Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ONDINA CARMO ALVES | ||
Descritores: | ASSESSOR TÉCNICO FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO MEDICAMENTO GENÉRICO SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/23/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Sumário: | SUMÁRIO (da relatora): 1. Justificando a assistência técnica no processo, designadamente, na audiência de julgamento, a existência de matéria de facto que envolva questões ou dificuldades de natureza técnica que não estão ao alcance do tribunal, é natural que este se apoie no conhecimento que lhe advém do técnico que o assessorou, podendo, por isso, o entendimento do técnico ser usado na fundamentação da decisão, desde que, evidentemente, os factos em questão resultem dos meios de prova concretamente produzidos no processo – documental, testemunhal ou pericial – e não apenas porque o técnico o afirmou. 2. O parecer do técnico destinado tão-somente a esclarecer e elucidar o tribunal a respeito da interpretação de determinados factos alegados pelas partes e que são objecto do litígio, é habitualmente dado verbalmente, na audiência de julgamento, podendo a intervenção do técnico ser vertida a escrito, o que não significa que o mesmo tenha a natureza ou o valor de meio de prova. 3. Dado o objectivo e a função exercida pelo técnico nomeado para assessorar o Tribunal, não viola o princípio do contraditório a circunstância de as notas escritas por este elaboradas e transmitidas ao Tribunal Arbitral não terem sido comunicadas às partes antes da prolação da decisão arbitral, pese embora o teor dessas notas se encontrem extractadas na decisão arbitral. 4. A concessão de uma patente tendo por objecto um produto, confere ao seu titular o direito exclusivo de explorar esse produto, podendo impedir que um terceiro pratique actos através dos quais se concretiza a exploração do produto, opondo-se à sua fabricação ou venda qualquer que seja o processo empregado por esse terceiro de obtenção do produto. 5. Já a patente de processo possui uma protecção relativa, na medida em que confere ao seu titular um direito exclusivo de explorar o invento, que neste caso consiste no processo protegido, não podendo um terceiro produzir, vender ou de qualquer forma comercializar o produto obtido através do processo patenteado, podendo, no entanto, o terceiro, produzir o produto desde que o faça por processo diferente daquele que é objecto da patente. 6. A transmissão a terceiro de autorização de introdução no mercado de medicamento genérico não constitui em si violação do exclusivo concedido pela patente que proteja substância, processo de fabrico ou utilização implicada nesse medicamento, pelo que não deve ser proibida no âmbito da arbitragem prevista na Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro. 7. A cominação de sanção pecuniária compulsória pressupõe uma violação actual ou iminente da obrigação de prestação de facto a que se refere, admitindo-se que as razões que presidem a este instituto, maxime, a salvaguarda do prestígio da justiça, e a defesa dos interesses do credor, permitem que a aludida sanção possa ser aplicada pelos Tribunais Arbitrais que integram a categoria de tribunais com consagração constitucional. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I. RELATÓRIO LABORATOIRES …….. PRODUCTS OPERATIONS …… e LABORATÓRIOS, LDA., instauraram, em 01.08.2014, no Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, contra …… FARMACÊUTICA, S.A., procedimento cautelar, por apenso à acção principal ali pendente, invocando que esta havia iniciado a comercialização do medicamento genérico contendo a substância activa “fenofibrato”, sob a forma farmacêutica de comprimidos, na dosagem de 145mg, com a designação comercial de “Fenofibrato Generis” e pretendendo impedir a requerida de comercializar o seu medicamente genérico, por infracção dos direitos de propriedade industrial de que são titulares. Formularam as requerentes os seguintes pedidos: Notificada, a requerida apresentou oposição, pugnando pelo indeferimento da providência cautelar e requereu que: Foi elaborada, em 04.06.2013 e 06.06.2013, a Acta de Instalação do Tribunal Arbitral, nos termos constantes de fls. 330 a 333. Foi nomeada pelo Tribunal Arbitral assessora técnica. As partes apresentarem prova documental e foi realizada prova pericial. Foram levadas a efeito sessões de audiência, em 11.09.2014 e 12.09.2014, destinadas à produção de prova, nas quais os mandatários das partes se encontravam acompanhados dos respectivos assessores técnicos, o mesmo sucedendo com o Tribunal Arbitral, que igualmente se encontrava assessorado pela técnica nomeada. Na primeira sessão de audiência foram ouvidos os peritos indicados pelas partes e, na segunda sessão, foram ouvidas as testemunhas indicadas pelas requerentes e pela requerida. A requerida requereu que, na sequência das questões relacionadas com a micronização e nanonização, fosse admitida a junção aos autos de quatro documentos – artigos científicos – destinados a provar que a nanonização, enquanto tecnologia, era já conhecida e é utilizada na linguagem tecnológica para a formulação de partículas destinadas à administração oral, sob a forma de composições farmacêuticas e ainda uma versão não truncada do documento junto com o nº 5 da contestação, com carácter de reserva e de confidencialidade, para ficar na disponibilidade exclusiva do Tribunal Arbitral, da Assistente Técnica do Tribunal e do Perito Presidente. A pretensão da requerida, no que concerne à junção aos autos dos artigos científicos foi indeferida pelo Tribunal Arbitral, aceitando este a requerida junção do documento nº 5, garantindo a confidencialidade reservada, com os limites de acesso sugeridos pela requerida. A assessora do Tribunal Arbitral teve reuniões com os árbitros e deu conhecimento ao Tribunal Arbitral da sua posição sobre a questão técnica em causa nos autos, posição com a qual o Tribunal Arbitral concordou e transcreveu na sua decisão. O Tribunal Arbitral proferiu decisão, em 23.10.2014, na qual se incluiu o julgamento da matéria de facto, e nesta apenas foram indicados os factos dados como provados, conforme se prevê do Nº 31 da Acta de Instalação. Consta, assim, do Dispositivo do Acórdão, o seguinte: Face ao exposto, acordam os árbitros em julgar procedentes os pedidos de providências cautelares, determinando: Inconformada com o assim decidido, a requerida interpôs recurso de apelação, relativamente ao acórdão prolatado. São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente: “(…) à data da prioridade da patente francesa FR 9700479, 1997.01.17, não havia tecnologia que permitisse a redução do tamanho da partícula de fenofibrato para a ordem dos nanómetros. Pode assim deduzir-se que, os autores ao limitarem nas reivindicações das patentes tamanhos de partículas inferiores a 10 μm salvaguardaram futuros desenvolvimentos baseados em tecnologias emergentes que permitissem atingir partículas de menores dimensões.”.
