Inviável o pedido de insolvência; improcede também a apelação.

            3. As custas da apelação são da responsabilidade do apelante, que de-caiu (artigo 446º, nº 1 e nº 2, do CPC); sendo a taxa de justiça fixada nos termos da tabela I-B, anexa ao Regulamento das Custas Processuais (artigos 6º, nº 2 e 7º, nº 2, deste Regulamento).

            4. Síntese conclusiva.
            É a seguinte a síntese conclusiva que pode ser feita, a propósito do que fica de essencial quanto ao mérito do presente recurso:

            I – O processo de insolvência, desencadeado por um credor, só tem condição de viabilidade se este vier a justificar o seu crédito, mediante a factua-lização da sua origem, natureza e montante (artigos 20º, nº 1, início, e 25º, nº 1, do CIRE);
            II – A justificação, assim exigida, constitui factor de legitimação substantiva, que habilita o requerente a, no prosseguimento do interesse da comu-nidade dos credores, assumir a iniciativa de suscitar o procedimento insolvencial;
            III – Não constitui obstáculo a essa legitimação a circunstância de o crédito invocado assumir natureza litigiosa (porque, por exemplo, o devedor se lhe opõe, negando a sua existência); hipótese em que, por regra, deve ser aberta ao requerente a possibilidade de, no próprio processo de insolvência, poder apresentar prova acerca factos por si alegados;
            IV – Mas se a controvérsia a respeito da existência do crédito for tal que, objectivamente, permita antever que só mediante uma aprofundada indaga-ção, quer de facto, quer de direito, o assunto pode ser esclarecido; indagação só compatível com as garantias próprias de um processo declarativo comum autó-nomo; e que supera natureza da (mera) justificação (sumária), própria do proces-so de insolvência; deve então concluir-se que o requerente não preenche a neces-sária condição de legitimação que o habilita a requerer a concernente declaração;
            V – Embora a lei não autonomize, na tramitação do processo de insol-vência, um momento autónomo de saneamento, se, na sua fase declaratória (inicial), após a oposição do devedor, for reconhecível que o processo já reúne as condições para o proferimento de uma conscienciosa decisão de mérito, sem necessidade de outra prova, deve o tribunal proferir essa decisão, com o valor de sentença (artigos 17º do CIRE e 510º, nº 1, alínea b), e nº 3, final, do CPC); dado que só essa solução se compatibiliza com o carácter urgente é célere do processo (artigo 9º, nº 1, do CIRE) e, por outro lado, permite obviar a actos processuais supérfluos (artigo 137º do CPC).

           
III – Decisão

            Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e em confirmar a sentença recorrida.
            Custas a cargo do apelante.

Lisboa, 22 de Novembro de 2011

Luís Filipe Brites Lameiras
Jorge Manuel Roque Nogueira
José David Pimentel Marcos
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[1] O articulado da petição é constituído por 175 artigos; e destes 93 destinados a sustentar a posição credora do requerente.
[2] O articulado da oposição é constituído por 317 artigos; e destes 268 destinados a atestar a inexistência do crédito do requerente.
[3] Fê-lo em articulado constituído por 494 artigos.
[4] No volume 5º dos autos, a partir da acta da audiência de 3 de Dezembro de 2010 (fls. 1582 a 1624) ve-rifica-se um erro de numeração das páginas; assim, sequentemente às folhas 1625 e 1626 numeram-se as folhas 1427, 1428 e assim por diante. Pese embora o lapso, seguiremos a numeração aposta nos autos.
[5] A última redacção do artigo 668º do Código de Processo Civil foi dada pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro; que, todavia, manteve a da alínea d), do nº 1, tal como provinha já do Decreto-Lei nº 30/2007, de 24 de Agosto. O preceito é aplicável ao processo de insolvência por via da genérica remissão contida no artigo 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[6] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Janeiro de 2002 e da Relação de Lisboa de 26 de Fevereiro de 2002 in Colectânea de Jurisprudência (STJ) X-1-37 e XXVII-1-125.
[7] A redacção normativa é a emergente do Decreto-Lei nº 200/2004, de 18 de Agosto.
[8] Dir-se-á tratarem-se aí de verdadeiros pressupostos de prossecução da acção, sem o qual, ou sem os quais, o pedido não é viável (Pedro Pidwell, “O processo de insolvência e a recuperação da sociedade comercial de responsabilidade limitada”, 2011, página 107).
[9] No sentido de que o assunto não é de legitimidade processual, mas de legitimidade de direito substantivo, pronunciaram-se os Acórdãos da Relação de Lisboa de 5 de Junho de 2008, proc.º nº 2526/2008-7, e de 25 de Junho de 2009, proc.º nº 984/08.0TBRMR.L1-8, e da Relação do Porto de 5 de Março de 2009, proc.º nº 565/08.9TYVBNG, e de 17 de Julho de 2009, proc.º nº 6107/08.9TBVFR.P1, todos no sítio www.dgsi.pt.
[10] Assim, Isabel Alexandre, “O processo de insolvência: pressupostos processuais, tramitação, medidas cautelares e impugnação da sentença” in Themis, 2005, edição especial (“novo direito da insolvência”), páginas 52 a 53. Sobre o assunto, com desenvolvimento, Catarina Serra, “A falência no quadro da tutela jurisdicional dos direitos de crédito”, páginas 420 e seguintes.
[11] Pedro de Albuquerque, “Declaração da situação de insolvência” in “O Direito”, ano 137º (2005), III, página 508.
[12] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da insolvência e da recuperação de empresas anotado”, 2009, página 58.
[13] Isabel Alexandre, texto citado, página 57.
[14] A este respeito, afirmando que o actual código como que reprivatizou a fase inicial do processo de insolvência, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, página 184.
[15] Pedro de Sousa Macedo falava em função social (por contraposição a uma pura função individual de satisfação apenas dos próprios interesses) que era exercida pelo credor e, por outro lado, no aspecto publicístico do acto de requerer a instância falimentar (“Manual de direito das falências”, volume I, 1964, páginas 389 e 390).
[16] O requerente, na petição, terá de alegar factos de onde resulte a sua qualidade de credor; ele tem de afirmar – e demonstrar mediante factos – que, na sua esfera de direitos, conhece a faculdade de obter do devedor a realização de certa prestação debitória; vejam-se os Acórdãos da Relação do Porto de 28 de Abril de 2009, proc.º nº 294/09.6TBLSD.P1, e da Relação de Lisboa de 19 de Janeiro de 2010, proc.º nº 952/04.1TYLSB.L1-1, ambos no sítio www.dgsi.pt.
[17] Pedro de Sousa Macedo, obra citada, página 384; e Catarina Serra, “A falência …”, citada, página 254.
[18] Maria do Rosário Epifânio, “Manual de direito da insolvência”, 2ª edição, página 36, nota 73. Na juris-prudência, vejam-se os Acórdãos da Relação do Porto de 16 de Dezembro de 2009, proc.º nº 242/09.3TYVNG.P1, da Relação de Lisboa de 16 de Março de 2010, proc.º nº 1742/09.0TBBNV.L1-1, e da Relação de Coimbra de 2 de Março de 2011, proc.º nº 335/10.4TBPCV.C1, todos no sítio www.dgsi.pt.
[19] “A falência …”, citada, páginas 263 e 264.
[20] “Direito da insolvência”, 3ª edição, página 136. Veja-se igualmente Luís Martins, “Processo de insol-vência”, 2ª edição, páginas 116 e 118.
[21] O assunto da legitimação do credor, cujo crédito se repute litigioso, para requerer a insolvência não é pacífico na jurisprudência; em sentido negativo, exigindo o reconhecimento judicial ou, ao menos, a aceitação do devedor na insolvência, decidiram os Acórdãos da Relação de Lisboa de 5 de Junho de 2008, já citado a outro pretexto, e da Relação de Coimbra de 3 de Dezembro de 2009, proc.º nº 3601/08.5TJCBR.C1; em sentido positivo, como também propugnamos, pronunciaram-se os Acórdãos da Relação de Coimbra de 26 de Maio de 2009, proc.º nº 602/09.0TJCBR.C1, e da Relação do Porto de 29 de Setembro de 2011, proc.º nº 338/11.1TYVNG.P1, todos no sítio www.dgsi.pt.
[22] Obra citada, volume I, página 386. O regime jurídico então em vigor continha-se, ao que importa, no artigo 1176º, nº 1, alínea a), que legitimava qualquer credor … seja qual for a natureza do crédito a provocar a declaração de falência e, além disso, no artigo 1177º, nº 1, enquanto cominava ao credor que assim pretendesse a justificação da existência do seu crédito. Este regime foi revogado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril (artigo 9º), diploma que aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (artigo 1º).
[23] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, página 171; e Maria do Rosário Epifânio, obra citada, página 44.
[24] Catarina Serra, “A falência …”, citado, página 264.
[25] O credor que solicite a insolvência terá, nessa hipótese, de produzir a prova necessária relativamente à sua condição de interessado na declaração (Luís Menezes Leitão, obra citada, página 139).
[26] Ao devedor cabe o ónus da prova mas (apenas) da sua solvência (artigo 30º, nº 4, do CIRE).
[27] Obra citada, páginas 151 a 152.
[28] A este respeito e, em particular sobre as medidas dirigidas à celeridade do processo, veja-se Luís Carvalho Fernandes, “O código da insolvência e da recuperação de empresas na evolução do regime da falência no direito português” in “Colectânea de estudos sobre a insolvência”, 2009, páginas 79 a 81.
[29] No sentido de que o actual código não alterou significativamente a exigência do anterior artigo 17º do CPEREF que impunha ao credor que fundamentasse sumariamente a providência requerida, opinam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código …”, citado, página 156.
[30] O acórdão foi proferido no proc.º nº 1498/09.7TYLSB.L1-7, e está disponível no sítio www.dgsi.pt.
[31] E mesmo sem necessidade, nessa hipótese, de fazer apelo a algum dos factos presuntivos da insolvência que a disposição enumera; estes, cujo principal objectivo será o de permitir o desencadeamento do processo, mas supondo naturalmente, no que ao credor diga respeito, a sua prévia legitimação como tal.
[32] A petição inicial, constituída de 232 artigos, constitui os docs fls. 516 a 569 e fls. 903 a 955.
[33] Tais notícias constam, além do mais, da informação de fls. 981 (relativa à sua pendência) e do doc fls. 1451 a 1469 (o articulado de réplica).
[34] Este parecer, elaborado pelo professor Pedro Pais de Vasconcelos constitui o doc fls. 408 a 447.
[35] Este parecer, elaborado pelo professor Pedro Maia constitui o doc fls. 1781 a 1891.
[36] O articulado desse incidente de intervenção de terceiros constitui o doc fls. 2074 a 2085.
[37] Grande parte do empenho do apelante, na petição, se concentrou no convencimento do seu efectivo crédito, a que dedicou 93 dos 175 artigos que compunham aquela. A isso respondeu a apelada organizando 268 do total dos 317 artigos da oposição para convencer da inexistência do crédito.
[38] Sobre o assunto, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, páginas 173 a 174.
[39] Os fundamentos constam dos artigos 167º a 173º (fls. 39 a 40) e o pedido, a final, elencado sob a alínea d) (fls. 42)
[40] Artigos 311º a 313º da oposição (fls. 303).
[41] É o volume V dos autos onde, como antes notado, foi cometido erro na numeração das páginas.
[42] A coberto do preceito geral do artigo 265º, nº 1, final do Código de Processo Civil; norma aí interpretada à luz da natureza própria do processo (especial) de insolvência.
[43] Catarina Serra, “A falência …”, citada, página 266.
[44] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, página 161.
[45] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, página 187.
[46] Foi este também o entendimento que, como 1º adjunto, o relator do presente acórdão, subscreveu no Acórdão de 2 de Novembro de 2010, antes citado.
[47] E que corresponde ao momento subsequente à decisão da matéria de facto, ainda na própria audiência de discussão e julgamento, ou no prazo de 5 dias após o seu encerramento (artigo 35º, nº 8, do CIRE).
[48] O saneador-sentença a que antes nos referimos.
[49] Sobre o assunto veja-se Isabel Alexandre, texto citado, página 67.