Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
799/21.0T8VNF-C.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: ARRENDAMENTO
DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - O diferimento de desocupação previsto nos artigos 864.º e 865.º do CPC constitui um meio de tutela excecional, estando assim reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada
2 - A restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos confinados casos previstos na lei e se verificados os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação, quer por via da analogia, quer do recurso a interpretação extensiva, a outras situações que não as especificamente previstas.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
           
AA, executada na execução que lhe movem “D..., Lda.” e “F... – Gestão e Fiscalidade. Lda.” veio interpor recurso dos despachos que, por um lado, indeferiu liminarmente a pretensão de diferimento da entrega do imóvel e, nessa sequência, autorizou a entrega judicial do mesmo após trânsito em julgado do despacho que determinou a entrega.

A recorrente finalizou a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

1. Não há razão para a decisão afirmar, como faz o Tribunal, que os art. 863º a 866º (sic) do CPC não se aplicam ao caso em apreço, valendo somente quando a execução se destinar à entrega de local arrendado para habitação.
2. O problema não está em haver ou não previsão expressa sobre certa matéria, mas sim ponderar se, tendo a questão dos autos a ver com a desocupação de local que é casa de habitação da Recorrente e não tendo esta local para onde ir (para além das outras razões invocadas no requerimento que antecedeu a decisão recorrida), o art. 864º do CPC é susceptível de aplicação analógica à situação, num quadro de razões sociais imperiosas.
3. O art. 11º do C C proíbe a aplicação analógica das normas excepcionais, sendo que uma norma é excepcional quando consagra um regime que se tenha por contrário ao que deva ter-se como regime regra.
4. As normas especiais, que não se confundem com as excepcionais e que não excluem a analogia, regulam um sector restrito de casos, consagrando uma disciplina diferente, mas que não é directamente oposta à do direito comum.
5. O ponto de partida para a analogia é a similitude das situações, similitude que é indiscutível.
6. Aquilo que os arts. 863º a 865º do CPC acautelam, não se tratando de preceitos excepcionais, vale tanto para quem seja executado mediante a cessação de um arrendamento, como mediante outra decisão, pois o elemento nuclear é a circunstância de se tratar da habituação do executado e haver iminência de esta ficar literalmente desalojado, ou seja, o diferimento a ponderar radica nas (mesmas) por razões sociais imperiosas.
7. Se o Tribunal entende que a Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, caducou, não havendo razões para suspender diligências judiciais, nomeadamente, a entrega judicial de habitação,
8. Se o Tribunal entende que deve ser atendida a pretensão do Exmo. Agente de no sentido de obter a entrega do imóvel,
9. Se o Tribunal entende que ser de indeferir o pedido da Recorrente quanto à dilação da entrega do imóvel.
10. Se o Tribunal entende tudo isso, é um tanto contraditório que o próprio Tribunal tenha imposto uma dilação à execução da entrega.
11. E não se diga que isto é assim por efeito de mera aplicação das regras.
12. Se fosse assim, não era preciso determinar coisa nenhuma, e tais regras seriam cumpridas.
13. Não sendo as coisas assim, por que motivo terá o Tribunal decidido deste modo?
14. Visto que as decisões judiciais devem ter sentido, como todas as coisas, de resto, afigura-se que estará aqui o sinal de que, apesar do que deixou exarado, o Tribunal não convive bem com a crueza do resultado a que conduz a decisão acerca do pedido de diferimento da entrega.
15. E a forma encontrada para atenuar tal crueza foi obstar a qualquer o acto de entrega do Exmo. Agente de Execução enquanto não houver trânsito em julgado do decidido, o que não deixa de ser surpreendente.
16. E se, nos termos legais, foi requerido que ao recurso fosse atribuído efeito suspensivo ao recurso, o certo é esse efeito suspensivo foi antecipado e concedido, ainda que inusitadamente, pelo Tribunal.
17. Tudo isto reforça a ideia de que a decisão recorrida não é acertada, sendo de esperar a sua revogação.
18. Mostra-se violado o disposto dos arts. 863º e 864º do CPC e no art. 11º do CC.

