Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7885/22.8T9LSB.L1-5
Relator: SARA REIS MARQUES
Descritores: CRIME DE INJÚRIA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
CRÍTICA OBJECTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: IQualquer documento avaliativo tem implícito a subjetividade do avaliador e envolve, não só a apreciação das qualidades académicas ou profissionais dos avaliados, mas também das suas características pessoais, de personalidade, que contendam com o exercício profissional. É relevante para a avaliação de um profissional que é candidato a um lugar de comando, a capacidade deste para decidir, o modo de se relacionar com a equipe e gerir conflitos, o espírito de iniciativa, o espírito de cooperação, a capacidade de liderança, a capacidade de autocontrolo emocional.

IIO Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) vem consistentemente interpretando o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem no sentido de que a proteção concedida à liberdade de expressão se aplica não apenas a informação ou ideias acolhidas favoravelmente ou encaradas como inofensivas ou indiferentes, mas também às que ofendem, chocam ou incomodam o Estado ou qualquer setor da população. Tais são as exigências do pluralismo, tolerância e abertura de espírito, sem os quais não existe uma sociedade democrática

IIISão atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto.

IVO direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO:


No âmbito destes autos, foi proferida decisão instrutória, em 29.11.2023, que concluiu pela não pronúncia da arguida AA pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 4 (quatro) crimes de injúria, ps. e ps. pelo art. 181.º, n.º 1, do Código Penal e do arguido BB pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 5 (cinco) crimes de injúria, ps. e ps. pelo art. 181.º, n.º 1, do Código Penal.
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Inconformado, veio o assistente CC interpor recurso desta decisão, formulando as seguintes conclusões:
1.–O ofendido é ...há cerca de 24 anos, com larga experiência profissional e trabalha na ... desde julho de 2007, portanto há cerca de 17 anos.
2.–Nunca lhe foi registado qualquer incidente ou acidente profissional na sua já longa carreira. 
3.–O recorrente foi submetido a diversas verificações entre fevereiro de 2020 e junho de 2022 (data dos factos), que constam a fls. 44 a 64 v. e fls. 91 a 103 dos autos sempre com apreciação largamente positiva.
4.–Os arguidos produziram quanto ao assistente as afirmações de fls. 104 e 108 dos autos.
5.–nos presentes autos não se discute se o recorrente tinha ou não condições para acesso à categoria de ….
6.–O que se discute são as expressões proferidas pelos recorridos e todo o contexto em que as mesmas foram produzidas.
7.–O recorrente tem um vasto histórico de avaliações profissionais positivas e, designadamente nos dois anos anteriores aos factos dos autos - junho de 2022
8.–Essas avaliações constam dos autos a fls. 44 a 64 verso e fls. 91 a 103.
9.–Avaliações que contêm classificações quantitativas e comentários feitos pelos … verificadores como a título de exemplo as transcritas no artigo 29 supra e que aqui se dão por reproduzidas para os legais efeitos.
10.–É no contexto de todas as larguíssimas apreciações positivas (fls. 44 a 64 verso e fls. 91 a 103 dos autos) que surgem os documentos manuscritos pelos recorridos de fls 104 e 108 dos autos.
11.–Os factos imputados aos recorridos constam de fls 104 e 108.
12.–A fls 104 o recorrido BB imputa ao assistente:
"Descontente com a estrutura da empresa",
"aponta "culpa" aos outros pelo seu insucesso",
"nos últimos 6 sectores, sempre recusou ser …, várias desculpas"
"grande revolta com a equipa de treinos e verificação",
"capacidade de liderança pouco clara e com lacunas, foge da tomada de decisão"
13.–E a fls 108 a recorrida imputa ao recorrente:
"… sempre a dizer mal de colegas, da companhia, da frota, dos instrutores,
Aparenta uma revolta e mostra uma raiva mal resolvida,
… pede sempre para ser …, mostrando-se relutante em …,
Dou 2 no overall por considerar que não tem atitude correta para assumir funções de …"
14.–O … é um documento de apreciação técnica, é assim que é visto na industria aeronáutica como referiram as testemunhas do recorrente a fls. dos autos.
15.–O … tem um campo de preenchimento que se refere a ..., cujo desígnio é fazer uma avaliação qualitativa entre 1 como mínimo e 4 como máximo, e nunca para manuscrever imputações sem qualquer sustentação fáctica (Onde? Como? Quando?).
16.–Todas as expressões constantes nos documentos manuscritos pelos arguidos referidas nas precedentes conclusões 12. e 13., são meramente conclusivas, não estão suportadas em nenhuma factualidade/causalidade concreta!!
17.–Considerando a gravidade das expressões e a natureza do documento, qualquer reporte deve supor uma mínima descrição factual/circunstanciada que suportasse aquele conteúdo conclusivo e desenquadrado
18.–São, pois, afirmações meramente gratuitas, ad homine!
19.–As afirmações dos recorridos não tiveram nenhuma consequência preventiva de segurança ou de natureza profissional.
20.–Passado que vai um ano e meio sobre a data dos factos o recorrente continua a … normalmente, a merecer a confiança da sua entidade patronal, a fazer as avaliações técnicas regulares com ótimo desempenho.
21.–Os recorridos sendo, como são, pessoas dotadas de elevada formação académica e técnica, têm particular responsabilidade, sabiam e tinham obrigação de saber o alcance das palavras que manuscreveram, intencionalmente, para atingir e ofender pessoal e profissionalmente o assistente. 
22.–Não foram realizadas diligências instrutórias,
23.–São abundantes os indícios dos autos quanto à probabilidade da prática dos crimes e, assim, quanto à probabilidade de condenação dos recorridos.
24.–E os indícios mais não são do que o conjunto de provas já recolhidas, o contexto dos factos, os sinais. – artigo 283 do CPP.
26.–O juízo de probabilidade razoável, ou seja os tais indícios suficientes à luz do n.º 2 do artigo 283 do CPP, exigido ao Tribunal de Instrução Criminal não equivale à decisão de mérito, ao juízo de certeza que cabe ao Tribunal de julgamento.
27.–Em face de toda a documentação carreada para os autos, os arguidos devem ser pronunciados e ao Tribunal de julgamento caberá, em face de toda a produção de prova pelas partes, com plena concretização dos Princípios da Imediação e da Oralidade, decidir quanto ao mérito dos autos.
28.–A decisão recorrida violou os artigos 9º do Código Civil, 308º nº 1 e 283º n.º 2 do CPP.
Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso, devem os arguidos ser pronunciados pela prática dos crimes de que vêm acusados, fazendo-se assim, Justiça!”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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O MP apresentou resposta, pugnando pela manutenção do decidido, sem que tenha formulado conclusões.
