Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
107/13.4TTBRR.L1-4
Relator: FILOMENA MANSO
Descritores: LOCAL DE TRABALHO
TRANSFERÊNCIA DE TRABALHADOR
CLÁUSULA CONTRATUAL
CADUCIDADE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário: 1.A cláusula acordada entre as partes de que "a trabalhadora prestará o seu trabalho no estabelecimento da 1ª outorgante no distrito de Setúbal, aceitando ser recolocada por conveniência de serviço em qualquer local ou departamento dentro do âmbito geográfico definido" deve ser interpretada no sentido da 1ª parte estipular o local de trabalho da Autora como sendo aquele em que foi colocada, contendo a 2ª parte um acordo dado ex ante pela trabalhadora à possibilidade da sua transferência.
2.Deve ser entendido que essa cláusula de mobilidade caducou, em face do preceituado no art. 194, nº2 do CT, disposição que deve ser também aplicada aos contratos de trabalho anteriores à da sua publicação, começando o prazo de dois anos a correr a partir da sua entrada em vigor.
3.Sufragando-se entendimento diverso, então deverá considerar-se que o exercício desse direito por parte da entidade empregadora é abusivo, nos termos e para os efeitos do art. 334 do CC, já que o facto da trabalhadora se ter mantido no mesmo estabelecimento da Ré durante cerca de 18 anos, criou na mesma a legítima e natural expectativa de que esta, não obstante a existência da referida cláusula de mobilidade, já não a iria acionar.
4.A transferência individual só pode ter lugar quando o interesse da empresa o exija e tal não implique prejuízo sério para o trabalhador(art. 194, b) do CT).
O interesse da empresa na transferência do local de trabalho tem que estar relacionado com razões de ordem técnica, produtiva ou

ou organizativa, não estando este comprovado quando a empresa apenas invoca "necessidades de reorganização e reestruturação dos serviços".
A aferição do prejuízo sério pressupõe que o mesmo assuma um peso significativo em face do interesse do trabalhador e não se reconduza a um incómodo ou transtorno suportáveis. Tal não se verifica quando a transferência implica um acréscimo de 5 horas diárias em deslocações, ficando ainda comprometida a possibilidade da trabalhadora tomar a medicação (a mesma sofre de depressão e agorafobia) e de manter a regularidade do ritmo de sono e de vigília.
5.Não tendo a Ré logrado provar a inexistência de prejuízo sério para a trabalhadora (ónus que sobre a 1ª impende), a ordem de transferência é ilegítima, não estando a Autora obrigada a cumpri-la.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-RELATÓRIO:


AA intentou contra BB, S.A., a presente acção com forma de processo comum pedindo que se considere ilegítima e se decrete a anulação da ordem de transferência da Autora para a loja do Barreiro e que lhe seja permitido continuar a desempenhar as suas funções na loja em que se encontra. Caso assim não se entenda, deverá a Ré ser condenada a pagar-lhe as despesas que terá de suportar com a transferência.

Alega, em síntese, que trabalhava na loja do Montijo, cidade onde reside. Em 6.10.2011, a Ré emitiu uma ordem, determinando a sua transferência definitiva para a loja (…) do Barreiro. A Autora opôs-se, alegando que sofre de depressão e agorafobia, necessitando, para a sua saúde, de conseguir manter o ritmo de sono e de vigília de forma regular, o que não acontecerá caso seja transferida, uma vez que tal implicará um acréscimo muito significativo do tempo para as deslocações e mesmo perigo para a sua segurança, uma vez que parte do percurso terá que ser feito a pé, em sítio isolado e de noite.

Foi realizada audiência de partes, nos termos do disposto no art.º 54.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, não se tendo mostrado possível a sua conciliação.

A Ré apresentou contestação, alegando, em síntese, que a Autora se vinculou, por contrato, a trabalhar em qualquer estabelecimento sito no distrito de Setúbal, pelo que nem sequer se configura uma transferência de local de trabalho. Mesmo que assim não fosse, os prejuízos alegados não põem em causa a legitimidade da ordem de transferência. A Autora não especifica quais os custos decorrentes da deslocação. Com tais fundamentos requereu a sua absolvição.

Foi dispensada a organização de base instrutória.

Seguidamente foi efectuada a audiência de discussão e julgamento, com cumprimento das formalidades legais, como consta da respectiva acta.

Após foi proferida a sentença, na qual foi exarada a seguinte:

DECISÃO.
Nestes termos, julgo a presente acção improcedente e, em consequência, absolvo a R. BB, S.A. dos pedidos formulados pela A. AA.
Valor da acção: € 5.000,01 (cinco mil euros e um cêntimo).
Custas a cargo da A...
Registe e notifique.

Inconformada, interpôs a Autora recurso para esta Relação no qual apresentou as seguintes.
CONCLUSÕES.
(…)

Nos termos expostos e noutros de direito aplicáveis, com o sempre mui douto suprimento de V. Ex.ª, deve ser julgado procedente a presente acção e, em consequência, ser decretada a ilegitimidade e decretada a anulação da ordem de transferência da A. para a loja do Barreiro e que lhe seja permitido continuar a desempenhar as suas funções na loja onde se encontra – Montijo.

Contra-alegou a Ré pugnando pela manutenção do julgado.

II–FUNDAMENTOS DE FACTO.

A 1ª instância considerou assentes os seguintes factos:

A.A Requerente foi admitida ao serviço da Requerida, mediante contrato de trabalho celebrado a 9 de Outubro de 1993.
B.No âmbito desse mesmo contrato, estipularam as partes na cláusula 2ª que a Requerente “prestará o seu trabalho no estabelecimento da 1ª outorgante no Distrito de Setúbal, aceitando ser recolocado por conveniência de serviço em qualquer local ou departamento dentro do âmbito geográfico definido”.
C.Mais estipularam as mesmas partes que a Requerente “cumprirá 32 horas semanais, de 2ª a Domingo, em regime de horários ou turnos e folgas (fixas ou rotativas), de acordo com o mapa de horários de trabalho e esquema de folgas estabelecido para o estabelecimento/sector onde for colocado.”.
D.Simultaneamente à celebração do contrato de trabalho, a Requerente aceitou ainda declarar por escrito que “não se considera com direito a indemnização e/ou compensações, nos casos de alteração de horário de trabalho, transferência de seção ou de mudança de local de trabalho”.
E.No passado dia 6 de Outubro de 2011, a R. deu ordem de transferência definitiva da A. para a Loja do (…) do Barreiro, onde aquela deveria comparecer a 7 de Novembro de 2011.
F.Tal transferência foi motivada por reorganização e reestruturação dos serviços prestados pela Requerida na loja onde a Requerente prestava o seu trabalho.
G.A A. trabalhava na loja do Montijo, cidade onde reside.
H.A A. respondeu a esta ordem, nos termos da carta, datada de 19 de Outubro de 2011, junta a fls. 15, que dá aqui por integralmente reproduzida, para todos os efeitos legais.
I.A R. pretende que a A. cumpra um horário de trabalho no qual, de segunda a sexta-feira entra à 8h e sai às 18h e nos restantes dias entra às 10h e sai às 20h, o que também significa que nos dias em que sai às 20 chega a casa por volta das 23h.
J.A A. solicitou que a ter de ser transferida o fosse para o (…) Montijo, onde a R. tem uma loja e que já não implicava este prejuízo sério na sua saúde.
K.Assim como, a concretizar-se a transferência que lhe fossem pagas as despesas acrescidas inerentes à deslocação.
L.A R. respondeu por carta datada de 3 de Novembro de 2011, recusando alterar a ordem de transferência.
M.E nessa carta a Requerida reafirmou a ordem já dada e a obrigação da Requerente em se apresentar na loja, em face das condições a que se tinha obrigado no âmbito do contrato de trabalho celebrado.
N.Nessa resposta, recordou a Requerida à Requerente que: “Vinculou-se através de um contrato de trabalho a desempenhar as suas funções no distrito de Setúbal; aceitando ser recolocada por conveniência do serviço em qualquer outro local ou departamento no âmbito geográfico definido; declarou que não se considera com direito a indemnização e/ou compensação no caso de mudança de local de trabalho dentro dos limites definidos”
O.Bem como informou ainda a Requerente que foi privilegiado um horário diurno por forma a possibilitar a saída do trabalho durante o período diurno de funcionamento da loja, no sentido de ir ao encontro das suas pretensões.
P.A A. sofre de depressão e agorafobia e mantém-se de baixa.
Q.E para a autora e para a sua saúde é necessário conseguir manter o ritmo do sono e da vigília de forma regular e em compatibilidade com o horário de trabalho de predomínio diurno.
R.A transferência para a loja da R. sita no Barreiro, (...), implica que, nos dias em que A. entrar às 8 horas, que se levante às 5h20m.
S.Pois terá de apanhar uma camioneta, carreira 410, junto da sua residência, às 6h10m.
T.Esta carreira levará a A. até ao terminal do Barreiro e leva cerca de 49 minutos a fazer o percurso.
U.No terminal do Barreiro deverá apanhar a carreira 3 que a levará à (…) e aí chegará às 7h02m.
V.Tal transferência e a hora a que a A. tem de se levantar para comparecer ao trabalho a horas, altera o ritmo de descanso vigília desta.
W.Acresce ainda que a A. tem de fazer a pé, após a última paragem, cerca de 1,5 km, por uma estrada sem passeio através de uma mata sem segurança alguma, para chegar à loja.
X.E dependendo da época do ano este percurso será feito de noite, ou à entrada ou à saída.
Y.Na loja onde a A. prestava o seu trabalho esta levava cerca de 8 minutos da sua casa ao local de trabalho e deste a casa, no regresso.
Z.Com a transferência, a A. passe a gastar cerca de 2h30m para cada lado, num total de 5 horas por dia.

AA.Fica alterada a possibilidade de cumprir a medicação.
BB.O estado de saúde mental da A. agravou-se.
CC.A A. perdeu a alegria e chora constantemente.
DD.A empresa proprietária da loja do Montijo não é a aqui Requerida, mas sim a empresa CC, S.A..
EE.Empresa anteriormente designada por “DD, S.A.”.
Não tendo sido impugnada a matéria de facto nem havendo motivo para proceder à sua alteração, mantém-se a fixada pela 1ª instância, que assim se considera definitivamente assente.

III–APRECIAÇÃO.

A questão que se coloca no recurso é a de saber se a ordem de transferência definitiva da Autora da loja do Montijo para a loja do BB, no Barreiro é ou não legítima e, na negativa, se a mesma deve ser anulada.

A 1ª instância entendeu que, no âmbito do contrato de trabalho celebrado entre as partes, estas acordaram que o local de trabalho abrangia qualquer estabelecimento da Ré sito no distrito de Setúbal. Assim, a deslocação da Autora de uma loja para outra, sita na mesma zona geográfica, não configura uma situação de transferência de local de trabalho, em sentido técnico-jurídico, estando legitimada em face do acordo das partes.

A Autora discorda, sustentando que ocorreu a transferência da trabalhadora, ao abrigo de uma cláusula contratual que, no entanto, deve considerar-se que caducou, face ao preceituado no art.194, nº2 do CT.

Vejamos então.

Ao estabelecerem um contrato de trabalho devem as partes definir o local de prestação do trabalho.

Dispõe o art. 193, nº1 do CT que “O trabalhador deve, em princípio, exercer a actividade no local contratualmente definido, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte” (e que regula a transferência de local de trabalho).

Assim, local de trabalho é, antes de mais, aquele que tiver sido acordado no contrato individual de trabalho e que pode ser estabelecido em termos mais ou menos amplos de forma a assegurar, desde logo, uma eventual mobilidade do trabalhador.

No caso vertente, as partes estipularam, na cl.2ª do contrato de trabalho, que a trabalhadora “prestará o seu trabalho no estabelecimento da 1ªoutorgante (ora Ré) no Distrito de Setúbal, aceitando ser recolocada por conveniência de serviço em qualquer local ou departamento dentro do âmbito geográfico definido”.

Esta cláusula coloca desde logo problemas de interpretação, pois é discutível se o aí convencionado constitui tão só a estatuição do próprio local de trabalho ou antes uma cláusula expressiva de um acordo dado ex ante pelo trabalhador à possibilidade da sua transferência.

