Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
291/23.9JAPDL.L1-9
Relator: MARIA JOÃO LOPES
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
TRÁFICO DE DROGA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. A obrigação decorrente do artigo 374.º/2, primeira parte do CPP, cinge-se aos factos essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, sendo de excluir da mesma os factos irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, sendo que relativamente aos factos constantes da contestação que se revelam, incompatíveis, com os factos dados como provados, resultantes da acusação, não há necessidade em os fazer incluir no elenco dos não provados
II. A arguição da nulidade da sentença é o meio próprio de reacção nas situações em que o recorrente entende assumirem relevância para a decisão da causa determinados factos, que tem por demonstrados probatoriamente nos autos (nomeadamente em sede de julgamento), e não considerados pelo tribunal recorrido em sede de sentença, desde que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base àquela reacção.
III. Para determinação da concreta pena a aplicar em caso de reincidência são exigíveis várias operações: a determinação da medida da pena independentemente da reincidência; a determinação da moldura penal da reincidência; a determinação da medida da pena na moldura penal da reincidência e, finalmente, a comparação da medida da pena a que chegou sem entrar em conta com a reincidência com aquela que se encontrou dentro da moldura da reincidência, para os efeitos do disposto na 2.ª parte do art. 76.º/1 do C.P.
IV. A confissão dos factos numa circunstância em que a busca ao veículo conduzido pelo veículo veio a revelar que o mesmo ali tinha acondicionadas embalagens com 600 placas de haxixe, não reveste particular relevo para a descoberta da verdade e, logo, não releva, com acuidade, em sede de determinação da pena concreta a aplicar.
V. Assim como não reveste particular interesse, para aquele efeito, a ponderação das condições económicas do arguido, atendendo a que o tráfico de produto estupefaciente tem como principal escopo (sobretudo quando o traficante não seja também consumidor, o que não consta dos factos provados) a obtenção de proventos económicos que não seriam alcançados legitimamente, sendo indiferente o destino que o agente venha a dar a esses proventos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. No âmbito dos presentes autos em que é arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi proferido acórdão, em 14/12/2023 com o dispositivo que a seguir se transcreve na parte que ora interessa:
“(…)
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal Coletivo:
1. Condenar AA pela prática, como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21º, nº 1 do Decreto-lei e 24º, alínea c) do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de janeiro e 75º e 76º do Código Penal, com referência à tabela I-C, na pena de 10 (dez) anos de prisão.
(…)
2. O arguido recorreu do acórdão pedindo a substituição do acórdão supra mencionado “por outro que reduza, consideravelmente, a pena aplicada (…) pelo trafico de estupefacientes, com todas as consequências legais.”
Rematou o corpo da motivação com as conclusões que ora se transcrevem:
“1. Salvo devido respeito que é muito, o douto Acórdão não deu como provados factos que deveria ter dado como tal e que em muito alterariam a pena fixada, tivessem sido justamente dados como provados;
2. O arguido confessou e a toda a prova que foi feita para o condenar, arrematou-se na sua confissão;
3. Pelo que, não se pode ter como verdadeiras apenas algumas das coisas que o arguido confessou, não se motivando porque é que o demais que disse não pode ser tido como também verdadeiro;
4. Ora, o arguido para além de ter dito que apenas recorreu ao tráfico porque tinha muitas dívidas, tal é o que resulta da prova que juntou com a sua contestação: o arguido tem um total de 114.458,49€ em dívidas, cf. doc. 2 a 5 da contestação;
5. Sendo que, também soube dizer o arguido que quem tem pago essas dívidas em prestações: são as filhas do arguido;
6. Pelo que, deve ser aditado ao elenco dos factos dados como provados o seguinte facto: O arguido tem o valor de 114.458,49€ em dividas;
7. E que: O arguido recorreu a tráfego de estupefacientes para poder liquidar essas dívidas;
8. E ainda, o facto seguinte: As dívidas do arguido estão a ser pagas em prestações pelas suas filhas;
9. Também, o arguido disse, claramente, que pretendia vender as “placas” do produto estupefaciente em doses de 1 quilo, que as venderia por 2.500,00€/3.000,00€ o quilo, e que ficou a dever a quem lhe passou esta droga que adquiriu à consignação, o valor de 1.500,00€ por quilo;
10. Ou seja, o lucro que o arguido teria desta atividade não seria superior a 60.000,00€;
11. Pelo que, deve ser aditado o seguinte facto ao elenco dos factos dados como provados: O arguido com a venda do produto estupefaciente obteria um lucro de, no máximo, 60.000,00€;
12. No que diz respeito à pena de 10 anos que ao arguido foi aplicada, com isto ele não pode conformar-se, tendo ficado provado que o coarguido BB só foi apanhado e condenado por o crime de tráfego (sic) porque o aqui arguido colaborou com a investigação;
13. Na verdade, o douto Acórdão não teve isto em consideração para os efeitos do artigo 71.º n.º 2 e) do CP;
14. Tendo apenas considerando a sua confissão integral;
15. Acontece que, a sua confissão foi integral – não tendo apenas confessado aquilo que não era verdade e que bem assim se veio a dar como não provado (conforme facto não provado único);
16. Assim, considerando que o arguido confessou integralmente, colaborou com a investigação, que o arguido só se dedicou ao tráfego porque tinha dívidas consideráveis que estavam a ser pagas pelas suas filhas e que o lucro máximo que poderia ter era de 60.000,00€ e não o que vem referido naquele acórdão;
17. E porque tendo tudo isto em consideração a ilicitude e a intensidade do dolo é mais reduzida do que se teve em conta naquela Acórdão;
18. E ainda porque, assim se conseguem melhor justificar os fins e motivos que determinaram a prática do crime para os efeitos do artigo 71.º n.º 2 alínea c), bem como a sua situação económica, não se tendo dado como provado o passivo verdadeiro do arguido;
19. A verdade é que é manifestamente excessiva a pena concretamente aplicada de 10 anos que deverá, por isso, ser reduzida por ultrapassar a medida da culpa e violar o artigo 71.º do CP;
20. Pelo que deve o Acórdão proferido ser substituído por outro que reduza, consideravelmente, a pena aplicada ao arguido pelo trafico de estupefacientes, com todas as consequências legais.
(…)”
3. Respondeu o Ministério Público, defendendo a manutenção do acórdão nos seus precisos termos e apresentando as seguintes conclusões:
“1. Ao contrário do que defende o recorrente o douto acórdão refere claramente os meios de prova que serviram para o tribunal formar a sua convicção, garantindo que nele se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não omitindo a fundamentação no sentido da valoração das provas e da razão lógica da condenação do recorrente, não constituindo, portanto, uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou materialmente violadora das regras da experiência comum.
2. O recorrente limita-se a expor o seu julgamento dos factos, divergente daquele que foi feito pelo Tribunal, e tendo, como se verificou, este formado a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquela que formulou a recorrente. Em concreto defende o recorrente que o Tribunal fez um juízo critico valorativo sem apreciar a sua confissão e o motivo porque se dedicou novamente ao tráfico de estupefacientes.
3. O que não corresponde à verdade.
4. Na verdade, o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura porque fez correta aplicação do direito à matéria de facto provada, nem violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos, pois o tribunal recorrido fixou a matéria de facto, no estrito cumprimento do artigo 374.º, n.º 2 do Código do Processo Penal, ao contrario do que defende o recorrente.
5. Aqui chegados, há que referir, que nenhum vício foi levantado no que toca à prova apresentada na acusação, toda produzida em audiência, e nenhum lhe foi encontrado de forma oficiosa, pelo que toda ela será tida em conta na análise crítica a fazer no momento próprio.
6. Deve, pois, improceder o recurso, pois não vislumbramos na decisão recorrida qualquer dos vícios previstos no artigo 410., n.º 2 do Código do Processo Penal, que são de conhecimento oficioso e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
7. Da sua análise podemos concluir que nele se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova.
8. A fundamentação no sentido da valoração das provas e da razão lógica da condenação do arguido, ora recorrente. Não constituindo, portanto, uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou materialmente violadora das regras da experiência comum.
9. Na verdade, aquilo que o Recorrente faz é expor o seu julgamento dos factos, divergente daquele que foi feito pelo Tribunal.
10. E, tendo, como se verificou, formado a sua convicção com provas não proibidas por lei e seguindo todo um processo lógico e de acordo com as regras da experiência comum, prevalece a convicção do tribunal sobre aquela que formula o Recorrente.
11. Quanto à medida da pena o Ministério Público entende que a pena de 10 anos
se mostra justa e adequada, em nada excessiva atentos os circunstancialismos apontados no douto acórdão, a gravidade dos ilícitos da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial.