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-» Também os arguidos apresentaram resposta, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
“l.–Os Arguidos são …, … e …, designadamente em competências ….
2.–Quem determina a nomeação do … para frequência de curso de … é a … ou, em última instância o …, se houver reclamação.
3.–O … DD solicitou a todos os …, designadamente aos Arguidos, que entregassem os …, até dia … de … de 2022, em relação a todos os avaliados constantes da … de … de … de 2022.
4.–Os Arguidos também atribuíram a nota “2 - unsatisfactory” a outros avaliados.
5.–A decisão de inaptidão do Recorrente para aceder à frequência do Curso para … não foi determinada pelos … elaborados pelos Arguidos, pois vários … também identificaram insuficiências do Recorrente em aspectos essenciais para o exercício da função de ….
6.–O … tem por objectivo avaliar o …, numa escala de 1 a 4 (1 - poor; 2 - unsatisfactory; 3- satisfactory; 4- good), as competências técnicas (“Operation & Handling Factors) e competências não técnicas (“Human Performance Factors’).
7.–A frequência do curso de acesso a … não determina que o … venha a obter o necessário aproveitamento para ser ….
8.–Do processo pessoal do Assistente constam avaliações negativas expressas em termos similares aos usados pelos Arguidos.
9.–As competências não técnicas, especialmente, as competências pessoais que os Arguidos entenderam que o Recorrente não detinha, são essenciais às funções de ….
10.–A mera discordância do Recorrente quanto às avaliações /críticas formuladas pelos Arguidos e constantes dos …, não significa que se encontre reunida quer a factualidade necessária quer o elemento volitivo do dolo directo de injúrias, tão pouco o elemento intelectual ou cognitivo, na medida em que inexiste comprovadamente intenção de ofender a honra e a consideração do Recorrente.
11.–O crime de difamação, tem como objecto o mesmo bem jurídico do crime de injúria - a honra e consideração -, distinguindo-se desta por a imputação de factos ou utilização de expressões ser feita por intermediação de um terceiro, com quem o agente comunica por qualquer forma verbal ou escrita, imputando ao ofendido ausente factos ou formulando juízos ofensivos da sua honra e consideração, ao passo que na injúria a imputação ou juízo ofensivos da honra são dirigidos directamente ao titular desse bem jurídico (arts. 180.°, n.° 1, e 181.°, n.° 1, do C.P.).
12.–Os Arguidos no âmbito de um dever/instrução, no âmbito dos seus deveres como trabalhadores e também funcionais, prestaram informações sobre o Recorrente, através dos … que se destinavam ao conhecimento da … e que constituem um elemento que, nos termos da Cl.a 10.a n.° 1 alínea d), do AAACFE, anexo ao AE aplicável (AE ... /SPAC, BTE n.° 38, de 15.10, com as alterações posteriores) deve obrigatoriamente constar do processo de avaliação.
13.–Tais documentos têm uma finalidade específica e temporalmente definida e contida, não sendo do conhecimento público, uma vez que se destinam a integrar o processo de avaliação do Recorrente, não lhe sendo dirigidos.
14.–Aquelas informações versam sobre a apreciação das competências técnicas e não técnicas do Recorrente num período temporal definido, e com uma finalidade bem determinada, a saber, dotar a …, aqui um terceiro, de elementos, a par de outros de que mesma tem que dispor avaliação dos … para este fim específico.
15.–A eventual verificação de um qualquer ilícito criminal, o que não se aceita, sempre seria a de um crime de difamação e não de injúrias, conforme imputado, conforme consta do despacho de não pronúncia.
16.–Face aos concretos factos em causa, as afirmações vertidas pelos Arguidos não preenchem quer o tipo legal do crime de injúrias, quer do crime de difamação, cfr. arts. 181.° e 180.° do Código Penal.
17.–Os Arguidos nunca pretenderam ofender a honra e a consideração do Recorrente, nunca souberam que necessariamente o ofenderiam, e nunca previram como possível, nem se conformaram com tal ofensa.
18.–Para concluir se uma expressão é ou não ofensiva da honra e consideração, é necessário enquadrá-la no contexto em que foi proferida, o meio a que pertencem Assistente/Arguidos, as relações entre eles, entre outras circunstâncias.
19.–Na sua actuação, os Arguidos limitaram-se a desempenhar as suas funções, ao abrigo de um dever de avaliação solicitado pelo …, formulando juízos que resultaram do seu conhecimento directo, na medida em que voaram com o Recorrente.
20.–As imputações formuladas não integram o elemento emocional ou volitivo pois não afirmam a vontade dos Arguidos de agir em conformidade com tal conhecimento, ou seja, querendo a imputação ou a formulação de juízo correspondente integrante do tipo legal de crime em análise.
21.–Deste modo, o facto dos Arguidos se dirigirem a uma entidade terceira e até sem personalidade jurídica - a … - dando nota da sua apreciação sobre as condições do Recorrente para aceder a …, fazendo determinadas afirmações sobre o desempenho do mesmo, destituídos do elemento subjectivo ofensivo, não permitem a imputação de responsabilidade criminal aos Arguidos, sem prejuízo de não se conceder quanto a tal.
22.–O n.° 2 do art.° 180.° do CP prevê que a conduta não é punível quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da imputação ou tiver fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira - o que se verifica nos presentes autos.
23.–O que foi exprimido pelos Arguidos, como imputação de factos ao Assistente, assenta numa avaliação consciente e fundada, proferido em boa-fé como correspondendo ao que os Arguidos verificaram, o que desde logo exclui a ilicitude dos actos (cfr. n° 2 do art.° 180° do CP) e a criminalização das condutas.
24.–Assim, bem andou o Tribunal a quo ao não pronunciar os Arguidos já que não é possível formular um juízo de probabilidade de aplicação aos Arguidos de uma qualquer sanção em sede de julgamento, pelo que não existem indícios suficientes para os pronunciar pelos crimes que vinham imputados.
25.–A decisão recorrida fez boa aplicação do direito, não violando qualquer norma legal, designadamente os arts. 9.° do Código Civil e 308.° n.° 1 e 283.° n.° 2 do Código de Processo Penal.
Termos em que, deve ser negado provimento ao presente recuso, mantendo-se a decisão de não pronúncia dos Arguidos, para assim se fazer JUSTIÇA!”
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-» Uma vez remetido a este Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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-» Cumprido o artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente respondeu, reiterando o teor da sua motivação de recurso e respetivas conclusões.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II–OBJETO DO RECURSO