Temos para nós que a aludida cláusula se subsume a esta última previsão. Com efeito, na sua 1ª parte foi estipulado que a Autora “prestará o seu trabalho no estabelecimento da 1ª outorgante no Distrito de Setúbal”, o que aponta para a colocação da Autora num concreto estabelecimento da Ré, sediado naquele distrito e que não poderá deixar de ser aquele em que foi colocada e na qual presta o seu trabalho há 18 anos. Repare-se que aí se refere “no estabelecimento” e não em qualquer estabelecimento. Este deverá pois ser o único (e acordado) local de trabalho, contendo a 2ª parte da cláusula o consentimento da Autora para, futuramente, poder ser transferida para qualquer outro local ou departamento da Ré sediado no distrito de Setúbal.

Seria este o sentido que um declaratário normal, ou seja, medianamente sagaz, diligente e prudente, colocado na posição da Autora, extrairia daquela declaração negocial, de acordo com as regras da interpretação previstas no nº2 do art. 236 do CC.

Aliás, a não ser assim entendido, ficaria sem sentido útil a 2ª parte da cláusula, uma vez que entendendo-se que o local de trabalho convencionado era qualquer estabelecimento da Ré sito no distrito de Setúbal, tornar-se-ia desnecessário acordar a autorização da trabalhadora para ser deslocada para qualquer deles.

Aqui chegados, importa averiguar da validade da ordem de transferência emitida pela Ré em 6.10.11.

Nos termos do art. 7º, nº1 da Lei 7/2009, de 12.2, que aprovou o CT/09 “(...) ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho aprovado pela presente lei os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou adoptados antes da entrada em vigor da referida lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos totalmente passados anteriormente àquele momento”.

Igual estatuição se encontra no art. 8º, nº1 da Lei 99/2003, de 27.8.

Tratando-se de apreciar a validade de uma cláusula de contrato outorgado em 9.10.1993, a disciplina legal a observar é, pois, a do regime constante da LCT.

Este diploma consignava, na al. e) do seu art. 21, a proibição da entidade patronal “transferir o trabalhador para outro local de trabalho, salvo o disposto no artigo 24”, estatuindo o nº1 deste artigo que “a entidade patronal, salva estipulação em contrário, só pode transferir o trabalhador para outro local de trabalho se essa transferência não causar prejuízo sério ao trabalhador ou se resultar da mudança, total ou parcial, do estabelecimento onde aquele presta serviço.”

A interpretação desta norma suscitou controvérsia quanto ao alcance do carácter supletivo conferido ao preceituado do art. 24 pela expressão “salva estipulação em contrário”.

No entanto, a maioria da doutrina e jurisprudência veio a considerar que o nº1 do art. 24 da LCT não se integra no grupo das normas imperativas, tratando-se, pelo contrário, de preceito dispositivo, que pode ser afastado por estipulações dos sujeitos dos contratos e, assim, as partes podem convencionar directamente no contrato de trabalho que a entidade patronal goza de liberdade na fixação do lugar de trabalho, sendo-lhe legítimo, a todo o tempo, transferir o trabalhador.

Tendo presente este entendimento, resta concluir que não haveria impedimento à estipulação de uma cláusula como a firmada entre Autora e Ré.

Há, todavia, que ter em conta que esta cláusula foi acordada em 9.10.93, aquando da admissão da trabalhadora, que esta sempre prestou a sua actividade no estabelecimento da Ré no Montijo e que apenas em 6.10.2011 a empregadora, prevalecendo-se dessa cláusula, determinou a transferência da Autora para um estabelecimento sito no Barreiro.

Ora, ainda que o art. 24, nº1 da LCT permitisse o acordo das partes, alargando ou restringindo a faculdade de transferência do trabalhador nos casos previstos nesta norma, certo é que o nº2 do art. 194 do CT/09, que é inovador, veio consagrar um prazo de caducidade das cláusulas contratuais que prevejam a mobilidade.

Aí se estatuiu, na sua parte final, que esse acordo caduca ao fim de dois anos, se não for aplicado.

Pretende-se, com a previsão da caducidade, proteger o trabalhador, evitando que as cláusulas de mobilidade sejam accionadas quando a sua situação laboral já se cristalizou num determinado espaço geográfico, com todos os reflexos a nível pessoal e familiar.

Mas será que tal norma é aplicável ao contrato ajuizado?

Afigura-se-nos que a resposta deve ser positiva.

Com efeito, segundo o nº1 do art. 7º da Lei 7/09, e como referimos supra, ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho aprovado pela presente lei os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou adoptados antes da entrada em vigor da referida lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos totalmente passados anteriormente àquele momento.

Não cabendo a situação em apreço na última parte desta norma, há que concluir que o disposto no nº2 do art. 194 do CT é aplicável ao presente caso, sendo que, naturalmente, o prazo de 2 anos para contratos anteriores à entrada em vigor do CT/09, só começa a contar a partir do dia 17.2.2009, uma vez que, tendo em conta a regra do art. 12 do CC, não pode ter aplicação retroactiva.

Acolhemos aqui aquele que foi também o entendimento sufragado no acórdão proferido na providência cautelar apensa, onde se escreveu:

“Dir-se-á que tal interpretação da lei é um absurdo, dado a referida norma do nº2 do artigo 194 do CT só ser aplicada a contratos de trabalho novos, em que tenha sido estabelecida uma cláusula desse tipo, mas importa recordar o teor da norma transitória que já reproduzimos acima e que, no que toca a esta matéria, não faz qualquer exclusão ou abre qualquer excepção, como acontece, por exemplo, no que toca à duração do período experimental, prazos de prescrição e caducidade, procedimento para aplicação de sanções, bem como para a cessação do contrato de trabalho e duração do contrato de trabalho a termo certo (diversas alíneas do número 5 do referido artigo 7º da Lei nº7/2009).
Mal se compreenderia que os novos contratos de trabalho, com cláusulas de transferência como a dos autos, beneficiassem de tal regime, mas que os anteriores contratos, firmados antes da vigência do actual Código do Trabalho de 2009 e com cláusulas similares àquelas, se mantivessem intocáveis e incólumes, podendo se manter inactivas até ao termo do vínculo laboral ou ser acionadas quando o empregador bem lhe aprouvesse, dado não carecerem de respeitar o referido período de 2 anos, contado a partir do dia 17/02/2009.
Afigura-se-nos que o legislador, com a disposição em análise, visou estabelecer alguma ordem e moralidade (perdoe-se-nos a expressão) nesta problemática, visando não só os contratos de trabalho novos como os já em vigor à data da entrada em vigor do actual Código do Trabalho (...)”.

Mas ainda que se entendesse que ao caso não era aplicável a caducidade da cláusula respeitante à mobilidade da trabalhadora, ainda assim somos levados a defender que o seu uso, ao fim de quase dezoito anos de vigência do contrato, é ilegítimo, configurando uma situação de abuso de direito.

Sob a epígrafe “Abuso de direito” dispõe o art. 334 do CC “Que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

Por sua vez, de acordo com o nº do art. 762 do CC, “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.”

Também segundo o art. 126, nº1 do CT/09 “O empregador e o trabalhador devem proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respectivas obrigações.”

Como referem A. Varela e Pires de Lima, CC Anotado, vol. II, 1968, Pág. 2, “À ideia de boa fé estão ligadas as ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança na realização e cumprimento dos negócios jurídicos.”

Ponderando sobre o exercício abusivo de uma cláusula de mobilidade no âmbito de um contrato de trabalho pronunciou-se o STJ, no Ac. de 12.2.09 (cujo entendimento foi também seguido no Ac. do mesmo Tribunal de 10.12.09), disponível em www.dgsi.pt.:

 “Do princípio da confiança, essencial à execução de um contrato por natureza duradouro, como é o contrato de trabalho, decorre uma particular tutela jurídica das expectativas geradas pelos comportamentos das partes no desenvolvimento interactivo da relação laboral ao longo do tempo, tutela essa que pode determinar a “neutralização” ou “desactivação” de um direito pelo decurso do tempo, ponderada a natureza diversa dos interesses em confronto: do lado do empregador, predominantemente, económicos; do lado do trabalhador, envolvendo aspectos fundamentais da existência humana.”
Trata-se, como escreve João Baptista Machado (no artigo Tutela da Confiança e “Venire contra Factum Proprio”, Obra Dispersa, vol. I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, pág. 421), de situações de “inadmissibilidade do exercício serôdio e desleal de um direito”, inadmissibilidade decorrente da combinação das seguintes circunstâncias: “a) o titular de um direito deixa passar longo tempo sem o exercer; b) com base neste decurso do tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não chegará a ser exercido; c) movida por esta confiança, essa contraparte orientou a sua vida, tomou medidas ou adoptou programas de acção na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado”.