viii. Sabendo que pela lei o Tribunal Arbitral tem de avaliar as reivindicações e âmbito de proteção das patentes das Recorridas à data de prioridade reivindicada nas mesmas (17.01.1997), forçosamente deveria ter concluído o Tribunal Arbitral que a nanonização de partículas era um desenvolvimento técnico subsequente às patentes, e, portanto, não abrangido juridicamente pelas reivindicações das mesmas, as quais reivindicam expressamente a utilização de partículas “sob a forma micronizada” (E não sob a forma nanonizada) nas invenções que visam proteger, v.g. reivindicação 1 da EP 829’, reivindicação 1 da EP 387’reivindicação 1 da EP 293’ (cf. docs. n.ºs 5 a 7 juntos com a Petição Inicial nos autos de ação arbitral). ix. Essa conclusão resulta da lei, porquanto o artigo 123.º da Convenção da Patente Europeia (CPE) prescreve que “a patente europeia não pode ser modificada de forma a que o seu objecto se estenda para além do conteúdo do pedido tal como foi apresentado” (n.º 1), nem pode ser modificada “de forma a alargar a proteção que confere” (n.º 2), sob pena de nulidade – cf. o artigo 138.º, n.º 1, al. c), e o artigo 69.º, n.º 2 da CPE. Remédio Marques – “Quando se aferem os conhecimentos detidos pelo perito na especialidade, com vista a determinar o sentido das reivindicações e, logo, a delimitar o âmbito tecnológico de protecção do direito de patente, é necessário reportar esse juízo a um determinado momento temporal” - Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, Vol. I, Almedina, 2007, pág. 818 - Esse momento temporal é a “data do pedido (ou na data de prioridade)” - Biotecnologia(s) e Propriedade Intelectual, cit., pág. 825 - da patente, caso exista data de prioridade. Luís Couto Gonçalves – “O momento determinante para a apreciação da equivalência deve ser o do pedido de patente, por razões de coerência legislativa e de segurança jurídica. Se os requisitos de validade são contemporâneos do pedido o mesmo se deve dizer dos factores que delimitam o pedido (as reivindicações e a descrição) e condicionam o conteúdo do direito a atribuir. A apreciação diferida para o momento da infração, tendo eventualmente em conta modificações supervenientes no estado da técnica, contrariaria a segurança jurídica, as expectativas de terceiros e alargaria, irrazoavelmente e sem fundamento legal, o âmbito de protecção da patente.” - Manual de Direito Industrial, Almedina, 2005, págs. 110-111. Pedro Sousa e Silva – “(…) Não seria justo que o titular da patente viesse a beneficiar de uma esfera de protecção superior à medida do seu contributo para o estado da técnica existente à data em que divulgou o seu invento. Neste, como noutros domínios da Propriedade Industrial, a medida de protecção deve coincidir com a medida da inovação.” - Direito Industrial, Noções Fundamentais – Coimbra Editora, 2011, pág. 76. Decisão G 0001/03 do Enlarged Board of Appeal do Instituto Europeu de Patentes – “When addressing the question of the proper drafting of an undisclosed disclaimer excluding an anticipation, it has to be borne in mind that, according to the preceding assessment, such disclaimers are restricted to factual situations in which they do not contribute to the technical teaching of the claimed subject- matter. This means that an allowable disclaimer merely restricts the required protection and is outside the scope of Article 123(2) EPC, which does not allow the subject-matter of an application to be extended beyond the content of the application as filed” - Disponível em http://www.epo.org/law-practice/case-law-appeals/recent/g030001ex1.html O Tribunal não ignora a tradução do passo transcrito: “Na abordagem à questão da redacção apropriada de um disclaimer, excluindo uma antecipação, tem de ser tido em conta que, de acordo com a avaliação anterior, estes disclaimers estão restritos a situações de facto em que não contribuam para o ensino técnico do seu objecto. Isto significa que um disclaimer admissível restringe meramente a protecção necessária e está fora do escopo do artigo 123 (2) EPC, o que não permite que se estenda o conteúdo de um pedido para além do conteúdo que tinha quando o pedido foi apresentado”. Decisão G 0002/06 do Enlarged Board of Appeal do Instituto Europeu de Patentes: “33. When assessing whether a claim contravenes Rule 28(c) (formerly 23d(c)) EPC, technical developments which became publicly available only after the filing date cannot be taken into consideration. It cannot be relevant whether later either the applicant himself or others made something further available that would then have allowed the product to be made in an innocuous manner. Similarly to the case of an invention which is insufficiently described in the application as filed to be carried out, lack of any disclosure in the application as filed putting the skilled person in possession of a way to carry out the invention complying with Rule 28(c) (formerly 23d(c)) EPC cannot be cured by the occurrence of subsequent technical developments. Any other conclusion would lead to legal uncertainty, and risk being to the detriment of any third party who later provided an innocuous way to carry out the invention. - Disponível em: http://www.epo.org/law-practice/case-law-appeals/recent/g060002ex1.html O Tribunal não ignora a tradução do passo transcrito: “Quando se afere se uma reivindicação contraria a noma 28 (c) (anteriormente 23d(c)) da CPE, os desenvolvimentos técnicos que se tornaram publicamente disponíveis apenas após a data de apresentação não podem ser tidos em consideração. Não pode relevar se, mais tarde, o próprio requerente ou outros tenham tornado alguma coisa disponível que então permitisse que o produto fosse feito de uma maneira inócua. Tal como no caso de uma invenção que é descrita de forma insuficiente no pedido apresentado para ser aplicado, a falta de qualquer divulgação no pedido apresentado colocando a pessoa competente na posse de uma forma de realizar a invenção de acordo com a Norma 28 (c) (anteriormente 23d(c)) EPC , não pode ser sanada pela eventualidade de haver desenvolvimentos técnicos subsequentes. Qualquer outra conclusão levaria a incerteza legal e arriscar-se-ia a que um terceiro fornecesse mais tarde uma forma inócua de levar a cabo a invenção”. Pede, por isso, a apelante, que o acórdão recorrido seja considerado nulo, nos termos e para os efeitos dos artigos 46.º, n.º 3, a), ii) e 30.º, n.º 1, c) da Lei 63/2011, de 14 de Dezembro, por violação de um princípio fundamental do processo arbitral – a observância do princípio do contraditório – violação essa que assumiu influência decisiva na resolução do litígio, devendo ser dado provimento total ao recurso de apelação, revogando-se o acórdão recorrido e substituindo-se o mesmo por acórdão que determine a absolvição da recorrente de todos os pedidos formulados pelas recorridas. As requerentes/recorridas apresentaram contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido e formularam as seguintes CONCLUSÕES: entendimento da Assessora do Tribunal no mesmo momento processual da Recorrente, e conhecem-no na mesma extensão da Recorrente, nem mais, nem menos, pelo que a igualdade de armas visada pelo princípio do contraditório não foi, assim, beliscada. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. *** II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Novo Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:
iDO VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO;
ii) DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS. O que implica a análise:
Þ DOS REQUISITOS DE QUE DEPENDE A PROCEDÊNCIA DO PROCEDIMENTO CAUTELAR Com particular relevância na apreciação da aparência do direito das requerentes/recorridas. iii) DA INTIMAÇÃO CONSTANTE DO ACÓRDÃO RECORRIDO DE A REQUERIDA/RECORRENTE NÃO VENDER OU CEDER A TERCEIROS A AUTORIZAÇÃO DE INTRODUÇÃO NO MERCADO. iv) DA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL PARA DECRETAR UMA SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA. *** III . FUNDAMENTAÇÃO
ou, de qualquer forma dispor de qualquer produto ou processo protegido pelas referidas Patentes”, atribuindo à Requerente Laboratórios, Lda. “o direito a ser parte em ações de violação contra terceiros e a participar em quaisquer processos que a tal respeitem, incluindo qualquer medida provisória ou cautelar” (art. 46.º do Requerimento Inicial e Doc. n.º 4 junto com a Petição Inicial). i) Apresentação pela Requerida, em Portugal, de pedidos de autorização ou registo de introdução no mercado de produtos de “fenofibrato” 145mg na forma de comprimidos, fabricados nos termos do Dossier Técnico, e manutenção das autorizações de mercado concedidas, a existirem. ii) Marketing e distribuição de produtos de “fenofibrato” 145 mg na forma de comprimidos, fabricados nos termos do Dossier Técnico, em Portugal (art. 185.º da Oposição). *** B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
i) DO VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO Invoca a recorrente a nulidade do acórdão recorrido, por entender que foi violado o exercício do direito ao contraditório, uma vez que o Tribunal Arbitral, na sua decisão, cita e remete para um documento que a recorrente admite que tenha a forma de relatório pericial ou técnico e que conterá a opinião da assessora do Tribunal. E, considerando que em momento algum a recorrente foi notificada do documento citado na decisão sob recurso ou teve sequer conhecimento da posição defendida pela assessora, estando impossibilitada de a contraditar, existe, segundo a recorrente, um vício processual de inobservância do princípio do contraditório, que acarreta a anulação do acórdão recorrido. Vejamos se razão lhe assiste. Preceitua o nº 3 do artigo 3º do CPC, que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre ele elas de pronunciarem”. O princípio do contraditório é, com efeito, um dos princípios estruturantes do processo civil e tem igual acolhimento no processo arbitral, como resulta do artigo 30º, nº 1, alínea c) da Lei nº 63/2011, de 14.12, que aprovou a Lei de Arbitragem Voluntária, aí se prevendo que a decisão arbitral pode ser anulada pelo tribunal estadual em caso de violação desse princípio fundamental. Decorre do aludido princípio que cada parte é chamada a apresentar as suas razões de facto e de direito, a oferecer as suas provas e a pronunciarem-se sobre o valor e resultado de umas e outras e, portanto, salvo caso de manifesta desnecessidade, não é lícito ao juiz decidir sobre questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. O princípio do contraditório traduz-se na garantia das partes de uma efectiva participação em todos os actos do processo. Como já referia MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, 379, cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de uma e outras. Visa, em suma, dar a oportunidade às partes de influenciar a decisão judicial que vai ser tomada. O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio do contraditório integra, ao cabo e ao resto, o direito de acesso aos tribunais, constitucionalmente consagrado no artigo 20º da CRP. E, o direito de acesso aos tribunais implica a vinculação ao princípio da igualdade, assente na ideia de que as partes têm de dispor, quer de idênticos meios processuais, quer de idênticos direitos processuais. Visa o nº 3 do citado artigo 3º do CPC banir as decisões surpresa e, por isso, se defende que o Juiz não pode decidir questões de conhecimento oficioso sem que previamente tenha sido facultada ás partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, não podendo igualmente decidir com base em qualificação substancialmente inovadora que as partes não hajam considerado, sem antes lhes ter dado a possibilidade de produzirem as suas alegações, perspectivando o enquadramento jurídico vislumbrado pelo tribunal. A introdução de tal preceito na lei processual civil teve em vista o aprofundamento do exercício do direito do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil, garantindo a discussão entre as partes, por forma a evitar as denominadas “decisões-surpresa”, quanto a decisão de questões de direito ou de facto sem que as partes tenham tido oportunidade de sobre elas de pronunciarem. Elucidam a esse propósito JOSÉ LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado”, vol. I., 7 que: “Resultam estes preceitos (n.ºs 3 e 4 do artigo 3.º do CPC) duma concepção moderna do princípio do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior. Não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma concepção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. Sucede, porém, que tem sido pacífico na jurisprudência o entendimento de que, apenas se está perante uma decisão surpresa, quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela, ou até quando a decisão coloca a discussão jurídica num diferente plano daquele em que a parte o havia feito. Mas, não pode esse princípio ser levado tão longe que esqueça que as partes são representadas por técnicos que devem conhecer o direito e que, por isso, conhecendo ou devendo conhecer os factos, devem igualmente prever todas as qualificações jurídicas de que os mesmos são susceptíveis – v. neste sentido e a título meramente exemplificativo, Acs. do STJ de 29.09.1998 (Pº 98A801) de 27.11.2011 (Pº 02A1353), de 11.03.2010 (Pº 1860/07.0TVLSB.S1) e de 27.09.2011 (Pº 2005/03.0TVLSB.L1.S1), todos disponíveis na Internet, no sítio www.dgsi.pt. Ora, a violação do princípio do contraditório, é susceptível de configurar uma nulidade secundária, sujeita ao regime dos artigos 195.º e 199.º do nCPC.
As nulidades processuais devem ser suscitadas perante o tribunal em que as mesmas foram cometidas e, caso o requerente se não conforme com a decisão proferida sobre o requerimento de arguição de nulidade, desta caberá recurso, nos termos gerais.
Entende-se, todavia, que mesmo que o prazo de arguição da nulidade já se haja esgotado, a existência de uma decisão que sancionou ou confirmou uma eventual nulidade, pode o conhecimento da mesma ocorrer por meio de recurso. Como refere MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1976, 182 “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se” E esta mesma orientação é perfilhada por ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra, 1985, 393, ao mencionarem que “(…) e entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”. No caso em apreciação, porque a nulidade processual invocada, a existir - a inobservância do contraditório - se encontra coberta pelo acórdão recorrido, o meio adequado para reagir contra essa eventual violação das regras processuais é, precisamente, o recurso e não a arguição de nulidade perante os autores da decisão como, aliás, igualmente deverá ser interpretado o disposto no artigo 46º, nº 3, alínea a) ii) da Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro. Importa, então, apreciar se a invocada nulidade foi efectivamente cometida e se a existir, interferiu no exame e na decisão da causa. No caso vertente, ficou demonstrado que na Acta de Instalação do Tribunal Arbitral, através da qual se definem as regras do processo de arbitragem, ficou estabelecido, na sua cláusula 29º, que, quer as partes, quer o Tribunal, poderiam ser assistidos por um ou mais assessores técnicos. E foi o que sucedeu, como se verifica do teor das Actas das Sessões da Audiência, nas quais nelas participaram os assessores técnicos escolhidos pelas partes e pelo Tribunal. Como é sabido, nos processos cuja matéria de facto envolva questões ou dificuldades de natureza técnica cuja solução dependa de conhecimentos especiais que não estejam ao alcance dos mandatários ou do tribunal, o Novo Código de Processo Civil (o mesmo sucedendo com os anteriores), prevê várias modalidades de intervenção processual dos técnicos com esses conhecimentos, como resulta do disposto nos artigos 50º, 480º, nº 3, 492º e 601º. O técnico