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
No caso, a questão trazida à apreciação deste Tribunal prende-se com a apreciação da suficiência de indícios suficientes da prática pelos arguidos dos crimes de que vinham acusados pelos assistente.
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III–TRANSCRIÇÃO DAS PARTES DA DECISÃO RECORRIDA RELEVANTES PARA A DECISÃO DO RECURSO:

B.- A factualidade que se mostra suficientemente indiciada:

Com relevância para a decisão a proferir, da acusação particular, mostra-se suficientemente indiciado que:
1.O assistente é …, titular da licença (…) n.º …, válida até ....2023.
2.O assistente trabalha como … na ... (...).
3.Em … de 2022, o assistente era elegível para o processo de avaliação ao curso de …, nos termos das normas previstas no Acordo de Empresa.
4.A … constituída para esse efeito reuniu em ….2022.
5.Nos dias …2022 e …2022, chegaram ao processo pessoal do assistente … subscritos pelos arguidos, … na ....
6.O arguido BB escreveu pelo seu punho o seguinte: … descontente com a estrutura da empresa; aponta "culpa" aos outros pelo seu insucesso; nos últimos 6 sectores, sempre recusou ser …, várias desculpas; grande revolta com a equipa de treinos e verificação; capacidade de liderança pouco clara e com lacunas; foge da tomada de decisão.
7.A arguida AA escreveu pelo seu punho o seguinte: Bom trabalho como …, bons procedimentos …; … mostra relutância em ser …; Nontecnhical skills com problemas; … sempre a dizer mal de colegas, da companhia, da frota e dos instrutores; Aparenta uma revolta e mostra uma raiva mal resolvida; … pede sempre para ser …, mostrando-se relutante em …; Dou 2 no overall por considerar que não tem atitude correta para assumir funções de ….
8.Os arguidos tinham conhecimento dos factos acima descritos e quiseram agir pela forma mencionada.

Com relevância para a decisão a proferir, do requerimento de abertura de instrução, mostra-se suficientemente indiciado que:

9.A arguida AA exerce funções de … na ... desde 2004 e é … desde 2017.
10.O arguido BB exerce funções de …na ... desde 2007 e é … desde 2019.
11.O processo de avaliação a que se referem as informações elaboradas pelos arguidos iniciou-se no dia …2022, com a publicação da nota “….”, emitida pelo DD, da qual constava a lista de … elegíveis para avaliação para …, onde se incluía o assistente.
12.Desta comunicação constava, para além do mais, que: Por forma a cumprir com a cláusula 10.ª do Anexo I do AE, solicita-se aos … que forneçam à … os "…" até ao dia … de Junho, desde que tenham … com os avaliados nos últimos 24 meses. Para tal, encontram-se nos cacifos individuais situados nas salas de apresentação do … em … e …, envelopes com os formulários necessários.
13.Os arguidos preencheram e entregaram os referidos … em resposta a esta solicitação.
14.A avaliação pessoal do … que consta dos … incide sobre competências técnicas e sobre competências não técnicas, especialmente, competências pessoais, como resolução de problemas, liderança ou relações interpessoais.

C.A factualidade que não se mostra suficientemente indiciada

Da acusação particular, não se mostra suficientemente indiciado que:
a)- Os … são documentos internos, exclusivamente, de avaliação técnica.
b)- Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