Revertendo ao caso concreto, verifica-se que a Autora trabalhava numa loja no Montijo, cidade onde reside e durante 18 anos, não obstante a referida cláusula de mobilidade, certo é que a Ré nunca dela se socorreu, o que, fundadamente, fez criar no espírito da trabalhadora a ideia de que dela não iria mais fazer uso. E foi com base nesta actuação que a trabalhadora organizou a sua vida, residindo próximo do seu local de trabalho, a cerca de 8 minutos, com todas as vantagens daí advenientes, designadamente permitindo-lhe acorrer a necessidades pessoais ou familiares. Note-se que a Autora tem problemas de saúde, sofrendo de depressão e agorafobia e mantém-se de baixa e para a sua saúde é necessário conseguir manter o ritmo do sono e da vigília de forma regular e em compatibilidade com um horário de trabalho de predomínio diurno. Com a transferência, a Autora passa a gastar cerca de 2h30m para cada lado, num total de 5 horas por dia, o que acarreta uma alteração do ritmo de descanso e vigília e a impossibilidade de cumprir a medicação.

Assim, não é difícil concluir que o exercício daquela faculdade, que se traduz na mudança do local de trabalho para o Barreiro, cidade que não obstante se situar a cerca de 27 km acarretaria para a Autora um acréscimo diário de cinco horas em transportes, com prejuízos para a sua saúde, traria para aquela, muito provavelmente, uma desvantagem maior do que se tivesse ocorrido nos primeiros anos da execução do contrato, altura em que era significativamente mais nova e não teria então, muito provavelmente, problemas de saúde como os que agora a atingem.
Deste modo, ponderando as circunstâncias do caso concreto, afigura-se-nos que ao exercer o direito, após tão longo período de inactivação da cláusula em questão, em termos de esse inesperado exercício conduzir a um resultado mais danoso para a Autora do que o que ocorreria se o tivesse sido exercido num quadro em que não existisse a situação de confiança gerada pela sua actuação, a Ré excedeu os limites impostos pela boa fé na execução do contrato de trabalho, em que o valor da lealdade é particularmente significativo, ofendendo deste modo o sentimento de justiça socialmente dominante.

Assim, atento o disposto no art. 334 do CC, deve ter-se por ilegítimo o exercício do direito da Ré, de alterar o local de trabalho da Autora sem atender ao disposto no art. 194, nº1 do CT/09, que regula as situações em que pode ocorrer a transferência de um trabalhador e que passamos agora a analisar.

Deixando de parte os casos em que ocorre mudança ou extinção, total ou parcial, do estabelecimento onde o trabalhador presta serviço (al. a), a al. b) do nº1 do art. 194 do CT determina que a transferência individual só pode ter lugar:
a)quando outro motivo do interesse do empregador o exija;
b)quando a transferência não implique prejuízo sério para o trabalhador.

Quanto ao 1ºrequisito concordam todos os Autores que o interesse da empresa na transferência do local de trabalho tem que estar relacionado com razões de ordem técnica, produtiva ou organizativa da empresa e não com interesses pessoais do empregador.

Assim, para Maria do Rosário Ramalho (Direito do Trabalho, parte II, Coimbra, Almedina, 2014, pág.482) “Este requisito deve ser apreciado em termos objectivos (ou seja, como um interesse de gestão) e não confundido com as conveniências pessoais do empregador”.

Também Andrade Mesquita (Direito do Trabalho, AAFDL, Lisboa, 2004, pág. 580) refere “A alteração tem de corresponder a necessidades sérias da empresa, avaliadas de acordo com o princípio da boa fé”.

Ora, no caso vertente, a Ré justifica a transferência aludindo apenas que esta é motivada “por força das necessidades de reorganização e reestruturação dos serviços prestados pela BB, SA na loja BB do Montijo”.