não é, no artigo 50º do nCPC, um perito, mas um assistente do mandatário, gozando, em relação às questões para que tenha sido designado, dos mesmos direitos e deveres que o advogado, podendo fazer perguntas às testemunhas, mas já não tem o direito de alegar. Tem a mesma função e a mesma posição, o assessor técnico, que as partes podem escolher para as acompanhar na assistência à realização pelos peritos da inspecção e averiguações necessárias à elaboração do relatório pericial (artigo 480º, nº 3 do nCPC). O técnico é ainda e apenas um assessor técnico, na inspecção judicial, que nela intervém apenas para elucidar o juiz sobre o objecto e conteúdo da observação do juiz. O mesmo sucede com o técnico designado pelo Tribunal para assistir ao julgamento e prestar os esclarecimentos necessários (artigo 601º do nCPC). De resto, o próprio nº 7 do artigo 604º do nCPC, ao estabelecer (tal como já sucedia anteriormente), que o tribunal pode em qualquer momento, antes dos debates, durante eles ou depois de findos, ouvir o técnico designado, reconhece inexoravelmente que não é possível atribuir o valor de meio de prova à intervenção do aludido técnico designado pelo Tribunal. Como já esclarecia JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, 318-319 e 507, acerca do papel ou perfil processual do assessor técnico: “(…) É mero auxiliar do juiz; ajuda-o a observar e interpretar os factos (…) O perito, no arbitramento, funciona como agente de prova, é ele que capta e aprecia os factos; pelo contrário o técnico (…) não é agente de prova, é mero auxiliar do verdadeiro agente, que é o juiz. Quem observa e aprecia os factos é o magistrado; o técnico, quando intervenha, apenas presta esclarecimentos ao juiz, como lhos prestam as partes. (…)A função que ele exerce é fundamentalmente a mesma, auxiliar e esclarece o tribunal quanto ao exame e interpretação de factos que pela sua natureza técnica demandam conhecimentos especiais”. Conclui-se, portanto, que o papel destes técnicos é distinto da função dos meios de prova. Ao assistente técnico cabe munir o juiz do grau de compreensão da realidade suficiente para ele poder avaliar correctamente os meios de prova. Não se trata de dotar o juiz do grau de conhecimentos técnicos ou científicos do técnico, mas de lhe fornecer o conhecimento necessário e suficiente para que ele compreenda e apreenda a complexidade dos factos em discussão – v. neste sentido Ac. Ac. R.P. de 08.11.2012 (Pº 6439/07.3TBMTS.P1). Justificando a assistência técnica no processo, designadamente, na audiência de julgamento, a existência de matéria de facto que envolve questões ou dificuldades de natureza técnica que não estão ao alcance do tribunal, é natural que este se apoie no conhecimento que lhe advém do técnico que o assessorou, podendo, por isso, o entendimento do técnico ser usado na fundamentação da decisão, desde que, evidentemente, os factos em questão resultem dos meios de prova concretamente produzidos no processo, maxime, dos depoimentos das testemunhas, dos documentos ou da perícia, e não apenas porque o técnico o afirmou. O entendimento e parecer deste técnico é, em regra, dado verbalmente, na audiência de julgamento. Tal não significa que a intervenção do técnico não possa ser vertida a escrito, continuando a não ter a natureza nem o valor de meio de prova, destinando-se, como se disse supra, apenas e tão-somente a esclarecer e elucidar o tribunal a respeito da interpretação de determinados factos alegados pelas partes e que são objecto do litígio. No caso vertente, em face da prova testemunhal e pericial, o Tribunal Arbitral acatou, e fez sua, a interpretação que a técnica designada pelo Tribunal lhe transmitiu acerca dos factos dados como provados, transcrevendo na fundamentação de direito uma opinião da assessora técnica, sem que tal decorra necessariamente da fundamentação de facto. Não cabia, por conseguinte, ao Tribunal Arbitral notificar as partes da posição que lhe foi transmitida pela técnica, tanto mais que, conforme esclareceu o Presidente do Tribunal Arbitral, a solicitação da aqui relatora, a técnica não elaborou um parecer formal, mas apenas umas notas que forneceu ao Tribunal e cujo conteúdo se mostra transcrito no acórdão (v. fls. 342). Não omitiu o Tribunal Arbitral a prática de qualquer acto legalmente previsto. Mas ainda que tal fosse susceptível de configurar uma irregularidade processual sempre mesma não teve qualquer interferência no exame e decisão da causa, atenta a matéria dada como provada que, de resto, não foi impugnada pelas partes, razão pela qual, tal eventual irregularidade – que inexiste – nunca seria susceptível de determinar a anulação do processado. Não foi, por conseguinte, violado o princípio do contraditório. Ademais, inexiste qualquer decisão surpresa, porquanto, pese embora as partes não hajam sido notificadas para se pronunciarem sobre as notas elaboradas pela assessora técnica do Tribunal Arbitral – nem carecia de o ser - não se analisaram no acórdão arbitral quaisquer questões distintas daquelas que foram suscitadas e debatidas pelas partes, assim se concluindo que o Tribunal Arbitral não sustentou a sua decisão em soluções jurídicas diferentes daquelas que constituem o objecto do litígio, tendo por pressuposto a factualidade dada como provada. Assim, e contrariamente ao defendido pela recorrente, não se mostra violado o princípio do contraditório, indeferindo-se, nessa parte, o recurso (CONCLUSÕES i. a v.). ** ii) DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS. O que implica a análise: Þ DOS REQUISITOS DE QUE DEPENDE A PROCEDÊNCIA DO PROCEDIMENTO CAUTELAR Com particular relevância na apreciação da aparência do direito das requerentes. As providências cautelares a decretar pelo tribunal arbitral e previstas no artigo 21º da Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro, dependem da concorrência dos seguintes pressupostos: i. Pressupostos positivos: a) Fumus boni iuris – aparência do direito, i.e., probabilidade séria da existência do direito invocado pela requerente; b) Periculum in mora – fundado receio de que esse direito sofra lesão; ii. Um requisito negativo: c) prejuízo resultante para o requerido do decretamento da providência não exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar. Quanto ao requisito da existência do direito, apenas se pede ao Tribunal uma apreciação ou um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança; relativamente ao requisito da lesão, exige‑se um juízo, senão de certeza e segurança absoluta, ao menos de probabilidade muito forte, não bastando qualquer receio que pode corresponder a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, ou de um exame precipitado das circunstâncias. Não será, portanto, necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero fumus boni iuris, ou seja, e como acima ficou dito, que o direito se apresente como verosímil. Mas, para além da verificação do fumus boni iuris, importa que preenchido se mostre o requisito consistente no fundado receio de lesão, sendo que, como se disse, o critério de avaliação deste requisito não poderá assentar em simples conjecturas. Porém, estando em causa um alegado direito de propriedade industrial, o artigo 338º-I do Código da Propriedade Industrial permite que o titular desse direito lance mão de providência cautelar, mesmo quando a violação do direito já esteja consumada, destinando-se a pretensão do requerente a evitar a continuação dessa violação. E, nesta situação, defende-se na jurisprudência que no artigo 338º-I do CPI, tal como sucede no artigo 210º-G do CDADC, introduzido pela Lei nº 16/08, de 1 de Abril em transposição da directiva 2004/28/CE, o legislador tutelou situações caracterizadas pelo fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável nos direitos de propriedade intelectual (violações iminentes), a par das situações em que já tenha ocorrido violação e em que, continuando essa violação, se