As exequentes contra-alegaram, pugnando pela manutenção dos despachos recorridos.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver traduz-se em saber se deveria ter sido deferido o pedido de diferimento de entrega do imóvel por um período de seis meses e consequente não autorização de entrega judicial do mesmo com o auxílio da força pública.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Os despachos recorridos têm o seguinte teor:
“As regras constantes do art.º 863.º a 866.º do CPC apenas são aplicáveis à execução para entrega de um bem imóvel, subsequente ao termo de um contrato de arrendamento, ficando excluídas do seu âmbito de aplicação todas as situações em que a obrigação de entrega do bem tenha outra causa subjacente, designadamente, a condenação decorrente de uma ação de revindicação como sucede com o presente caso [cfr., neste sentido, RUI PINTO (“Anotação ao regime do procedimento especial de despejo”, in Leis do  Arrendamento urbano Anotadas, Coordenação de António Menezes Cordeiro, Almedina, 2014, pág. 413); cfr., neste sentido, igualmente, acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA de 17/03/2006 (processo n.º 217/09.2TBMBR-B.P1.S1, relator Oliveira Vasconcelos) e do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA de 11/07/2019 (processo n.º 25/16.4 T8PTG-A.E1, relatora Maria Domingas)].
Na verdade, o diferimento de desocupação, previsto nos art.ºs 863.º e 864.º do CPC constitui um meio de tutela excecional, estando, assim, reservado aos casos expressamente nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada, sendo que a restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos confinados casos previstos na lei e caso se verifiquem os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação analógica a outras situações que não as especificamente previstas (art.º 11.º do CC).
Pelo exposto, indefere-se liminarmente, por falta de fundamento legal, o pedido de diferimento da entrega do imóvel pelo período de 06 meses.
Notifique.
*
Veio o/a AE requerer o prosseguimento dos autos, pedido auxilio de força pública para efetiva entrega do imóvel, referindo que a diligência não deverá considerar-se suspensa por efeito da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.

Apreciando e decidindo:

A Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, na sua redação ordinária, veio estabelecer no seu artigo 7.º, n.ºs 1 e 11, a suspensão generalizada dos prazos processuais, bem como dos processos de entrega de coisa imóvel arrendada, até «à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19», sendo certo que o n.º 2 deste art.º 7 previa, expressamente, que o regime agora descrito cessaria em «data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional».
No entanto, na sequência da alteração introduzida pela Lei n.º 16/2020, de 29/05, este artigo 7.º foi expressamente revogado [cfr. art.º 8.º da Lei n.º 16/2020] e, como que em sua substituição, foi aditado à Lei n.º 1-A/2020 o art.º 6.º-A, com o seguinte teor (nos segmentos aqui relevantes): «1- No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, (…) regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo. (…) 6- Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório: (...) b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família; c) As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa; 7 - Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes»
Nesta alteração, o legislador revogou expressamente o segmento legal em que fazia depender a cessação deste regime excecional de uma data a definir por Decreto-lei que declarasse o termo da situação excecional, optando, ao invés e pela primeira vez, por mencionar que o regime excecional e transitório previsto no (agora) art.º 6.-A vigoraria enquanto perdurasse a «situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19».
Significa isto que, pela primeira vez e na sequência da Lei n.º 16/2020, de 29/05, o termo do regime excecional instituído pelo art.º 6.º-A da Lei n.º 1-A/2020 deixou de estar expressamente dependente da publicação de um diploma legal que o revogasse expressamente, para vigorar temporariamente enquanto se mantivesse a situação excecional «de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19».
Por sua vez, este regime excecional previsto na Lei n.º 1-A/2020 foi alterado pela Lei n.º 4-B/2021, de 01/02 e, posteriormente, pela Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, culminando no atual art.º 6.º-E («regime processual excecional e transitório»), com o seguinte teor (nas partes que aqui relevam): «1 - No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, (…) regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo. (…) 7- Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo: (…) b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família; c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa. (…) 8 - Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não causa prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária».
Este normativo é aquele que ainda hoje se encontra vigente e, de acordo com o seu n.º 1, destina-se a vigorar «no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19», não estando, assim, a cessação do mesmo dependente de qualquer diploma legal que expressamente o revogue expressamente.
Isto posto, a resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 26 de Agosto (publicada no DR n.º 165/2002- 1º Suplemento, Série I de 2022-08-26, pág. 4) prorrogou a declaração da situação de alerta, no âmbito da pandemia da doença Covid-19, até às 23.59h do dia 30 de Setembro de 2022, em todo o território nacional continental, sendo certo que, nessa data, por decisão governamental, este estado de alerta não voltou a ser prorrogado.
Decorre do exposto, assim, que, desde as 00.00h do dia 01 de Outubro de 2022, não vigora em território nacional qualquer situação de estado de alerta, contingência, calamidade ou emergência decorrente relacionados, direta ou indiretamente, com a infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e/ou pandemia da doença COVID-19.
De resto, a cessação desta situação excecional mostra-se, inclusivamente, reconhecida em recente diploma legal, concretamente o Decreto-Lei n.º 66-A/2022, de 30/09, o qual revogou expressamente inúmeros diplomas relativos ao período de pandemia, a pretexto de que «face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu-se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas» (preâmbulo).
Ora, no caso de normas de vigência temporária (art.º 7.º, n.º 1, 1.ª parte do CC), uma das causas de cessação da lei consiste na caducidade, em virtude do desaparecimento dos pressupostos de aplicação da lei, dado que como refere OLIVEIRA ASCENSÃO «a lei não vale em abstracto, (…), mas pela inserção numa certa situação social que dá os pressupostos da sua aplicação. Aqui temos uma impossibilidade definitiva de aplicação da lei, que não pode deixar de implicar a extinção desta» [in O Direito – Introdução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-Brasileira, 9.ª Edição, 1995, Almedina, pág. 289; cfr., no mesmo sentido, JOSÉ DIAS MARQUES, in Introdução ao Estudo do Direito, 2ª edição, Lisboa, 1994, pp. 126 e ss].
Na verdade, a caducidade da lei verifica-se, por um lado, é suposto esta ter uma vigência temporária (art.º 7.º, n.º 1 CC) e, já por outro, quando se deixam de verificar os pressupostos que justificam a sua vigência, pois, nestas situações, a previsão da lei deixa de poder ser preenchida.
Deste modo, inexistindo dúvidas qual à natureza transitória e excecional do atual art.º 6.º E da Lei n.º 1-A/2020 e, ademais, mostrando-se cessada a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, em consequência da não renovação do estado de alerta, haverá que concluir pela caducidade Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.
Pelo exposto, decido:
a) Declarar a caducidade, por falta de verificação dos seus pressupostos de aplicação, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (alterada, entre o mais, pela Leis n.ºs 16/2020, de 29/05, 4-B/2021, de 01/02 e 13-B/2021, de 05/04), e;
b) Autorizar a entrega judicial do imóvel, a efetuar após o trânsito em julgado da presente decisão, com recurso à autorização da força pública.
Notifique todos os sujeitos processuais, ficando o Sr. AE advertido de que o presente despacho apenas deverá ser executado após o seu trânsito em julgado”.

Cabe, ainda, deixar exarado os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:

- Por sentença de 12/02/2020, proferida no Juízo Central Cível ... – Juiz ..., foi julgada procedente a ação de reivindicação intentada por “D..., SA” e “F... – Gestão e Fiscalidade, Lda.” contra AA, tendo-se reconhecido que as autoras são as únicas e legítimas donas e proprietárias do imóvel aqui em causa, condenado a ré a proceder à restituição imediata do mesmo imóvel às autoras e a pagar o montante diário de € 50,00 a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de mora na entrega do imóvel livre de pessoas e bens, a contar do trânsito em julgado da decisão;
- Esta sentença foi confirmada por Acórdão proferido no Tribunal da Relação de Guimarães em 22/10/2020 (que transitou em julgado em 25/11/2020), que considerou que a ré não possui qualquer vínculo jurídico que legitime a ocupação do imóvel, assistindo às autoras o direito à sua entrega;
- Em 01/02/2021, as autoras interpuseram a correspondente execução de sentença, considerando que, até àquela data, a executada não tinha restituído o imóvel às exequentes;
- Em 18/10/2022, o AE solicitou nos autos a autorização para a intervenção de força pública de segurança a fim de proceder à entrega judicial do imóvel em questão;
- Foi após tal requerimento que a executada veio requerer o diferimento da entrega do imóvel, alegando ter 70 anos e viver sozinha, com um estado de saúde frágil, ter sido declarada insolvente em 2016 e não ter outra habitação onde possa residir.

Apesar de referir que pretende atacar os dois despachos proferidos a 14/12/2022, a apelante nenhum argumento aduz contra o segundo despacho – aquele em que se julgou caducada, por falta de verificação dos seus pressupostos de aplicação, a Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 e suas alterações, autorizando a entrega judicial do imóvel, após o trânsito em julgado da mesma decisão (o que, aliás, tem vindo a ser decidido maioritariamente pelos Tribunais Superiores, de que é exemplo o Acórdão deste Tribunal da Relação proferido em 16/03/2023, no processo n.º 1840/22.5T8VNF-B.G1, in www.dgsi.pt) – pelo que a nossa atenção se irá concentrar no despacho que indeferiu o requerido diferimento da entrega do imóvel pelo período de seis meses.

Vejamos, então.

O disposto no artigo 862.º do CPC “À execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições anteriores do presente título, com as alterações dos artigos 863.º a 866.º” logo determina que as disposições citadas pela apelante para obter o diferimento da desocupação do imóvel que habita, apenas se aplicam no caso de imóveis arrendados e não, como é o seu caso, a imóveis ocupados sem título, ilegitimamente.

Nos termos do disposto no artigo 863.º (Suspensão da execução):

1 - A execução suspende-se se o executado requerer o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, motivada pela cessação do respetivo contrato, nos termos do artigo seguinte.
2 - O agente de execução suspende as diligências executórias sempre que o detentor da coisa, que não tenha sido ouvido e convencido na ação declarativa, exibir algum dos seguintes títulos, com data anterior ao início da execução:
a) Título de arrendamento ou de outro gozo legítimo do prédio, emanado do exequente;
b) Título de subarrendamento ou de cessão da posição contratual, emanado do executado, e documento comprovativo de haver sido requerida no prazo de 15 dias a respetiva notificação ao exequente, ou de o exequente ter especialmente autorizado o subarrendamento ou a cessão, ou de o exequente ter conhecido o subarrendatário ou cessionário como tal.
3 - Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.
4 - Nos casos referidos nos n.os 2 e 3, o agente de execução lavra certidão das ocorrências, junta os documentos exibidos e adverte o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que a execução prossegue, salvo se, no prazo de 10 dias, solicitar ao juiz a confirmação da suspensão, juntando ao requerimento os documentos disponíveis, dando do facto imediato conhecimento ao exequente ou ao seu representante.
5 - No prazo de cinco dias, o juiz de execução, ouvido o exequente, decide manter a execução suspensa ou ordena o levantamento da suspensão e a imediata prossecução dos autos.

Nos termos deste artigo é, assim, necessário que exista um título de arrendamento ou de outro gozo legítimo do prédio, emanado do exequente, ou de subarrendamento ou cessão da posição contratual emanado do executado, para que se suspenda a execução ou as diligências executórias

Já quanto ao diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação – artigo 864.º - estabelece-se o seguinte:

1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.

Decorre do disposto neste artigo, claramente, que estes preceitos apenas se aplicam aos casos de imóveis arrendados para habitação e que o pedido de diferimento tem que ser efetuado dentro do prazo de oposição à execução. Veja-se que, no caso de o contrato ter sido resolvido por falta de pagamento de rendas, em virtude da carência de meios do arrendatário, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste. Ou seja, o diferimento da desocupação não é feito à custa do senhorio, que não tem que arcar com os custos inerentes.

Ora, no caso de ocupação ilegítima, sem título, como é o caso dos autos, em que os proprietários tiveram que intentar uma ação de reivindicação, o eventual diferimento da desocupação do imóvel, iria perpetuar os prejuízos dos proprietários, sem possibilidade de se ressarcirem dos mesmos. Acresce, que os proprietários intentaram ação declarativa e, posteriormente, ação executiva, sem que a executada se tivesse oposto à execução, permanecendo no imóvel desde janeiro de 2018 (pelo menos), sem qualquer título, apesar de ter sido condenada a restituir o imóvel, em 2020 e mesmo após a instauração da execução em 2021, tendo levantado a questão do diferimento da desocupação do imóvel apenas em outubro de 2022, quando o AE solicitou o auxílio da força pública para concretizar a entrega.
Ou seja, ainda que fosse de aplicar analogicamente estes artigos do CPC à situação da apelante, claramente que o seu requerimento seria extemporâneo, pelo que deveria ser indeferido liminarmente.

Deve acrescentar-se que, neste caso, em que já passaram três anos sobre a decisão que obrigou à restituição, muito dificilmente se poderia concluir que a apelante não teve tempo para diligenciar no sentido de obter uma nova habitação, pois o prazo que lhe poderia ser concedido sempre teria que ser um prazo razoável para encontrar um alojamento alternativo – cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, CPC Anotado, vol. II, pág. 298 e pág. 300, citando Virgínio Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Ação Executiva, 2.ª edição, pág. 584. “…o juiz deve atender ao tempo decorrido desde a data do trânsito em julgado da sentença que constitui o título executivo, na medida em que, perante tal decisão, cabia ao executado reorganizar a sua vida, diligenciando pela obtenção de um novo alojamento”.

Mas, indo mais longe, diremos que concordamos em absoluto com o despacho recorrido quando aí se salienta que “o diferimento de desocupação, previsto nos art.ºs 863.º e 864.º do CPC constitui um meio de tutela excecional, estando, assim, reservado aos casos expressamente nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada, sendo que a restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos confinados casos previstos na lei e caso se verifiquem os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação analógica a outras situações que não as especificamente previstas (art.º 11.º do CC)”.

Neste sentido – o de que o incidente previsto nestes artigos se circunscreve a situações de arrendamento, veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 11/10/2011, processo n.º 2656/10.7TBVFR.P1A, in www.dgsi.pt, bem como o Acórdão da Relação de Évora de 11/07/2019, processo n.º 25/16.4 T8PTG-A.E1, e o Acórdão da Relação de Guimarães de 21/3/2019, processo 153/15.3T8CHV-C.G1, ambos na mesma base de dados.
Como bem se salienta no primeiro destes acórdãos “A procedência da ação de reivindicação tem como consequência a restituição ao proprietário, aqui autor, do imóvel que lhe pertence e essa restituição, estando reconhecido o direito de propriedade, só pode ser recusada nos casos previstos na lei (cfr. art. 1311º do Cód. Civil). Acresce que o direito de propriedade confere ao seu titular o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (cfr. art. 1305º do Cód. Civil). As normas que, de alguma forma, operam a circunscrição do direito de propriedade devem ser encaradas como normas excecionais, o que veda, desde logo, a possibilidade da sua aplicação analógica, sendo permitida, porém, a sua interpretação extensiva (cfr. art. 11º do Cód. Civil) (…) Contudo, a seguir-se a posição preconizada pelos réus, assente na referida interpretação extensiva, tal traduzir-se-ia numa significativa descaracterização do direito de propriedade, que é, por essência, pleno e exclusivo. Estar-se-ia a permitir que um qualquer possuidor ou detentor sem título pudesse, nas circunstâncias previstas nos dois artigos que vêm sendo aludidos, recusar, na sequência de ação de reivindicação procedente, a entrega do imóvel que ocupa ilegitimamente. Ora, afigura-se-nos que esta extensão das normas relativas ao diferimento da desocupação do imóvel excede em muito aquela que foi a intenção do legislador, não tendo, a nosso ver, apoio em qualquer elemento interpretativo de carácter histórico ou sistemático. Na verdade, não se vislumbra que o texto destas duas normas tenha atraiçoado o pensamento do legislador e que este, ao redigi-las, disse menos do que efetivamente pretendia dizer. Bem pelo contrário, entendemos que o legislador disse, de forma precisa, o que queria dizer, daí resultando que só o arrendatário habitacional poderá lançar mão do incidente de diferimento da desocupação do imóvel.
Não há assim norma que, perante os poderes do proprietário, acautele a posição do possuidor ou detentor sem título, mesmo que se trate de pessoa a atravessar fase de grandes dificuldades económicas - Cfr. Ac. Rel. Lisboa de 25.9.2008, p. 5619/2007-6, disponível in www.dgsi.pt
Este mesmo entendimento vem sufragado na obra de Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Luís de Sousa, supra citada, pág. 298, onde se pode ler que não assiste ao mero detentor do imóvel (não arrendatário) o direito de requerer o diferimento da desocupação, não violando o princípio da igualdade a falta de extensão do regime do diferimento da desocupação a outras ações em que se peça a restituição da posse ou a entrega judicial do prédio, conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 465/2001, de 24/10/2001, in  https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20010465.html (“Ora, é justamente em consideração da relação jurídica locatícia que se prevê tal diferimento da desocupação, a facultar na decisão da ação de despejo, não violando o princípio da igualdade a falta de extensão desse regime a outras ações em que se peça a restituição de posse, ou a entrega judicial, do prédio”).

Improcede, assim, a apelação, sendo de confirmar as decisões recorridas.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se as decisões recorridas.
Custas pela apelante.
***
Guimarães, 4 de maio de 2023

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira