Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6183/13.2TBOER.L1-1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: MEDICAMENTOS
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Compete aos tribunais administrativos apreciar e julgar ações onde se discutem questões atinentes ao cumprimento de contrato de fornecimento de medicamentos, celebrado entre uma sociedade de direito privado e uma sociedade gestora de serviços de saúde (Hospital Amadora Sintra - Sociedade Gestora, S.A.) que age ao abrigo e em execução de um contrato administrativo de gestão (parceria público privada).
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


O. Produtos Farmacêuticos, Ld.ª, em 27/09/2013, intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, que corre termos no Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Cascais, Instância Central, 2.ª Secção Cível, contra:

- Hospital Amadora Sintra – Sociedade Gestora, S.A. (1.ª ré);
- J. de M. Saúde, SGPS, S.A. (2.ª ré);
- Estado Português (3.º réu),

formulando os seguintes pedidos:

a)Declaração dos réus devedoras da autora das quantias referentes a todas e cada uma das faturas objeto da ação, e constantes dos documentos n.ºs 9 e 10, num total de €270.156,77, e devedoras de juros legais comerciais vencidos, às taxas legais em vigor, desde a data de vencimento de cada uma das faturas que, à data de 26/09/2013, e computados no doc. n.º 11, ascendem à quantia de €101.979,10.
b)Condenação dos réus a pagarem solidariamente à autora a quantia total em dívida à data de 26/09/2013, no valor de €270.156,77, acrescida de juros vencidos a esta data, no montante de €101.979,10, num total de 372.135,87.
c)Condenação das rés no pagamento de juros comerciais legais vincendos, calculados sobre aquela quantia líquida de €270.156,77, desde 27/09/2013 e até à data do seu efetivo pagamento.

Para fundamentar a responsabilidade dos réus, alegou, em suma:

A 1.ª ré, sociedade de direito privado, tem como objeto social a gestão integral do Hospital Professor Doutor ..  …. (HFF).
A 1.ª ré, desde 10/10/95 até 31/12/2008, através de um contrato de gestão, vulgo parceira público-privada (PPP), que celebrou com a ARSLVT- Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (Estado), obrigou-se a garantir o acesso a cuidados de saúde prestado pelo HFF a todos os utentes do SNS.
No âmbito da sua atividade comercial de distribuição e comercialização de produtos farmacêuticos, forneceu à 1.ª ré, entre julho de 2008 a dezembro de 2008, diversos medicamentos que a ré não pagou.

A 2.ª ré, sociedade gestora de participações sociais, é responsável solidária pelo pagamento da quantia em dívida por desconsideração da personalidade coletiva, assumindo perante os credores o cumprimento das obrigações da 1.ª ré, sociedade dominada, já que detém o poder de decisão e administração da mesma.

O Estado Português, 3.º réu, é solidariamente responsável ao abrigo dos artigos 500.º e 501.º do Código Civil, por ter celebrado o referido contrato de gestão com a 1.ª ré e por a aquisição e administração de medicamentos à população ter sido feita no interesse e por conta do Estado.

Contestou o ré Estado Português arguindo, para além do mais, a exceção de incompetência absoluta dos tribunais judiciais para julgar a ação, por serem competentes para o efeito os tribunais administrativos, por aplicação do artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, já que na alegação da autora estão em causa prejuízos resultantes da sua atividade contratual administrativa desenvolvida para e no interesse público.

Excecionaram, igualmente, as rés a competência material dos tribunais judiciais para conhecerem da ação, por serem competentes os tribunais administrativos, ao abrigo do artigo 4.º, n.º 1, alínea e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, uma vez que são da competência destes tribunais conhecer dos litígios emergentes de contratos de aquisição de bens e serviços celebrados pela 1.ª ré no âmbito do contrato de gestão do Hospital Dr. .... .....
O alegado fornecimento de medicamentos encontra-se, assim, sujeito a um regime pré-contratual de direito público, cuja interpretação e aplicação se encontra na órbita dos tribunais administrativos.

A autora respondeu defendendo a não aplicação ao caso das alíneas e) e f) do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, por a atribuição de competência material assentar na natureza jurídico-privada da relação material controvertida e não na natureza dos respetivos titulares.

Em 18/11/2014, foi proferido despacho que apreciou a exceção da incompetência material dos tribunais comuns para a tramitação da ação (cfr. fls. 2032 a 2041), concluindo nos seguintes termos:

“(…) julga-se procedente a excepção dilatória de incompetência material, declarando-se incompetente para a tramitação e julgamento da presente acção os tribunais comuns (designadamente esta 2ª secção da instância central cível do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste) e competentes os tribunais administrativos, e, em consequência, absolvem-se os RR. da instância.”

Inconformada, apelou a autora O. apresentando as conclusões de recurso infra transcritas.
Respondeu a 2.ª ré defendendo a improcedência do recurso e a manutenção do despacho recorrido.
O recurso foi admitido conforme despacho de fls. 2209, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Conclusões da apelação:

A.A sentença recorrida considera competentes as instâncias administrativas para os termos da acção, radicando essa competência na pré-existência de um contrato entre o Estado Português e a 1ª R. através do qual o Estado transferiu para o 1º Réu as funções de prestação de cuidados de saúde às populações (uma Pareceria Público-Privada) e através do qual o 1º R. passou a gerir o Hospital Amadora-Sintra, que será um contrato público, contrato esse que faz caír o mesmo 1º Réu no “regime jurídico do DL 185/02, de 20.08, no tocante às relações da sociedade gestora com terceiros no domínio da contratação, dada a revogação do artigo 31º da Lei 11/93”, e o que determinaria que todos os contratos que o mesmo 1º R. tenha celebrado de fornecimento de bens e serviços ao Hospital que geria, fora, ou deveriam ter sido , celebrados nos termos e no âmbito do regime jurídico do DL 185/02, de 20.08. Ora, “estando em causa o pagamento do preço do fornecimento de bens, o objecto do litígio abrange a execução dos respectivos contratos de fornecimento, que se mostra serem susceptíveis de serem submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público”, pelo que serão competentes os Tribunais administrativos.
B.Assim não é. Como cremos.
C.Segundo o artigo 212º, n° 3 da CRP e artigo 1.°, n.º 1, do ETAF a atribuição de competência baseia-se essencialmente num critério material, assente na natureza das relações jurídicas em causa (e não na natureza dos respectivos titulares), sendo que os termos da acção aferem-se em face da natureza da relação material em litígio tal como a autora a configura na acção.
D.A responsabilidade que nesta acção é assacada ao 1º R. não tem origem na prática de qualquer acto de gestão pública, não podendo, nem de perto nem de longe, afirmar-se que estamos perante uma relação materialmente administrativa, a reclamar a intervenção da correspondente jurisdição para o respectivo julgamento.
E.A relação jurídica estabelecida por via da celebração destes contratos de compra e venda é uma relação estritamente de direito privado. E a condenação no pagamento ou indemnização peticionadas fluem de patologias de incumprimento de um contrato de direito privado e, portanto, de situações jurídicas exclusivamente reguladas pelo direito privado.
F.O artigo 4.º, n.º 1, alínea e) do ETAF refere-se a questões relativas à validade de actos pré contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeitos dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré contratual regulado por normas de direito público. E a al. f) a questões decorrentes de contratos administrativos, ou contratos de objecto passível e acto administrativo, ou com regime de direito administrativo, o que não é evidentemente o caso.
G.Em bom rigor, a pretensão da Autora não é subsumível a qualquer “execução de contrato”, aliás extinto, porque incumprido definitivamente, em função da execução do seu núcleo central: a transmissão da propriedade a título oneroso. A Autora pretende apenas uma indemnização pelo pagamento do valor das facturas que emitiu por fornecimentos que efectuou e cuja validade ou execução não foi posta em causa pelo 1º Réu.
H.O artigo 38.º do diploma que define o regime jurídico das parcerias em saúde com gestão e financiamentos privados (DL 185/2002, de 20 de Agosto), estipula que “a aquisição de bens e a contratação de serviços necessários à implementação das parcerias em saúde regem-se pelas normas do direito privado, sem prejuízo da aplicação das directivas comunitárias e do acordo sobre mercados públicos, celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio.”.
I.Está bom de ver que por directa imposição de lei, estes contratos de compra e venda de medicamentos em causa nos autos estão fora de qualquer relação de natureza administrativa. A aquisição de bens – como os medicamentos que o 1º R. adquiriu – é, e foi, uma aquisição de direito privado, e a condenação no pagamento ou indemnização peticionadas e que são discutidas nos autos fluem assim de patologias de incumprimento de uma relação jurídica de direito privado.
J.A norma do artigo 38º do DL 185/2002, de 20.08, diz mais: “sem prejuízo da aplicação das directivas comunitárias”. Ora, a directiva comunitária – Directiva 93/36/CEE do Conselho – estipula regras de contratação pública mas apenas para os contratos de fornecimento celebrados por “organismos de direito público”, que não é o caso do 1ª Réu, que é apenas e uma sociedade comercial. E a quem a PPP por si celebrada não travestiu em organismo público, para-público, quase público, ou dotado de poderes de autoridade….
K.As regras da contratação pública, tal como previstas na lei, designadamente no Código dos Contratos Públicos, ou a Directiva 93/36/CEE do Conselho, são inaplicáveis ao 1º R. Aliás, como ao 2º R., que nem sequer as aplicaram às suas compras.
L.Ao contrário do sentenciado, nenhuma lei da República, ou da União, atribuiu poderes públicos de contratação ao 1º R.. Pelo contrário, o artigo 38.º do diploma que define o regime jurídico das parcerias em saúde com gestão e financiamentos privados (DL 185/2002, de 20 de Agosto), trata o 1º R. como entidade de direito privado, e lhe impõe, nas suas relações com terceiros, designadamente fornecedores de medicamentos, que as correspondentes aquisições de bens se rejam ”pelas normas do direito privado”,
M.Os procedimentos aquisitivos desenvolvidos pelo 1º Réu para a compra dos produtos da A. foram de natureza privado, sem qualquer submissão a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, como exige o artigo 4.º, n.º 1 e) do ETAF para que este litígio pudesse ser submetido á jurisdição administrativa.
N.Mesmo que o 1º Réu se encontrasse travestido em entidade pública ao tempo das contratações da A. para lhe fornecer medicamentos, ainda que assim fosse, só contratos públicos em que um dos contraentes fosse um ente público e com valor superior a €211.129,00 ou €206.000,00 é que poderiam estar sujeitos ao regime da Directiva 93/36/CEE e, consequentemente, a um procedimento pré-contratual público, o que nem sequer seria o caso. Ou seja, ainda que o regime da Directiva fosse aplicável às compras do 1º Réu, ainda assim entre as partes nunca foi celebrado um contrato de fornecimento cujo valor determinasse a existência de um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, como exige o artigo 4.º, n.º 1 e) do ETAF.
O.Por outro lado, também nos termos da Lei n.° 67/2007, de 31 de Dezembro, a jurisdição administrativa pode conhecer, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, litígios entre particulares. Necessário é que as acções ou omissões geradoras de responsabilidade civil tenham origem «no exercício de prerrogativas de poder público», ou que sejam «regulados por disposições ou princípios de direito administrativo». Não é o caso. E nem tão pouco se trata de responsabilidade civil extra-contratual, pois do incumprimento de obrigações contratuais se trata: no caso, a obrigação de pagamento do preço.