D.A discussão dos indícios

A factualidade acima descrita mostra-se suficientemente indiciada, essencialmente, com base na prova documental junta aos autos. A este propósito, atendeu-se aos documentos de fls. 104 (….preenchido pelo arguido BB), 108 (… preenchido pela arguida AA), 162v (vínculo laboral do assistente com a ...), 284 e 285 (actividade profissional da arguida AA), 295 (actividade profissional do arguido BB) e 301 a 302 (processo de promoção de … a … e solicitação para o preenchimento de …).
No que respeita à categoria profissional desenvolvida pelo assistente e pelos arguidos na ..., em conjugação com a referida prova documental, atendeu-se ainda às declarações prestadas pelo primeiro (fls. 115 a 117) e pelos últimos (fls. 132 a 135 e 141 a 144).
Quanto ao concreto preenchimento pelos arguidos dos aludidos …, para além do teor de fls. 104 e 108, teve-se também presente que aqueles admitiram tal preenchimento nos moldes descritos na acusação particular. Contudo, os arguidos acrescentaram que a avaliação a que procederam, com referência aos vários campos do …, incide não só sobre questões técnicas, mas também sobre aspectos não técnicos, sendo que, como referiu o arguido BB, “a parte não técnica é que é a fundamental para o exercício das funções de …” (fls. 134), ou como afirmou a arguida AA, não corresponde à verdade que os … form somente versem sobre questões técnicas, pois, acrescentou, também incidem sobre competências não técnicas, sendo possível visualizar tal critério nos formulários (indicado no campo “…”) (fls. 143).
A este propósito, não obstante o que foi afirmado pelas testemunhas EE (fls. 76 e 77), FF (fls. 118 e 119) e GG (fls. 120 e 121), nomeadamente no que respeita à circunstância de, segundo os mesmos, a avaliação em causa incidir somente sobre questões técnicas, o tribunal considerou estar suficientemente indiciado que “a avaliação pessoal do … que consta dos … incide sobre competências técnicas e sobre competências não técnicas, especialmente, competências pessoais, como resolução de problemas, liderança ou relações interpessoais”, atenta a conjugação dos formulários (fls. 104 e 108) preenchidos pelos arguidos das declarações prestadas por estes. Na verdade, a conjugação entre si destes meios de prova e, sobretudo, o teor dos …, de onde consta o campo “…”, contraria frontalmente o que foi afirmado pelas aludidas testemunhas que, por tal motivo, não mereceram credibilidade.
Por fim, no que tange à factualidade que não se considerou estar suficientemente indiciada, a decisão do tribunal assentou, também aqui, na conjugação dos documentos de fls. 104 e 108 com as declarações prestadas pelos arguidos, não tendo estes meios de prova sido infirmados por qualquer outro.

E.O enquadramento jurídico-penal

O assistente imputou:
- À arguida AA, a prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 4 (quatro) crimes de injúria, ps. e ps. pelo art. 181.º, n.º 1, do Código Penal; e
- Ao arguido BB, a prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 5 (cinco) crimes de injúria, ps. e ps. pelo art. 181.º, n.º 1, do Código Penal.
De harmonia com o disposto no art. 181.º, n.º 1, do Código Penal, pratica o crime de injúria quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração.
Atenta a factualidade que se mostra suficientemente indiciada, a conduta dos arguidos não é susceptível de integrar o tipo objectivo do crime de injúria pois, ao nível da conduta, este ilícito prevê que a mesma seja dirigida directamente ao ofendido.
Assim, em abstracto, a actuação dos arguidos, ao preencherem os … em causa, para serem atendidos pela comissão de avaliação, suscita a questão do eventual preenchimento do tipo de crime de difamação. Nos termos do que dispõe o art. 180.º, n.º 1, do Código Penal, incorre na prática do crime de difamação quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.
O bem jurídico tutelado com esta incriminação, tal como sucede relativamente à injúria, é a honra enquanto bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.8
Trata-se de um crime comum, de dano, de mera actividade, de forma livre, praticável por acção, doloso e congruente.
No caso, não se mostra suficientemente indiciado que, com a respectiva conduta, os arguidos preencheram todos os elementos do tipo de crime de difamação, concretamente, o elemento objectivo de tal tipo de crime.
É certo que a liberdade de expressão não pode prevalecer sobre os direitos fundamentais dos cidadãos, designadamente, o direito ao bom nome.9 O direito-dever de expressar o pensamento não está, nem pode estar sujeito a qualquer tipo de censura; mas identicamente tem de ser exercido com claro índice cívico, de respeito do Homem pelo Homem. O art. 37.º da Constituição da República Portuguesa reflecte o princípio da proporcionalidade, o direito de livre expressão não é absoluto, devendo respeitar o direito à honra e ao bom-nome, salvo casos excepcionais.10
Contudo, em matéria de difamação e de injúria, a ilicitude relevante é sempre contingente e tem de ser aferida, em cada momento, por apelo à consciência ético-social da comunidade histórica. Nesta ordem de ideias, ressalvado que seja o reduto inexpugnável do mínimo de dignidade e bom-nome, é sempre relativa a qualificação de uma conduta como difamatória ou injuriosa.11 O carácter injurioso de uma palavra, ou acto, depende, em grande parte, do lugar ou ambiente em que seja proferida, bem assim do modo como o for e das pessoas que a profiram e a que sejam dirigidas.12
No caso em apreço nos autos, atento o exacto contexto em que as expressões em causa foram proferidas, não pode entender-se que as mesmas são ofensivas da honra ou da consideração do assistente. Na verdade, as considerações tecidas pelos arguidos não se reportaram à pessoa do assistente enquanto tal, mas antes ao seu desempenho profissional. Conforme se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.04.2017, os crimes de difamação e injúria supõem a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos, atuações, obras, prestações ou realizações, acrescentando-se no mesmo aresto que estes juízos, que são cobertos pela liberdade de expressão e crítica, não configuram elemento constitutivo de algum desses dois tipos de crime.13 Também neste sentido se considerou no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.12.2019 que: Uma expressão degradante só assume o carácter de «difamação» quando nela não avulta em primeiro plano a discussão objectiva das questões mas antes o enxovalho das pessoas. Para além da crítica polémica e extremada tem de se visar o rebaixamento das pessoas. Só poderá falar-se de «difamação» quando o juízo de valor ou a crítica perdem todo o contacto com a obra, a prestação ou o problema que os motiva ou com a discussão das questões de interesse comunitário. E, em vez disso, passam a obedecer apenas ao propósito de rebaixamento de uma pessoa. Atingindo-a no sentimento de auto-estima ou ferindo-a na sua dignidade pessoal e consideração social.14
Temos assim, em suma, que a conduta dos arguidos descrita pelo assistente é atípica. Na presente fase processual, porque os factos imputados aos arguidos na acusação particular não constituem crime, ao abrigo do disposto no art. 308.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código de Processo Penal, impõe-se proferir despacho de não pronúncia.
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III.Decisão