prescindiu da gravidade ou das dificuldades de reparação da lesão. Esta posição, inicialmente defendida no Ac. R.L. de 10.02.2009, CJ 2009, T. 1, 112, tem sido secundada por vários arestos dos Tribunais Superiores e foi seguida no acórdão arbitral recorrido, aí se citando jurisprudência dos Tribunais Superiores, sem que haja sido colocada em causa no recurso esse entendimento. No caso vertente, alegaram as requerentes no procedimento cautelar interposto contra a requerida, que esta, ao iniciar a comercialização do medicamento genérico contendo a substância activa “fenofibrato”, sob a forma farmacêutica de comprimidos na dosagem de 145 mg., com a designação comercial de “Fenofibrato Generis”, violou os direitos de propriedade industrial de que aquelas são titulares. É consabido que as invenções são regras técnicas destinadas a solucionar problemas técnicos ou a determinar uma nova via de solução tecnicamente mais perfeita ou economicamente mais eficiente. Para que uma invenção possa ser objecto de patente necessário será que essa invenção apresente as seguintes características fundamentais: O carácter inventivo; A novidade; O carácter industrial ou a aplicação industrial. O carácter inventivo deriva da circunstância de as leis sobre patentes visarem proteger a criação que não possa ser obtida como consequência normal e lógica dos conhecimentos ou do estado das técnica em determinado momento, o que significa que a invenção deve ultrapassar a técnica industrial corrente ou a capacidade ou faculdades normais de um perito médio na matéria. A novidade, resulta de a invenção para ser patenteável não pode estar compreendida no estado da técnica. Esta compreende, segundo LUÍS M. COUTO GONÇALVES, Manual de Direito Industrial: Patentes, Desenhos ou Modelos, Marcas, Concorrência Desleal, 2ª ed. 82, a descrição, utilização ou qualquer outro meio de divulgação, clara e inequívoca, de uma invenção que represente, substancialmente, a mesma solução para o mesmo problema técnico. Defendia já AMÉRICO DA SILVA CARVALHO, O Objecto da Invenção, Coimbra Editora, 1970, 16, que a novidade não poderia considerar-se como um requisito autónomo da invenção, mas como uma parte de um todo que é o carácter inventivo, pois para que a invenção possua carácter inventivo, necessário se torna que possua novidade. A verdade é que, a invenção terá de ser uma criação do seu autor, não podendo constituir a repetição de uma criação alheia. Quanto ao carácter industrial ou a aplicação industrial, decorre de a invenção ter de servir de base a uma indústria, entendida na sua acepção mais ampla, ligado ao conceito de produção, independentemente, no entanto, do seu valor comercial ou económico. Acresce aos supra mencionados requisitos principais de patenteabilidade, outros requisitos suplementares, tais como a suficiência da descrição e o carácter técnico da invenção. A descrição da invenção é feita na memória descritiva que compreende o título, a descrição propriamente dita e as reivindicações e são estas que definem o alcance e o âmbito da patente, aí devendo o inventor indicar o que considera novo e, finalmente, o resumo da invenção. De acordo com a Lei da Propriedade Industrial o âmbito de protecção de uma invenção é determinado pelas reivindicações, que definem o alcance da sua protecção (artigo 14º, nº 3 CPI /40 ou artigo 58º, alínea a) do CPI/95 ou artigo 62º, nºs 1 a) e 3 do CPI/2003), devendo indicar-se na primeira das reivindicações, e de forma clara, o objecto da invenção. Como esclarece J. P. REMÉDIO MARQUES, O Conteúdo dos Pedidos de Patente: A Descrição do Invento e a Importância das Reivindicações – Algumas Notas, “O Direito”, ano 139º, 2007, 869, as reivindicações são proposições linguísticas, as quais caracterizam, clara e sucintamente, os elementos de natureza técnica constitutivos da própria solução (técnica) em que se exprime o invento que o titular do direito à patente pretende proteger. Mas, para além das patentes de invenção de produtos novos, “reivindicações de produto” são também patenteáveis a criação ou a realização de um novo meio ou processo, ou aplicação nova de meios ou de processos semelhantes para se obter um produto comercializável ou resultado industrial. As “reivindicações de processo” incidem, portanto, sobre actividades ou acções providas de várias etapas ou estádios ou sobre um método ou procedimento de utilização. E, estes novos meios ou processos devem, pois, permitir obter um resultado industrial – físico, químico ou mecânico. Todavia, no que concerne à indústria química e farmacêutica, o regime decorrente do Código da Propriedade Industrial de 1940 – Decreto-Lei nº 30 679, de 24 de Agosto de 1940 - comportava algumas especificidades. Decorria do disposto no artigo 5º do CPI/40 que não podiam ser objecto de invenção os produtos da indústria química nem os preparados farmacêuticos, muito embora pudessem ser patenteados os processos da sua obtenção e os aparelhos ou sistemas do seu fabrico. Mas, após a entrada em vigor, no ordenamento português, da Convenção Sobre a Patente Europeia, em 1 de Janeiro de 1992, passou a ser possível designar o Estado Português como ordenamento para onde, no domínio de um pedido de patente europeia, se pode pedir a tutela de invenções de produtos químicos e farmacêuticos. O impedimento de outorga de patentes nacionais relativas a tais invenções de produtos químicos e farmacêuticos apenas foi alterado com a entrada em vigor, em 1 de Junho de 1995, do Código da Propriedade Industrial de 1995 – Decreto-Lei nº 16/95, de 23 de Agosto. Com a adesão de Portugal ao Acordo que instituiu a Organização Mundial do Comércio (O.M.C.), sempre se entendeu a aplicação no território nacional do Acordo TRIPS (Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Industrial Relacionados com o Comércio que faz parte daquele como Anexo I.C.), ambos aprovados pela Comissão Europeia, na sua qualidade de parte contratante, por Decisão do Conselho 94/800CE, de 22 de Dezembro. Acresce que o Acordo que criou a Organização Mundial do Comércio e respectivos anexos, decisões e declarações ministeriais e o Acto Final que consagra os resultados das negociações comerciais multilaterais do Uruguay Round, assinados em Marraquexe em 15 de Abril de 1994, foram aprovados pela Resolução da Assembleia da República nº 82-B/94 e ratificados por Decreto do Presidente da República nº 82-B/94, DR, I-A nº 298/94 de 27.12.94. O Acordo TRIPS protege, no nº 1 do seu artigo 27º, as invenções em qualquer domínio da tecnologia, quer se trate de produtos ou processos, sendo certo que, por força do artigo 65º, nº 1 do Acordo TRIPS, os Estados contratantes ficaram obrigados a aplicar as suas disposições a partir de 1 de Janeiro de 1996, sendo tal acordo de aplicação directa pelos Tribunais Nacionais dos Estados Membros da Comunidade Europeia, como sempre foi jurisprudência firmada do Tribunal de Justiça das Comunidades, integrando o direito interno português - v. neste sentido, e a título meramente exemplificativo, Acs. STJ de 03.11.2005 (Pº 05B1640) e de 03-05-2011 (Pº 317/2002.S1), acessíveis na Internet, no sítio www.dgsi.pt. Tal questão está hoje ultrapassada com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 36/2003, de 5 de Março, sucessivamente alterado pelos Decreto-Lei nº 318/2007, de 26 de Setembro; Decreto-Lei nº 360/2007, de 02 de Novembro; Decreto-Lei nº 143/2008, de 25 de Julho, Lei nº 16/2008, de 01 de Abril, Decreto-Lei nº 143/2008, de 25 de Julho, Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto e Lei nº 46/2011, de 24 de Junho. O artigo 51.º e segs. do Código da Propriedade Industrial regula o âmbito de aplicação de patentes, como um direito privativo da propriedade industrial que visa proteger uma invenção, embora ali se não apresente uma definição legal deste conceito. Decorre do artigo 51º do aludido CPI que: 1 - Podem ser objecto de patente as invenções novas, implicando actividade inventiva, se forem susceptíveis de aplicação industrial, mesmo quando incidam sobre um produto composto de matéria biológica, ou que contenha matéria biológica, ou sobre um processo que permita produzir, tratar ou utilizar matéria biológica. 2 - Podem obter-se patentes para quaisquer invenções, quer se trate de produtos ou processos, em todos os domínios da tecnologia, desde que essas invenções respeitem o que se estabelece no número anterior. 3 - Podem igualmente ser objecto de patente os processos novos de obtenção de produtos, substâncias ou composições já conhecidos. Ora, a concessão de uma patente tendo por objecto um produto confere ao seu titular o direito exclusivo de explorar esse produto, podendo impedir que um terceiro pratique actos através dos quais se concretiza a exploração do produto, opondo-se à sua fabricação ou venda qualquer que seja o processo empregado por esse terceiro de obtenção do produto. Trata-se da aplicação da doutrina da protecção absoluta das patentes de produto, que gozam de eficácia erga omnes, impondo a todos os sujeitos jurídicos um dever geral de respeito. Por seu turno, a patente de processo possui uma protecção relativa, na medida em que confere ao seu titular um direito exclusivo de explorar o invento, que neste caso consiste no processo protegido, não podendo um terceiro produzir, vender ou de qualquer forma comercializar o produto obtido através do processo patenteado, podendo, no entanto, o terceiro, produzir o produto desde que o faça por processo diferente daquele que é objecto de patente. Vejamos, então, se face à matéria dada como provada, demonstraram as requerentes deterem o direito que invocaram, ou seja, ter a requerida violado o direito exclusivo da requerente, comercializando o produto em causa – medicamento genérico designado “Fenofibrato Generis” (145 mg), contendo a substância ativa “Fenofibrato” na dosagem de 145 mg sob a forma de comprimidos - que é objecto das patentes de que as requerentes são detentoras, começando por analisar se as requerentes lograram demonstrar a aparência do direito de que se arrogam. E, com efeito, provado se mostra que as requerentes são detentores das Patentes de Invenção Europeias nºs 952829, 1275387 e 1273293, às quais foi atribuído efeito nacional, tendo sido atribuída à Patente de Invenção Europeia n.º 952829, efeito nacional, encontrando-se a mesma registada no INPI sob a epígrafe “Composição farmacêutica de fenofibrato que apresenta uma biodisponibilidade elevada e seu modo de preparação” estendendo-se a data limite de vigência da patente, a 16.01.2018, tendo sido concedida à 3ª requerente, em 06.06.2005, a AIM do medicamento “SUP....”, comprimido revestido por película, na dosagem de 145 mg - v. Nºs 1 a 11 da Fundamentação de Facto. Por seu turno, a Patente de Invenção Europeia n.º 1275387, a que foi atribuído efeito nacional, encontra-se registada junto do INPI sob a epígrafe “Processo de preparação de composições farmacêuticas de fenofibrato apresentando uma biodisponibilidade elevada”. Finalmente, a Patente de Invenção Europeia n.º 1273293, a que foi atribuído efeito nacional, encontra-se registada junto do INPI sob a epígrafe “suspensão de fenofibrato numa solução de polímero hidrófilo”. Em Portugal, os despachos de concessão das Patentes de Invenção Europeia n.ºs 1275387 e 1273293, tituladas pela 1ª Requerente, foram emitidos em 22/06/2006, estendendo-se os seus efeitos até 16/01/2018, encontrando-se averbadas, em 15/02/2013 e em 25.02.2013, no INPI, respectivamente, a licença de exploração total destas patentes a favor da 2ª Requerente e sublicença de exploração das mesmas a favor da 3ª Requerente - v. Nºs 42 a 44, 75 a 78 da Fundamentação de Facto. Gozam, pois, as requerentes da protecção das patentes de invenção e de produto, relativamente ao Fenofibrato – v. Nºs 13 a 41, 45 a 74 e 79 a 96 da Fundamentação e Facto – o que significa que: Este processo de preparação de um granulado compreende a pulverização, sobre um suporte inerte, de uma suspensão de fenofibrato na forma micronizada com um tamanho inferior a 20 µm, numa solução de polímero hidrófilo e, eventualmente, de tensioactivo. (reivindicação 1). As reivindicações abrangem tamanhos de partículas inferiores, como é referido na reivindicação 4, assim como percentagens de polímero menores e próximas das usadas pela Requerida (reivindicação 23). c) A EP 952829 confere protecção à composição, perfil de dissolução e processo de fabrico da composição farmacêutica.
Mais se provou que, a pedido da requerida, foi aprovada, em 20.01.2014, a AIM do medicamento genérico “Fenofibrato Generis”, na dosagem de 145 mg e que aquela iniciou a comercialização desse medicamento genérico contendo a substância activa “fenofibrato” – v. Nºs 100 a 103 da Fundamentação de Facto. Mas, a propósito do seguinte excerto da nota da assessora técnica do Tribunal Arbitral transcrito no Acórdão: Acresce ainda que á data da prioridade da patente francesa FR 9700479, 1997.01.17 não havia tecnologia que permitisse a redução do tamanho da partícula de fenofibrato para a ordem dos nanómetros. Pode assim deduzir-se que, os autores ao limitarem nas reivindicações das patentes tamanhos de partículas inferiores a 10 µm salvaguardaram futuros desenvolvimentos baseados em tecnologias emergentes que permitissem atingir partículas de menores dimensões.”, invoca, a recorrente, o disposto no artigo 123º da CPE, entendendo que a patente não pode ser modificada por forma a que o seu objecto se estenda para além do conteúdo do pedido, sob pena de nulidade. Resulta do citado artigo 123º, nº 2 da Convenção da Patente Europeia, de 5 de Outubro de 1973, aprovada para ratificação pelo Decreto nº 52/91, de 30 de Agosto (http://www.gddc.pt/siii/docs/dec52-1991.pdf ) que: 1 - As condições em que um pedido de patente europeia ou uma patente europeia, no decurso do processo perante o Instituto Europeu de Patentes, pode ser modificado estão previstas no regulamento de execução. Em qualquer caso, o requerente pode, por sua própria iniciativa, modificar pelo menos uma vez a descrição, as reivindicações e os desenhos. 2 - Um pedido de patente europeia ou uma patente europeia não pode ser modificada de forma que o seu objecto estenda para além do conteúdo do pedido, tal como foi depositado. 3 - No decurso do processo de oposição, as reivindicações da patente europeia não podem ser modificadas de forma a alargar a protecção. Decorre, por outro lado do artigo 69º do CPE que: 1 - O âmbito da protecção conferida pela patente europeia ou pelo pedido de patente europeia é determinado pelo âmbito das reivindicações. Contudo, a descrição e os desenhos servem para interpretar as reivindicações. 2 - Durante o período até à concessão da patente europeia, o âmbito da protecção conferida pelo pedido de patente europeia é determinado pelas reivindicações depositadas em último lugar contidas na publicação prevista no artigo 93.º Contudo, a patente europeia tal como concedida ou modificada no decurso do processo de oposição determina retroactivamente essa protecção, desde que esta não seja alargada. E, prevê-se no protocolo interpretativo do artigo 69.º da Convenção, aprovado em 5 de Outubro de 1973 em resultado da Conferência Diplomática de Munique para a Instituição de um Sistema Europeu de Concessões de Patentes que: «O artigo 69.º não deve ser interpretado como significando que o âmbito da protecção conferida pela patente europeia é determinado no sentido restrito e literal do texto das reivindicações e que a descrição e os desenhos servem unicamente para dissipar as ambiguidades que se poderiam encontrar nas reivindicações. Não deve ainda ser interpretado como significando que as reivindicações servem unicamente de linha directriz e que a protecção se alarga igualmente ao que, no parecer de um perito da matéria que tenha examinado a descrição e os desenhos, o titular da patente entendeu proteger. O artigo 69.º deve, pelo contrário, ser interpretado como definindo entre esses extremos uma posição que assegure ao mesmo tempo uma protecção justa ao requerente e um grau razoável de certeza a terceiros.» Sucede que tendo em consideração a matéria dada como provada – que não foi alvo de qualquer impugnação no recurso – dela não decorre ter ocorrido qualquer modificação das patentes de invenção em causa nos autos. Acresce que se infere expressamente, quer das reivindicações 2, das patentes de invenção europeia nºs 952829 e 1273293, quer da reivindicação 4, da patente de invenção europeia nº 1275387, às quais foram atribuídos efectivos nacionais, que as partículas de fenofibrato com dimensões menores a 10 µm se mostram alvo da protecção que as aludidas patentes conferem aos seus titulares, as ora requerentes/recorridas – v. Nºs 8, 13, 42, 48, 75 e 80 da Fundamentação de Facto. Não se mostra, pois, da factualidade dada como provada, que as requerentes/recorridas beneficiem de uma esfera de protecção superior ao que se mostra vertida nas citadas reivindicações, pelo que improcede tudo o que in adverso consta da alegação de recurso da recorrente (CONCLUSÕES vi. a xii). ** iii) DA INTIMAÇÃO CONSTANTE DO ACÓRDÃO RECORRIDO DE A REQUERIDA/RECORRENTE NÃO VENDER OU CEDER A TERCEIROS A AUTORIZAÇÃO DE INTRODUÇÃO NO MERCADO Insurge-se a recorrente contra a decisão recorrida, na parte em que a condenou a não vender ou ceder a terceiro a autorização de introdução no mercado do medicamento genérico “Fenofobrato Generis”, enquanto os direitos de propriedade industrial das requerentes se mantiverem em vigor e não ocorrer decisão no processo principal. A introdução no mercado nacional de medicamentos para uso humano está sujeita a autorização por parte do Infarmed, a qual depende do preenchimento de requisitos atinentes à qualidade, segurança e eficácia terapêuticas do medicamento, tendo como objectivo essencial a protecção da saúde pública - art.º 14.º do Regime Jurídico dos Medicamentos de Uso Humano, Estatuto do Medicamento (EM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30.8, com alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 182/2009, de 07.8, Decreto-Lei n.º 64/2010, de 09.6, Decreto-Lei n.º 106-A/2010, de 01.10, Lei n.º 25/2011, de 16.6, Lei n.º 62/2011, de 12.12, Lei n.º 11/2012, de 08.3, Decreto-Lei n.º 20/2013, de 14.02 e Decreto-Lei n.º 128/2013, de 05.9. Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, alínea ii) do EM, medicamento de referência é um “medicamento que foi autorizado com base em documentação completa, incluindo resultados de ensaios farmacêuticos, pré-clínicos e clínicos.” Medicamento genérico é, na definição enunciada na alínea oo) do citado n.º 1 do art.º 3.º do EM, um “medicamento com a mesma composição qualitativa e quantitativa em substâncias ativas, a mesma forma farmacêutica e cuja bioequivalência com o medicamento de referência haja sido demonstrada por estudos de biodisponibilidade apropriados” Os medicamentos genéricos, produzidos e comercializados sem necessidade da realização, em boa parte, dos demorados e onerosos estudos e ensaios prévios que antecederam os medicamentos de referência, como detalhadamente exemplifica J.P.REMÉDIO MARQUES, Medicamentos versus Patentes, Coimbra Editora, 2008, 25 a 27, e se mostram previstos no artigo 19.º n.º 1 do EM, podem ser colocados à disposição do consumidor a preços significativamente mais baixos do que os medicamentos de referência, o que torna a sua entrada no mercado questão de interesse público, nomeadamente pelas poupanças que proporcionam aos serviços nacionais de saúde. A AIM tem por finalidade garantir a eficácia, qualidade e segurança do medicamento. A admissão de que a atribuição da AIM e a subsequente tramitação administrativa necessária à entrada no mercado de medicamentos genéricos podia ser alvo de interferências decorrentes de alegada necessidade de protecção de direitos de propriedade industrial maxime, os direitos emergentes de patentes, a que a autoridade administrativa (Infarmed) teria de atender, parecia afrontar o regime previsto no Estatuto do Medicamento e na Directiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 06.11.2001, que aprovou o Código Comunitário dos Medicamentos para Uso Humano, e bem assim na Directiva 2004/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 31.3.2004, que alterou a Directiva 2001/83/CE com o objectivo de incrementar a comercialização de medicamentos genéricos, na medida em que em nenhum desses instrumentos jurídicos se fazia depender a concessão de autorização de introdução do medicamento no mercado da inexistência de direitos de patente vigentes que pudessem ser por ela afectados. Há, todavia, uma distinção entre a concessão de AIM e a eventual violação de patentes, conforme decorre do Relatório Final do Inquérito da Comissão Europeia ao Sector Farmacêutico, de 08.07.2009 (v. http://ec.europa.eu/competition/sectors/pharmaceuticals/inquiry/staff_working_paper_part1.pdf, pg. 130 e 131), onde se considera que o denominado “patent linkage”, ou seja, a pretensão de conexão entre a concessão de AIM ou de qualquer aprovação administrativa de um medicamento genérico e o estado da patente do medicamento de referência, é contrária à legislação comunitária, nomeadamente face ao disposto no art.º 126.º da Directiva n.º 2001/83/EC, que estabelece que “a autorização de introdução no mercado apenas pode ser recusada, suspensa ou revogada pelas razões enumeradas na presente directiva” e ao disposto no Regulamento (CE) n.º 726/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31.3.2004, alterado pelo Regulamento (CE) n.º 1901/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2006, que estabelece procedimentos comunitários de autorização e de fiscalização de medicamentos para uso humano e veterinário e que institui uma Agência Europeia de Medicamentos, em cujo n.º 2 do artigo 81.º se estipula que “uma autorização de introdução no mercado de um medicamento em conformidade com o presente regulamento só pode ser concedida, recusada, alterada, suspensa, retirada ou revogada em conformidade com os procedimentos e pelas razões previstas no presente regulamento”). A Lei n.º 62/2011, de 12.12, introduziu alterações ao Estatuto do Medicamento e ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos (Dec.-Lei n.º 48-A/2010, de 13.5). Tal diploma teve origem na Proposta de Lei n.º 13/XII, de 01.9.2011, em cuja Exposição de Motivos se alude ao dito Relatório do Inquérito da Comissão Europeia ao Sector Farmacêutico, e apela para as recomendações da Comissão Europeia, salientando-se o facto de a jurisprudência nacional ter vindo a entender que “os direitos de propriedade industrial podem ser afectados pela concessão das autorizações de introdução no mercado, do preço de venda ao público e da comparticipação do Estado no preço dos medicamentos”, e anuncia-se o propósito de estabelecer “a compatibilização que se considera adequada desses direitos com outros de idêntica relevância, como é o caso do direito à saúde e ao acesso a medicamentos a custos comportáveis, bem como dos direitos dos consumidores.” Assim, por força da referida Lei n.º 62/2011, de 12.12, foi aditado ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos, o artigo 2º-A, onde expressamente se declara que: § o pedido que visa a obtenção de inclusão do medicamento na comparticipação não pode ser indeferido com fundamento na existência de eventuais direitos de propriedade industrial, § a decisão a proferir sobre a inclusão ou exclusão de medicamento na comparticipação não tem por objecto a apreciação da existência de eventuais direitos de propriedade industrial, não é contrária aos direitos relativos a patentes ou a certificados complementares de protecção de medicamentos e não pode ser alterada, suspensa ou revogada com fundamento na existência de eventuais direitos de propriedade industrial. Merecem ainda destaque as alterações na redacção dos seguintes normativos: a. No artigo 19º, nº 8 passou a incluir-se a concessão de autorização de introdução no mercado entre as situações que, nos termos desse número, “não são contrárias aos direitos relativos a patentes ou a certificados complementares de protecção de medicamentos”; b. No artigo 25.º atinente aos motivos de indeferimento do requerimento de autorização de introdução no mercado, passou a afirmar-se expressamente, no nº 2, que “o pedido de autorização de introdução no mercado não pode ser indeferido com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial”; c. No artigo 179.º, respeitante à suspensão, revogação ou alteração de autorização ou registo concedido ao abrigo do diploma, passou a prever-se expressamente, no nº 2, que “A autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento não pode ser alterada, suspensa ou revogada com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial”; d. Aditou-se também o artigo 23.º-A, em cujo n.º 1 se declara que “A concessão pelo INFARMED, I.P., de uma autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento de uso humano, bem como o procedimento administrativo que àquela conduz, têm exclusivamente por objeto a apreciação da qualidade, segurança e eficácia do medicamento”, determinando-se, no n.º 2, que “O procedimento administrativo referido no número anterior não tem por objeto a apreciação da existência de eventuais direitos de propriedade industrial”. Assim, foi assumido pelo próprio legislador que a concessão de autorização de introdução de um genérico no mercado não constitui, por si, violação da patente que proteja substância, processo de fabrico ou utilização implicada nesse medicamento, não se inserindo em nenhuma das actuações proibidas pela norma do art.º 101.º n.º 2 do CPI (“fabrico”, “oferta”, “armazenagem”, “introdução no comércio”, “utilização”, “importação” ou “posse para alguns dos fins atrás mencionados”). Não se vê, por conseguinte, que a transmissão da aludida autorização corporize alguma das tipificadas actuações tidas pelo legislador como violadoras do exclusivo concedido pela patente. A AIM é uma posição activa na esfera jurídica da requerida/recorrente, um bem com valor económico, e que, segundo a regra geral, está no comércio jurídico, podendo ser alvo de negócios, embora mediante autorização do Infarmed, conforme decorre do artigo 37.º do EM – v. no sentido aqui defendido, Acs. R.L. de 12.12.2013 (Pº 617/13.3YRLSB-6) e de 13.02.2014 (Pº 1053/13.7YRLSB-2) – este último de que a aqui relatorae 1º adjunto ali foram adjuntos e que, nesta parte, se tem vindo a seguir de perto, e no qual se cita jurisprudência deste Tribunal da Relação com idêntico entendimento. Aliás, não resulta sequer da matéria dada como provada qualquer indício que demonstre que a requerida/recorrente se prepare ou se encontre a fazer diligências junto de outra entidade, para transferir a AIM de que é titular. Acresce, que sempre se poderá entender que a decisão arbitral correspondente ao primeiro pedido formulado na providência cautelar, aqui confirmado, impor-se-á ao eventual transmissário da AIM por ela afectada, pois o adquirente tem a mesma qualidade jurídica do transmitente, sendo igualmente exequível a decisão contra o adquirente, de acordo com o preceituado no artigo 54.º do nCPC. Entende-se, consequentemente, que a proibição de transmissão da AIM determinada no Acórdão Arbitral recorrido não deve subsistir, o que acarreta, neste particular, a procedência da apelação, revogando-se, nessa parte, a decisão arbitral. ** iv) DA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL PARA DECRETAR UMA SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA Insurge-se igualmente a requerida/recorrente contra o acórdão arbitral, na parte em que fixou uma sanção pecuniária compulsória de € 6.500,00 a ser paga pela requerida às requerentes, por cada dia de atraso no cumprimento das medidas cautelares determinadas no acórdão ou no incumprimento dessas determinações. Defende, em suma, a recorrente, a impossibilidade de aplicação da sanção pecuniária compulsória, prevista no artigo 829º-A do Código Civil, pelo Tribunal Arbitral, por ser matéria inarbitrável. Vejamos. Tal preceito foi aditado ao Código Civil através do Decreto-Lei n.º 262/83, de 16.6, constando do seu preêmbulo que tal medida “visa uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis.” Não é, por isso, a nosso ver, admissível que a condenação do devedor no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória seja aplicada de forma automática, sem que estejam efectivamente provadas circunstâncias que determinem a existência de sério risco da prática de infracção, sob pena de a força dissuasora e preceptiva da justiça, expressa na sanção pecuniária compulsória, ser mobilizada sem verdadeira causa. Determinadas medidas cautelares, por revestirem simultaneamente carácter declaratório e executivo, como é o caso do arresto, do embargo de obra nova ou da restituição da posse, não podem ser decretadas por tribunais arbitrais, precisamente por falta de poderes coercivos destes tribunais.
Admite-se, assim, que podem ser extensivas aos Tribunais Arbitrais as razões de salvaguarda do prestígio da justiça e de respeito pelos interesses do credor, objectivos que presidem à aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, pelo que se conclui que os tribunais arbitrais têm competência para aplicar tais sanções, reunidos que estejam os seus pressupostos e a sua adequação, e que esteja indiciada a susceptibilidade de incumprimento do decidido. Em relação aos pressupostos de aplicação da aludida sanção, impõe-se que esteja em causa uma obrigação negativa (de non facere), duradoura, de natureza continuada, já que as obrigações de non facere são o campo de aplicação por excelência da sanção pecuniária compulsória, dada a sua infungibilidade natural. É igualmente necessária a prova de que o devedor não tenciona cumprir o que haja sido decidido pelo Tribunal, já que só uma futura e previsível violação das condenações/intimações proferidas por um Tribunal justifica a condenação na sanção pecuniária compulsiva. Sucede que, in casu, a requerida/recorrente apenas colocou em questão a competência do Tribunal Arbitral para aplicar a sanção pecuniária, nada referindo, nem se insurgindo, quanto à verificação dos pressupostos e adequação para a sua aplicação, pelo que impedido está este Tribunal de recurso de sobre os mesmos se pronunciar. Improcede, pois, nesta parte, a apelação, mantendo-se a sanção pecuniária nos termos constantes do acórdão arbitral. Destarte, e sintetizando, julga-se parcialmente procedente a apelação, revogando-se o acórdão recorrido, no segmento que decretou “a proibição da requerida de transmitir a terceiros a AIM do medicamento genérico designado “Fenofibrato Generis” (145mg), enquanto os direitos de propriedade industrial das requerentes se mantiverem em vigor e não ocorrer no processo principal a que a presente providência respeita”, mantendo-se, no mais, a decisão recorrida. * Apelante e apeladas serão responsáveis pelas custas nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Novo Código de Processo, na proporção de 4/5 e 1/5, respectivamente. *** IV. DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso, revogando-se o acórdão recorrido, no segmento que decretou “a proibição da requerida de transmitir a terceiros a AIM do medicamento genérico designado “Fenofibrato Generis” (145mg), enquanto os direitos de propriedade industrial das requerentes se mantiverem em vigor e não ocorrer no processo principal a que a presente providência respeita”, mantendo-se, no mais, a decisão recorrida. Condenam-se apelante e apeladas no pagamento das custas, na proporção de 4/5 e 1/5, respectivamente.
Lisboa, 23 de Abril de 2015 _________________________________ Ondina Carmo Alves - Relatora
_________________________________ Eduardo José Oliveira Azevedo
_________________________________ Olindo dos Santos Geraldes |