P.Nos termos do referido art. 4.°, n° 1, al. i), do ETAF entidades privadas poderão ser submetidas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, poderão ser demandadas perante os tribunais administrativos em acções de responsabilidade civil, nos termos em que a lei (hoje a Lei n.° 67/2007), determina a consideração a sua actividade como actividade administrativa:
i.o exercício de prerrogativas de poder público;
ii.respeitar a actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, o que significa que os respectivos exercícios deverão ser reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Q.Não é assim no caso do 1º Réu. O DL 185/02, de 20.08. que rege, no que diz respeito às relações entre o 1º Réu, enquanto sociedade gestora do Hospital Amadora Sintra, e terceiros, estipula para aquele a inexistência de prerrogativas de autoridade cuja existência seria condição de aplicação do actual regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público às pessoas colectivas de direito privado, o que afasta a possibilidade de se incluir este pleito no âmbito da jurisdição administrativa nos termos do artigo 4.°, n.° 1, alínea i), do ETAF.

R.R. Nestes autos o Estado é demandado como devedor subsidiário e solidário, ao abrigo do regime do artigo 500º do Código Civil: a responsabilidade derivada de uma relação de comissão, em que a actuação do comissário, no âmbito de uma relação de direito privado, gera dívidas, a que o comitente é chamado a honrar, dívidas essas que não mudam a sua natureza de dívidas decorrentes de actos privados e de negócios privados por o comitente (Estado) ser por elas chamado (também) a responder. Portanto, tal como a Recorrente pré-figurou a acção, o Estado é chamado à acção não pela existência de qualquer relação entre a A. e o R. Estado (que inexiste) mas, outrossim, porque existe uma responsabilização do mesmo Estado pelos actos praticados pelo 1º Réu como comissário no âmbito da gestão privada do Hospital.

S.A peticionada vinculação do Estado à (alegada) dívida assenta assim numa relação que não releva de relações jurídico-administrativas, mas de actos privados de um comitente que podem ser imputados ao comissário em termos de responsabilidade solidária.

T.Ora, se os actos do comissário são privados, tal como decorre directamente do artigo 38º do citado DL 185/2002 de 20 de Agosto, a responsabilidade civil dela decorrente para o comitente é também, e necessariamente, privada, não mudando a sua natureza (para pública) apenas pelo facto do co-devedor ser o Estado. Não existe lei da República que determine que um mesmo crédito –como o crédito detido pela A. sobre o 1º Réu– tenha uma dupla natureza: quanto a um co-devedor passe a ter a natureza de um crédito público, sujeito às regras de direito público; e que mantenha a natureza privada, se considerado face ao devedor principal.

U.Como resulta do exposto na pi, estamos nestes autos, sempre e só, a discutir o mesmo crédito, que no caso tem três devedores, em regime de solidariedade: o devedor principal, que é o 1º R; o devedor acessório, por via da desconsideração da personalidade colectiva, que é a 2ª R, que mantém com o R. principal uma relação de grupo e domínio; e o devedor acessório por via da responsabilidade do comitente por actos do comissário, que é o 3ª R. Estado.

V.No presente pleito não se levanta qualquer dúvida que a A. demanda e pede a condenação do R. Estado com base em responsabilidade decorrente de uma relação de comissão: o comissário lesou o autor enquanto praticava actos de execução da comissão e, como tal, não só o comissário é responsável pelos actos por si praticados, como o comitente responde pelos danos causados, regime esse que encontra acolhimento nos artigos 500º e 501º do CC.

W.A pergunta que deve ser feita para conhecer a questão da competência nestes termos é esta: a vinculação do Estado a pagar solidariamente a dívida contraída pelo 1º Réu assenta numa relação jurídico-administrativa ? Não. Como vimos, é Inequívoca matéria cível.

X.No caso que nos ocupa nem sequer existe uma relação de natureza administrativa entre a A. e o R. Estado determinada pela prática de qualquer actividade administrativa pelo R. Estado perante a A. Nada. No caso, a relação nasce de mera responsabilidade civil alicerçada na lei civil: o R. Estado torna-se co-devedor solidário da dívida originária que sobreveio à relação jurídica estabelecida entre a A e 1º R. Ainda que assim não fosse.

Y.A relação jurídica prevalecente é a de natureza cível: é a decorrente da falta de pagamento das facturas correspondentes aos contratos de compra e venda de medicamentos e o consequente direito ao cumprimento ou à indemnização. Só surgindo a questão de responsabilidade do ente público Estado em deriva da questão cível subjacente. Como responsabilidade acessória, e ainda que responsabilidade solidária.

Z.Ainda que fosse outro o entendimento quanto ao pedido deduzido contra o Estado poder reclamar em abstracto a intervenção dos tribunais administrativos, por força do regime do artigo 91º do CPC, como foi julgado no citado aresto do STJ de 7.10.2004, ainda assim seria competente a jurisdição cível para este efeito. O pedido de pagamento solidário de indemnização pelo R. Estado é meramente dependente ou consequente do pedido de condenação no pagamento da dívida pelo 1º Réu, perdendo a autonomia em termos de competência, figurando-se numa situação de extensão de competência ou de competência por conexão do tribunal comum, nos termos do n.° 1 do artigo 91° do Código de Processo Civil, onde o conceito de "incidentes" deve ser interpretado no sentido amplo.

AA.Por outro lado, analisando a globalidade da enunciada actuação imputada aos RR, conclui-se que não existe qualquer interesse público que justifique que o 1º Réu, quando da celebração e execução do contrato, estivesse munido de poderes de autoridade e praticando actos de gestão pública. Bem pelo contrário, como decorre directamente do citado artigo 38º do DL 185/02, de 20.08. que no que diz respeito às relações entre o 1º Réu, enquanto sociedade gestora do Hospital Amadora Sintra, e terceiros, estipula que a “A aquisição de bens e a contratação de serviços necessários à implementação das parcerias em saúde regem-se pelas normas de direito privado”.

AB.Os contratos de compra e venda de medicamentos em causa não tiveram a natureza de contratos administrativos, mas cíveis, não foram celebrados mediante actos administrativos, nem através dos mesmos se constituíram relações jurídicas administrativas. Nem, como se viu, os precedimentos de contratação pública lhes seriam aplicáveis.

AC.Por outro lado, não se trata de um contrato com "objecto público", i.e., celebrado no contexto de uma relação regulada pelo direito administrativo.

AD.Donde se conclui que esse contrato, ou esses contratos, são contratos de direito privado não sujeitos à jurisdição administrativa.

AE.Ainda que assim não fosse, em conformidade com a al. a) do nº 2 do art. 4º do ETAF, está excluída do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de actos praticados no exercício das funções política e legislativa, circunscrevendo-se esta jurisdição administrativa à sindicância dos litígios da função administrativa.

AF.Decorrendo a responsabilidade do R. Estado, segundo a A. alega como causa de pedir na acção, da sua decisão (política) de se desincumbir da tarefa, que era sua, de prestar cuidados desaúde às populações, não directamente pelos hospitais do SNS, mas incumbindo uma entidade privada a fazê-lo, a verdade é que o Estado, ao conceder ao 1º R. a gestão do Hospital Amadora-Sintra através do estabelecimento de uma pareceria público-privada, desincumbindo-se, através do estabelecimento de uma relação de comissão, decorrente de uma decisão política sua relativa a política de saúde, dessa sua função Constitucional de assegurar o direito à saúde aos residentes nos concelhos abrangidos pela área de influência daquele hospital.

AG.Todos os instrumentos legais e regulamentares ao abrigo dos quais o Governo decidiu que o Hospital Amadora-Sintra deveria passar a ter uma gestão privada ao abrigo de uma pareceria público-privada constituem evidentemente uma declaração dos princípios e critérios orientadores da regulamentação da prestação de serviços e cuidados médicos por aquele Hospital às populações, que antes era assegurado de um modo, e após essa decisão passou a ser assegurada por outro, e justamente emanada do Governo no exercício da função política ou no exercício de “decisões preliminares” de cariz político inseridas no respectivo procedimento legislativo e carecidas de concretização.

AH.E foi justamente decorrentemente desta decisão política do Estado que nasceu a fonte da obrigação do Estado que lhe é assacada nesta acção: a sua responsabilidade enquanto comitente, que encarregou o 1º Réu de uma comissão e que agora é chamado à responsabilidade por acções e omissões do comissário.

AI.De onde tudo se reconduz nos autos, quanto a este pedido acessório, à apreciação da responsabilidade do R. Estado decorrente ou associada à prática deste seu acto político de decidir desempenhar a sua função assistencial médica na área geográfica dos concelhos da Amadora e de Sintra através de um terceiro.

AJ.Portanto, tendo por assente que o sector hospitalar prossegue um interesse público e colectivo que tem de ser mantido e desenvolvido, o Governo fez uma opção essencial para a prossecução da sua satisfação, definindo o princípio geral de concessão a privados da sua gestão, afigurando-se-nos evidente, nessa parte, ter praticado um acto materialmente político. De onde decorre (cremos), ex vi artigo 500º e 501º do CC, a sua responsabilidade.

AK.Parece, assim, à recorrente que a responsabilidade do Estado decorrente dos actos praticados pelo comissário 1º Ré é, justamente, uma responsabilidade decorrente da função política e, como tal, o apuramento dessa mesma responsabilidade escapa à jurisdição administrativa por via daquele regime da al. a) do nº 2 do art. 4º do ETAF.

AL.Em consonância, de resto, com o recentemente decidido por esta mesma Relação, em aresto de 21.11.2013, em análogo problema de direito, que considerou justamente a competência da jurisdição cível para dirimir as questões associadas à patologia de incumprimento de contratos de fornecimento de material cirúrgico a um hospital, e cuja pertinência, relevância e actualidade são manifestas para o caso que nos ocupa.

II-FUNDAMENTAÇÃO.

A-Objeto do Recurso.
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a única questão a decidir consiste em aferir da competência material para a apreciação da presente ação.

B-De Facto.
Os factos e ocorrências processuais relevantes para o conhecimento do recurso constam do antecedente Relatório.

III-DO CONHECIMENTO DO RECURSO.

A questão de direito que enforma o objeto do recurso circunscreve-se a saber se os tribunais judiciais são incompetentes em razão da matéria para conhecer do litígio, cabendo tal competência à jurisdição administrativa.
A atribuição da competência material aos tribunais administrativos, na ótica da decisão recorrida, decorre do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alíneas e) e f), do ETAF - Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/02, e alterações subsequentes até à Lei n.º 20/2012, de 14/05, inclusive).

Vejamos então.

A competência em razão da matéria afere-se em função da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor.
Nessa aferição relevam os elementos objetivos e subjetivos da ação. Quantos aos primeiros, importa aferir a tutela peticionada em face do direito alegado, o facto ou factos donde resulta o direito e, quanto aos segundos, a identidade e a natureza das partes.[1]
Enquanto pressuposto processual, a competência de um tribunal visa repartir o poder jurisdicional, segundo vários critérios definidos legalmente, pelos vários tribunais.
No que concerne à competência em razão da matéria, no plano interno, assenta a mesma essencialmente no critério da especialização, ou seja, atende-se à natureza das matérias das causas.

Estipula o artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa:
“1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurisdicionais”.
No mesmo sentido, lê-se no artigo 18.º da LOFTJ (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13/01, e subsequentes alterações[2]):
“São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuladas a outra ordem jurisdicional”.
Por sua vez, o n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa, prescreve:
“Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.”
Em face destes preceitos, compete aos tribunais judiciais, a título residual, julgar as ações que não competirem aos outros tribunais (cfr. artigo 64.º do CPC 2013).

Por conseguinte, a competência dos tribunais comuns (cíveis) sempre será recortada pela negativa, ou seja, só têm competência caso a mesma não esteja deferida a um tribunal de outra ordem jurisdicional.

No caso, se não estiver atribuída aos tribunais administrativos.
Em face dos articulados, está em causa a previsão normativa do artigo 4.º, n.º1, alíneas e) e f), do ETAF.

Este preceito estipula do seguinte modo:
“Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
e)Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f)Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.”

Evidenciam estes normativos, na ótica do ETAF de 2002 e no que se refere a litígios relacionados com contratos, que o legislador formulou critérios para atribuição da competência material dos tribunais administrativos.

Assim, o critério do procedimento pré-contratual foi acolhido na alínea e), cabendo na sua previsão a apreciação de contratos sujeitos a procedimento pré-contratual de direito público, independentemente de tradicionalmente se tratarem de contratos de direito privado ou público.

Já na alínea f), foi acolhido o critério foi de natureza substantiva, ou seja, ali estão incluídos os contratos administrativos típicos, que têm como objeto um ato administrativo, por o regime substantivo das relações entre as partes, total ou parcialmente, ser regulado por normas de direito administrativo ou por as partes terem expressamente submetido o contrato a um regime de direito administrativo (regime geral ou especial).

No entender da apelante, quer a alínea e), quer a alínea f), do n.º 1, do artigo 4.º, do ETAF, não se aplica por pretender apenas uma indemnização pelo pagamento de bens fornecidos à 1.ª ré no âmbito de um contrato de natureza privada.

Contudo, a apreciação da questão em discussão não tem essa singeleza, conforme, aliás, se infere da causa de pedir vertida na petição inicial, já que foi alegada factualidade relacionada, não só a relação contratual e respetivo incumprimento estabelecida entre autora e 1.ª ré, mas igualmente factualidade para justificar a responsabilidade de todos os réus, incluindo a existência de um contrato de gestão celebrado entre a 1.ª ré e o Estado.

A questão em apreço – na estrita medida da definição da competência material do tribunal que vai julgar a causa – quando estão em causa fornecimentos de bens ou serviços, por entidades privadas, ao HPP, enquanto vigorou a parceria público privada antes referida, já foi objeto de outras decisões judiciais, como bem aludem as partes e inclusivamente decorre da decisão recorrida, que se estribou nessas decisões.

Assim:

-No acórdão de 12/02/2009, do Tribunal Central Administrativo Sul[3], foi deferida a competência ao tribunal administrativo para apreciar e decidir uma ação em que se discutiam questões atinentes ao contrato de prestação de serviços de alimentação a doentes e pessoal do HFF (a ali autora, sociedade de direito privado, formulou contra o Hospital Amadora Sintra - Sociedade Gestora, S.A., um pedido de intimidação de apresentação de determinada documentação);
-Na sentença proferida, em 08/02/2013, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal – Sintra[4], foi deferida a competência à jurisdição administrativa para conhecer de uma ação onde se discutiam questões relativas o contrato de gestão integral do laboratório de patologia clínica do HFF, por parte da ora 1.ª ré, e, ainda, a natureza do contrato de fornecimento de produtos e equipamentos ao laboratório pela autora daqueles autos.

No caso em apreço, afigura-se-nos que a interpretação jurídica acolhida nestas decisões, secundada pelo despacho recorrido, se aplica igualmente ao caso presente, sendo de deferir a competência para apreciar e decidir a presente causa aos tribunais administrativos.

Concretizando esta conclusão, cumpre referir que o Hospital Amadora Sintra foi criado pelo Decreto-Lei n.º 382/91, de 09/10, sob a forma de pessoa coletiva dotada de autonomia administrativa e financeira, deixando de ter a natureza de instituto público-estabelecimento público.[5]

Conforme é referido nos autos, por meio de contrato de gestão celebrado em 10/10/1995, passou a hospital S.A., mantendo esse formato societário privado até 31/12/2008, data que cessou o referido contrato de gestão, assumindo o dever de prestar serviços de saúde a terceiros, relações essas regidas pelo direito privado.

Não obstante, tendo esse contrato de gestão como objeto apenas a gestão ou administração de determinada instituição ou serviço de saúde, através do qual o gestor do serviço gere/administra um estabelecimento público de saúde integrado no Serviço Nacional de Saúde (SNS), reveste tal contrato de gestão a natureza de contrato administrativo.

Efetivamente, as cláusulas 5.ª e 6.ª, n.º 1, do respetivo contrato de gestão, garantem a todos os utentes do SNS, nos termos estabelecidos na legislação respetiva, o acesso aos cuidados de saúde prestados pelo HFF.[6]

A natureza administrativa do contrato de gestão celebrado entre a 1.ª ré e o HFF já foi discutida no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, de 25/10/2001.[7]), aí se concluindo:
“1.ª- No desenvolvimento de autorização conferida pela Lei de Bases da saúde, Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro, veio prever, no seu artigo 28.º, n.º 2, que o Ministério da Saúde pode autorizar a entrega da gestão de instituições e serviços de saúde integrados no SNS, ou parte funcionalmente autónoma, a entidades públicas ou privadas (…)”
2.ª- O contrato de gestão celebrado ao abrigo de tais dispositivos tem por objecto a gestão de um concreto estabelecimento público ou serviço, ou parte funcionalmente autónoma deles, e tem natureza de contrato administrativo.
(…)

5.ª–O Hospital do Professor Doutor .... ...., criado pelo Decreto-Lei n.º 382/91, de 9 de Outubro, dotado de personalidade jurídica autonomia administrativa e financeira, a funcionar na Amadora, é um instituo público, na espécie de estabelecimento público:
6.ª-O contrato celebrado em 10 de Outubro de 1995 entre a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e a Sociedade Amadora/Sintra – Sociedade Gestora, S.A. “tem por objeto a gestão integral do Hospital do Professor Doutor .... .... (cláusula 5.ª).”

Posteriormente, os artigos 28.º a 31.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde vieram a ser revogados pelo Decreto-Lei n.º 185/2002, de 20/08 (artigo 39.º deste diploma), no tocante às relações da sociedade gestora com terceiros no domínio da contratação.

Porém, à data, dispunha o artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 185/2002, que “A aquisição de bens e contratação de serviços necessários à implementação das parceiras em saúde regem-se pelas normas do direito privado, sem prejuízo da aplicação das diretivas e do acordo sobre mercados públicos celebrados no âmbito da organização Mundial de Saúde.”

É precisamente por via desta remissão para o direito comunitário que é chamada à colação a observância de procedimento pré-contratual de escolha do cocontratante imposta pela Diretiva 93/36/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1963, na redação dada pela Diretiva 97/52/CE do Conselho, de 13 de outubro de 1997, transposta pelo Decreto-Lei n.º 197/99, de 08/06 (regime jurídico de realização de despesas públicas e da contratação pública), abrangendo os contratos de fornecimentos celebrados por “organismos de direito público” (artigo 5.º, n.º 1, alínea a) e artigo 1.º, alínea b) da Diretiva), aqui se enquadrando a aquisição de bens pela 1.ª ré à autora.

É certo que, como alguns autores fazem notar, o Decreto-Lei n.º 197/99, de 08/06 não terá transposto de forma escorreita a referida Diretiva, ao excluir as pessoas coletivas com “natureza empresarial” (cfr. artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 197/99, a contrario).

Porém, tal solução, contrariando a Diretiva e o seu “efeito direto” [8], bem como o primado do direito comunitário (artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa), não vinga no nosso ordenamento interno, pelo que, e em conformidade com jurisprudência do Tribunal de Justiça, secundada pela doutrina portuguesa[9], estão sujeitos a um procedimento pré-contratual regulado por norma de direito público os atos de direito privado ou de direito público praticados por organismos (públicos ou privados), dotados de personalidade jurídica, financiados primacialmente pelo Estado e por ele controlados (a nível orgânico e de funcionamento) especificamente destinados a satisfazer necessidades de interesse geral, com o é o caso, do HFF, enquanto vigorou o referido contrato de gestão no âmbito da parceria público privada acima mencionada.[10]

Refira-se, ainda, que tentar excluir a relação contratual em causa do âmbito da jurisdição administrativa, enfatizando-se que se trata de um contrato celebrado ao abrigo do direito privado, como defende a apelante no recurso, é olvidar que o contrato de fornecimento/compra e venda de medicamentos tem como escopo a sua utilização pelo HPP, no âmbito e na concreta execução do contrato administrativo acima referido, tendo como destinatários os utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Ora, essa atividade, quando mais não fosse, e é muito, visa a prossecução do interesse público prosseguido pela 1.ª ré, já que, em última análise, sempre estará em causa a garantia da boa gestão dos dinheiros públicos na prestação de serviços de saúde aos utentes do referido SNS.[11]

O artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF ao prever um contencioso contratual sujeito à jurisdição administrativa englobando a apreciação da validade dos atos pré-contratuais inseridos num procedimento de direito administrativo, abarca na sua previsão um litígio com as caraterísticas retratadas nos autos, pelo menos que concerne à factualidade concernente à relação contratual estabelecida entre a 1.ª ré e o Estado e, por via desta, a estabelecida entre a autora e a 1.ª ré.

Como inicialmente se referiu, o ETAF de 2002 introduziu alterações significativas nos critérios definidoras da competência material dos tribunais administrativos, como é comumente sublinhado pela doutrina a propósito da interpretação das várias alíneas do n.º 1, do artigo 4.º, concluindo-se a doutrina, de forma consensual, que “(...) A opção tomada nesta alínea e), que constitui a grande revolução do Código na matéria, traduziu-se na adição à jurisdição dos tribunais administrativos do conhecimento dos litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente da qualidade das partes nele intervenientes, de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares e independentemente de, pela sua natureza e regime (ou seja, pela disciplina da própria relação contratual), eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc.)”.[12]

No mesmo sentido, interpretando-se a mesma alínea do preceito, lê-se num acórdão da Relação do Porto:

“Assim, os contratos cuja interpretação, validade ou execução pertence à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos da citada alínea e), são quaisquer contratos administrativos ou não, com excepção dos de natureza laboral, por força da alínea d) do art. 4º nº 3 que uma lei específica submeta, ou admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito administrativo.
O que significa que para esses litígios contratuais ficarem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito administrativo.
A competência contratual da jurisdição administrativa vale, portanto, quer no caso do procedimento prévio do contrato ter assumido a forma (fosse ou não obrigatória) de procedimento administrativo pré-contratual, quer no caso da entidade administrativa contratante por não ser tal forma obrigatória (só permitida) ter optado legalmente por uma forma de pré-contratação de natureza privatista.[13]

Na mesma linha de entendimento, pronunciou-se a Relação de Coimbra, quando escreveu “(…) o que é relevante para determinar o âmbito “contratual” da jurisdição administrativa, continua a ser a natureza jurídica do procedimento que antecedeu – ou que devia ou podia ter antecedido – a sua celebração, e não a própria natureza do contrato.
Tratando-se de um procedimento administrativo, a jurisdição competente para conhecer da execução do próprio contrato celebrado na sua sequência – independentemente de ele ser um contrato administrativo ou de direito privado – é a jurisdição administrativa. E independentemente também de se tratar (de actos pré-contratuais ou) de contratos de uma pessoa colectiva de direito público ou de um sujeito privado que esteja submetido, por lei específica, a deveres pré-contratuais de natureza administrativa. Assim, os contratos cuja execução pertence à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos da citada alínea e), do nº 4, do ETAF, são quaisquer contratos – administrativos ou não – que uma lei específica submeta, ou admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado pelas normas de direito administrativo. O que significa que para esses litígios contratuais ficarem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que admita que ele lhe seja submetido. A competência “contratual” da jurisdição administrativa vale, portanto, quer no caso de o procedimento prévio do contrato ter assumido a forma (fosse ou não obrigatória) de procedimento administrativo pré-contratual, quer no caso de a entidade administrativa contratante ter optado legalmente por uma forma de pré-contratação de natureza privada (vide M. Esteves de Oliveira, ob. cit., Reimpressão, 2006, pág. 51/52, e J. C. Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, 11ª Ed., 2011, pág. 101).”[14]

A natureza jurídica dos serviços de saúde prestados pelo HFF através de uma entidade que desenvolve as atribuições do ente administrativo Estado, através do SNS, determina que essa atividade se desenrole no âmbito de um relação jurídica administrativa sujeita, como acima explicitado, a um regime pré-contratual de direito público, pelo que a competência para decidir litígios resultantes de contratos celebrados com terceiros no âmbito da execução do referido contrato de gestão, estão afetos à apreciação dos tribunais administrativos, por força do artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF.

Se assim é quando apenas é demandada a 1.ª ré, por maioria de razão assim será quando é demandado o próprio Estado.

É certo que a autora demandou o Estado ao abrigo dos artigos 500.º e 501.º do Código Civil, prefigurando na sua tese uma relação de comissão (cfr. conclusões de recurso V e seguintes).

Porém, a configuração jurídica dada a essa relação, por se tratar de matéria de direito, em nada interfere nesta decisão, tanto mais que na estruturação da petição inicial foi a própria autora que alegou factualidade referente ao referido contrato de gestão publico privada em que assentou, durante o período contratual em apreciação, a gestão e administração de um serviço de saúde pela 1.ª ré.

Acresce que também os tribunais administrativos são competentes em razão da matéria para apreciar e decidir questões relacionadas com contratos que apresentem alguma das três caraterísticas de administratividade aludidas na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.

No caso, estando em apreciação relações contratuais estabelecidas por via da execução de um contrato administrativo típico, i.e, com um regime jurídico próprio, como é o caso do contrato de gestão celebrado entre a 1.ª ré e o Estado, a aquisição de bens ao abrigo do mesmo, determina que as relações entre as partes contratantes (no caso, autora e 1.ª ré) seja regulada por normas de direito público, pelo que igualmente é deferida aos tribunais administrativos a competência material para apreciar tal litígio.

Por fim, cabe referir que o Tribunal de Conflitos já se pronunciou diversas vezes no sentido de atribuir competência aos tribunais administrativos por via do artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF, para apreciar litígios relacionados com fornecimento de bens ou serviços no âmbito dos contratos de gestão hospitalar, de cariz administrativo e sujeito a procedimento pré-contratual, quando na base desses fornecimentos está da obrigação de prestação de cuidados de saúde a utentes do SNS por entidades gestoras desses serviços de saúde.[15]

Em face do exposto, todas as demais questões e/ou argumentos explanados nas conclusões recursórias não procedem, por irrelevarem para a correta apreciação da questão decidenda.
Improcede, pois, apelação.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

IV-DECISÃO:
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas nos termos sobreditos.


Lisboa, 05 de abril de 2016


(Maria Adelaide Domingos - Relatora)
(Eurico J. Marques dos Reis - 1.º Adjunto)
(Ana Grácio - 2.ª Adjunta)


[1]Cfr. MANUEL DE ANDRADE, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, p. 91, que ensinava que a competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que a ação é proposta, “seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI – “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”, é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes
[2]Esta versão da LOFTJ é a aplicável ao caso em apreço, considerando a não aplicação ao caso da Lei n.º 52/2008, de 28/08, e sua regulamentação através do Decreto-Lei n.º 28/2009, de 28/01 (artigo 2.º), bem como da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (LOSJ) e sua regulamentação através do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27/03, genericamente em vigor apenas em 01/09/2014, portanto após a instauração da presente ação.
[3]Proferido no proc. 03721/08, disponível em www.dgsi.pt.
[4]Proferida no proc. 1161/11.9BESNT, encontrando-se cópia junta aos autos (fls. 1159-1164).
[5]Como se refere o acórdão do TCAS, de 12.02.2009, supra referido, “(… ) em 1995 deu-se início à empresarialização da gestão hospitalar pública, que teria larga concretização em 9, 10 e 11.DEZ.2002 com a criação de 31 sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos , desiderato concretizado no modelo do contrato de gestão previsto na Base XXXVI da Lei 48/90 de 24.08 (Lei de Bases da Saúde) e nos artºs 28º nºs. 1 e 2 e 29º nºs 3 e 4 do DL 11/93 de 15.01 (Estatuto do Serviço Nacional de Saúde).
Como nota de actualização, refere-se que o artº 39º do
L 185/02 de 28.09 - diploma que deu corpo ao novo modelo societário das parcerias público-privadas no sistema público de saúde -, revogou os artºs. 8º a 31º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, passando o dito contrato de gestão a regular-se, com maior detalhe , pelos artºs. 8º a 33º do citado DL 185/02, contrato entretanto extinto em 31.12.2008 por caducidade decorrente de denúncia para o termo do respectivo prazo , sendo o estabelecimento do Hospital Amadora/Sintra, “(..) transformado numa entidade pública empresarial, regida pelo disposto nos DL’s. nºs 558/99 de 17.12 e 233/05 de 29.12 e designada Hospital Professor Doutor .... ... . E.P.E.(..)”, vd.. artº 1º nº 1, DL 203/08 de 10.10 donde, novamente “(..) será entregue à gestão pública a 1 de Janeiro de 2009 (..), conforme preâmbulo do citado DL 203/08.”
[6]Estipula a cláusula 5.ª, n.º 1, do contrato: “O presente contrato tem por objecto a gestão hospitalar do Hospital Professor Doutro .... ...., por parte da SEGUNDA OUTROGANTE” [Sociedade Hospital Amadora/Sintra – Sociedade Gestora, S.A.].
O n.º 2 da cláusula 5.ª estipula: “A gestão integral da referida unidade hospitalar deve garantir a prestação continuada de cuidados de saúde globais, correspondentes ao exercício, em urgência, internamento e ambulatório das valências constantes do Anexo V, incluindo o respectivo apoio das especialidades de meios auxiliares de diagnóstico, assim como os necessários serviços de apoio geral.”
Por sua vez, a cláusula 6.ª, n.º 1 estipula: “A SEGUNDA OUTROGANTE obriga-se a garantir o acesso aos cuidados de saúde prestados no Hospital a todos os utentes do SNS, nos mesmos termos dos demais estabelecimentos integrados no Serviço Nacional de Saúde (SNS), de acordo com a capacidade instalada e com o disposto nos números seguintes.”
[7]Cfr. PGRP00001993, em www.dgsi.pt/pgrp.nsf...
[8]Como se sublinha no Ac. do STA, de 28.10.2009, proc. 484/09, em www.dgsi.pt, a propósito da transposição de Diretivas, o Tribunal de Justiça tem defendido a «tese do “efeito directo” das directivas», sublinhando que «como também se tem vindo a entender na jurisprudência deste STA, as directivas comunitárias, na parte em que as respectivas disposições se apresentam prescritivas, claras, completas, precisas e incondicionais, são susceptíveis de produzir efeitos directos verticais, ou seja, podem ser invocadas contra as autoridades públicas se não tiverem sido transpostas para o direito interno, ou, tendo-o sido, foram-no deficientemente - cfr, por todos, o acórdão deste STA de 2006.01.17, no processo n° 980/05, onde também, é citada jurisprudência do TJCE.»
[9]Cfr. Ac. Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), de 14/04/2005, proc. 01004/04.0BESNT, em www.dgsi.pt, onde se faz uma resenha da jurisprudência do Tribunal de Justiça e da doutrina portuguesa sobre esta questão, para o qual remetemos por óbvias razões de economia processual.
[10]Interpretando o artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 185/02, refere-se no Ac. de 12.02.2009, do TCAS, já citado, o seguinte: “Claramente é estatuída a obrigatoriedade de observância do procedimento pré-contratual de escolha do co-contratante por imposição das Directivas Comunitárias, a Directiva 93/36/CEE de 14.06.93 com as alterações decorrentes da Directiva 97/52/CE de 13.10.97.
E aqui abrem-se duas alternativas possíveis: (i) ou se sustenta que o artº 38º do DL 185/02 remete para a aplicabilidade do regime da contratação pública relativa à locação e aquisição de bens e serviços, constante do DL 197/99 de 08.06, (ii) ou, por força do efeito directo reconhecido às directivas comunitárias estas serão de observância vinculada por parte de todos os entes públicos ou privados subsumíveis nos requisitos nelas estabelecidos quanto aos procedimentos pré-contratuais, caso se entenda que o DL 197/99 não procedeu com rigor à transposição do âmbito subjectivo da Directiva no tocante ao conceito funcional de “organismo de direito público criado para satisfazer de um modo específico necessidades de interesse geral sem carácter industrial ou comercial”, v.g. artº 1º b) da Directiva 93/36/CEE, por reporte à definição das entidades adjudicantes e extensão do âmbito de aplicação pessoal constante dos artºs. 2º b) e 3º nº 1 a) e b) do DL 197/99.”
[11]Neste sentido, veja-se o já citado Ac. do TCAN, de 14.04.2005, proc. 01004/04.0BESNT.
[12]MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGUES ESTEVES DE OLIVEIRA, “Código do Processo nos Tribunais Administrativos – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais- Anotado”, Vol. I, Coimbra 2014, p. 48 e ss. Cfr., ainda, Ac. de 14.04.2005, do TCAD, já citado, onde se faz uma resenha doutrinária sobre esta questão.
[13]Ac. RP, de 16.11.2015, proc. 2195/14.7TBMTS.P1, em www.dgsi.pt.
[14]Ac. RC, de 23.08.2012, proc. 1502/11.9TBGRD, em www.dgsi.pt 
[15]Cfr. Ac. TC, de 11/03/2010, proc. 028/09; de 16/02/2012, proc. 021/11; de 19.12.2012, proc. 020/12 e de 24.04.2015, proc. 048/14, emwww.dgsi.pt.