Por todo o exposto, nos termos do estatuído no art. 308.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código de Processo Penal, decide-se:
- Não pronunciar a arguida AA pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 4 (quatro) crimes de injúria, ps. e ps. pelo art. 181.º, n.º 1, do Código Penal;
- Não pronunciar o arguido BB pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 5 (cinco) crimes de injúria, ps. e ps. pelo art. 181.º, n.º 1, do Código Penal.
(8 A este propósito, cf. JOSÉ DE FARIA COSTA, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, pp. 607 e 629.
9 Cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.03.1998, in CJ, tomo 2, p. 147.
10 Cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.1997, in CJ, tomo 2, p. 102.
11 Cf. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31.01.1996, in CJ, tomo 1, p. 242.
12 Neste sentido, cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.10.2000, in CJ, tomo 4, p. 154.
13 Publicado em www.dgsi.pt (processo 16391/15.6T9PRT.P1).
14 Publicado em www.dgsi.pt (processo 4695/15.2T9PRT.L1-9).”

V–FUNDAMENTAÇÃO

Como acima se referiu, o presente recurso tem como único objeto a apreciação da existência (ou não) de indícios suficientes da prática pelos arguidos dos crimes de que vinham acusados, sindicando a decisão de não pronúncia proferida pelo Tribunal a quo.
Prevê o artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal quese, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Nesta perspectiva, importará, desde logo, definir aquilo que, no sentido que interessa à disposição do n.º1 do art. 308º do CPP e, portanto, que é suposto pelo juízo subjacente à decisão de pronunciar, se há-de entender por indícios suficientes.
Para efeitos de dedução de acusação pública no termo do inquérito, considera a lei suficientes os indícios dos quais resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Tal fórmula, expressamente consagrada no n.º 2 do art.283º do CPP, representa uma adesão expressa ao entendimento que, na ausência de uma norma positiva de idêntico teor, vinha sendo doutrinal e jurisprudencialmente firmado no domínio da lei processual de 29.
Entendia-se, com efeito, que os indícios seriam bastantes quando lhes correspondesse “um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados”.
Por indícios suficientes eram, neste sentido, entendidos todos os “vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que é o arguido responsável por aquele”.

Para a pronúncia, porém - entendia-se ainda -, não sendo embora necessária uma certeza da existência da infracção, que os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado (cfr., por todos, Ac da Relação de Coimbra de 31 de Março de 1993, CJ, T.II, pg.65).

Seguindo a definição proposta pelo Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, V.III, pg.181 e ss., indícios, no sentido em que o conceito é utilizado pela lei processual, são meios de prova, enquanto causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais do crime. E escreve este Autor:
“A referência que o art. 301º, nº 3, faz à natureza indiciária da prova para efeitos de pronúncia inculca a ideia de menor exigência, de mero juízo de probabilidade. Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação. A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (artº 283º nº 2); não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final”.
Acrescenta, na pág. 240:
“na fase de inquérito ou da instrução, fases em que o material probatório não é ainda completo, não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção objectivável com os elementos recolhidos nos autos de que o arguido virá a se condenado pela prática de determinado crime. (…) fortes indícios, ou indícios suficientes, na definição dada pelo art° 283°, n° 2, do CPP, existem sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”
Nas fases preliminares do processo, como é o caso da instrução, não se visa, pois, alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas antes, e tão-só, indícios, sinais de que um crime foi cometido por determinado agente.

As provas recolhidas nestas fases não constituem, nesta perspectiva, pressuposto da decisão de mérito mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento. Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova no sentido de certeza moral da existência do crime, bastando-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência.

Necessário é, porém, que os mesmos sejam de modo a sustentar um juízo favorável à existência de uma possibilidade razoável de o crime ter sido cometido pelo arguido. Só assim serão tidos por suficientes, com as todas as consequências legais.

Deste modo, e porque no juízo de quem acusa, tal como no de quem pronuncia, deverá estar sempre a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, tal possibilidade razoável tem que surgir como mais positiva do que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, através de um juízo objectivo fundamentado nos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido. Ou, utilizando agora as expressivas palavras do Prof. Figueiredo Dias, quando, já em face da prova recolhida, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou, em todo o caso, esta surja mais provável do que a sua absolvição (cfr. Direito Processual Penal, V.I, 1974, pg.133).

A suficiência dos indícios de futura condenação do arguido, aferida por um juízo de alta probabilidade, em face das regras da experiência comum e livre apreciação da prova, tem de ser compatibilizada com o princípio in dubio pro reo (emanação do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.º 32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa), que vigora, segundo entendemos, em todas as fases do processo penal, de acordo com o qual o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.

O Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 439/02, disponível in, www.tribunalconstitucional.pt, após considerar que o princípio in dubio pro reo não deve ser excluído da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia, decidiu «julgar inconstitucionais os artigos 286.º, n.º 1, 298.º, e 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32º, nº 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de um juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um ato manifestamente inútil.”
(neste sentido, pronunciaram-se ainda os seguintes acórdãos: Ac RC de 23-05-2018, Processo n.º 80/16.7GBFVN.C1, Ac RP de 19-10-2022, processo n.º 6113/17.7T9PRT.P1 e de 28-11-2018, Processo n.º 816/17.9T9MAI-A.P1 e de 19-12-2023, processo n.º 133/21.0PAVCD.P1, Ac RE de 11-01-2022 Processo: 580/18.4T9PTM.E1, Ac RG de 12-10-2020, Processo n.º 421/18.2 GCVRL. G1, todos in www.dgsi.pt)

Em caso de pronúncia, todos os elementos constitutivos do tipo legal de crime hão-de figurar no despacho de forma clara e explícita, o que significa, em suma, que a decisão instrutória apenas conhecerá tal sentido se os autos contiverem matéria indiciária suficiente que lhes sirva de suporte fáctico.
Note-se ainda que a análise da prova indiciária está sujeita aos princípios e regras processuais que regem a apreciação da prova, designadamente ao princípio da livre apreciação da prova, contemplado no art. 127º do CPP, com a consequência de que a prova indiciária deverá ser apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Por seu turno, há que ter presente que não compete ao Tribunal da Relação apreciar os factos apurados e substituir-se ao tribunal de 1ª Instância na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas apenas, por força do recurso, com a base indiciária recolhida, corroborada ou não por outros elementos de prova, decidir se, no seu conjunto, são suficientes ou insuficientes para a prolação de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância.
Revertendo ao caso dos autos à luz do que acima foi exposto, e compulsados os autos e a prova que o mesmo contém, concluímos que a avaliação feita pelo juiz a quo relativamente aos indícios existentes não merece qualquer censura.
No que concerne aos factos relativamente aos quais existem indícios suficientes, os mesmos resultam, de facto, do teor dos documentos juntos aos autos, designadamente dos que se mostram juntos a fls. 104 (… form preenchido pelo arguido BB), 108 (… form preenchido pela arguida AA), 162v (vínculo laboral do assistente com a ...), 284 e 285 (actividade profissional da arguida AA), 295 (actividade profissional do arguido BB) e 301 a 302 (processo de … a … e solicitação para o preenchimento de …), conjugados com as declarações prestadas pelo assistente e pelos arguidos relativamente à categoria profissional que tinham.
No que respeita ao facto descrito em 14, escreveu o juiz ao quo queQuanto ao concreto preenchimento pelos arguidos dos aludidos …, para além do teor de fls. 104 e 108, teve-se também presente que aqueles admitiram tal preenchimento nos moldes descritos na acusação particular. Contudo, os arguidos acrescentaram que a avaliação a que procederam, com referência aos vários campos do …, incide não só sobre questões técnicas, mas também sobre aspectos não técnicos, sendo que, como referiu o arguido BB, “a parte não técnica é que é a fundamental para o exercício das funções de …” (fls. 134), ou como afirmou a arguida AA, não corresponde à verdade que os … somente versem sobre questões técnicas, pois, acrescentou, também incidem sobre competências não técnicas, sendo possível visualizar tal critério nos formulários (indicado no campo “…”) (fls. 143). A este propósito,não obstante o que foi afirmado pelas testemunhas EE (fls. 76 e 77), FF (fls. 118 e 119) e GG (fls. 120 e 121), nomeadamente no que respeita à circunstância de, segundo os mesmos, a avaliação em causa incidir somente sobre questões técnicas, o tribunal considerou estar suficientemente indiciado que “a avaliação pessoal do … que consta dos … form incide sobre competências técnicas e sobre competências não técnicas, especialmente, competências pessoais, como resolução de problemas, liderança ou relações interpessoais”, atenta a conjugação dos formulários (fls. 104 e 108) preenchidos pelos arguidos das declarações prestadas por estes. Na verdade, a conjugação entre si destes meios de prova e, sobretudo, o teor dos …, de onde consta o campo “…”, contraria frontalmente o que foi afirmado pelas aludidas testemunhas que, por tal motivo, não mereceram credibilidade.”

Quanto aos factos não indiciados, escreveu:
Por fim, no que tange à factualidade que não se considerou estar suficientemente indiciada, a decisão do tribunal assentou, também aqui, na conjugação dos documentos de fls. 104 e 108 com as declarações prestadas pelos arguidos, não tendo estes meios de prova sido infirmados por qualquer outro.

Vemos, pois, que a apreciação que o Tribunal fez da prova junta aos autos se mostra expressa na fundamentação que acima foi transcrita, de modo claro e transparente, tendo procedido a uma análise detalhada de todos os elementos de prova, fazendo deles uma apreciação crítica, racional, global e conjugada, sem recorrer, nessa apreciação, ao mínimo uso de qualquer arbítrio, capricho ou preconceito. Essa apreciação feita pelo Tribunal tem apoio no teor dos documentos e depoimentos e é razoável e verosímil, sendo conforme com as regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do homem médio, não se vislumbrando qualquer violação de normas de direito probatório.
A matéria factual objectiva está revelada pelos documentos cuja veracidade não foi colocada em causa, isto é, os factos imputados aos arguidos consistem na elaboração e subscrição, por cada um deles, de um …, no qual dão o seu parecer relativamente às qualidades do arguido enquanto … candidato a ….
A questão coloca-se assim, e tão-somente, na apreciação da verificação do elemento subjectivo do crime de difamação, atenta a factualidade objectiva apurada nos autos.
Argumenta o assistente que as expressões escritas pelos arguidos não têm fundamento, são gratuitas, sabendo eles o alcance de tais palavras e querendo, intencionalmente, atingir e ofender o assistente na honra, quer pessoal, quer profissional.
Estamos em face de um documento avaliativo e este, tal como todos os documentos com esse cariz, implica não só a apreciação das qualidades académicas ou profissionais, dos avaliados mas também das suas características pessoais, de personalidade, que contendam com o exercício profissional.
Evidentemente que não pode deixar de ser relevante para a avaliação de um profissional que é candidato a um lugar de …, a capacidade deste para decidir, o modo de se relacionar com a equipe e gerir conflitos, o espírito de iniciativa, o espírito de cooperação, a capacidade de liderança, a capacidade de autocontrolo emocional.
Ora, todas as expressões utilizadas pelos arguidos nos formulários em causa nos autos e referentes a características, a traços de personalidade do assistente, não exorbitam o necessário para a realização da avaliação que lhes foi solicitada. Evidentemente que, tratando-se de uma avaliação, tem implícita a subjetividade do avaliador. Criticar e revelar os aspectos bons e os não bons do assistente, enquanto candidato a uma profissão/categoria profissional era a função dos arguidos, daí que as considerações depreciativas que sobre ele teceram estejam longe de configurarem uma vontade – a qualquer titulo dolosa – de querer ofender a sua honra e consideração.
Não merece por conseguinte censura a avaliação feita pelo Tribunal da prova disponível nos autos.
Os arguidos vinham acusados pelo assistente de terem praticado, em autoria material, crimes de injúria, ps. e ps. pelo art. 181.º, n.º 1, do Código Penal
De harmonia com o disposto no art. 181.º, n.º 1, do Código Penal, pratica o crime de injúriaquem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”.
Assim, o crime de injúria consuma-se, em termos dos seus elementos objetivos, quando alguém dirige expressões ou imputa factos ao interlocutor que sejam ofensivos da honra e consideração
Já de acordo com o disposto no art.º 180º do CP, é autor do crime de difamação todo aquele que, “dirigindo-se a terceiros, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo”.
Ora, tal como se nota no despacho recorrido, atenta a factualidade que é imputada aos arguidos, apenas se poderia equacionar a prática de crimes de difamação, e nunca de injúrias, pois eles não se dirigiram ao assistente, mas a terceiros, referindo-se ao assistente.
Vejamos então.
Lido o normativo acima transcrito, concluímos que, para que determinada conduta possa vir a ser subsumida à materialidade objectiva do tipo ora considerado – o do crime de difamação - é desde logo necessária uma actuação consistente na imputação de um facto ou na formulação de um juízo - o que significa, num e noutro caso, apresentá-los como correctos, segundo uma convicção própria.
Difamar é desacreditar, diminuir a reputação, o conceito público em que alguém é tido, isto é, imputar a outra pessoa um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou da sua consideração ou reproduzir tal imputação ou juízo - divulgando-os agora como uma informação alheia. Posto é que seja efectuada, não perante o próprio, mas dirigida, veiculada através de terceiros.
Assumindo a total analogia substancial - ou congruência - entre a ordem de valores constitucional e a ordem dos bens que merecem tutela do direito penal, o que verdadeiramente importa, por conseguinte, é ter presente que, para o direito penal, “honra” será aquilo que “no viver em sociedade” se revelar indispensável, em termos de estrita reciprocidade, à vivência e salvaguarda da referida dignidade de cada um, bem como do respeito que todos os outros lhe devem.
No crime em análise não se protege, pois, a susceptibilidade pessoal de quem quer que seja, mas tão só a dignidade individual do cidadão, sendo uma das suas características a da sua relatividade, o que quer dizer que o carácter injurioso ou difamatório de determinada palavra ou acto é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre.
A determinação do que é ofensivo da honra terá pois de ser conseguida a partir do senso e da experiência comuns, os quais nos dirão se e quando certo e determinado comportamento é ou não ofensivo.
De facto, há um consenso na generalidade das pessoas, pelo menos de um certo país, sobre o que razoavelmente se deve considerar ofensivo (Cf. Beleza dos Santos, R.L.J., 92, 167.), sobre o comportamento que deve nortear cada um na convivência com os outros em ordem a que a vida em sociedade se processe com um mínimo de normalidade. Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros, se for respeitado o mínimo de respeito moral, cívico e social, mínimo esse de respeito que não se confunde, porém, com educação ou com cortesia, pelo que os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito, consabido que o Direito Penal, neste particular, não deve nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências.
Acrescente-se que a liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa;
Tal liberdade abrange, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade. Uma sociedade democrática tem que acomodar espaços de retórica mais inflamada como instrumentos de afirmação das posições de contestação no espaço público. Estas são os instrumentos disponíveis a quem pretende verter argumentos a favor da causa que defendem.

No acórdão n.º 81/84, do Tribunal Constitucional (disponível no sítio https://www.tribunalconstitucional.pt/), é afirmado:
«A liberdade de expressão - como de resto, os demais direitos fundamentais - não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a proteção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem, antes, limites, imanentes. O seu domínio de protecção pára, ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional (...). Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de outros titulares, há-de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes. E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos - designadamente com aqueles que se acham também directamente vinculados à dignidade da pessoa humana [v. g. o direito à integridade moral (artigo 25º, nº 1) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26º, nº 1)] -, haverá que limitar-se em termos de deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização.»

Não podemos ignorar a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a respeito do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Tal é relevante para a coerência e harmonia de interpretação dos direitos fundamentais de valor e interesses equivalentes entre o sistema de direitos fundamentais consagrado na Convenção e o consagrado na Constituição.

Como afirma o AC STJ de 31.01.2017, Processo: 1454/09.5TVLSB.L1.S1, Relator: ROQUE NOGUEIRA, in www.dgsi.pt, adopta-se uma posição de interpretação dinâmica do conteúdo da liberdade de expressão e direito à honra, já que, “perante uma orientação jurisprudencial estabilizada junto do TEDH, como acontece em casos como o dos autos, os tribunais portugueses não poderão deixar de se influenciar pelo paradigma europeu dos direitos humanos.

O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 157/2001, disponível no sítio https://www.tribunalconstitucional.pt/ fala de «vontade histórica do legislador constituinte de acompanhar o passo» da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (cfr. ainda ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR. — A influência da CEDH no diálogo interjurisdicional, a perspectiva nacional ou o outro lado do espelho. Julgar. 7/2009. p. 47).

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) vem consistentemente interpretando o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem no sentido de que a proteção concedida à liberdade de expressão se aplica não apenas a informação ou ideiasacolhidas favoravelmente ou encaradas como inofensivas ou indiferentes, mas também às que ofendem, chocam ou incomodam o Estado ou qualquer setor da população. Tais são as exigências do pluralismo, tolerância e abertura de espírito, sem os quais não existe uma sociedade democrática. Isto significa, além do mais, que qualquer formalidade, condição, restrição ou penalidade imposta nesta matéria deve mostrar-se proporcional ao fim legítimo prosseguido (Isto mesmo foi novamente reafirmado, entre outros, no caso Lopes Gomes da Silva c. Portugal, de 28.09.2000, Queixa nº 37698/97, in https://hudoc.echr.coe.int/)

Por outro lado, em face do que dispõe o artigo 18º, nos 2 e 3, da Constituição da República, as restrições a direitos fundamentais, feitas por lei ou com base na lei, designadamente por decisão jurisdicional, devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos da mesma natureza ou interesses objetivos constitucionalmente garantidos.

Quer isto dizer que tais restrições devem respeitar o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, isto é, têm de ser adequadas (aptas), necessárias (exigíveis) e proporcionais (na justa medida) à proteção de outros direitos ou interesses constitucionais. Não podendo, em caso algum, diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais consagradores dos direitos atingidos.

Costa Andrade, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, págs. 232 e ss., estribando-se em certo sector da doutrina alemã e em algumas decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão, defende que se devem considerar atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista ou desportista, etc., nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.

Por outro lado, entende que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem-fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva.

Defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto.

A mais recente jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem alinhado neste sentido de não conferir relevância jurídico criminal no âmbito dos crimes contra a honra e consideração – difamação ou injúria – sempre que não se ultrapassa o limiar normal da crítica impostas, entre o mais, pelas relações profissionais e funcionais que se impõe em vários sectores e domínios da sociedade (na crítica politica, desportiva, e até do exercício de funções em Tribunal, ou escolar), como é a deste específico caso em que se impõe um relacionamento de crítica e apreciação numa especial relação avaliador/ avaliado.

De facto, os arguidos, nas funções de avaliadores, pronunciaram-se sobre a prestação profissional do assistente, exprimiram juízos de apreciação e de valoração que não ultrapassaram o âmbito da crítica objectiva. Além dos escritos em causa nos autos não conterem qualquer expressão que na, sua objectividade e literalidade se possa considerar como difamatória, os arguidos não ultrapassaram os limites da crítica e de apreciação que se impõe quando se avalia a obra ou trabalho de outrem, não entrando num ataque à honra e consideração da pessoa do arguido, ou seja, não ferindo o bem jurídico-penal que se visa tutelar com a incriminação. Dizer isto, não significa que a crítica feita seja justa, que os arguidos não estejam errados no juízo que fizeram sobre o assistente. O que se diz, tão só, é que os assistentes exerceram o direito de crítica dentro dos limites legais e constitucionais.

Como podemos ler no Ac RP de 26-05-2015, processo n.º 887/11.1TAVRL.P1, Relator: RAUL ESTEVES, in www.dgsi.pt:
“Criticar e revelar os aspectos bons e os não bons de um aluno, com vista a apurar a sua nota académica, sendo o seu comportamento, enquanto candidato a uma profissão objecto de apreciação para a atribuição dessa mesma nota, é a função dos arguidos, dai que as considerações sobre o aluno, no caso o assistente, depreciativas das suas capacidades académicas e futuramente profissionais estão longe de configurarem uma vontade – a qualquer titulo dolosa – de querer ofender a sua honra e consideração, ou que fosse previsível que a fundamentação fosse susceptível de causar essa ofensa.

(Neste mesmo sentido, pronunciaram-se os Ac. da RP de 9/11/2016, processo 466/11.3TAPRD.P2 e de 04-11-2020, Processo: 2294/17.3T9VFR.P1, Relator:LILIANA DE PÁRIS DIAS, o Ac do STJ de 18-01-2006, Processo: 05P4221, Relator: OLIVEIRA MENDES)

É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas, que muitas vezes tem expressão ao nível da linguagem. E todos nós devemos estar preparados para a crítica, mesmo para aquela que é indelicada, que é rude, tendo de aceitar que, por mais meritório que seja o nosso desempenho, haja pessoas que não reconheçam esses méritos e nos considerem incapazes ou incompetentes no exercício dessas funções.

E, como já salientado, o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Nem todos os factos que envergonham, perturbam ou humilham, quando lançados sobre terceiros, cabem na previsão do preceito em referência tudo dependendo da intensidade ou do perigo da ofensa. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função.

No caso em análise, tal como acima foi explicitado, os arguidos não ultrapassaram os limites que justificam a intervenção do direito penal.

Em conformidade, a decisão recorrida não merece censura, não tendo violado os normativos invocados pelo recorrente, concretamente o disposto nos artigos 308º, 283 do CPP e 9º do CC.
Desta forma, improcede o recurso.
*

VI–Decisão:

Pelo exposto, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, confirmando-se a decisão do Tribunal a quo.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
*


Lisboa, 9 de abril de 2024


(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do CPP)


Sara Reis Marques
(Juíza Desembargadora Relatora)
Sandra Oliveira Pinto
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Maria José Machado
(Juíza Desembargadora Adjunta)