Isto é,
12. Nenhuma censura merece a determinação da medida da pena, sendo pena aplicada ao arguido ora recorrente adequada à sua culpa, à sua conduta anterior e posterior aos factos, às exigências de prevenção geral e especial e não pecam por excesso, bem como são acertadas face às condições pessoais e potencial de inserção social do arguido.
13. Em concreto, o crime de tráfico de estupefacientes é um crime de perigo abstrato, protetor de diversos bens jurídicos pessoais, como a integridade física e a vida dos consumidores, mas em que o bem jurídico primariamente protegido é o da saúde pública.
14. Ora, considerando que a determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (artigos 71.º, n.º 1, e 40.º do Código Penal), deve corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências decorrentes dessa lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade do delinquente.
15. Considerando ainda que se trata, como referi, de um crime contra a saúde pública, onde as necessidades de prevenção geral de integração da norma e de proteção de bens jurídicos são prementes, como o “sentimento jurídico da comunidade” apela a uma eliminação do tráfico de estupefacientes destruidor de vidas e famílias e como são alargadas as exigências de prevenção da reincidência e de advertência individual (o arguido voltou a cometer crimes da mesma natureza), não deve ser aplicada a pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão.
16. Por isso, e tendo em conta o tipo de crime em causa, não só as exigências de prevenção geral positiva, atento o forte alarme social das condutas praticadas, como as exigências de prevenção especial positiva, consubstanciadas no fato de atento o seu percurso não se afigurar como suficiente a simples ameaça da pena, somos levados a concluir pela necessidade de aplicação de uma pena de prisão efetiva.
17. Acresce que o recorrente já foi condenado, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual cumpriu pena de prisão e o mesmo voltou a praticar o mesmo tipo de crime em pleno período de liberdade condicional, o que se demonstra que tal condenação não impediu de o arguido voltar a praticar factos mesma natureza. Tudo a demonstrar a existência de uma culpa agravada que deverá igualmente ser tida em conta na determinação da medida concreta da pena.
18. Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pelo recorrente, pelo que o recurso não merece provimento.”
4. Subidos os autos a este Tribunal, pronunciou-se a Srª. Procuradora Geral Adjunta, igualmente, no sentido da improcedência do recurso, acompanhando os fundamentos da resposta do Ministério Público em Primeira Instância.
5. No cumprimento do estatuído no artigo 417.º/2 do CPP, nada mais foi acrescentado.
6. No exame preliminar a relatora deixou exarado o entendimento de que nada obstava ao conhecimento do recurso, que, por sua vez, havia sido admitido com o regime de subida adequado.
7. Seguiram-se os vistos legais.
8. Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
*
II. Fundamentação
1. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), quanto a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º/2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).
Assim e tenho presente ainda que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, então, as questões suscitadas no presente são:
- a nulidade da decisão recorrida;
- a existência de erros de julgamento e,
- a medida concreta da pena.
2. Atentemos, no entanto, primeiramente, no que de pertinente consta da decisão recorrida.
2.1. A matéria de facto definida pelo Tribunal recorrido.
“II. Fundamentação de Facto
1. Factos Provados
Em sede de audiência de julgamento, e com interesse para a causam, provou-se que:
1. Na sequência de uma ação de fiscalização executada pela Polícia Judiciária de …, junto das empresas que exercem a atividade transitária em …, foi sinalizada mercadoria, no interior das instalações do transitário “...”, sito no ...; mercadoria composta por três caixas - que tinham cheiro de canábis-resina, vulgo haxixe; caixas de formato retangular, e dez latas de 15 litros cada, que conteriam tinta no seu interior, tudo, num total de 195 quilos.
2. Após identificação do destinatário, o arguido AA, a polícia montou vigilância ao local, para controlar a chegada deste arguido à empresa de transitários, aquando do levantamento da mercadoria suspeita, para abordagem do mesmo arguido.
3. O arguido AA já tinha feito expedir a mercadoria referida no artigo 1.º por via marítima, sabendo o arguido AA que ali se encontravam cerca de 60 quilos de haxixe, que ia vender em …
4. Para aquele efeito, o arguido AA, a 28 de fevereiro de 2023, em 1 de março de 2023, deslocou-se ao hipermercado ..., no ..., em …, onde adquiriu latas de tinta e outros acessórios, para ali esconder embrulhos com placas de haxixe; como as latas de tinta não ocultavam todos os embrulhos de produto estupefaciente, um deles foi remetido junto das latas, em caixas de papelão também adquiridas pelo arguido AA.
5. O arguido AA deslocou-se no dia 1 de março de 2023 a um transitário de ..., ..., e ali entregou os caixotes, que transportou num automóvel alugado, de matrícula ..-..-AC, com a ajuda de um taxista que o seguiu, no seu veículo; encomenda que o arguido AA fez remeter para ....
6. Aquela mercadoria chegou ao ..., em ..., ..., no dia 8 de março de 2023, e pelas 13:50 horas do mesmo dia ali chegou o arguido AA, ao volante de um veículo de matrícula ..-..-SC, da marca “...”, modelo “..., de cor branca, que parou junto do transitário, que lhe entregou a mercadoria; tendo o arguido AA colocado a mesma no veículo, foi abordado pela polícia.
7. O arguido AA consentiu na busca ao veículo, tendo a polícia verificado que, no seu interior, na bagageira, encontravam-se 13 volumes, sendo eles, 3 caixas de papelão, de cor amarela, com a impressão de óleo alimentar “Gesi”, e 10 latas de tinta da marca Barbot tinta, de 15 litros – onde o arguido tinha acondicionado as embalagens com 600 placas de haxixe.
8. Mais se constatou que cada volume, tinha uma etiqueta com as indicações: “…; expedidor: AA; destinatário: AA; origem: ...; destino: ..., e peso total (kg): 195, bem como a indicação do número atribuído a cada volume (de 1 a 13).
9. Abertos os volumes, verificou-se que, no interior de cada volume (caixas de papelão latas de tinta, e garrafas de óleo), encontravam-se diversas embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, contendo, no seu interior, várias placas ou “sabonetes” de canábis-resina, vulgo haxixe, que foram apreendidas.
10. No volume com o nº 2/13 – caixa de papelão com impressão de óleo alimentar – foram apreendidas onze embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, com um peso bruto total e aproximado de 11025 gramas de haxixe.
11. No volume com o nº 5/13 – caixa de papelão com impressão de óleo alimentar – foram apreendidas oito embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, com um peso bruto total e aproximado de 8018 gramas de haxixe.
12. No volume com o nº 4/13 – lata de tinta da marca Barbot – foram apreendidas quatro embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, com um peso bruto total e aproximado de 4012 gramas de haxixe.
13. No volume com o nº 10/13 – lata de tinta da marca Barbot – foram apreendidas 4 embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, com um peso bruto total e aproximado de 4006 gramas de haxixe.
14. No volume com o nº 3/13 – lata de tinta da marca Barbot – foram apreendidas 4 embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, com um peso bruto total e aproximado de 3985 gramas de haxixe.
15. No volume com o nº 7/13 – lata de tinta da marca Barbot – foram apreendidas 4 embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, com um peso bruto total e aproximado de 4010 gramas de haxixe.
16. No volume com o nº 12/13 – lata de tinta da marca Barbot – foram apreendidas 4 embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, com um peso bruto total e aproximado de 4007 gramas de haxixe.
17. No volume com o nº 11/13 – lata de tinta da marca Barbot – foram apreendidas 4 embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, com um peso bruto total e aproximado de 4007 gramas de haxixe.
18. No volume com o nº 9/13 – lata de tinta da marca Barbot – foram apreendidas 4 embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, com um peso bruto total e aproximado de 4006 gramas de haxixe.
19. No volume com o nº 8/13 – lata de tinta da marca Barbot – foram apreendidas quatro embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, com um peso bruto total e aproximado de 3995 gramas de haxixe.
20. No volume com o nº 13/13 – lata de tinta da marca Barbot – foram apreendidas 4 embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, com um peso bruto total e aproximado de 3997 gramas de haxixe.
21. No volume com o nº 6/13 – lata de tinta da marca Barbot – foram apreendidas 4 embalagens envoltas em fita adesiva de cor castanha, com um peso bruto total e aproximado de 4003 gramas de haxixe.
22. Tendo assim um total de 59 embalagens de canábis-resina, envoltas em fita adesiva de cor castanha (invólucro), apreendidas, contendo 590 placas / “sabonetes” com cerca de cem gramas cada, todas com a inscrição “tangerine power”, com um peso bruto, total e aproximado, de 59071 gramas.
23. No habitáculo da viatura, concretamente, no banco do pendura, foram encontrados e apreendidos quatro documentos, emitidos pelo transitário “...”: uma declaração de recebimento, no valor de 25,52 euros; uma fatura, com o nº ..., emitida a 03/03/2023, em nome do arguido AA, …, …; o triplicado do termo de receção de carga, onde se encontrava discriminado, entre outras informações, a data e hora de receção: 01/03/2023, pelas 12:18h; o expedidor e o destinatário: AA, ...; e uma declaração para despacho e embarque de mercadorias, datada de 01/03/2023, tendo como expedidor: AA, ..., com o contacto telefónico ... e recebedor AA; a discriminação do número de volumes: 13, o tipo de mercadoria: tinta e óleo e o peso: 195 quilos.
24. Foram também encontrados, junto dos documentos referidos, três talões do hipermercado ..., sito na …, ..., com o NIF do arguido AA, ..., relativos à compra de cinco latas de tinta obras para o interior, no valor de 64,55€, emitido a 28/02/2023, pelas 19:44h; cinco latas de tinta para obras para o interior, no valor de 64,55€, emitido a 28/02/2023, pelas 19:24h e 45 garrafas de óleo alimentar “Gesi 1l”, e uma fita de embalagem 50mmx50mm, no valor total de 97,62€, com data de 01/3/2023, 10:22h.
25. Foi também apreendido o veículo de matrícula ..-..-SC, que o arguido estava a usar para transportar os volumes de canábis-resina; que, abertos, mostraram a existência de 590 placas/sabonetes, de canábis-resina, com as inscrições “Tangerine power”, de forma retangular, embaladas em película aderente de plástico transparente, com o peso bruto aproximado de 56.661,97 gramas (56,661Kg), produto este pesado, já sem as embalagens de película de cor castanha que acondicionavam os conjuntos de placas, acusando, por esse motivo, um valor inferior do inicialmente pesado, aquando da apreensão.
26. Efetuada revista ao arguido AA, foi encontrado e apreendido um telemóvel da marca F2, modelo desconhecido, com os IMEIs ... e ..., contendo no seu interior um cartão SIM da operadora ... correspondente ao nº ..., que o arguido usava para o negócio de tráfico de estupefacientes.
27. Efetuada busca domiciliária à residência do arguido AA, sita na ..., foi encontrado e apreendido uma folha com contactos relativos ao negócio de tráfico de estupefacientes, com diversas inscrições manuscritas, com nomes, moradas, contactos telefónicos, entre outros; e um telemóvel da marca ..., modelo 1068D, de cor preta, com os IMEIs ... e ..., contendo no seu interior um cartão SIM, cujo número e operadora são desconhecidos, e um cartão SIM, com o n.º ..., da operadora ...; que o arguido também usava para o tráfico de estupefacientes.
28. O arguido AA, em face da apreensão, referiu que faltava uma embalagem de um quilo de haxixe, com dez “sabonetes” de haxixe, num total de 60 embalagens que tinha expedido, pelo que a polícia voltou ao transitário, tendo contactado o arguido BB, empregado da empresa, que tendo constatado o cheiro de haxixe antes da chegada do arguido AA e busca do veículo pela polícia, tinha retirado de um dos volumes um quilo de canábis-resina, com dez placas de tal produto.
(…)
30. O arguido AA fez assim expedir, por transitários marítimos, entre os dias 1 e março de 2023 e 8 de março de 2023, 600 placas de haxixe, com cerca de 60 quilos; tendo o arguido BB retirado parte de uma placa, foi verificado o peso de 598 placas de haxixe, com 57.500.000 gramas, grau de pureza de 30.1%, suficientes para 346150 doses individuais; e duas placas com o peso de 162.375 gramas, grau de pureza de 29.4% de THC, suficientes para 954 doses individuais. A canábis-resina apreendida tinha o valor de 216.449 euros em Portugal continental, e em S. Miguel, Açores, o valor de 432.898 gramas.
31. Os arguidos AA e BB atuaram voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei penal e conheciam as características estupefacientes das substâncias que detiveram e guardaram consigo.
32. O arguido AA, em acréscimo, voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei penal e conhecendo as características estupefacientes das substâncias que detive, guardou e fez transitar, atuou com intenção de venda posterior e obtenção de elevado lucro dos quilos de canábis-resina, em ….
33. O arguido AA tem um antecedente criminal pela prática de um crime de tráfico estupefacientes, agravado, pp no art. 21.º, n. 1, e 24.º, al. c), do DL 15/93, de 22 de Janeiro, tendo sido condenado, no processo 36/16.0 PEPDL, por Acórdão transitado a 25 de Fevereiro de 2019, na pena de oito anos de prisão, por factos de 15 de Março de 2016; pena que cumpriu até 21 de Abril de 2022, data em que foi colocado em liberdade condicional; mas tal tempo de reclusão não o afastou da prática de novo crime de tráfico de estupefacientes, o exposto nos presentes autos, o que é de censurar.
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Mais se provou relativamente a AA:
34. Oriundo de um agregado familiar numeroso e de modesta condição socioeconómica e cultural, a fratria era composta por 24 elementos (dos quais 11 faleceram após nascimento), sendo as dificuldades económicas um aspeto relevante quando o arguido recorda a respetiva infância, uma vez que o rendimento dos pais era insuficiente para fazer face às necessidades familiares (o pai era ... e a mãe …). Por este motivo, os filhos mais velhos, gradualmente, foram abandonando os estudos para participar na economia familiar.
35. AA refere ter tido as primeiras experiências de trabalho quando ainda se encontrava integrado no sistema de ensino, começando a trabalhar com uma pessoa da rede de vizinhança na …, atividade que manteve depois de abandonar os estudos por volta dos 12 anos, quando concluiu o 7.º ano de escolaridade. Entretanto, por volta dos 15 anos de idade, passou a trabalhar no setor da …, interrompendo o exercício laboral para cumprir o Serviço Militar Obrigatório quando contava 21 anos de idade.
36. Por volta dos 24 anos, passou a trabalhar na mesma entidade patronal que a figura materna, como … em estabelecimento de …, em acumulação, durante mais de dez anos, com a função de …, na ....
37. Fruto do primeiro casamento, o arguido tem duas filhas, já maiores de idade, as quais sempre se mantiveram a viver com a sua ex-mulher, de quem se divorciou por mútuo acordo durante a infância daquelas, mantendo até ao momento uma relação de proximidade com elas.
38. Há cerca de doze anos, estabeleceu relacionamento afetivo com CC, empregada de cantina no ..., tendo o casal contraído matrimónio há cerca de oito anos. Não obstante a dinâmica relacional ser descrita como equilibrada, apesar dos contactos de AA com o sistema judicial, vieram a separar-se em junho de 2023.
39. Segundo AA, enquanto exerceu as suas atividades profissionais foi usufruindo de uma condição de vida que considerou acima da média, contudo, essa situação viria a alterar-se a partir de 2010, na sequência da crise económica que assolou o país e que afetou a atividade da sua empresa e intensificou-se a partir de 2016, na sequência de um problema de saúde (ao nível da …) e do contacto com o Sistema de Justiça. Até então, para além da sua atividade profissional em instituição de …, realizava por conta própria outras atividades, nomeadamente relacionadas com o setor da …, tendo criado a empresa de ..., com a exploração de … e prestação de serviços numa ... relacionada com a manutenção de campas. Porém, o arguido acabou por perder as respetivas atividades, por falência do negócio, enfrentando ainda algumas dívidas.
40. Preso preventivamente à ordem do processo nº 36/16.0PEPDL, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores – Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada – Juiz 2, AA viu alterada tal medida de coação para a de permanência na habitação com vigilância eletrónica, a qual teve início em 30-03-2016 e terminou em 24-06-2019, vindo o arguido a ser condenado na pena de oito anos de prisão (após Acórdão do Tribunal da Relação de ...) pela prática do crime de tráfico de estupefacientes. À data da reclusão, o arguido encontrava-se de baixa médica prolongada. Mantinha contactos regulares com os respetivos familiares, esposa, enteado e filhas.
41. AA beneficiou de período de adaptação à liberdade condicional entre fevereiro e abril de 2022, tendo sido acompanhado neste contexto por Equipa de Vigilância Eletrónica da DGRSP. Em 21 de abril de 2022 iniciou o cumprimento da concessão de liberdade condicional cujo termo está fixado para 16 de março de 2024. Fixou então residência na morada judicialmente autorizada, em ..., na qual vivia com a atual ex-mulher, CC. A separação verificou-se essencialmente devido ao facto de aquela pretender ir residir para o continente português, para onde o respetivo filho foi viver, e também devido a um certo desgaste relacional motivado pelo período de reclusão do arguido. Este alterou, entretanto, a respetiva morada, passando a residir na freguesia de ..., em casa de uma irmã, DD, com a qual continuava a viver à data da atual reclusão e com quem mantinha bom relacionamento.
42. Em maio de 2022, AA abriu atividade por conta própria na …, ligada à … (…), numa ....
43. No âmbito do controlo e supervisão da respetiva problemática aditiva (drogas e álcool), AA realizou testes de despiste dos consumos, os primeiros na ...” (entre setembro de 2022 e fevereiro de 2023, com resultados negativos a todas as substâncias analisadas) e os segundos na PSP da área de residência, (em setembro de 2022 apresentou uma taxa de 0,00 g/l e em dezembro uma taxa de 0,08 g/l).
44. Cumpriu o calendário das entrevistas regulares de acompanhamento na DGRSP até à atual reclusão, desde 10-03-2023.
45. Em meio prisional, AA não se encontra integrado em qualquer programa terapêutico, nem realizou testes de despiste dos consumos de estupefacientes. Encontra-se laboralmente ativo desde setembro de 2023, não regista qualquer infração disciplinar e recebe visitas regulares de familiares (filhas e irmã).
46. Já foi julgado e condenado, por acórdão de 24/07/2017, na pena de 8 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado a 15/03/2016.
(…)
*
2. Factos Não Provados
Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou que:
a) O arguido AA - que se dedicava ao tráfico de estupefacientes, designadamente de canábis-resina, pelo menos desde finais de 2022, e já tinha expedido outras três encomendas a 27 de outubro de 2022, 07 de dezembro de 2022 e 25 de janeiro de 2023, pelo mesmo transitário.
*”
2.2. Porque tal questão releva igualmente para a discussão do recurso, vejamos, também, o que, em sede de fundamentação, se mencionou para convicção assim formada pelo Tribunal.
“(…)
3. Motivação
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade à luz das regras de experiência comum (artigo 127º do Código de Processo Penal).
Foram assim valoradas as declarações prestadas em julgamento por ambos os arguidos, conjugadas com os documentos que constam de fls. 2 a 8 (auto de notícia por detenção em flagrante delito do arguido AA), fls. 9/10 (auto de diligência de identificação do arguido AA), fls. 19 (ficha de registo automóvel do veículo usado pelo arguido AA), fls. 20 (termo de abertura de mercadoria), fls. 21 a 24 (auto de busca e apreensão no veículo do arguido AA), fls. 25 (declaração de recebimento da empresa transitária), fls. 26 (fatura da empresa transitária, em nome do arguido AA), fls. 27 (termo de receção de carga, em nome do mesmo arguido), fls. 28 (declaração para despacho, tendo o arguido AA como expedidor), fls. 29/30 (faturas do hipermercado ..., em nome do arguido AA, dos óleos e tintas que acompanhavam os volumes de canábis-resina), fls. 31 a 43 (talões recortados dos volumes que transportaram o produto estupefaciente, com o nome do arguido AA), fls. 44 (auto de pesagem e despistagem da canábis-resina encontrada no veículo), fls. 49 (auto de revista e apreensão ao arguido AA), fls. 50 e 55 (termo de dispensa do sigilo de telecomunicações), fls. 51/4 (auto de busca e apreensão em casa do arguido AA), fls. 56 a 117 (exame ao veículo do arguido AA, e aos volumes e placas de haxixe que o mesmo transportava), fls. 112 a 116 (indicação dos vestígios encontrados no veículo e volumes/embalagens), fls. 136/9 (informação de serviço da Polícia Judiciária de Ponta Delgada quanto aos arguidos e transportes efetuados), fls. 141/7 (auto de diligência e relação dos transportes efetuados pelo arguido AA com a empresa transitária), fls. 148/9 (auto de busca e apreensão em casa do arguido BB), fls. 150/1 (fotografias dos locais onde o arguido BB ocultou as placas de haxixe), fls. 152/4 (exame às placas e pedaços de haxixe apreendidas ao arguido BB), fls. 155 (auto de pesagem e despistagem das mesmas placas), fls. 156/160 (auto de notícia por detenção do arguido BB), fls. 173/4 e fls. 178 (informação da ... quanto aos arguidos), fls. 223 a fls. 231 (fotografias e pesagem do haxixe apreendido ao arguido AA a 8 de março de 2023), fls. 300 (dvd com as imagens do armazém de S. ..., do dia 1 de março de 2023), fls. 301/2 e fls. 354/5 (informação da ..., quanto a viagens aéreas do arguido AA), fls. 304 a fls. 346 e fls. 357 a fls. 384 (auto de visionamento de imagens do arguido AA a entregar as embalagens do transitário de S. ...), fls. 385 a fls. 400 (auto de visionamento de imagens do arguido AA no hipermercado ..., em ...), fls. 430 (contrato de aluguer de veículo pelo arguido AA em …), fls. 442 a 458 (auto de visionamento de imagens do mesmo ..., relativamente ao arguido AA), fls. 480 a fls. 634 (certidão do processo 36/19.0 PEPDL), fls. 707 a fls. 728 (auto de visionamento e registo de imagens), fls. 770/2 (informação da ... quanto ao arguido AA), fls. 774/5 (informação bancária de AA), fls. 777 a 792 (informação fiscal, também do arguido AA), fls. 804/5 (informação policial quanto à venda a retalho) e ainda dos documentos juntos pelo arguido AA em sede de contestação referentes às suas dívidas.
Quanto à prova pericial atendeu-se ao relatório de exame pericial do Laboratório de Polícia Científica n.º 202303686.
Concretizando, o arguido AA confessou, de uma forma livre e consciente, o transporte dos sessenta quilos de haxixe, afirmando que apenas o fez atenta a sua difícil situação económica, com diversas dívidas (o que comprovou documentalmente), mas que bem sabia o que estava a fazer, sendo que o seu plano seria vender por placas. Mais nos disse que a sua margem de lucro seria na ordem dos sessenta mil euros, mas não revelou a identidade dos seus fornecedores por temer represálias. Por fim, negou ter efetuado transportes anteriores, já que o envio das encomendas anteriores foram um teste para ver se tudo corria bem, pelo que, na ausência de qualquer outra prova, tivemos de considerar como não provado o facto a).
Já o arguido BB confessou, de forma integral e sem reservas, todos os factos da acusação, explicando que era consumidor de cannabis e, quando a encomenda se abriu e caiu o pacote ao chão, viu ali uma oportunidade de poupar muito dinheiro, motivo pelo qual escondeu o produto estupefaciente em casa, tendo consumido uma ínfima parte do mesmo juntamente com um amigo. Mais demonstrou plena consciência da ilicitude da sua conduta.
Os factos da reincidência resultam não só da prova documental, como das regras da normalidade e da experiência comum, conjugadas com o relatório da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, donde se infere que a condenação anterior não serviu de suficiente advertência ao arguido AA, que, em plena liberdade condicional, repete os mesmos atos, sendo de censurar a sua conduta.
As condições económico-sociais dos arguidos resultaram dos relatórios sociais juntos aos autos.
Por fim, analisaram-se os certificados de registo criminal de cada um dos arguidos.
*”
3. Vejamos, então, as questões suscitadas, pela sua ordem de precedência lógica e processual.
3.1. Da nulidade do acórdão nos termos do artigo 379.º/1, a) – enumeração dos factos provados e não provados
Alega o arguido que resulta da prova que juntou com a sua contestação que tem o total de 114.458,49 € em dívidas, facto que o Tribunal não deu como provado.
Para que mais tarde não venha a ser suscitada qualquer omissão de pronúncia, embora tendo dúvidas se, com tal alegação esteve presente no espírito do recorrente a invocação dos vícios previstos no artigo 379.º/1 alínea a) - remetendo para o artigo 374.º/2 - passar-se-á a conhecer da dita questão.
O arguido apresentou contestação, da mesma constando que:
- logo após ter saído em liberdade abriu a atividade na … cf. doc. 1 que se junta;
- e tentou reiniciar a sua vida profissional depois de todos aqueles anos encarcerado;
- o que se mostrou impossível porquanto o arguido tem as seguintes dívidas:
a) À ..., no valor de 1.781,48€;
b) À ..., no valor de 27.198,89€ e de 2.706,02€;
c) A EE, no valor de 33.915,98€ e de 48.856,12€;
tudo isto no total de 114.458,49€, cf. doc. 2 a 5.
- ofereceu o merecimento dos autos.
Para daqui concluir que se deveria ter dado como provado o facto “O arguido tem o valor de 114.458,49€ em dividas”, tendo o mesmo potencialidade para influir na decisão da causa, nomeadamente para efeito de determinação da medida da pena.
A decisão recorrida refere, quanto à materialidade dada como não provada,
“Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou que:
a) O arguido AA - que se dedicava ao tráfico de estupefacientes, designadamente de canábis-resina, pelo menos desde finais de 2022, e já tinha expedido outras três encomendas a 27 de outubro de 2022, 07 de dezembro de 2022 e 25 de janeiro de 2023, pelo mesmo transitário.”
Ou seja, o Tribunal não refere o mencionado facto como tendo sido provado e, de forma expressa, também não o inclui no elenco dos factos não provados.
Dispõe o artigo 379.º do CPP,
“1. É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º
3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.”
É por todos sabido que em processo penal acusação e contestação “constituem o tema do processo, sendo os factos que constam das mesmas aqueles que devem ser dados como provados ou não provados e as conclusões de direito constantes delas, aquelas que devem ser debatidas na sentença/acórdão” – cf. Ac. TRG de 09-06-2020 (proc. n.º 215/18.5T9PTL-A.G1, www.dgsi.pt)
A contestação é a peça processual através da qual o arguido, se pode defender da imputação que lhe é feita na acusação - artigo 315.º/1 do CPP.
Os factos dela constantes devem ser submetidos a deliberação e votação do Tribunal, juntamente com os insertos na acusação e os resultantes da discussão da causa, como se extrai do artigo 368.º/2 do CPP.
E, desde logo, em sede de discussão da causa, nos termos do artigo 339.º/4 do mesmo diploma, esta tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência (…) tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º - e este em concreto reporta-se à questão da determinação da sanção.
Por seu lado, desde logo, o relatório da sentença, deve conter a indicação sumária das conclusões da contestação, artigo 374.º/1, a) CPP – o que surge, desde logo, como o pressuposto lógico e imediatamente, anterior, do requisito que consta do n.º 2 da mesma norma, a propósito agora, da parte da fundamentação, que se traduz no dever de, da sentença, constar a enumeração dos factos provados e não provados.
Esta enumeração não pode deixar de se entender como reportada, quer aos factos alegados na acusação, ou na pronúncia e na contestação, bem como aos factos resultantes da discussão, que sejam relevantes para a decisão - cfr. n.º 2 do artigo 368.º do CPP-, resultando do n.º 4 do artigo 339.º do Cód. de Processo Penal que a discussão da causa tem exactamente por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência.
Esta exigência visa assegurar que o Tribunal haja apreciado especificadamente toda a matéria de facto submetida desde logo, à sua apreciação, ou que “contemplou todos os factos que foram submetidos à sua apreciação, visando a lei garantir o desempenho da exaustiva cognição, que deve abranger a totalidade do thema probandhum” (no dizer expressivo do Ac. STJ de 26.3.92, BMJ 415º, 499, citado no ac. RP de 21-01-2009, proc. n.º 0846847, www.dgsi.pt; no mesmo sentido cf. ainda o ac. desta Relação de 11-12-2019, proc. n.º 4695/15.2T9PRT.L1-9)
A falta de interesse de determinado facto apenas pode ser aferida pela falta de idoneidade, de importância, de utilidade, para a decisão da causa, em qualquer um daqueles segmentos referidos no n.º 2 do artigo 368.º ou do artigo 369.º C P Penal.
Como se refere no ac. da RP de 08/11/2023 (proc. n.º 471/20.9PIVNG.P2, www.dgsi.pt), “Quanto ao critério de acordo com o qual deve aferir–se se determinado facto é ou não relevante para a decisão da causa, temos desde logo o vislumbre do mesmo no art. 124º/1 do Cód. de Processo Penal, onde se prevê que «Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis» –complementando o nº2 que «Se tiver lugar pedido civil, constituem igualmente objecto da prova os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil».
É este critério da relevância de determinado facto que se encontra também presente, por exemplo, no art.º 283º/1/3/b)c) ou no art.º 308º/1 do Cód. de Processo Penal, quando se definem os pressupostos de que depende, respectivamente, a dedução de acusação pelo Ministério Público ou a prolação de decisão instrutória de pronúncia; ou ainda no já aludido art. 368º/2 do Cód. de Processo Penal quando se define o âmbito necessário do exercício de deliberação probatória por parte do tribunal de julgamento.”
Vem-se entendendo, no entanto, dando algum sentido ordenacional e conteúdo útil à norma, que aquela obrigação, se refere, tão só, aos factos essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que faz excluir, a obrigação de enumeração e, de prévia tomada de posição, dos factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, ainda que descritos na acusação ou na contestação, (cfr, neste sentido, por todos, ac. do STJ de 15.1.97, CJ STJ, I, 181; ac. TC de 26/10/2011, proc. 586/07.9GBAND.C1, www.dgsi.pt; ac. RE de 24/01/2017, proc. n.º 218/12.3TAFAR.E1, consultado no mesmo sítio).
Por outro lado cremos ser líquido que em relação aos factos constantes da contestação que se revelarem, de todo, incompatíveis, com os factos dados como provados, resultantes da acusação, não haverá necessidade, utilidade, em os fazer incluir no elenco dos não provados, podendo-se concluir, seguramente, que o desiderato pretendido pelo legislador, foi atingido: todos os factos foram investigados pelo Tribunal.
Relembre-se que na decisão recorrida se refere “Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou que: (…)”. Assim, parece-nos que da utilização de tal expressão ter-se-á de concluir que sobre os factos mencionados na contestação o Tribunal não se pronunciou, por entender que os mesmos são irrelevantes para a correcta decisão, qualquer que seja o seu enquadramento, tratamento, abordagem e efeitos que deles o arguido quer retirar em sede de operação de determinação da medida da pena.
Com efeito, é absolutamente irrelevante para a operação de determinação da medida da pena, saber se o arguido, logo após ter saído em liberdade abriu a atividade na …, e tentou reiniciar a sua vida profissional depois de todos aqueles anos encarcerado, o que se mostrou impossível porquanto tem dívidas no total de 114.458,49€.
E note-se que na dita contestação nem sequer invoca o arguido como motivação ou causa do crime a existência de dívidas, mas tão só, que não conseguiu reiniciar a sua vida profissional por via da existência dessas dívidas.
Mas ainda que as invocasse como causa próxima do cometimento do crime, sempre será de salientar que, como decorre das mais elementares regras da experiência, a motivação para o cometimento de crimes de tráfico de estupefaciente é, em maior ou menor grau, a de angariar proventos económicos que, de forma lícita, não seriam alcançados.
Como, aliás, terá sido irrelevante, quando anteriormente foi condenado pelo mesmo crime de tráfico de estupefacientes na pena de oito anos de prisão, saber qual a motivação concreta dessa ocasião.
Temos, pois, que de acordo com o disposto no artigo 374.º/2 do CPP, da fundamentação do acórdão consta a enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
Diga-se ainda a propósito que o recorrente, numa singela frase do seu recurso (“E assim, não se pode ter como verdadeiras apenas algumas das coisas que o arguido confessou, só porque sim…”) pode ter pretendido invocar a mesma nulidade, agora no segmento “… bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
O dever de fundamentação das decisões judiciais é um imperativo constitucional consagrado no artigo 205.º/1, da CRP: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.” A fundamentação deve revelar as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha, dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência já que através dela se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador.
Mas, talvez mais importante, é ainda através da fundamentação da sentença que é viabilizado o controlo da actividade decisória pelo tribunal de recurso designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração, e à impugnação da matéria de facto.
Na lei ordinária o dever de fundamentação encontra-se genericamente consagrado no artigo 97.º/5, do C. Processo Penal – “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
No que especificamente respeita à sentença – acto decisório do juiz por excelência – o artigo 374.º, do CPP, enunciando os seus requisitos, dispõe no seu n.º 2:
Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.
A exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão deve ser completa, mas tem que ser concisa, contendo e enunciação das provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo tribunal – o que não exige, relativamente à prova pessoal, a reprodução integral das declarações e depoimentos - bem como a análise crítica de tais provas. Esta análise crítica deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada.
Ora, no caso sub judice, resulta da fundamentação da matéria de facto que o Tribunal a quo, ainda que de forma concisa e sintética, refere claramente os meios de prova que serviram para formação da sua convicção, seguindo um processo lógico e racional na apreciação da prova, não omitindo a fundamentação no sentido da valoração das provas e da razão lógica da condenação do recorrente, não se traduzindo em qualquer decisão arbitrária, contraditória ou materialmente violadora das regras da experiência comum.
Improcede, assim, este segmento do recurso.
*
3.2. Da impugnação ampla, nos termos prescritos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP.
Nesta situação a apreciação do Tribunal ad quem alarga-se à análise da prova produzida em audiência, mas com os limites impostos pelos nºs 3 e 4 do citado artigo 412.º do CPP.
Nos termos deste preceito,
“1 - A motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta nos termos do nº 2 do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
Assim, nos termos do normativo acabado de citar, incumbe sobre o recorrente que pretende impugnar amplamente a matéria de facto “o ónus de uma tripla especificação, a saber: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art.º 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo, relativamente às concretas provas, que quando tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação, devendo todas estas especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas…” - cf. Ac. do TRC de 06-07-2016, proc. n.º 340/08.0PAPBL.C1, www.dgsi.pt.
Por outro lado, a procedência da impugnação, com a consequente modificação da decisão sobre a matéria de facto, não se satisfaz com a circunstância de as provas produzidas possibilitarem uma decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo. Este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção, e por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
E a demonstração desta imposição recai igualmente sobre o recorrente, que deve relacionar o “conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1135).
Como se refere no ac. do TRC de 12-07-2023 (proc. n.º 982/20.6PBFIG.C1, www.dgsi.pt) a impugnação alargada não se satisfaz com “mera discordância do recorrente quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, contrapondo apenas os seus argumentos, críticas, a negação dos factos, suscitando dúvidas – próprias que não do julgador - e não analisando o teor dos depoimentos das indicados nas respetivas passagens da gravação, indicando por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados.”
No caso concreto o arguido mostra discordar do julgamento firmado sobre os factos provados, pretendendo sejam neles incluídos a seguinte materialidade:
- O arguido tem o valor de 114.458,49€ em dividas;
- O arguido recorreu a tráfego de estupefacientes para poder liquidar essas dívidas;
- As dívidas do arguido estão a ser pagas em prestações pelas suas filhas;
- O arguido com a venda do produto estupefaciente obteria um lucro de, no máximo, 60.000,00€.
Para tentar demonstrar as razões da sua discordância alega que a prova do primeiro facto resulta dos documentos juntos com a contestação e os demais das suas declarações em audiência de julgamento.
Abrimos aqui um breve parêntesis para se referir que não se desconhece a existência de jurisprudência que permite incluir na nulidade da sentença a que se reporta o artigo 374.º/2 do CPP- enumeração dos factos provados e não provados – por remissão do artigo 379.º/1, a), a situação em que o recorrente entende assumirem relevância para a decisão da causa determinados factos, que tem por demonstrados probatoriamente nos autos (nomeadamente em sede de julgamento), e não considerados pelo tribunal recorrido em sede de sentença. Neste sentido pronunciou-se o TC (ac. n.º 312/12, de 20/06/2012, proc. 268/12, www.tribunalconstitucional.pt), de onde consta “o mecanismo processual que possibilite essa reação não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de recurso que ajuíze, em primeira mão, se os factos omitidos, face à prova produzida, resultaram demonstrados, sendo suficiente que o arguido tenha a possibilidade de invocar a nulidade resultante da respetiva omissão de pronúncia, cabendo ao tribunal de recurso verificá-la e determinar o seu suprimento (…). Esse meio de reação encontra-se, aliás, previsto no artigo 379.º, do Código de Processo Penal, que no n.º 1, a), sanciona com a nulidade a sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2, do artigo 374.º, onde consta a enumeração dos factos provados e não provados, o que inclui aqueles que resultaram da discussão da causa (artigo 368.º, n.º 2), devendo essa nulidade ser arguida ou conhecida em recurso, sem prejuízo do tribunal recorrido a poder suprir (n.º 2, do artigo 379.º)1.
No entanto, cremos que tal enfoque apenas pode cabimento em situações em que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base à reacção efectuada daquela forma (v.g. a existência de documentos autênticos no processo, plasmando factos relevantes e não considerados provados), podendo, assim o tribunal da 2.ª instância suprimir a invalidade em causa através da adição à matéria de facto do facto em falta, ao abrigo do poder que nesse sentido lhe é atribuído nos termos do artigo 431.º/1, a) do CPP.
Ora, não é esta a situação que ocorre nos autos, deles não constando os mencionados elementos de prova relevantes, nos termos supra consignados, antes alicerçando o recorrente a sua irresignação face ao que não consta da factualidade provada, nos documentos juntos com a contestação (e quanto à factualidade que os mesmos pretendem demostrar já nos referimos) e às declarações que prestou em julgamento.
Assim, julgamos que o correcto enfoque da questão em análise é, precisamente, o da impugnação ampla da matéria de facto.
E, assim, refere o arguido que os factos que pretende que passem a constar da materialidade provada (com excepção do primeiro), foram por ele afirmados em audiência de julgamento, sendo que o Tribunal não valorou positivamente tais declarações, apenas o tendo feito relativamente à confissão da factualidade vertida na acusação e que acabou por tal como provada.
Daqui resulta ser manifesto que o arguido não deu cumprimento a todos os ónus que sobre ele incidia:
- não especificou, citou, transcreveu e localizou no suporte da gravação digital as concretas provas, no caso, os excertos da prova pessoal que entende imporem decisão diversa da recorrida.
Como se referiu já, era necessário localizar os concretos excertos e analisá-los de forma a justificar a sua pretensão de alteração do sentido do decidido.
Assim sendo, se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas no artigo 412.º/4 do CPP, não há lugar ao convite à correcção das conclusões, nos termos do artigo 417.º/3, do mesmo Código, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite. Endereçar o convite para que o recorrente aperfeiçoe as conclusões do recurso, conduziria, necessariamente, ao paradoxo de termos umas conclusões – consabidamente o resumo das razões do pedido – mais extenso, mais complexas e com matéria que não constava do corpo da motivação.
Isto porque, consabidamente, só relativamente às conclusões pode recair o convite ao aperfeiçoamento, já que, de outra forma, se fosse permitido alargá-lo ao corpo da motivação tal se traduziria num injustificado e inadmissível alargamento do prazo do recurso.
Em face do exposto é de rejeitar, o recurso interposto pelo arguido quanto ao erro de julgamento por ele invocado, nos termos do estatuído no artigo 412.º/4 do CPP, a contrario, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto vertida na decisão sob recurso.
*
4. Da medida da pena.
Relembrando, argumenta o arguido é manifestamente excessiva a pena concretamente aplicada de 10 anos que deverá, por isso, ser reduzida, por ultrapassar a medida da culpa e violar o artigo 71.º do CP.
4.1. Atentemos, então, ao que a propósito foi consignado no acórdão recorrido.
“2. Medida da Pena
Cumpre determinar a medida da pena a aplicar aos arguidos, uma vez que a todo o crime corresponde uma reação penal, pela qual a comunidade expressa o seu juízo de desvalor sobre os factos e a conduta realizada pelo agente.
A determinação definitiva da pena é alcançada através de um procedimento que decorre em três fases distintas: na primeira investiga-se e determina-se a moldura penal aplicável ao caso (medida abstrata da pena); na segunda investiga-se e determina-se a medida concreta (dita também individual ou judicial); na terceira escolhe-se (de entre as penas postas à disposição do legislador e através dos mecanismos das penas alternativas ou penas de substituição) a espécie de pena que, efetivamente, deve ser cumprida (Figueiredo Dias, Direito Penal – As consequências jurídicas do crime, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 229).
Vejamos, em concreto, estas diversas etapas.
*
O crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto punido no artigo 21º e 24º alínea h), do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, é punido com uma pena de 5 a 15 anos de prisão.
Já o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido no artigo 25º, alínea a), do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
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Uma vez que o crime de tráfico é apenas punível com pena de prisão, não há que proceder à escolha da pena nos termos explanados no artigo 70º, nº 1 do Código Penal, passando-se, de imediato, à determinação da medida daquela pena, que se mostre adequada ao comportamento do arguido, atendendo-se, nos termos do artigo 71º, nº 1, do Código Penal, à culpa do agente e às exigências de prevenção, não olvidando que a medida da pena jamais pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, nº 2 do Código Penal).
Nesses moldes, a prevenção geral positiva ou de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo, que tem como fasquia superior o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos e inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar.
Por seu turno, a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva (artigo 40º, nº 2 do Código Penal).
Ora, dentro desses limites, cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, sendo de atender à socialização do agente, considerando ainda as demais circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao arguido na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para as exigências preventivas, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, como preceitua o artigo 71º, nº 2, do Código Penal, encontrando-se assim a pena adequada e justa.
No caso em análise, as exigências de prevenção geral são extremamente elevadas, devido à frequência com que este tipo de crime é praticado. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna de 2022, o tráfico de estupefacientes continua a ser um dos crimes mais frequentes no nosso país. Acresce referir que, em particular nesta comarca dos Açores, o tráfico de estupefacientes assume valores cada vez mais preocupantes, sendo do conhecimento geral da população esta realidade. Dada a grande incidência deste tipo de crime, como são expressão os dados referidos, são acentuadas as exigências de prevenção geral no sentido de fazerem apelo a uma maior necessidade de sancionamento para que se restabeleça a confiança, validade e eficácia na norma jurídico-penal violada, sendo ainda premente uma eficaz proteção e tutela do bem jurídico violado.
No que concerne às exigências de prevenção especial ou individual do arguido AA, há que atender ao grau de ilicitude da conduta, que, para além do que já é valorado pelo tipo legal de crime e respetiva moldura abstrata, é acentuado em face do esquema engendrado para o transporte e a quantidade de produto dissimulado dentro de encomendas, suscetível de lesar a saúde de um elevadíssimo número indeterminado de consumidores nesta ilha. Quanto à intensidade da culpa, a mesma é elevada, porquanto o arguido agiu com dolo direto. Por fim, não podemos ignorar que o mesmo praticou o crime em pleno período de liberdade condicional no âmbito de um processo em que foi condenado exatamente pelo mesmo tipo de crime. A seu favor abona a confissão parcial e o apoio familiar de que dispõe.
(…)
Face ao exposto, decide o Tribunal condenar os arguidos nas seguintes penas:
AA: 9 anos de prisão.
(…)
*
Aqui chegados, importa descortinar a verificação da reincidência (apenas quanto ao arguido AA) enquanto circunstância agravante modificativa com previsão legal nos artigos 75º e 76º do Código Penal.
De acordo com o nº 1 do artigo 75º são pressupostos da reincidência: (i) a comissão de crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a seis meses; (ii) à data da prática desses factos, o arguido ter já sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a seis meses por outro crime doloso; e (iii) ser de censurar a conduta do agente por a condenação ou condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência para o crime.
Por seu turno, estabelece o nº 2 do mesmo artigo um pressuposto “negativo” da aplicabilidade do instituto, qual seja a ausência do decurso do período de mais de cinco anos entre a prática de ambos os crimes, não sendo computado o tempo durante o qual o agente esteve em cumprimento da pena privativa da liberdade.
Feito este enquadramento, constatamos que, no caso dos autos, mostram-se reunidos os ditos pressupostos objetivos (positivos – alíneas (i) e (ii) e negativo):o arguido AA tem um antecedente criminal pela prática de um crime de tráfico estupefacientes, agravado, pp no art.º 21.º, n.º 1, e 24.º, al. c), do DL 15/93, de 22 de Janeiro, tendo sido condenado, no processo 36/16.0 PEPDL, por Acórdão transitado a 25 de Fevereiro de 2019, na pena de oito anos de prisão, por factos de 15 de Março de 2016; pena que cumpriu até 21 de Abril de 2022, data em que foi colocado em liberdade condicional; mas durante tal período recaiu na prática do mesmo crime, o que nos leva a concluir que a anterior condenação sofrida pelo ora arguido não serviu de suficiente obstáculo ou advertência para o afastar da prática de crimes.
Atento o disposto no artigo 76º nº 1 do Código Penal, pelo que, levando em conta os fundamentos supra vertidos a propósito da determinação da medida da pena, consideramos justa, necessária, adequada e proporcional a aplicação de mais um ano de prisão.”
4.2. Como é sabido a questão da medida da pena não é do conhecimento oficioso por parte do tribunal de recurso.
Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena, o juiz serve-se do critério global contido no artigo 71.º do CP, estando vinculado aos módulos – critérios de escolha da pena constantes do preceito. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.
O dever jurídico, substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo da decisão sobre a determinação da pena.
Acerca da questão da cognoscibilidade, controlabilidade da determinação da pena, no âmbito do recurso, há que dizer que a intervenção do tribunal nesta sede, de concretização da medida da pena e do controle da proporcionalidade no respeitante à sua fixação concreta, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada.
Vem-se entendendo que se pode sindicar a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro de prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada.
E neste concreto ponto não podemos deixar de assinalar a incorrecção da operação efectuada pelo Tribunal a quo para a determinação da pena concreta. O arguido não coloca em causa a qualificação jurídica dos factos pelos quais foi condenado nem, tão pouco, a sua punição como reincidente.
Definido tal pressuposto importa agora considerar a forma como a reincidência irá actuar da concretização da medida concreta da pena.
Preceitua o artigo 76.º/1 do CP que “Em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado. A agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.
Portanto, em caso de reincidência, a primeira operação a efectuar é a determinação da medida da pena independentemente da reincidência. Ou seja, o tribunal tem de determinar a pena que concretamente deveria caber ao agente se ele não fosse reincidente, para tanto seguindo o procedimento normal da determinação da pena. Tal operação já foi levada a cabo pelo Tribunal a quo, tendo o mesmo entendido ser de aplicar a pena concreta de nove anos de prisão.
A segunda operação é determinar a moldura penal da reincidência, a qual terá como limite máximo, o limite máximo previsto pela lei para o respectivo tipo de crime; e como limite mínimo o limite mínimo legalmente previsto para o tipo, elevado de um terço. Assim, no caso concreto, o limite máximo é de quinze anos, o limite mínimo seis anos e sete meses de prisão.
A terceira operação: determinar a medida da pena na moldura penal da reincidência.
O tribunal determina a medida concreta da pena cabida ao facto dentro da moldura penal da reincidência. Isso será feito com total observância dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.º do CP.
Por último o tribunal tem de comparar a medida da pena a que chegou sem entrar em conta com a reincidência com aquela que encontrou dentro da moldura da reincidência. O fundamento de tal operação reside no disposto na 2.ª parte do art.º 76.º/1, a agrava­ção determinada pela reincidência não poderá exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores (no caso concreto a agravação pela reincidência não poderá exceder os 8 anos de prisão aplicados no 36/16.0 PEPDL).
Não pode é o Tribunal determinar medida concreta da pena sem a reincidência e, depois, como fez, e sem qualquer fundamentação, acrescentar mais um ano de prisão à pena anteriormente encontrada, por força da reincidência.
Vejamos, no entanto, se errou o Tribunal quanto à determinação da pena concreta sem a agravante da reincidência, tendo aplicado uma pena de 9 anos de prisão numa moldura penal abstracta de 5 a 15 anos.
Ultrapassada que está a fase da consideração, como ponto de partida para a determinação da medida concreta da pena, o do ponto médio da sua moldura abstracta, bem como o de ser esta a matéria onde transparece e se assume na plenitude, a arte de julgar, como ponto incontornável de partida e de chegada, temos que a operação de determinação da medida da pena, se faz em função dos critérios gerais de medida da pena, seja, a culpa do agente e as exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
O Código Penal atribui à pena um conteúdo de reprovação ética, dando tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime, ligada ao princípio da eminente dignidade da pessoa humana, limita de forma inultrapassável a medida da pena, sem deixar de atender aos fins da prevenção geral e especial.
“A culpa jurídico-penal traduz-se num juízo de censura, que funciona ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena”, cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 215.
Com a determinação de que sejam tomadas em consideração as exigências de prevenção geral, procura dar-se satisfação à necessidade da comunidade, de punição do caso concreto, tendo-se em conta, de igual modo, a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos e com o recurso à vertente da prevenção especial, procura satisfazer-se as exigências de socialização do agente com vista à sua integração na comunidade.
Dispõe o artigo 40.º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, n.º 1 e, que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, n.º 2.
O modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, “aquele que comete à culpa a função, única, mas nem por isso menos decisiva, de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral, de integração, a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa e, cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dento da referida “moldura de prevenção”, que sirva melhor as exigências de socialização ou, em casos particulares, de advertência ou segurança do delinquente” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, 186-187.
Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições normativas específicas que devem ser respeitadas: a formulação da norma reveste a “forma plástica” de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições, cabe ao legislador definir e que, em consequência, devem ser respeitadas pelo juiz.
A norma do artigo 40.º condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, sendo a culpa o limite da pena, mas não o seu fundamento.
Nos termos do artigo 71.º/1 do CP, a determinação da medida concreta da pena é feita dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as circunstâncias enumeradas exemplificativamente, nas alíneas a) a f) do n.º 2 do citado artigo 71.º do CP.
A este processo deve presidir uma preocupação de tratamento justo do caso concreto, adequado à vontade e intenções da lei, que haverá que passar pela escolha de reacção sancionatória com aptidão e eficácia bastantes à ideal/tendencial protecção do bem jurídico violado e à dissuasão da prática de novos crimes, constituindo a retribuição justa do mal praticado, dando satisfação ao sentimento de justiça e segurança da comunidade e contribuindo, na medida do possível, para a reinserção social do delinquente.
A culpa constitui, assim, o limite inultrapassável do quantum da pena, dentro é certo da sub-moldura da prevenção geral e ponderadas as necessidades que o agente apresente em sede de prevenção especial.
Esta medida concreta da pena a aplicar ao arguido, tendo em atenção que a mesma assenta na “moldura de prevenção”, cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do quantum da pena imprescindível, no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, deve ser encontrada dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º/1 CP), sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigos 40.º/2 e 71.º/1 CP).
Devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal, a pena tem de responder, sempre positivamente, às exigências de prevenção geral de integração, sendo certo que se a culpa constitui o fundamento e o limite da pena, as suas finalidades são a prevenção geral e especial.
Descendo ao caso concreto.
O arguido que discorda da medida da pena deve fazer a crítica concreta da operação que a ela conduziu, tendo presente os factores que a lei manda que sejam tomados em consideração, especificando os que o foram, em concreto e os que deveriam ter sido e, na sua perspectiva, não foram, chamando a atenção para o facto de alguns deles terem, porventura sido sobrevalorizados e outro, porventura, desvalorizados ou omitidos.
O arguido, no caso concreto refere que a pena é manifestamente excessiva, devendo ser reduzida consideravelmente.
Para suportar tal asserção invoca:
- que não foram dados como provados factos que seriam relevantes na determinação da pena concreta (o arguido tem o valor de 114.458,49€ em dívidas; o arguido recorreu a tráfego de estupefacientes para poder liquidar essas dívidas; as dívidas do arguido estão a ser pagas em prestações pelas suas filhas; o arguido com a venda do produto estupefaciente obteria um lucro de, no máximo, 60.000,00€);
- ficado provado que o coarguido BB só foi apanhado e condenado por o crime de tráfico porque o aqui arguido colaborou com a investigação;
- porque tendo tudo isto em consideração a ilicitude e a intensidade do dolo é mais reduzida do que se teve em conta naquela Acórdão;
- e ainda porque, assim se conseguem melhor justificar os fins e motivos que determinaram a prática do crime para os efeitos do artigo 71.º n.º 2 alínea c), bem como a sua situação económica, não se tendo dado como provado o passivo verdadeiro do arguido.
No que diz respeito à factualidade que o Tribunal não deu como provada já nos pronunciamos, não podendo a mesma ser atendida.
O Tribunal a quo, aquando da primeira operação de determinação da pena concreta, numa moldura abstracta de 5 a 15 anos, ponderou:
- as exigências de prevenção geral são extremamente elevadas, devido à frequência com que este tipo de crime é praticado e em especial na comarca dos Açores, “onde este crime assume valores cada vez mais preocupantes, sendo do conhecimento geral da população esta realidade”;
- o grau de ilicitude da conduta do arguido, que considerou elevado em face do esquema engendrado para o transporte e a quantidade de produto dissimulado dentro de encomendas, suscetível de lesar a saúde de um elevadíssimo número indeterminado de consumidores;
- a elevada intensidade da culpa, porquanto o arguido agiu com dolo direto;
- a circunstância de o crime ter sido praticado em pleno período de liberdade condicional no âmbito de um processo em que foi condenado exatamente pelo mesmo tipo de crime;
- a confissão parcial;
- o apoio familiar de que dispõe.
É de notar que a circunstâncias de o arguido ter actuado com dolo directo corresponde à esmagadora maioria das situações, nada revelando em seu abono ou desfavor.
Por outro lado, cumpre referir que dever ponderar-se os sentimentos manifestados pelo arguido na prática do crime, de desprezo e indiferença pela vida, integridade física dos consumidores e de todas as repercussões negativas do consumo de estupefacientes, não afectando só aqueles, mas também constituindo forte factor de desintegração familiar e social, até pelos fenómenos de criminalidade associada ao consumo, mormente os furtos, roubos e receptações.
A ponderar ainda a circunstância de o produto estupefaciente em causa ter a natureza do que usualmente se denomina de “droga leva” cumprindo, no entanto referir, como se fez no ac. STJ de 11/10/2023 (proc. n.º 444/22.7PCSNT.S1, www.dgsi.pt) “A ideia que atualmente se quer generalizada de que o consumo de cannabis não tem efeitos perniciosos nem gera dependência, não tem fundamento científico. Neste sentido, consigna-se no «Relatório Europeu sobre Drogas – 2020», do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA)», que “a canábis tem hoje um peso significativo nas admissões a tratamento de toxicodependência”.
Efetivamente, a canábis gera apetências gradativamente mais exigentes, sendo frequentemente referida por consumidores de estupefacientes, como uma fase de acesso ou de iniciação a estupefacientes mais perniciosos para a saúde.”
Ao invés, as restantes circunstâncias alegadas pelo arguido para o efeito de demonstrar o excesso da pena, não assumem, de qualquer forma, manifestamente a virtualidade de justificar a sua redução. Na verdade a confissão dos factos numa circunstância em que a busca ao veículo conduzido pelo veículo veio a revelar que o mesmo ali tinha acondicionadas as embalagens com 600 placas de haxixe, não se nos afigura particularmente relevante para a descoberta da verdade, salientando-se não ter resultado provado que o arguido denota arrependimento pela conduta que adoptou, factor que, esse sim, é decisivo no sentido da interiorização da ilicitude da conduta.
A ponderação das condições económicas do arguido também nesta sede não revelam particularmente, atendendo a que, como referimos já, o tráfico de produto estupefaciente tem como principal escopo (sobretudo quando o traficante não seja também consumidor, o que não consta dos factos provados) a obtenção de proventos económicos que não alcançaria legitimamente, sendo completamente indiferente o destino que venha a dar a esses proventos.
Ao contrário do alegado pelo arguido, não “ficou provado que o coarguido BB só foi apanhado e condenado por o crime de tráfico porque o aqui arguido colaborou com a investigação”. Provou-se que “O arguido AA, em face da apreensão, referiu que faltava uma embalagem de um quilo de haxixe, com dez “sabonetes” de haxixe, num total de 60 embalagens que tinha expedido, pelo que a polícia voltou ao transitário, tendo contactado o arguido BB, empregado da empresa, que tendo constatado o cheiro de haxixe antes da chegada do arguido AA e busca do veículo pela polícia, tinha retirado de um dos volumes um quilo de canábis-resina, com dez placas de tal produto.
Não se vislumbra, pois, qualquer conduta do arguido susceptível de valoração positiva a este nível.
Se como vimos a culpa constitui o limite inultrapassável do quantum da pena, dentro é certo da sub-moldura da prevenção geral e ponderadas as necessidades que o agente apresente em sede de prevenção especial, julga-se como perfeitamente adequado que se possa estabelecer uma ligação de causa/efeito que numa amplitude que vai de 5 a 15 anos de prisão se possa fixar a pena em 9 anos de prisão.
Tal pena concreta está de acordo com as regras dogmáticas da determinação da medida da pena, atinentes com a medida da culpa, actuação com dolo directo de normal intensidade para situações do género, antecedentes criminais e circunstância de o arguido ter cometido o crime durante o período de liberdade condicional por crime idêntico.
Olhando aos factos apurados e tendo presente o limite máximo consentido pelo seu grau de culpa, bem como os princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, em face dos factores que nos termos do artigo 71.º CP devem ser tidos em conta na matéria, entendemos que a pena de 9 anos de prisão é perfeitamente adequada, justa e proporcional.
Valor que cumpre com a sua função, de transmitir, com ponderação, equilíbrio e sentido de justiça relativa, do caso concreto, a noção de censura social do comportamento do arguido.
Transpondo todas as considerações já efectuadas para a determinação da pena concreta na moldura abstracta resultante da agravante reincidência (6 anos e 7 meses de prisão a 15 anos) julgamos que a pena de 10 anos de prisão (que foi a que efectivamente se aplicou, muito embora sem a realização de todas as operações indicadas) também se mostra justa, proporcional e adequada, não esbarrando com a condicionante resultante da 2.ª parte do artigo 76.º/1 do CP.
Pelo exposto nada há a apontar à decisão recorrida, improcedendo o recurso também neste segmento.
*
III. Dispositivo
Nestes termos e com os fundamentos mencionados, acordam os juízes que compõem este tribunal em:
- rejeitar o recurso interposto pelo arguido no que toca à impugnação ampla da matéria de facto;
- no restante, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se, na íntegra, a decisão recorrida.
*
Taxa de justiça pelo recorrente, que se fixa em 4 Ucs – artigos 513.º, a contrario todo do Código de Processo Penal e artigo 8.º/9 do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, por remissão para a tabela III ao mesmo anexa.
*
Notifique.
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Lisboa, 11-04-2024
Elaborado e integralmente revisto pela relatora, nos termos do artigo 94.º/2 do CPP.
Maria João Lopes
José Castro
Carla Carecho
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1. Notando-se, todavia que o mesmo acórdão conclui que «Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 410.º, n.º 1, 412.º, n.º 3, e 428.º, conjugados com os artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não pode ser objeto da impugnação da matéria de facto, num recurso para a Relação, a factualidade objeto da prova produzida na 1ª instância, que o Recorrente-arguido sustente como relevante para a decisão da causa, quando tal matéria não conste do elenco dos factos provados e não provados da decisão recorrida».