Esta formulação é vaga e imprecisa, não se traduzindo em factualidade concreta que permita ao tribunal sindicar em que consistiu a invocada reorganização e reestruturação dos serviços de molde a poder-se concluir que estas implicavam a necessidade de transferência da trabalhadora.

Quanto ao 2º requisito e para a aferição da existência de prejuízo sério, refere Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 2014, pág.395 que “(...) é necessário que o prejuízo expectável seja sério, assuma um peso significativo em face do interesse do trabalhador, e não se possa reduzir à pequena dimensão de um “incómodo” ou de um “transtorno” suportáveis.”

Para Romano Martinez (Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, pág.172) “(...) o prejuízo sério deverá ser avaliado de acordo com um parâmetro de boa fé no cumprimento do contrato”.

Já Andrade Mesquita, ob. cit., pág. 581 entende que “O prejuízo sério traduz-se em perturbações intensas de interesses do trabalhador especialmente tutelados pelo ordenamento jurídico.”
Relativamente ao ónus da prova, sufragamos o entendimento de que é ao empregador que cabe a prova da inexistência de prejuízo sério.

Com efeito, a inexistência de prejuízo é pressuposto do exercício do poder do empregador, pelo que segundo o art. 342, nº1 do CC a prova da sua utilização legítima cabe ao empregador (neste sentido, Pedro Madeira de Brito, Código de Trabalho Anotado de 2009, pág.472).

Também Lobo Xavier (Curso de Direito do Trabalho, pág. 353) refere: “Pensamos que os ónus de alegação e prova relativamente à não existência de prejuízo sério pertencem ao empregador: este, para não pagar as indemnizações relativas ao despedimento no caso de transferência por mudança de estabelecimento ou para poder ordenar a transferência do trabalhador individual, carece de alegar e provar que o trabalhador não sofreu prejuízo sério”.

No caso presente, entendemos ser patente que a Ré não logrou demonstrar a inexistência de prejuízo sério para a trabalhadora. Com efeito, provou-se que, para efeitos do desempenho de funções na loja BB do Montijo, a Autora levava apenas 8 minutos da sua casa ao local de trabalho e vice versa. Com a mudança para o Barreiro todo este cenário se altera, passando a gastar cerca de 2h30m para cada lado, num total de cinco horas por dia. Terá ainda de ter-se em conta a hora de entrada ao serviço (8h) e a hora de saída (18h nos dias úteis e 20h aos fins de semana), que parte desse percurso será feito de noite, pelo menos em alguns períodos do ano, para além de obrigar a trabalhadora a percorrer a pé (cerca de 1,5km) uma estrada sem passeio, através de uma mata sem segurança alguma. Acresce que a Autora padece de depressão e agorafobia, sendo essencial para o seu estado de saúde que seja mantida a regularidade dos seus ritmos de sono e de vigília, o que é posto em causa tendo em conta a factualidade constante dos pontos R) e I).

Deste circunstancialismo decorre que o maior acréscimo de tempo gasto com as deslocações, os tempos mortos a aguardar pelos transportes e pelo início do tempo de trabalho, bem como a impossibilidade de manter períodos de repouso e vigília regulares, demonstram suficientemente o prejuízo sério que o legislador não permite.

Aqui chegados impõe-se indagar quais os meios de reacção que assistem à trabalhadora para se opor à ordem de transferência.

Temos para nós que a resolução do contrato com invocação de justa causa, prevista no nº5 do art. 194 do CT não é o único, constituindo, aliás, uma faculdade e não uma obrigação para o trabalhador. Com efeito, como garantias do trabalhador, o CT prevê a não sujeição a transferências ilícitas (art. 129, nº1, f) e ao não cumprimento de ordens ilegítimas (art. 128, nº1, e).

Deve, pois, ser declarada a ilegitimidade da ordem de transferência, porque contrária às garantias da Autora e, consequentemente, que esta não está obrigada a cumpri-la, procedendo a acção.

IV–DECISÃO.

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, pelo que se revoga a decisão recorrida, declarando-se ilegítima a ordem de transferência da Autora para a loja do BB do Barreiro, sendo lícita a sua recusa em cumpri-la.
Custas em ambas as instâncias pela Ré

Lisboa, 20 de Abril de 2016

Filomena Manso                            
Duro Mateus Cardoso
Albertina Pereira

Decisão Texto Integral: