Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3409/21.2T8BRG.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
CONTRATO
RESOLUÇÃO
MODIFICAÇÃO
ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
EMPRÉSTIMO BANCÁRIO
DOENÇA COVID-19
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O direito à resolução ou modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias pressupõe (i) que a alteração a ter por relevante diga respeito a circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar; (ii) que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal (iii) que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes (iv) que tal manutenção do contrato ou dos seus termos afecte gravemente os princípios da boa-fé (v) que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprios do contrato e, (vi) por último, a inexistência de mora do lesado.
II - Diferentemente do erro, em que a base do negócio é unilateral, respeitando exclusivamente ao errante, na alteração das circunstâncias a mesma é bilateral, respeitando simultaneamente aos dois contraentes (i.e., que se produza uma alteração anormal das circunstâncias em que ambas as partes fundaram a decisão de contratar).
III - Nas situações de crise, a alteração relevante carece ainda de ser anormal, requisito ligado à imprevisibilidade, pois que, sendo a alteração normal, as partes poderiam tê-la previsto e acautelado, na conclusão do contrato, as suas consequências, pelo que as alterações da taxa de juro e de esforço na concessão de empréstimo bancário pagamento do preço do contrato prometido, o desemprego e a desvalorização da moeda são insusceptíveis de preencher tal requisito.
IV- A crise pandémica resultante da doença COVID-19 constitui uma situação susceptível de integrar os pressupostos da resolução ou modificação dos contratos por alteração das circunstâncias, nos termos do art.º 437.º do Código Civil”, mas apenas quando essa situação pandémica constitua, ela mesma, (e não outra causa), uma alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, que provoque um dano grave a uma das partes, de tal modo que a exigência, a essa parte, do cumprimento das obrigações assumidas contrarie gravemente a boa-fé.
V- São dois os pressupostos cumulativos para que o requerente seja dispensado do ónus de propor a acção principal, por aplicação do instituto da inversão do contencioso: 1º a matéria adquirida no procedimento permita ao juiz formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado; 2º a natureza da providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
VI- Não se verifica o preenchimento do primeiro pressuposto quando o grau de convicção que o juiz tiver formado não ultrapassar o plano do mero julgamento sumario (“summaria cognitio”) assente num juízo de probabilidade séria (“fumus boni juris”) ou verossimilhança da existência do direito exigível para a procedência do Procedimento cautelar.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrente: CAIXA ..., S.A..
Recorrido: X TRANSPORTES Unipessoal, LDA.
Tribunal Judicial da Comarca de Tribunal Judicial da Comarca de Braga Juízo Central Cível de Braga - Juiz 3.

CAIXA ..., S.A., pessoa colectiva nº ………, com sede na Avenida … Lisboa, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ..., com o capital social de € 3.844.143.735,00 intentou NOS TERMOS E PARA OS EFEITOS DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 362º E SEGUINTES DO CPC, PROVIDÊNCIA CAUTELAR DE ENTREGA JUDICIAL CONTRA X TRANSPORTES Unipessoal, LDA. com NIF n.º ......... com sede na Rua ….
Peticionou que fosse ordenada a entrega judicial à requerente da viatura de matrícula PC e que o Tribunal se pronunciasse pela resolução definitiva do presente caso, julgando-se definitivamente pela entrega à requerente do referido bem.
Alegou para tanto que a requerida deixou de pagar as prestações devidas pela utilização do veículo em causa.
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A requerida veio deduzir oposição ao arresto decretado, alegando, que a obrigação de pagamento em causa deveria ter sido suspensa face ao regime excepcional criado do decurso da pandemia Covid e que está em causa uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram o seu contrato.
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A requerente respondeu às excepções suscitadas pela requerida referindo que não é possível aplicar o regime em causa uma vez que a requerida tinha dívidas à Segurança Social e nunca comunicou o motivo pelo qual deixou de pagar as prestações devidas nem se mostrou disponível para um acordo de pagamento.
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença em que, respondendo à matéria de facto controvertida, se decidiu nos seguintes termos:
Decisão
Nestes termos, o Tribunal julga improcedente a providência requerida e não declaro a inversão do contencioso.

Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a Requerente, de cujas alegações extraiu, em suma, as seguintes conclusões:

1.A Requerente Caixa ..., S.A. intentou o presente procedimento cautelar contra a Requerida X Transportes Unipessoal, Lda. para a entrega judicial de uma viatura da marca Scania, modelo R410, com o n.º de chassis ..............14, com a matrícula PC, tendo por base um contrato de locação financeira mobiliária com o n.º .........86.
2.A Requerida deixou de proceder ao pagamento das rendas mensais acordadas contratualmente, tendo sido a mesma interpelada, em 6 de agosto de 2020, para proceder ao pagamento dos vários débitos em atraso e, na ausência de resposta, por carta data de 21 de dezembro de 2020, procedeu-se à resolução do contrato de locação financeira.
3.Não tendo sido feita a entrega voluntária do bem locado, a Requerente intentou o presente procedimento cautelar destinado à entrega judicial do mesmo, tendo invocado o fundado receio de vir a sofrer prejuízos graves e irreparáveis estando o bem locado fora do seu controle e fruição e tendo requerido a dispensada da audição da Requerida. Sociedade de
4.O Tribunal a quo entendeu que a Requerida devia ser ouvida, a qual deduziu oposição à providência cautelar com fundamento que a falta de pagamento das rendas acordadas no contrato de locação financeira não configurava uma situação de incumprimento contratual face ao regime legal consagrado face à pandemia da Covid-19 e, por outro lado, que a Requerente devia ter modificado o contrato de locação financeira, ao invés de proceder à respectiva resolução.
5.A 10 de setembro de 2021, realizou-se o julgamento, tendo sido a Requerida convidada para proceder à junção de prova documental de que, em 2020 e 2021, o seu único sócio e legal representante foi acometido de doença que o levou a uma intervenção cirúrgica, o que fez, tendo a Requerente entendido que a mesma não tinha qualquer relevância para os fins pretendidos nos presentes autos.
6.Em face da matéria dada como provada, o Tribunal a quo entendeu que a Requerente não incumpriu o regime legal consagrado no Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, uma vez que a Requerida não cumpriu uma das condições impostas pela referida legislação excepcional em vigor, mas que, face ao regime constante do artigo 437.º do Código Civil, verificam-se os pressupostos para uma modificação do contrato face a uma anormal alteração das circunstâncias, o que impede a consequência jurídica pretendida pela Requerente.

DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
7.Nos termos do disposto no artigo 640.º do CPC, a Recorrente pode impugnar a matéria de facto dada como provada devendo, para o efeito, indicar os pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem assim como os meios probatórios que impunham uma decisão diferente da matéria de facto.
8.O Tribunal a quo deu como provado, no ponto 12, que “a partir de Janeiro de 2020, no decurso da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, e apesar de todos os seus esforços e sacrifícios, a Requerida não conseguiu, com os seus rendimentos, satisfazer as prestações relativas a esse contrato.”, socorrendo-se do depoimento, com credibilidade, do legal representante da Requerida, A. N..
9.A Recorrente aceita que foi a partir de janeiro de 2020 que a Requerida deixou de satisfazer as rendas mensais acordadas no âmbito do contrato de locação financeira, tendo sido junto extrato, em 28 de julho de 2021, demonstrativo que a Requerida entrou em situação de incumprimento em 10 de janeiro de 2020 relativamente à renda contratada n.º 3.
10.É facto público e notório que a pandemia causada pelo coronavírus se instalou em Portugal em março de 2020, quando começaram a ser emitidos os vários diplomas legais que regularam as moratórias relativas a contratos de crédito face aos confinamentos gerais que se seguiram.
11.Em janeiro de 2020 não havia, em Portugal, qualquer problema relacionado com a pandemia do coronavírus, estando a vida em sociedade a decorrer sem qualquer constrangimento, nomeadamente, a actividade económica das várias sociedades comerciais.
12.Não se pode estabelecer uma relação entre a falta de pagamento das rendas pela Requerida a partir de janeiro de 2020 com uma pandemia que apenas despoletou em março de 2020 e que apenas causou constrangimentos económicos desde então.
13.Não foi no decurso da pandemia causada pelo coronavírus que a Requerida deixou de satisfazer as rendas acordadas no âmbito do contrato de locação financeira celebrado com a ... Leasing e Factoring, S.A, dado que a Requerida deixou de proceder ao pagamento das rendas acordadas antes de deflagrar a pandemia causada pelo coronavírus.
14.Deverá ser eliminada a referência à pandemia do coronavírus, passando o referido ponto 12 a ter a seguinte redação: “A partir de janeiro de 2020, e apesar dos seus esforços e sacrifícios, a Requerida não conseguiu, com os seus rendimentos, satisfazer as prestações relativas a esse contrato”.
15.Nos pontos 13 a 16, o Tribunal a quo deu como provada a paralisação da actividade da Requerida, o decréscimo dos seus serviços, a ausência de quaisquer rendimentos e o suporte de várias despesas fixas, socorrendo-se apenas do depoimento do legal representante da Requerida A. N..
16.O Tribunal a quo não pode dar como provado o decrescimento da procura de serviços da Requerida, a ausência de rendimentos provenientes do exercício da respetiva atividade ou o pagamento de despesas mensais fixas com o mero depoimento do respetivo legal representante.
17.Estamos perante factos que são suscetíveis de prova documental, sendo certo que o documento idóneo para a prova dos referidos factos é a declaração IES, onde constam as obrigações declarativas de natureza contabilística, fiscal e estatística.
18.Saber se uma sociedade comercial auferiu rendimentos, teve variada faturação ou pagamento de despesas mensais fixas é obtido através de suporte documental próprio, não se podendo o Tribunal bastar com o mero depoimento do respetivo legal representante.
19.Nem todas as empresas deixaram de faturar por causa da pandemia originada pelo coronavírus, não se podendo retirar daí uma consequência lógica de perda de rendimentos com o mero depoimento do legal representante da Requerida.
20.O Tribunal a quo nem sequer estabelece um período temporal da alegada perda de rendimentos e da alegada paragem no exercício da atividade económica da Requerida, tal como não estabelece a percentagem de perda de rendimentos obtida.
21.O Tribunal a quo limita-se a, de uma forma genérica, admitir que a Requerida deixou de ter rendimentos, sem os contabilizar, devido a uma paragem no exercício da respetiva atividade económica, sem também contabilizar o respetivo período temporal.
22.O Tribunal a quo não tinha em seu poder elementos probatórios suficientes para dar como provados os referidos factos constantes dos pontos 13 a 16, razão pela qual devem os mesmos deixar de constar do elenco dos factos provados, o que se requer.

DO DIREITO
23.Salvo o devido respeito, que é muito, e melhor entendimento, a Requerente Caixa ..., S.A. não pode deixar de discordar com o entendimento do M. Juiz do Tribunal a quo segundo o qual o direito da Requerente não se mostra suficientemente indiciado, entendendo que a Requerente devia ter sugerido à Requerida uma alteração ao contrato face aos seus recursos económicos e técnicos.
24.O Tribunal a quo esteve bem, em nosso entendimento, quanto à solução jurídica dada ao caso em apreço quanto à aplicação do regime legal constante do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, o qual instituiu um regime da moratória legal o qual ficou dependente da verificação de várias circunstâncias.
25.No caso em apreço, foi dado como provado, nos termos constantes da impugnação da matéria de facto, que a Requerida X entrou em situação de incumprimento relativamente ao contrato de locação financeira a partir de janeiro de 2020, não tendo procedido ao depósito de qualquer montante por conta das rendas acordadas no âmbito do contrato de locação financeira mencionado na petição inicial.
26.A Requerida pediu informação sobre as medidas de apoio às empresas de forma a enfrentarem os efeitos da Covid-19, informação que foi prestada pela Requerente, bem assim como solicitado um conjunto de elementos.
27.Foi dado como provado no ponto 18, que a Requerida não remeteu à Requerente os documentos necessários à aplicação do regime de moratória de pagamentos, nomeadamente, um documento da Segurança Social a informar que não tinha dívidas à mesma.
28.Foi dado como provado que a Requerida apresenta uma dívida de contribuições à Segurança Social, a partir de janeiro de 2020, no montante de 5.604,37€, a que acrescem juros de mora no montante de € 282,61, contados até ao dia 30/09/2021, num total de € 5.886,98.
29.A Requerida não cumpriu os requisitos legais necessários para a aplicação do regime da moratória legal de pagamento, pelo que, neste sentido, bem andou o Douto Tribunal a quo ao não aderir à tese da Requerida.
30.O Tribunal a quo entendeu que seria de acolher o fundamento de que a situação epidemiológica provocada pela Covid-19 reflecte uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de celebrar o contrato de locação financeira e que a Requerente deveria ser optado pela modificação do contrato ao invés de proceder à respectiva resolução.
31.A Requerida não entrou em incumprimento com a Requerente em março de 2020, quando despoletou no país a pandemia da Covid-19, mas em janeiro de 2020, quando a pandemia ainda não se fazia sentir no país, o que é demonstrativo que o incumprimento não se verificou por causa da pandemia, tal como sucedeu com a Segurança Social.
32.O incumprimento generalizado das obrigações da Requerida junto da Requerente e da própria Segurança Social ocorreu por outro motivo que não o despoletar da pandemia causada pelo coronavírus.
33.O incumprimento até se pode ter agravado devido à pandemia, mas não se originou por causa da pandemia, razão pela qual não se pode aplicar o regime da modificação ou resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias, dado que o incumprimento contratual não ocorreu por causa da situação epidemiológica provocada pela Covid-19.
34.Não foi a pandemia causada pelo coronavírus que originou o incumprimento contratual por parte da Requerida, dado que a mesma procedeu ao pagamento das rendas até dezembro de 2019 e a pandemia despoletou em março de 2020.
35.A resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias depende da verificação dos seguintes requisitos cumulativos: que haja uma alteração relevante das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar, ou seja, que essas circunstâncias se hajam modificado de forma anormal e que a exigência da obrigação à parte lesada afete gravemente os princípios da boa-fé contratual, não estando cobertos pelos riscos do próprio negócio.
36.No caso em apreço, não foi a pandemia originada pelo coronavírus que motivou o incumprimento contratual pela Requerida, razão pela qual não se pode estabelecer uma relação consequente entre a pandemia e o incumprimento contratual de forma a motivar a resolução ou a modificação do contrato, razão pela qual não é aplicável ao caso em apreço o regime constante do artigo 437.º do Código Civil.
Sem prescindir,
37.A pandemia da doença Covid-19 não pode, por si só, motivar a resolução ou modificação dos contratos por alteração das circunstâncias, sob pena de todos os contratos puderem ser resolvidos ou modificados e, deste modo, abalar de forma irreparável o mundo dos negócios jurídicos no ordenamento jurídico português, especialmente, quando foi consagrada uma legislação especial destinada ao tratamento jurídico destas matérias.
38.Em resposta à situação pandémica, o Estado Português aprovou um conjunto de medidas de apoio às empresas e às pessoas singulares, como seja o caso do referido diploma legal que consagrou o regime das moratórias através do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março.
39.Se fosse possível optar entre o referido regime legal das moratórias e o regime constante do artigo 437.º do Código Civil, naturalmente que todos os contraentes/consumidores iriam optar pelo segundo, dado que o primeiro não os desobriga das respectivas responsabilidades contratuais, mas apenas institui um período de moratória.
40.Perante uma legislação especial e uma legislação geral, deve prevalecer a primeira, a qual foi especialmente contemplada para a situação específica que assolou o país, não tendo a legislação especial que revogar a legislação geral para que possa prevalecer sobre a mesma.
41.A requerida X não usufruiu das referidas medidas de apoio, nomeadamente, com a moratória do pagamento, uma vez que não deu cumprimento aos respectivos requisitos legais, conforme se demonstrou, tendo inclusivamente sido convidada para apresentar uma proposta de regularização e não apresentou qualquer resposta.
42.O regime legal previsto no artigo 437.º do CC não pode ter aplicação ao caso em apreço, quando o mesmo se subsumia ao regime legal instituído pelo Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março.
Sem prescindir,
43.Ainda que, por mera cautela de patrocínio, se admita a aplicação ao caso em apreço do artigo 437.º do CC, temos de ter sempre presente que um contrato, nestas condições, não pode ser unilateralmente alterado.
44.O Tribunal a quo, fazendo tábua rasa de todo o regime jurídico da modificação ou resolução do contrato por alteração das circunstâncias, entende que a Requerente é que deveria ter sugerido à Requerida uma alteração do contrato ao invés de proceder à respetiva resolução.
45.Salvo o devido respeito e melhor entendimento, não recaía, certamente, sobre a Requerente a iniciativa de promover a alteração ou modificação do contrato de locação financeira celebrado com a Requerida, quando a parte contraente interessada/lesada na resolução e/ou modificação contratual era a Requerida.
46.A Requerente não pode impor uma alteração contratual contra os seus próprios interesses quando não se verifica qualquer tipo de interesse da parte contratual contrária, sendo que era sobre a Requerida que recaía a obrigação, enquanto parte lesada, de promover a resolução ou modificação do contrato mediante declaração à Requerente.
47.Se a Requerida pretendia uma resolução ou modificação do contrato de locação financeira deveria tê-lo feito chegar ao conhecimento do respetivo destinatário, neste caso, da Requerente, o que não fez, quer pela via judicial, quer pela via extrajudicial.
48.A resolução ou modificação do contrato prevista no artigo 437.º do CC determina que a parte que se considera lesada pela alteração anormal das circunstâncias possa provocar a resolução do contrato mediante uma declaração à parte contrária.
49.É discutível na doutrina e na jurisprudência se tal declaração deverá ser feita judicial ou extrajudicialmente, sendo que, no caso em apreço, nenhuma declaração foi promovida pela Requerida, estando o Tribunal a quo a ir muito além da interpretação jurídica dos factos e da aplicação da lei ao entender que a Requerente é que deveria ter promovido tal resolução e/ou modificação.
50.Não era à Requerente que incumbia a obrigação de promover pela referida declaração de resolução ou modificação contratual, dado que não era esta a parte lesada pelas alegadas alterações das circunstâncias e, especialmente, quando o incumprimento se reporta a data anterior à pandemia.
51. A Requerida X não demonstrou interesse na regularização do contrato de locação financeira, sendo manifestamente inviável qualquer tipo de modificação contratual.
52.Foi dado como provado no ponto 17 que a Requerida foi convidada pela Requerente para apresentar uma proposta de regularização que determinaria uma alteração e/ou modificação do contrato de locação financeira., não tendo a mesma apresentado qualquer resposta.
53.O Tribunal a quo desvaloriza, totalmente, a iniciativa tomada pela Requerente ao convidar a Requerida a apresentar uma proposta de regularização e, deste modo, instituir uma modificação ao contrato de locação financeira.
54.O Tribunal a quo faz recair sobre a Requerente um ónus de quase impor uma modificação ou alteração contratual quando a parte contrária não demonstrou qualquer interesse na mesma, o que é claramente inviável e impraticável, por muita vontade que a Requerente tivesse.
55.A Requerente tudo fez para chegar a um entendimento com a Requerida, a qual, por sua vez, não demonstrou qualquer interesse na resolução da questão, não obstante o convite apresentado pela Requerente.
56.Não restou, por isso, qualquer alternativa à Requerente senão a de diligenciar pela interpelação e posterior resolução fundada no incumprimento contratual pela Requerida, o qual se encontra manifestamente demonstrado nos autos.
57.Não assiste razão ao Douto Tribunal a quo ao considerar que o direito da Requerente não se encontra suficientemente indiciado, por não ter sugerido à Requerida uma alteração ao contrato, razão pela qual deve ser revogada a Douta Sentença que julgou improcedente a presente providência cautelar, devendo ser proferida decisão a julgar procedente, por provada, a providência cautelar e ordenada a entrega do bem móvel locado pela Requerida à Requerente.
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A Apelada apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência da apelação interposta.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas são, no caso, as seguintes:
- Analisar da impugnação da matéria de facto em ordem a esclarecer se deverá ser alterada a factualidade fixada na decisão recorrida.
- Analisar da verificação ou não dos pressupostos para uma modificação do contrato por anormal alteração das circunstâncias, prevista no artigo 437, do C.P.C..
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III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

A factualidade dada como provada e não provada na sentença recorrida é a seguinte:

Factos provados.
1. A Caixa ..., S.A. é sucessora, por incorporação da ... Leasing e Factoring - Instituição Financeira de Crédito, S.A., nos direitos e obrigações desta. A fusão encontra-se registada na Conservatória de Registo Comercial de ... sob a Ap. 42/20201231.
2. A …LF, S.A era uma sociedade anónima que tem por objecto o exercício de actividades financeiras permitidas por lei, entre elas o exercício da actividade de locação financeira.
3. No exercício da sua actividade, a …LF, S.A. celebrou com a requerida um contrato de locação financeira mobiliária - Contrato n.º .........86, celebrado em 08/10/2019, tendo por objecto uma Viatura da Marca SCANIA, modelo R410, com o n.º de chassis ..............14 e com a matrícula PC.
4. Clausularam-se as seguintes condições contratuais: - 48 Rendas mensais, a primeira no montante de € 11.875,00 + IVA e as restantes no montante de € 784,97 + IVA indexadas à Euribor trimestral na base 360, apurada em função da média aritmética simples das cotações diárias do mês anterior ao mês da data da celebração do contrato ou das suas revisões trimestrais, arredondada para a milésima do ponto percentual mais próxima, sendo que taxa efectiva foi fixada em 3,6 %.
5. A requerida não procedeu ao pagamento pontual das rendas razão pela qual, por carta de 06/08/2020, a requerente a interpelou informando-a de que se encontravam diversos débitos em atraso no contrato.
6. Apesar de solicitado a requerida não regularizou a situação devedora.
7. Por carta de 21/12/2020, a requerente declarou proceder à resolução do contrato n.º .........86.
8. E, pela mesma carta solicitou à requerida que pagasse as seguintes quantias: - € 11.632,59, acrescida de juros de mora à taxa contratualmente prevista, no montante de € 338,62 e cláusula penal, no montante de € 6.800,87, bem como para proceder à imediata restituição do bem veículo.
9. Contudo, até à presente data, a requerida não procedeu ao pagamento das rendas vencidas e não pagas, nem, tão pouco, procedeu à restituição da viatura do contrato acima identificado à aqui requerente.
10. O surgimento da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 (agente causador da doença Covid-19), constitui um facto completamente imprevisível que exigiu, por razões de saúde pública, a tomada de um conjunto fortes medidas restritivas, com sérias consequências económicas não só sobre as famílias, mas também sobre as empresas.
11. Até Dezembro de 2019 a Requerida liquidou as prestações devidas face ao acordo estabelecido com a requerente.
12. A partir de Janeiro de 2020, no decurso da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, e apesar de todos os seus esforços e sacrifícios, a Requerida não conseguiu, com os seus rendimentos, satisfazer as prestações relativas a esse contrato.
13. Por conta das medidas restritivas adotadas pelo governo com vista a evitar a propagação da doença, a Requerida viu-se obrigada a paralisar complemente a sua atividade, pelo menos, durante três meses.
14. A par disso, a procura pelos seus serviços começou a decrescer gradualmente, em resultado das alterações dos comportamentos de consumo, autoinduzida pelos consumidores ou imposta pelas medidas legais e regulamentares de contenção da infeção epidemiológica.
15. Por conta dos aludidos circunstancialismos, durante vários meses consecutivos, a Requerida não obteve nem qualquer rendimento proveniente do exercício da sua atividade, nem ajuda financeira de qualquer espécie.
16. E não obstante isso, teve de suportar todas as despesas fixas mensais essenciais à manutenção da sua atividade.
17. A requerida foi convidada pela requerente para apresentar uma proposta de regularização, não tendo a mesma apresentado qualquer resposta.
18. A requerida não remeteu à requerente os documentos necessários à aplicação do regime de moratória de pagamentos, nomeadamente um documento da Segurança Social a informar que não tinha dívidas à mesma.
19. Na sequência do pedido de informação do Tribunal, relativamente ao processo n.º 3409/21.2T8BRG e, após análise à situação contributiva da entidade “X TRANSPORTES UNIPESSOAL LDA– NISS: 2.........7,NIF: .........”, informou a Segurança Social que a requerida apresenta dívida de contribuições a partir de janeiro de 2020, no montante de 5.604,37€ (cinco mil, seiscentos e quatro euros e trinta e sete cêntimos), a que acrescem juros de mora no montante de € 282,61 (duzentos e oitenta e dois euros e sessenta e um cêntimos), contados até ao dia 30/09/2021,num total de € 5.886,98 (cinco mil, oitocentos e oitenta e seis euros e noventa e oito cêntimos).
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Inexistem outros factos provados ou não provados com interesse para a decisão da causa.

Fundamentação de direito.
Cumpre antes de mais proceder à apreciação da impugnação da matéria de facto pretendida pela Apelante/Réu, pois sem a fixação definitiva dos factos provados e não provados não é possível extrair as pertinentes consequências à luz do direito.

Ora, como resulta do disposto nos artigos 640 e 662º do C.P.C., o recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto deve não só identificar os pontos de facto que considera incorrectamente como também especificar concreta e individualizadamente o sentido da resposta diversa que, em seu entender, a prova produzida permite relativamente a cada um dos factos impugnados.

A impugnação da matéria de facto traduz-se no meio de sindicar a decisão que sobre ela proferiu a primeira instância.

Contudo, nesta actividade, como se refere no acórdão da Relação de Guimarães, de 26/09/2018 (1), os poderes do Tribunal da Relação não podem ser restritivamente circunscritos à simples apreciação do juízo valorativo efectuado pelo julgador a quo, ou seja, ao apuramento da razoabilidade da convicção formada pelo juiz da primeira instância face aos elementos probatórios disponíveis no processo, devendo antes a Relação, fazendo jus aos poderes que lhe são atribuídos enquanto tribunal de segunda instância que garante um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, efectuar uma autónoma apreciação crítica das provas produzidas (em vista de formar uma convicção autónoma), alterando a decisão caso adquira, face a essa autónoma apreciação dos elementos probatórios a que há-de proceder, uma diversa convicção (2).

A análise crítica dos elementos probatórios (em ordem à justificação racional da decisão – elemento verdadeiramente estruturante e legitimador desta, que lhe confere a natureza de decisão, afastando-a do que seria uma simples imposição judicial) consiste na sua apreciação e valorização, tanto individual como conjugada (na sua relacionação reversiva – na sujeição dos elementos probatórios a mútuos testes de compatibilidade), à luz das regras da normalidade, da verosimilhança, do bom senso e experiência da vida (das leis da ciência, quando for o caso).

Esta apreciação transcende a averiguação da sinceridade dos depoentes e testemunhas – a decisão da matéria de facto assenta numa convicção objectivável e motivável, a que se acede por via da razão, alicerçada em elementos de lógica e bom senso.

Apreciação que também se não confunde ou resume a certificar o declarado pelas partes ou testemunhas ou o teor de determinado elemento probatório – aprecia-se quer da valia intrínseca de cada um dos elementos probatórios (da consistência, coerência e verosimilhança de cada um dos referidos elementos, tomado individualmente) e também a sua valia extrínseca (da conjugação e compatibilidade entre todos eles).

Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.

Mas, como é óbvio, e convirá realçar, a liberdade na apreciação da prova não equivale a uma apreciação arbitrária das provas produzidas, uma vez que o inerente dever de fundamentação do resultado alcançado impedirá a possibilidade de julgamentos despóticos.

À luz de tudo o exposto importa agora sindicar a decisão da matéria de facto, ou seja, se as respostas impugnadas foram ou não proferidas de acordo com as regras e princípios do direito probatório aplicáveis.

Ora, como resulta do supra exposto, o Recorrente impugna a materialidade fixada na decisão recorrida alegando como fundamento que o Tribunal recorrido considerou como provados e não provados, respectivamente, os factos a seguir referidos, os quais, contudo, em seu entender, em respeito pela integridade da prova produzida nos autos, deveriam ter obtido uma resposta de sentido diverso, nos termos a seguir referidos.

Assim, em seu entender, os factos a seguir referidos tidos como demonstrados, devem ser alterados nos moldes a seguir descritos, e que são os seguintes:
A- O ponto 12, no qual se deu como demonstrado que:
“A partir de Janeiro de 2020, no decurso da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, e apesar de todos os seus esforços e sacrifícios, a Requerida não conseguiu, com os seus rendimentos, satisfazer as prestações relativas a esse contrato”.
Deverá ser eliminada a referência à pandemia do coronavírus, passando o referido ponto 12 a ter a seguinte redacção:
“A partir de Janeiro de 2020, e apesar dos seus esforços e sacrifícios, a Requerida não conseguiu, com os seus rendimentos, satisfazer as prestações relativas a esse contrato”.

B- Os pontos 13 a 16, dados como provados, em respeito pela integridade da prova produzida, devem ser dados como não provados, tendo tais factos o seguinte teor:
13. Por conta das medidas restritivas adoptadas pelo governo com vista a evitar a propagação da doença, a Requerida viu-se obrigada a paralisar complemente a sua actividade, pelo menos, durante três meses.
14. A par disso, a procura pelos seus serviços começou a decrescer gradualmente, em resultado das alterações dos comportamentos de consumo, autoinduzida pelos consumidores ou imposta pelas medidas legais e regulamentares de contenção da infecção epidemiológica.
15. Por conta dos aludidos circunstancialismos, durante vários meses consecutivos, a Requerida não obteve nem qualquer rendimento proveniente do exercício da sua actividade, nem ajuda financeira de qualquer espécie.
16. E não obstante isso, teve de suportar todas as despesas fixas mensais essenciais à manutenção da sua actividade.

Ora, como se referiu, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância (3).

Importa, porém, não esquecer que se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

O legislador ao determinar a afirmar que a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto, designadamente, se a prova produzida ou documento superveniente impuseram decisão diversa – artigo 662, nº1, do C.P.C. -, pretendeu que o tribunal de 2.ª instância fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto.

O Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição (4), está em posição de proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que neste âmbito a sua actuação é praticamente idêntica à do Tribunal de primeira Instância, apenas cedendo nos factores da imediação e da oralidade.

Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.

Impõe-se-lhe, assim, que se “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada” (5).

E é á luz do que se acaba de expender que importa agora sindicar a decisão da matéria de facto, averiguando se as respostas impugnadas foram proferidas de acordo com as regras e princípios do direito probatório e com o que os meios de prova produzidos nos autos, impõem concluir.

E a propósito começaremos por afirmar que a análise crítica das provas produzidas e especificação dos fundamentos decisivos para a formação da convicção (art. 607º, nº 4 do C.P.C.) não se resume ao mero elencar descritivo das provas produzidas em audiência e bem assim à simples declaração daquelas que mereceram acolhimento, em detrimento das outras, resultando, assim, como evidente que a explicação da convicção do julgador, devem ser especificados os fundamentos decisivos para a convicção do julgador sobre a prova (ou falta de prova) dos factos, pois incumbe ao juiz o dever de indicar os “fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade aquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado, sendo certo que tal exigência de motivação não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão”, já que através “dessa fundamentação, o juiz deve passar de convencido a convincente” (6).

E, assim sendo, de igual modo, para que se possa considerar sustentada a análise ou explanação crítica da prova produzida em que se fundamenta a impugnação, deve também o Impugnante deixar de modo claro, linear e consistente, explicitadas as razões da sua discordância com a decisão recorrida, de molde a que se entenda, por um lado, por que razões considera que, com fundamento nos meios probatórios produzidos e de que o tribunal também se serviu e valorou deveriam ser extraídas conclusões diversas das retiradas na decisão recorrida, justificando, desse modo, as alterações pretendidas alterações dos factos impugnados no sentido de se considerarem provados ou não provados, respectivamente, e, por outro, esclarecer por que razões errou o tribunal na interpretação que fez desses meios de prova.

Ou seja, e dito de outro modo, “na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
Contudo, “a parte que impugne a decisão da matéria de facto não pode limitar-se a transcrever os depoimentos e concluir, sem mais, que com base neles se devem alterar determinados pontos factuais, a par disso terá de fazer a sua análise crítica.
(…)
Para desencadear a reapreciação pelo Tribunal da Relação, a parte tem de colocar uma questão a este tribunal.
Ora, só coloca uma questão se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida pelo juiz em 1.ª instância, colocando então o tribunal de recurso perante uma questão a resolver.
Não basta, pois, identificar meios de prova e dizer-se que os mesmos deviam ter sido valorados em certo sentido e em detrimento da valoração efectuada pelo tribunal recorrido.
Com efeito, os depoimentos das testemunhas, que a ora apelante pretende que sejam agora valorados diversamente do que o foram pelo tribunal recorrido, de molde a levarem à alteração da matéria de facto, são, consabidamente, como acima se deu nota elementos de prova a apreciar livremente pelo tribunal (cfr. artigos 396.º do Cód. Civil e 607.º, nº 5 do CPCivil).
Portanto, se o tribunal recorrido entendeu valorar diferentemente da ora recorrente tais depoimentos, não pode esta Relação pôr em causa, sem mais, a convicção daquele, livremente formada, tanto mais que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que este tribunal ad quem não detém aqui, pois que, se a Relação deve formar a sua própria e autónoma convicção, a verdade é que, como acima se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta”. (7)

Isto considerado, temos que, na presente situação, a Recorrente alega, em síntese, que aceita que foi a partir de janeiro de 2020 que a Requerida deixou de satisfazer as rendas mensais acordadas no âmbito do contrato de locação financeira, sendo, no entanto, facto público e notório que a pandemia causada pelo coronavírus se instalou em Portugal em março de 2020, quando começaram a ser emitidos os vários diplomas legais que regularam as moratórias relativas a contratos de crédito face aos confinamentos gerais que se seguiram.

Assim, em janeiro de 2020 não havia, em Portugal, qualquer problema relacionado com a pandemia do coronavírus, estando a vida em sociedade a decorrer sem qualquer constrangimento, nomeadamente, a actividade económica das várias sociedades comerciais, não se podendo, por isso, estabelecer uma relação entre a falta de pagamento das rendas pela Requerida a partir de janeiro de 2020 com uma pandemia que apenas despoletou em março de 2020 e que apenas causou constrangimentos económicos desde então.

Com efeito, não foi no decurso da pandemia causada pelo coronavírus que a Requerida deixou de satisfazer as rendas acordadas no âmbito do contrato de locação financeira celebrado com a ... Leasing e Factoring, S.A, dado que a Requerida deixou de proceder ao pagamento das rendas acordadas antes de deflagrar a pandemia causada pelo coronavírus.

Mais alega a Recorrente que nos pontos 13 a 16, o Tribunal a quo deu como provada a paralisação da actividade da Requerida, o decréscimo dos seus serviços, a ausência de quaisquer rendimentos e o suporte de várias despesas fixas, socorrendo-se apenas do depoimento do legal representante da Requerida A. N..

Todavia, em seu entender, o Tribunal a quo não pode dar como provado o decrescimento da procura de serviços da Requerida, a ausência de rendimentos provenientes do exercício da respectiva actividade ou o pagamento de despesas mensais fixas com o mero depoimento do respectivo legal representante, uma vez que se está perante factos que são susceptíveis de prova documental, sendo certo que o documento idóneo para a prova dos referidos factos é a declaração IES, onde constam as obrigações declarativas de natureza contabilística, fiscal e estatística.

Na verdade, nem todas as empresas deixaram de facturar por causa da pandemia originada pelo coronavírus, não se podendo retirar daí uma consequência lógica de perda de rendimentos com o mero depoimento do legal representante da Requerida, sem que sequer se tenha estabelecido um período temporal da alegada perda de rendimentos e da alegada paragem no exercício da actividade económica da Requerida, tal como não estabelece a percentagem de perda de rendimentos obtida.

E com estes fundamentos conclui pela alteração restritiva da resposta dada ao facto 12, dos provados, com a eliminação do facto, “no decurso da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2”, do conteúdo desse mesmo facto.

E mais conclui a Recorrente, que o Tribunal a quo se limita a, de uma forma genérica, admitir que a Requerida deixou de ter rendimentos, sem os contabilizar, devido a uma paragem no exercício da respectiva actividade económica, sem também contabilizar o respectivo período temporal, quando não tinha em seu poder elementos probatórios suficientes para dar como provados os referidos factos, razão pela qual, em seu entender, devem os mesmos deixar de constar do elenco dos factos provados, o que se requer.

Ora isto considerado, temos que, a fundamentar a sua convicção sobre esta factualidade refere a decisão recorrida o seguinte:
A factualidade vertida em 12. a 16. foi descrita com credibilidade pelo legal representante da requerida A. N..

Ora, sendo certo que, como se refe no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-02-2020, “as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso segundo critérios de racionalidade, pelo que, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação”. (8)

Sendo esta a posição de princípio que entendemos ser de perfilhar, não custa admitir que, por vezes, em concretas situações, como era considerado por uma mais antiga corrente jurisprudencial, afigura-se imprescindível que essas declarações sejam corroboradas por outros meios de prova.

Versando, essencialmente, sobre o depoimento de parte, mas sendo extensível nas teses que perfilha, às declarações de parte, refere o Acórdão da Relação de Coimbra, de 26/03/2001, que “apesar de parecer contrário de alguma doutrina, uma jurisprudência (9) que se crê maioritária – conclui, à luz do princípio da livre apreciação das provas, pela admissibilidade da valoração do depoimento de parte, mesmo no segmento em que as respectivas declarações lhe eram favoráveis (artº 607 nº 5 do nCPC). Feitas todas as contas, a conclusão a tirar é, realmente, a da admissibilidade da produção e da valoração das declarações de parte, mesmo que respeitem a enunciados de facto que lhe sejam favoráveis. Segundo certo entendimento do problema, com uma ressalva importante – referida não à admissibilidade do meio de prova, mas à avaliação da sua força probatória: aquela valoração é admissível, contanto que o tribunal não se baseie exclusivamente nessas declarações para formar a sua convicção sobre a veracidade ou inveracidade dos factos controvertidos (10). Quer dizer: a proibição de valoração deve considerar-se afastada, desde que as declarações, mesmo referidas a enunciados de facto que sejam favoráveis ao declarante, obtenham, de outros meios de provaou mesmo de regras de experiência ou de critérios sociaisum grau de confirmação adequado.
A circunstância de a essas declarações não poder ser atribuído o valor de confissão, não impede a sua livre valoração, dado que se não for possível atribuir ao meio de prova qualquer dos valores que a lei lhe atribui em abstracto, é sempre possível atribuir-lhe um desses valores, o que é confirmado pela regra de que o reconhecimento de factos desfavoráveis que não possa valer como confissão, sempre vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente (artº 361 do Código Civil).
E a correcção deste entendimento do problema é confirmada pela consagração, no Código de Processo Civil dito novo, de um novo meio de esclarecimento e convicção: a prova por declarações de parte (artº 466 do nCPC).
Deve, portanto, julgar-se perfeitamente admissível a valoração do depoimento de parte, no segmento em que não produz confissão, à luz da livre apreciação do tribunal, como sempre sucederá, de resto, no caso de acção relativa a direitos indisponíveis em que a confissão se tem por inadmissível (artº 354 b) do Código Civil).
Uma prova cuja determinação da exacta força persuasiva levanta algumas dificuldades é as declarações de parte (artº 466 nº 3 do nCPC). Prova que, por declaração expressa da lei, está submetida à livre convicção do juiz, salvo, naturalmente se o depoimento conduzir à confissão (artº 466 nº 3 do nCPC). As declarações de parte podem, na verdade, redundar na obtenção de meio de prova de natureza distinta e com diferente valor probatório: confissão; reconhecimento de factos desfavoráveis que não possam valer como confissão; demonstração de factos favoráveis - caso em que as declarações de parte são livremente valoráveis pelo juiz (artºs 352 e 381 do Código Civil e 466 nº 3 do nCPC)”. (11)

Destarte, à luz de tudo o acabado de expender, é inquestionável que a aludida motivação, dada a exiguidade de elementos justificativos da mencionada credibilidade atribuída às declarações do representante legal de uma das partes, cuja alegada consistência também se não vislumbra ou decorre da análise das suas declarações, bem como, da carência de outros meios de prova ou de regras da experiência corroborantes dessas mesmas declarações, padece, desde logo, de inegável fragilidade, não revelando suficiente consistência para, por si só, alicerçar a demonstração do aludido facto (a parte impugnada do facto 12, dos provados), sendo igualmente incontornável que nenhuma declaração ou depoimento é passível de revelar uma tal consistência que lhe permita contrariar ou negar a verificação de um facto de incontroversa notoriedade, ou seja, uma realidade de todos conhecida, como o foi o momento em que surgiu a Covid em Portugal, e que ocorreu em Março de 2020, como foi amplamente noticiado por todos os meios de comunicação, os quais ninguém desmentiu.

Isto considerado, em decorrência das regras da lógica e da experiência comum convocáveis para o caso, temos igualmente por inequívoco que, uma qualquer crise financeira numa entidade empresarial causal do incumprimento das obrigações dessa empresa, antecede sempre, e por vezes, até alargado período de tempo (quando resultantes de uma lenta e progressiva degradação da situação económica), a data em que essas dificuldades ou cise económica se manifesta, ou seja, a data em que começam a verificar-se incumprimentos de obrigações.

Ora sendo certo que está aceite e, portanto, assente, que “a partir de Janeiro de 2020, a Requerida não conseguiu, com os seus rendimentos, satisfazer as prestações relativas a esse contrato”, dúvidas se não podem suscitar a causa desse incumprimento, muito ou pouco, é remota relativamente à pandemia, e, portanto, ocorreu em data anterior, e não nesse período, e logo também, e por decorrência, não teve como causa essa mesma situação pandémica, a qual apenas poderá, eventualmente, ter constituído um factor agravante dessas dificuldades económicas pré existentes e já anteriormente consolidadas.

E esta conclusão não sai abalada pela alegação da Recorrida no sentido de que é de conhecimento público, os primeiros casos de infecção pelo vírus SARS-CoV-2 foram detectados na região chinesa de Wuhan, em, pelo menos, finais de Dezembro de 2019, e que a partir desse momento a propagação da doença começou a ocorrer, sendo que, logo a 25 de Janeiro de 2020 surgiram as primeiras suspeitas de contágio em Portugal e o ritmo da disseminação da doença, levou a que a 28 de Janeiro de 2020, além do território continental da China, existisse já confirmação de casos de infecção em Macau, Hong Kong, Taiwan, Tailândia, Japão, Coreia do Sul, Estados Unidos, Singapura, Vietname, Nepal, Malásia, França, Alemanha, Austrália e Canadá.
No mesmo dia 28 de Janeiro evidenciava-se já em Portugal uma corrida à aquisição de máscaras de protecção respiratória, sendo que, a 30 de Janeiro de 2021, a OMS declarou que o SARS-CoV-2 se tratava de uma emergência de saúde pública de interesse internacional, a mesma denominação que havia atribuído à gripe suína H1N1, o vírus zika e à ébola A 31 de Janeiro de 2020 era confirmado o primeiro caso de infecção em Espanha.
Nesse mesmo dia a Itália declara estado de emergência devido ao coronavírus.

Assim, conclui a Recorrida que estes factos que integram esta brevíssima resenha histórica do ocorrido em janeiro de 2020, são de conhecimento público e notório, pelo que não careciam de alegação ou prova no âmbito dos presentes autos – cfr. artigo 412.º do CPC. -, ou seja, já em janeiro de 2020, Portugal, Europa e todo o globo se deparavam com o fenómeno da doença da Covid-19, ainda que no misto de um profundo desconhecimento sobre a mesma e incerteza sobre a progressão do seu contágio.

Ora, como se refere em documento da Organização Mundial do Trabalho, “O indicador de sentimento económico da Comissão Europeia melhorou de Setembro de 2019 a Fevereiro de 2020, enquanto os principais indicadores de investimento atingiram no primeiro trimestre de 2020 os valores mais elevados desde a viragem do século (especialmente no sector da construção).
O sector do turismo depois de quase duplicar o seu peso entre 2014 e 2019, continuou a bater recordes: as receitas na hotelaria tiveram um crescimento de 9,9 por cento nos primeiros dois meses de 2020, em termos homólogos. A produção na indústria transformadora apresentava melhorias desde Dezembro de 2019, depois de um comportamento ligeiramente negativo no ano anterior. O desemprego registado teve uma queda de 8,6 por cento em Janeiro e de 7,9 por cento em Fevereiro face ao mês homólogo do ano anterior”. (12)

Como consta publicado em diversos documentos, houve uma queda significativa da actividade económica a partir de Março, levando a que o indicador de sentimento económico da Comissão Europeia para Portugal tenha caído em Abril para 66,9 pontos, o valor mais baixo alguma vez registado e muito abaixo da média de longo prazo de 100.

Daqui como inelutável resulta que em Janeiro de 2020, bem como, nos meses antecedentes, ainda não decorria a pandemia, não havendo, consequentemente, nessa data, qualquer afectação da actividade económica por ela motivada.

E assim sendo, resultando de linear evidência que a causa das dificuldades económicas da empresa Ré que levaram ao incumprimento das suas obrigações para com a Autora, antecederam, e, portanto, não ocorreramno decurso da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2”, na procedência da apelação, nesta parte, determina-se que no facto 12, dos provados, seja eliminada esta alusão à pandemia, passando a ter a redacção sugerida pela Recorrente.

Como supra se referiu, o Tribunal a quo deu como provada a paralisação da actividade da Requerida, o decréscimo dos seus serviços, a ausência de quaisquer rendimentos e o suporte de várias despesas fixas, socorrendo-se, exclusivamente, do depoimento do legal representante da Requerida A. N..

Ora, no que concerne a este aspecto, sendo, por um lado, extensíveis à impugnação desta factualidade a aludida fragilidade ou falta de adequada consistência das declarações prestadas pelo representante legal da Recorrida para, por si só, alicerçar a demonstração desta factualidade contida nos factos 13. a 16., dos provados, por outro, como e em nosso entender, assertivamente, expende a Recorrente, está-se perante factos para cuja cabal demonstração o meios probatório mais adequados e consistente é a prova documental, e, designadamente, a declaração IES, da qual constam as obrigações declarativas de natureza contabilística, fiscal e estatística, o que lhe confere idoneidade incontestada para a demonstração de tais factos, e que é de fácil acesso para a Recorrida.

Na verdade, mesmo sendo a crise na economia provocada pela pandemia, não se pode estabelecer como que uma espécie de presunção de que toda e qualquer empresa viu os seus rendimentos reduzidos pelo decrescimento do consumo de bens ou serviços, e pelas medidas restritivas adoptadas pelo governo com vista a evitar a propagação da doença, pois é também facto notório que nem todas as empresas deixaram de facturar por causa da pandemia originada pelo coronavírus, havendo mesmo algumas que dessa crise colheram benefícios, não se podendo, assim, retirar-se daí uma consequência lógica de perda de rendimentos, sem que sequer se tenha estabelecido um período temporal da alegada perda de rendimentos e da alegada paragem no exercício da actividade económica da Requerida, tal como não estabelece a percentagem de perda de rendimentos obtida.

Com efeito, sendo incontroverso que o representante da Requerida tenderá sempre a justificar o seu comportamento incumpridor, muito facilmente se demonstraria, sem margem para grandes dúvidas, que a Requerida se viu obrigada a paralisar complemente a sua actividade, pelo menos, durante três meses, por conta das medidas restritivas adoptadas pelo governo com vista a evitar a propagação da doença, e bem assim, que a procura pelos seus serviços começou a decrescer gradualmente, em resultado das alterações dos comportamentos de consumo, autoinduzida pelos consumidores ou imposta pelas medidas legais e regulamentares de contenção da infecção epidemiológica, juntando aos autos a IES (INFORMAÇÃO EMPRESARIAL SIMPLIFICADA), da qual consta toda a informação que as empresas têm de prestar relativamente às suas contas anuais.

E sendo certo que, como refere a Recorrida, as declarações de IES, porque formuladas pela parte que as apresenta (nesta hipótese a Recorrida), contendo apenas os dados fornecidos pela mesma, assumem a natureza de documentos particulares com a força probatória definida no artigo 376.º n.ºs 1 e 2 do CC, não constituindo, assim, tais declarações, prova plena, quanto ao montante de rendimentos produzidos por uma empresa, não se encontra afastada a norma constante do n.º 5 do artigo 607.º do CPC, podendo o juiz apreciar livremente as provas relativamente a esta matéria, segundo a sua prudente convicção.

No entanto, mesmo isto assim sendo, por decorrência das regras da lógica e da experiência comum, não é plausível uma empresa que se viu obrigada a paralisar complemente a sua actividade, pelo menos, durante três meses, por conta das medidas restritivas adoptadas pelo governo com vista a evitar a propagação da doença, e bem assim, que a procura pelos seus serviços começou a decrescer gradualmente, em resultado das alterações dos comportamentos de consumo, autoinduzida pelos consumidores ou imposta pelas medidas legais e regulamentares de contenção da infecção epidemiológica, o não tenha declarado no IES, até por ser previsível que viesse a haver ajudas do Estado, e para o efeito, ser necessária tal documentação, deixando, por outro lado, cabalmente esclarecida data do inicio dos incumprimentos e os seus factores causais, que não foi a pandemia, já que não foram contemporâneos do início desta última e dos seus impactos na economia.

E assim sendo, parece-nos incontroverso que a prova produzida reconduzida apenas às declarações do representante legal da Recorrida, sem a adução que qualquer suporte documenta, e, designadamente, contabilístico, corroborante dessas mesmas declarações e logo, também da factualidade invocada, é manifestamente inconsistente para sustentar uma motivação positiva sobre a verificação da materialidade impugnada agora em apreço.

Destarte, na procedência da apelação, nesta parte referente à impugnação factual, determina-se o que se segue:

- O facto 12, dos provados, passe a constar como demonstrado com a seguinte redacção:
“A partir de Janeiro de 2020, e apesar dos seus esforços e sacrifícios, a Requerida não conseguiu, com os seus rendimentos, satisfazer as prestações relativas a esse contrato”.
- Os factos 13 a 16, dos provados, passarão a constar dos factos não provados.

Fixados os factos a ter em consideração na decisão, passemos então á análise das questões de direito suscitadas pela Recorrente.

Do ponto de vista do enquadramento jurídico sustenta a Recorrente a sua posição na seguinte argumentação:

A- Por um lado, é seu entendimento o de que, pese embora o Tribunal recorrido tenha entendido que seria de acolher o fundamento de que a situação epidemiológica provocada pela Covid-19 reflecte uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de celebrar o contrato de locação financeira e que a Requerente deveria ser optado pela modificação do contrato ao invés de proceder à respectiva resolução, o certo é que a Requerida não entrou em incumprimento com a Requerente em Março de 2020, quando despoletou no país a pandemia da Covid-19, mas em Janeiro de 2020, quando a pandemia ainda não se fazia sentir no país, o que é demonstrativo que o incumprimento não se verificou por causa da pandemia, tal como sucedeu com a Segurança Social.

Não foi a pandemia causada pelo coronavírus que originou o incumprimento contratual por parte da Requerida, dado que a mesma procedeu ao pagamento das rendas até Dezembro de 2019 e a pandemia despoletou em Março de 2020.

Assim, mesmo admitindo que o incumprimento até se pode ter agravado devido à pandemia, o certo é que não se originou por causa dela, tendo antes ocorrido esse incumprimento generalizado das obrigações da Requerida junto da Requerente e da própria Segurança Social, por outro motivo, que não o despoletar da pandemia causada pelo coronavírus, razão pela qual não se pode aplicar o regime da modificação ou resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias, dado que o incumprimento contratual não ocorreu por causa da situação epidemiológica provocada pela Covid-19.

Com estes fundamentos, conclui a Recorrente que, não tendo sido a pandemia originada pelo coronavírus que motivou o incumprimento contratual pela Requerida, não se pode estabelecer uma relação consequente entre a pandemia e o incumprimento contratual de forma a motivar a resolução ou a modificação do contrato, razão pela qual não é aplicável ao caso em apreço o regime constante do artigo 437.º do Código Civil.

B- Mais alega que, de qualquer forma, a pandemia da doença Covid-19 não pode, por si só, motivar a resolução ou modificação dos contratos por alteração das circunstâncias, sob pena de todos os contratos puderem ser resolvidos ou modificados e, deste modo, abalar de forma irreparável o mundo dos negócios jurídicos no ordenamento jurídico português, especialmente, quando foi consagrada uma legislação especial destinada ao tratamento jurídico destas matérias.

Na verdade, em resposta à situação pandémica, o Estado Português aprovou um conjunto de medidas de apoio às empresas e às pessoas singulares, como seja o caso do referido diploma legal que consagrou o regime das moratórias através do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, do qual a requerida X não usufruiu, nomeadamente, com a moratória do pagamento, uma vez que não deu cumprimento aos respectivos requisitos legais, tendo inclusivamente sido convidada para apresentar uma proposta de regularização e não apresentou qualquer resposta.

Assim, o regime legal previsto no artigo 437.º do CC não pode ter aplicação ao caso em apreço, quando o mesmo se subsumia ao regime legal instituído pelo Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março.

C- Por último alega ainda a Recorrente que o Tribunal a quo, fazendo tábua rasa de todo o regime jurídico da modificação ou resolução do contrato por alteração das circunstâncias, entende que a Requerente é que deveria ter sugerido à Requerida uma alteração do contrato ao invés de proceder à respectiva resolução.

Todavia, em seu entender, a Requerente não pode impor uma alteração contratual contra os seus próprios interesses quando não se verifica qualquer tipo de interesse da parte contratual contrária, sendo que era sobre a Requerida que recaía a obrigação, enquanto parte lesada, de promover a resolução ou modificação do contrato mediante declaração à Requerente.

Conforme decorre do disposto no artigo 437, do C.C., a resolução ou modificação do contrato determina que a parte que se considera lesada pela alteração anormal das circunstâncias possa provocar a resolução do contrato mediante uma declaração à parte contrária, razão pela qual, se a Requerida pretendia uma resolução ou modificação do contrato de locação financeira deveria tê-lo feito chegar ao conhecimento do respectivo destinatário, neste caso, da Requerente, o que não fez, quer pela via judicial, quer pela via extrajudicial, pois que, contrariamente ao que consta da decisão recorrida, não era à Requerente que incumbia a obrigação de promover pela referida declaração de resolução ou modificação contratual, dado que não era esta a parte lesada pelas alegadas alterações das circunstâncias e, especialmente, quando o incumprimento se reporta a data anterior à pandemia.

Colocados os termos da controvérsia ou das questões em discussão, cumpre então esclarecer, à luz da materialidade relevante e tida como demonstrada, qual será o “mais adequado ou correcto” enquadramento jurídico da situação ora em apreço.

E com relação a este aspecto teremos de começar por referir que a decisão recorrida, se efectivamente se verificasse o substrato factual em que assenta as suas conclusões, mereceria a nossa integral concordância, não custando até reconhecer sua coerente, exaustiva e consistente fundamentação jurídica.

A questão que, contudo, se tem de colocar quanto a tal decisão é a de que ela assenta em factos que considerou como demonstrados, mas dos quais não foi produzida adequada e consistente prova, e designadamente:
- Que tenha sido no decurso da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que a Requerida tenha deixado de conseguir, com os seus rendimentos, satisfazer as prestações relativas ao contrato em apreço nos autos;

- Que tenha sido por decorrência das medidas restritivas adoptadas pelo governo com vista a evitar a propagação da doença, bem como, do decréscimo gradual, em resultado das alterações dos comportamentos de consumo, autoinduzida pelos consumidores ou imposta pelas medidas legais e regulamentares de contenção da infecção epidemiológica, que a Requerida deixou de obter rendimentos provenientes do exercício da sua actividade.

Com efeito, sendo de admitir com grande probabilidade que a pandemia pode ter agravado a situação económica da Requerida, o certo é que nem desse facto, facilmente demonstrável, se verificado, esta última logrou fazer prova credível e consistente, limitando-se às declarações do seu representante legal, sem adução de qualquer outra prova documental atinente aos elementos contabilísticos da empresa que com linear evidência deixariam clara essa situação.

A isto acresce que, se por um lado nem adesão de prova conseguiu para o eventual agravamento da situação económica da empresa por decorrência da pandemia, tendo apenas liquidado as suas obrigações até Dezembro de 2019, como supra se deixou dito, em decorrência das regras da lógica e da experiência comum convocáveis para o caso, resulta como inequívoco que, uma qualquer crise financeira numa entidade empresarial causal do incumprimento das obrigações dessa empresa, antecede sempre, e por vezes, até alargado período de tempo (quando resultantes de uma lenta e progressiva degradação da situação económica), a data em que essas dificuldades ou crise económica se manifestam, ou seja, a data em que começam a verificar-se incumprimentos de obrigações.

E assim sendo, aceite e assente, como está, que “a partir de Janeiro de 2020, a Requerida não conseguiu, com os seus rendimentos, satisfazer as prestações relativas a esse contrato”, dúvidas se não podem suscitar a causa desse incumprimento, muito ou pouco, é remota relativamente à pandemia, e, portanto, ocorreu em data anterior, e não nesse período, e logo também, e por decorrência, não teve como causa a aludida situação pandémica, já que no seu inicio já estava instalada a situação de incumprimento com a Recorrente, bem como com a Segurança Social, que, como consta dos factos demonstrados, informou o tribunal de que a requerida apresentava dívida de contribuições a partir de Janeiro de 2020, no montante de 5.604,37€ (cinco mil, seiscentos e quatro euros e trinta e sete cêntimos), a que acrescem juros de mora no montante de € 282,61 (duzentos e oitenta e dois euros e sessenta e um cêntimos), contados até ao dia 30/09/2021,num total de € 5.886,98 (cinco mil, oitocentos e oitenta e seis euros e noventa e oito cêntimos).

De tudo o exposto resultam duas relevantes e incontornáveis conclusões, e que são as seguintes:
- Por um lado, a situação de incumprimento ou crise económica da Requerida surgiu antes do início da pandemia, e, portanto, por causas que nada tiveram a ver co essa mesma pandemia;
- Por outro, mesmo podendo admitir-se que a pandemia poderá ter agravado a situação económica da Requerida, não se podendo estabelecer qualquer presunção de que toda e qualquer empresa viu os seus rendimentos reduzidos pelo decrescimento do consumo de bens ou serviços, e pelas medidas restritivas adoptadas pelo governo com vista a evitar a propagação da doença, sobre a Recorrida impendia o ónus de aduzir prova consistente e adequada à demonstração dessa factualidade, o que contudo, assim não fez.

Ora, como é consabido, para a aplicação do art. 437.º exige-se a verificação cumulativa de 5 requisitos:
− Uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar:
− A anormalidade dessa alteração;
− Uma lesão para uma das partes provocada por essa alteração;
− Que a lesão seja tal que se apresente como contrária à boa fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas; e
− Que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato.

Como refere Galvão Teles, “As circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, atendidas no n.º 1 do art.º 437.º do C.Civil, são as circunstâncias que determinaram as partes a contratar, de tal modo que, se fossem outras, não teriam contratado ou tê-lo-iam feito ou pretendido fazer, em termos diferentes. Trata-se de realidades concretas de que as partes não tiveram consciência, pois nem sequer pensaram nelas, dando-as como pressupostas; ou de realidades concretas de que tiveram consciência, mas convencendo-se de que não sofreriam alteração significativa, frustradora do seu intento negocial. Ou não passou sequer pela cabeça dos interessados que o status quo se modificaria: ou admitiram que tal ocorresse, mas em medida irrelevante. Aquela pressuposição ou esta convicção inexacta tem de ser comum às duas partes, porque, se não se deu em relação a uma e ela se calou, deixa de merecer protecção.

As aludidas circunstâncias constituem a base do negócio. Mas a base do negócio apresenta-se aqui, quanto à configuração e ao regime, como algo de diverso da base do negócio em matéria de erro. A base do negócio no domínio do erro tem carácter subjectivo, porque se traduz na falsa representação psicológica da realidade. A base do negócio no domínio da alteração das circunstâncias tem carácter objectivo, visto não se reconduzir a uma imaginária falsa representação psicológica da manutenção de tais circunstâncias”. (13)

Distinguindo-as do erro, confirma o mesmo Professor Prof. Galvão Telles, que “A base do negócio no erro é unilateral: respeita exclusivamente ao errante. A base do negócio na alteração das circunstâncias é bilateral: respeita simultaneamente aos dois contraentes. A lei (artigo 437º, n.º 1) fala, acentuadamente, das circunstâncias em que as partes (plural) fundaram a decisão de contratar; não refere as circunstâncias em que o lesado com a superveniente modificação teria fundado a sua decisão de contratar, proposição destituída de todo o sentido”. (14)

A resolução ou modificação do contrato é admitida em termos propositadamente genéricos, para que, em cada caso, o tribunal, atendendo à boa-fé e à base do negócio, possa conceder ou não a resolução ou modificação.

Este normativo citado reconhece, pois, à parte lesada, pela ocorrência de alterações anormais das circunstâncias em que fundou a sua vontade de contratar, o direito à resolução ou à modificação do contrato.

De acordo com Almeida e Costa, para que o lesado possa valer-se de algum dos direitos previstos no citado artigo, é necessário:
a) – Que a alteração a ter por relevante diga respeito a circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar.
b) – É necessário que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal.
c) – Torna-se indispensável, além disso, que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes.
d) – Mostra-se ainda forçoso que tal manutenção do contrato ou dos seus termos afecte gravemente os princípios da boa-fé.
e) – Também é necessário que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprios do contrato.
f) – Exige-se, por último, a inexistência de mora do lesado. (15)

Quer isto dizer que, “diferentemente do erro, em que a base do negócio é unilateral, respeitando exclusivamente ao errante, na alteração das circunstâncias a mesma é bilateral, respeitando simultaneamente aos dois contraentes (i.e., que se produza uma alteração anormal das circunstâncias em que ambas as partes fundaram a decisão de contratar) ” (16)

Assim, requisito elementar da aplicação deste regime legal é que, durante a execução do contrato, alterações anormais, imprevisíveis, das circunstâncias criem um desequilíbrio contratual, “gravemente” lesivo dos princípios da boa fé e que não esteja coberto pelos riscos próprios do contrato, ou seja, que cause manifesto desequilíbrio das prestações recíprocas dos contraentes, alterando o quadro negocial existente à data, quer dos preliminares, quer da conclusão do negócio.

Destarte, a alteração para ser relevante não pode ser contemporânea da celebração do contrato nem previsível num quadro temporal próximo, segundo as regras da experiência.

Ora, considerando verificarem-se os requisitos da resolução por alteração anormal das circunstâncias, previstas do citado artigo 437, do C.Civ, fundamenta-se a decisão recorrida no facto de, em seu entender, a Requerida nunca a Recorrida poder ter previsto que, em poucos meses, estaria mergulhada numa crise sempre precedentes, originada por uma pandemia à escala mundial, que paralisaria por completo o país inteiro, e que a obrigaria a paralisar completamente a sua actividade, impedindo-a de gerar rendimentos.

Todavia, e como se referiu essa não foi a situação demonstrada, pois que, se por um lado, logrou adesão de prova de que a causa do incumprimento ocorreu em data anterior, e não já durante o período da pandemia, não tendo, assim, como causa, uma tal situação pandémica, mas sim outras causas que não foram esclarecidas, já que no seu inicio já estava instalada a situação de incumprimento com a Recorrente, bem como, com a Segurança Social, por outro, também não logrou demonstração que a pandemia sequer tenha agravado a situação económica da Requerida, por falta de adução de meios probatórios com adequada consistência.

Destarte, não se tendo demonstrado que tenha sido por alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar que tenha surgido a situação de incumprimento generalizado, por parte da Requerida, óbvio resulta que se não verificam os requisitos de aplicabilidade do disposto no artigo 437, do C. Civ., pelo que, e consequentemente, não assiste à Recorrida o direito à resolução ou à modificação do contrato.

Com efeito, como se refere na decisão recorrida, “A crise pandémica resultante da doença COVID-19 constitui uma situação susceptível de integrar os pressupostos da resolução ou modificação dos contratos por alteração das circunstâncias, nos termos do art.º 437.º do Código Civil”, mas apenas quando essa situação pandémica constitua, ela mesma, (e não outra causa), uma alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, que provoque um dano grave a uma das partes, de tal modo que a exigência, a essa parte, do cumprimento das obrigações assumidas contrarie gravemente a boa-fé.

Acresce que, não se verificando os requisitos da resolução por alteração anormal das circunstâncias, como se refere na decisão recorrida A moratória legal instituída pelo Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, abrange os contratos de locação financeira [a Lei n.º 27-A/2020, de 24/7, mais concretamente o seu art. 10.º, introduziu um aditamento ao artigo 3.º, n.º 1, passando a incluir expressamente os “contratos de locação financeira], sendo que, relativamente a tais contratos estabelece-se na alínea c) do n.º 1 do artigo 4.º do aludido Decreto-Lei n.º 10-J/2020, uma suspensão do pagamento do capital, das rendas e dos juros com vencimento previsto até ao término desse período, durante o período em que vigorar a medida.

Assim, em face da legislação excepcional em vigor, a sustação do pagamento das rendas não constitui - nem pode constituir -, uma situação de incumprimento contratual, pois, na sua perspectiva, é isso o que expressamente se determina no nº 3 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de Março.

Todavia, como assertivamente se conclui na decisão recorrida, a requerida não cumpriu uma das condições imposta pela legislação excepcional em vigor, que era a de comprovar que não tinha dívidas à Segurança Social e, não o fez porque como ficou assente se encontrava em dívida desde Janeiro de 2020 (vide D.L. 10-J/2020, de 26-03, segundo o qual o regime da moratória em causa só se aplica às empresas que não estejam a 18 de Março de 2020, em mora de prestações pecuniárias há mais de 90 dias).

Em decorrência de tudo o exposto, cumpre então verificar se se verificam todos os pressupostos exigidos para o decretamento da providência cautelar requerida.

Ora a este propósito, como se refere na decisão recorrida, As providências cautelares podem ser conservatórias ou antecipatórias, visando as primeiras acautelar o efeito útil da acção principal, assegurando a manutenção da situação que existia quando se iniciou o litígio e as segundas antecipar a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na acção principal.

Estas finalidades concretizam a relação de dependência e instrumentalidade que caracteriza a providência cautelar em relação à acção principal pendente ou a instaurar, acautelando ou antecipando provisoriamente os efeitos da providência definitiva (artigo 383º, nº 1, do Código de Processo Civil).

In casu, os requerentes pretenderam obter o arresto sobre um direito determinado sobre um bem imóvel do requerido.

Dispõe o artigo 391.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que, “o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”.

O arresto consiste numa apreensão judicial de bens do devedor a que são genericamente aplicáveis as disposições relativas à penhora (artigos 622º do Código Civil e 391º, n.º 2 do Código de Processo Civil). Trata-se, portanto, de um procedimento cautelar com uma finalidade preventiva ou conservatória, a ser requerido pelo credor.

Nos termos do artigo 392º, n.º 1 do Código de Processo Civil, “o requerente do arresto deduz factos que tornem provável a existência do crédito e justificam o receio invocado”.

Da conjugação das disposições legais citadas resulta que a procedência do pedido de arresto depende da prova de dois pressupostos essenciais:

a) De que é provável a existência do crédito, bastando-se a lei com a séria ou elevada probabilidade da sua existência, sem exigir a demonstração de que o crédito é certo e inquestionável;
b) De que se justifica o receio de perda de garantia patrimonial, ou seja, de que existem motivos concretos para que o credor tema que, por força da livre disposição do património por parte do devedor, não subsistam bens susceptíveis de garantir o cumprimento coercivo da obrigação.

O fumus bonus iuris, ou aparência do direito, tanto pode traduzir-se num direito já constituído, como a ser declarado em acção proposta ou a propor (artigo 362.º, nº 2 do Código de Processo Civil).

Assim, atenta a conexão entre a natureza da providência cautelar e o afastamento do perigo da demora da decisão definitiva, o sistema jurídico basta-se com um juízo sumário de verosimilhança e aparência do direito.

Quanto ao segundo requisito - o justo receio ou perigo de insatisfação desse direito de crédito, cumpre ao Requerente alegar e provar, ainda que de forma perfunctória, um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do seu crédito (nesse sentido, GERALDES, António Santos Abrantes – Temas da Reforma do Processo Civil – Procedimento Cautelar Comum; vol. IV; op. cit., pág. 186).

Não basta a simples existência de um receio de lesão, simples dúvidas ou conjecturas, é necessário que o receio seja fundado, isto é, que assente em comportamentos ou factos que o tornem sério ou justificado. Por outro lado, a lesão que se receia tem de ser não só grave, mas também de difícil reparação. A temida violação do direito deverá ser de modo a pôr causa a existência do direito ou o seu exercício, exigindo-se ainda que a lesão seja de difícil reparação. O receio de perda da garantia patrimonial reveste assim duas vertentes: uma subjectiva, que é o receio, propriamente dito do Requerente, de perda da garantia patrimonial; e outra, objectiva, traduzida em factos externos que permitem a qualquer pessoa mediana razoavelmente sentir tal receio.

A locação financeira “é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados” – vide artigo n.º 1 do Decreto- Lei 149/95, de 24 de Julho.

O leasing “é uma locação a médio prazo de bens de equipamento, com opção de compra pelo utilizador: os bens são escolhidos e comprados a seu pedido, após compromisso firme da sua parte, pela sociedade de leasing (locador)” – Alberto Luís, Direito Bancário, pág. 85.

Como é da própria natureza da locação financeira, os bens são propriedade exclusiva da locadora – nesse sentido Diogo Leite de Campos, A Tipologia do Contrato de Locação Financeira; Alain Cotta, Dicionário de Economia, 4ª Edição, página 450.

A locadora é a única e legítima proprietária do referido bem e o simples facto de ter cedido o seu gozo em nada altera tal facto.

Dos factos alegados resulta, por um lado a existência de um crédito a favor da requerente, consubstanciado no valor das prestações em dívida, juros correspondentes e indemnização contratual fixada pelas partes. Por outro o fundado receio de que, mantendo-se o bem relativo ao contrato, fora do seu controle e fruição, venha a requerente a sofrer prejuízos graves, uma vez que a requerida admite a existência de dificuldades financeiras que a impedem de cumprir os pagamentos em falta.
De qualquer modo, conforme tem vindo a ser unanimemente entendido pela generalidade da jurisprudência, no procedimento previsto no artigo 21º do Decreto-Lei 149/95, de 24 de Julho, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 30/2008, de 25 de Fevereiro, não é exigível o requisito do justo receio nem há que ponderar os prejuízos que possam resultar da providência que ora se requer, ao contrário do que acontece no procedimento cautelar comum.

Já que a lei assume “júris et de jure” a verificação de “periculum in mora” – in António Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, p. 307.

Acresce que a providência cautelar de entrega judicial prevista no artigo 21º do Decreto-Lei 149/95, de 24 de Julho, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 30/2008, de 25 de Fevereiro, só pode ser decretada se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, após este ter efectuado o cancelamento do registo da locação financeira.

Resulta da matéria dada como assente que o contrato foi resolvido por incumprimento do locatário, sendo que, apesar disso, o locatário não procedeu à entrega da viatura objecto do contrato.

Por outro lado, apesar da tentativa de obtenção da entrega do bem pela via negocial preconizada pela requerente, esta entrega nunca se concretizou”.

Destarte, e por decorrência de tudo o exposto, resulta como inelutável que se encontram reunidos todos os elementos necessários à resolução definitiva do contrato em apreço, pelo que decretada a presente providência cautelar, não existe necessidade de ser intentada subsequente acção declarativa, nos termos do disposto no artigo 21º, n.º 7, do Decreto-Lei 149/95, de 24 de Julho, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 30/2008, de 25 de Fevereiro.

Por último, e pese embora não constar das conclusões do recurso, para a hipótese de se considerar implicitamente contida na apelação deduzida a requerida inversão do contencioso, entendemos pertinente tecer algumas considerações sobre esta questão.

Como é sabido, o novo Código de Processo Civil estabelece, no artigo 369.º, sob a epígrafe a “Inversão do contencioso” que:

“1 — Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da acção principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
2 — A dispensa prevista no número anterior pode ser requerida até ao encerramento da audiência final; tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, pode o requerido opor-se à inversão do contencioso conjuntamente com a impugnação da providência decretada.
3 — (…)”.

Através deste normativo, em vez de se permitir a convolação, ex officio, da tutela cautelar numa tutela definitiva, possibilita a lei que, no procedimento cautelar, que tem natureza instrumental e provisória, o requerente da providência, verificadas certas condições, seja dispensado do ónus de propositura da acção principal, destinada a confirmar a tutela cautelar, atribuindo-se ao requerido o ónus de instaurar uma acção de impugnação, com a finalidade de obstar à consolidação da providência decretada.

São dois os pressupostos cumulativos para que o requerente seja dispensado do ónus de propor a acção principal:

a) a matéria adquirida no procedimento permita ao juiz formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado;
b) a natureza da providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio (17).

Importa, portanto, que no procedimento cautelar seja produzida prova suficiente para que se forme convicção segura sobre a existência do direito, não havendo razões para que não se resolva a causa de modo definitivo.

Como esclarece Lopes do Rego (18), “… o juiz só decretará a inversão do contencioso quando o grau de convicção que tiver formado ultrapassar o plano do mero fumus boni juris, face nomeadamente à amplitude e consistência da prova produzida e à evidência do direito invocado pelo requerente (...) e entender - ponderadas as razões invocadas pelas partes – que a composição de interesses alcançada a nível cautelar pode servir perfeitamente como solução definitiva para o litígio”.

Nesse sentido, refere também o Prof. Teixeira de Sousa (19) que “… o juiz tem de formar a convicção segura da existência do direito acautelado, o que implica que a prova sumária (ou seja, a prova que se basta com a probabilidade séria da existência do direito acautelado) que é suficiente para decretar a providência cautelar (cf. art. 365.º, n.º 1, 388.º, n.º 2, 392.º, n.º 2, e 405.º, n.º 1) é insuficiente para decretar a inversão do contencioso; esta inversão pressupõe uma prova stricto sensu do direito acautelado; portanto, o que conta é que o juiz forme a convicção segura da existência do direito que a providência se destina a acautelar, não a convicção segura da procedência da providência”.

Ora, no caso concreto, julga-se que não se mostra verificado este Requisito (o primeiro requisito atrás apontado).

Na verdade, tendo em conta a prova produzida (que foi ouvida integralmente), julga-se que, apesar da prova documental acima referida (e da sua relevância), o grau de convicção que se pode aqui afirmar não ultrapassa o plano da prova sumária ou indiciária da factualidade alegada- que se julga, aliás, também foi sumariamente alegada.

Com efeito, conforme decorre do exposto, não se verifica, no caso concreto, o preenchimento do aludido primeiro pressuposto já que o grau de convicção que se pode formar, em face dos elementos probatórios produzidos, não ultrapassa o plano do mero julgamento sumario (“summaria cognitio”) assente num juízo de probabilidade séria (“fumus boni juris”) ou verossimilhança da existência do direito dos Requerentes, grau de convicção que é exigível para a procedência do Procedimento cautelar, mas que não é suficiente para determinar a inversão do contencioso.

De resto, não se pode aqui deixar também de relevar, o facto de a produção de prova ter sido efectuada nos termos em que foi, já que, conforme decorre do exposto, não existe total correspondência entre a finalidade e a prova produzida em sede de oposição, inclusivamente em termos de ónus da prova, com aquela que poderá ser produzida em sede de processo comum (e na respectiva instrução e Audiência final).

Nessa medida, julga-se que o grau de convicção que se pode aqui afirmar não ultrapassa o plano da prova sumária ou indiciária da factualidade alegada.

Ora, conforme se referiu, nos termos do art. 369º do CPC só se deverá decretar a inversão do contencioso se “a matéria adquirida no procedimento permitir ao juiz formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado”.

Entende-se, pelas razões expostas, que este pressuposto não se verifica no caso concreto.

Destarte e pelo exposto, na parcial procedência da apelação, decide-se revogar a decisão recorrida e, em consequência, decreta-se a requerida providência cautelar de entrega judicial à requerente da viatura de matrícula PC.

DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente a apelação interposta pela Recorrente e, em consequência, decide-se revogar a decisão recorrida alterando-a nos seguintes termos:
A- Na parte referente à impugnação factual, determina-se o seguinte:
- O facto 12, dos provados, passe a constar como demonstrado com a seguinte redacção:
“A partir de Janeiro de 2020, e apesar dos seus esforços e sacrifícios, a Requerida não conseguiu, com os seus rendimentos, satisfazer as prestações relativas a esse contrato”.
- Os factos 13 a 16, dos provados, passarão a constar dos factos não provados.
B- Decreta-se a requerida providência cautelar requerida, de entrega judicial à requerente da viatura de matrícula PC.

Custas por Recorrente e Recorrida na proporção do respectivo decaimento.
Guimarães, 20/ 01/ 2022.
Processado em computador. Revisto – artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.



1. Cfr. Acórdão da Rel. De Guimarães, proferido no processo nº 702/18.5 T8BRG.G1. in www.dgsi.pt.
2. Defendiam-no a propósito do regime processual anterior ao introduzido pela Lei 41/2013, de 26/07, ao nível da doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e actualizada, pp. 283 a 286 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 227 (referindo que, por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu – a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a da 1ª instância); ao nível da jurisprudência (tirada no âmbito da vigência do anterior regime processual), p. ex., os Acórdãos do STJ de 01/07/2008, de 25/11/2008, de 12/03/2009, de 28/05/2009 e de 01/06/2010, no sítio www.dgsi.pt/jstj. Posição que doutrina e jurisprudência vêem mantendo (e veementemente reforçando) quanto ao regime processual vigente – p. ex., na doutrina Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, p. 298 a 303 (máxime 302 e 303) e na jurisprudência (por mais recente) o Acórdão do STJ de 8/01/2019, no sítio www.dgsi.pt/jstj.
3. Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, disponível em www.dgsi.pt.
4. Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 266 “ A Relação actua como Tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de primeira Instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o Tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo de confirmação ou alteração da decisão recorrida… “;
5. Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, disponível em www.dgsi.pt.
6. Cfr. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348.
7. Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 22/05/2019, proferido no processo nº 467/17.8T8SJM.P1, in www.dgsi.pt.
8. Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-02-2020, proferido no âmbito do processo nº 18085/17.9T8LSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
9. Acs. da RG de 19.05.11 e de 19.01.15, do STJ de 05.11.08, 21.01.09, 10.12.09, 09.05.06 e de 02.01.04, da RP de 18.01.01 e de 04.04.02 e da RC de 12.04.11, www.dgsi.pt
10. Cfr. João Paulo Remédio Marques, ”A aquisição e a valoração…”, cit., pág. 171. Todavia, a verdade é que, não existe qualquer obstáculo epistemológico para não reconhecer às declarações do depoente um meio válido de formação da convicção, esclarecida e racional do juiz, i.e., uma fonte válida de convencimento racional do juiz. Assim, ainda que no contexto da prova por declarações de parte, o Ac. da RE de 12.03.15, www.dgsi.pt, e Paulo Faria e Ana Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 364.
11. Cfr. Acórdão da Relação de coimbra.de 26/03/201, proferido no processo nº 1534/09.7TBFIG.C1, in www.dgsi.pt
12. Cfr. Portugal: Uma análise rápida do impacto da COVID-19 na economia e no mercado de trabalho.
13. Cfr. Galvão Teles, Manual dos Contratos; pág. 343 e segs.
14. Cfr. Galvão Teles, ob. e loc. Cit.
15. Direito das Obrigações, 5ª edição, páginas 265 a 271.
16. Cfr. Ac STJ de 23 de Janeiro de 2014; www.dgsi.pt.
17. v. por ex. o ac. da RL 20.11.2014 (relator: Ondina Geraldes), in dgsi.pt.
18. In “Os princípios orientadores da Reforma do Processo Civil”, Revista Julgar, nº 16, 109.
19. In “As providências cautelares e a inversão do contencioso”, pág. 10.