Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6728/15.3T8VNF-A.G2
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
QUIRÓGRAFO
RELAÇÃO SUBJACENTE
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. À execução podem servir de base os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.
2. A exequibilidade do mero quirógrafo apenas respeita aos sujeitos das relações imediatas, não o sendo o cessionário de créditos que declara ter adquirido os mesmos.
3. De igual modo, não constitui título executivo o cheque que, não reunindo os requisitos legais ou estando prescrito, omita o nome do respetivo beneficiário, ou seja, o nome da pessoa a quem deva ser paga a quantia nele inscrita, já que o cheque só pode valer como título executivo, enquanto quirógrafo da obrigação, se dele constar o reconhecimento ou a confissão de dívida a favor do exequente.
4. Se a relação subjacente derivava de um mútuo, importaria ter alegado em que data foi contraído, onde, de que forma, quem nele interveio, sob que condições, se houve titulação por algum documento e qual. Não compete ao tribunal nem aos executados substituir-se ao exequente na alegação da causa de pedir, nomeadamente procurar em documentos, ainda que constantes em anexos, os factos consubstanciadores da alegada relação subjacente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório:

Em 19 de agosto de 2015 foi instaurada execução por AA contra BB, pedindo a comunicabilidade da dívida a CC, cônjuge deste, e constando do requerimento executivo o seguinte:

Finalidade da Execução: Pagamento de Quantia Certa - Dívida civil [Execuções]
Título Executivo: Cheque
Factos:
1. Através de contrato celebrado em 19 de Setembro/14, DD e EE, cederam um crédito que detinham sobre o ora executado no valor de € 48 705,18 titulado pelos cheques cuja cópia se encontra anexa ao referido contrato,
2. cheques esses no valor de PTE 465 000$00 e € 9 300 000$00, datados de 23.11.2001 e 25.05.2002 respetivamente sacados sobre a conta de que o executada era titular no Banco 1... , hoje, Banco 2..., SA.
3. O executado foi notificado da referida cessão de crédito através de carta registada enviada à mesma em 4/3/2015.
4. Acontece que, o executado ainda não procedeu ao pagamento das quantias inscritas nos referidos cheques.
5. Assim sendo, é o executado devedor da exequente da quantia de € 48 705,18, acrescida de juros de mora até efetivo e integral pagamento e que nesta data, se computam em € 27205,32.
6. Os cheques são títulos executivos à luz do artº 703, nº 1, al.c) do CPC.
7. A dívida é líquida, certa e exigível.
COMUNICABILIDADE DA DÍVIDA AO CÔNJUGE
Apresenta Prova Documental: Não
Exposição dos Factos:
A quantia emprestada por DD e EE ao executado destinou-se a fazer aos encargos da vida familiar, bem como aos decorrentes da atividade comercial desenvolvida pela esposa do Executado, CC (cont. nº ...82) enquanto comerciante em nome individual do sector agrário, atividade da qual a referida CC retira os proventos necessários para fazer face às necessidades do seu agregado familiar, pelo que mister se torna concluir que foi contraída em proveito comum do casal, o qual, aliás, se presume atento o estatuído no art. 15º do Cód. COM).
Valor da Execução: 75.910,50 € (Setenta e Cinco Mil Novecentos e Dez Euros e Cinquenta Cêntimos).

Os executados deduziram embargos à execução em 5 de outubro de 2015 alegando, em síntese, que os cheques dados em execução estão prescritos, não configurando título executivo. Sem prescindir, os factos que constituíam a relação subjacente não foram alegados, não tendo sido cumprida a exigência do artº 703º, nº 1, alínea c), do CPC, sendo inepto o requerimento executivo. Com o requerimento executivo não lhes foi entregue cópia do verso do cheque, não sabendo, por isso, se os cheques foram endossados ao exequente, o que determina a ilegitimidade deste. Excecionaram ainda a iliquidez da obrigação exequenda, alegando ainda que não são devidos juros de mora, pois os cheques nunca foram apresentados a pagamento. Alegaram ainda que não se verificam os requisitos para comunicabilidade da dívida. Requereram a suspensão da execução sem prestação de caução.
Terminaram pedindo a procedência dos embargos e a extinção da execução.
O embargado contestou, impugnando os factos alegados pelos embargantes e pedindo a improcedência dos embargos.
Em 27 de fevereiro de 2019 foi prolatado saneador-sentença que julgou totalmente procedentes os embargos deduzidos e declarou extinta a instância executiva.

Inconformado com a decisão, o embargado apelou, formulando as seguintes conclusões:

1. Por despacho-saneador datado de 27.02.2019, julgou o Tribunal recorrido procedentes os embargos deduzidos pelo ora recorrido porquanto entendeu o mesmo que o Recorrente não alegou a relação material subjacente à emissão dos cheques dados à execução.
2. Efetivamente, do ponto 4 da lista de factos assentes do requerimento executivo, mais concretamente do campo destinado à exposição dos factos consta o seguinte:
“1. Através de contrato celebrado em 19 de setembro/14, DD e EE, cederam um crédito que detinham sobre o ora executado no valor de € 48 705,18 titulado pelos cheques cuja cópia se encontra anexa ao referido contrato,
2. cheques esses no valor de PTE 465 000$00 e € 9 300 000$00, datados de 23.11.2001 e 25.05.2002 respetivamente sacados sobre a conta de que o executado era titular no Banco 1..., hoje, Banco 2..., SA..
3. O executado foi notificado da referida cessão de crédito através de carta registada enviada à mesma em 4/3/2015.
4. Acontece que, o executado ainda não procedeu ao pagamento das quantias inscritas nos referidos cheques.
5. Assim sendo, é o executado devedor da exequente da quantia de € 48 705,18, acrescida de juros de mora até efetivo e integral pagamento e que nesta data, se computam em €27.205,32.
6. Os cheques são títulos executivos à luz do artº 703, nº 1, al. c) do CPC.
7. A dívida é líquida, certa e exigível.”
3. Mas, do campo destinado à comunicabilidade da dívida ao cônjuge resulta que “A quantia emprestada por DD e EE ao executado destinou-se a fazer aos encargos da vida familiar, bem como aos decorrentes da atividade comercial desenvolvida pela esposa do Executado, CC (cont. nº ...82)enquanto comerciante em nome individual do sector agrário, atividade da qual a referida CC retira os proventos necessários para fazer face às necessidades do seu agregado familiar, pelo que mister se torna concluir que foi contraída em proveito comum do casal, o qual, aliás, se presume atento o estatuído no art. 15º do Cód. COM)”.
4. Do requerimento executivo, mais concretamente do campo destinado à comunicabilidade da dívida ao cônjuge, resulta qual a origem do crédito cedido pelo DD e EE, a saber: contratos de empréstimo titulados pelos cheques referidos no campo do requerimento executivo destinado à exposição dos factos;
5. No requerimento executivo foi alegado que o executado foi notificado da cessão de crédito através de carta registada enviada a 04.03.2015, facto que o mesmo nem sequer impugnou e que, além dos cheques dados à execução o Exequente juntou com o requerimento executivo.
6. Atendendo a que no requerimento executivo o exequente deve demonstrar a habilitação legitimidade alegando e provando os factos constitutivos da cessão, o Recorrente não só alegou os factos constitutivos da cessão de créditos, como juntou aos autos o correlativo meio de prova: o contrato de cessão de créditos, em cuja cláusula primeira se pode ler o seguinte: “O primeiro e segundo outorgantes são legítimos titulares de um crédito sobre BB, titulado pelas declarações de dívida cujas cópias se encontram anexas ao presente contrato no valor de € 48.705, 18 (quarenta e oito mil setecentos e cinco euros), referente a diferentes empréstimos de dinheiro entregues pelo Primeiro e Segundo Outorgantes ao referido BB nas datas apostas na referida documentação”.
7. Em suma, quer do requerimento executivo quer dos documentos a ele anexos decorre claramente qual é a origem dos créditos do Recorrente: empréstimos no valor de PTE 465 000$00 e PTE 9 300 000$00, titulados por dois cheques datados de 23.11.2001 e 25.05.2002.
8. Ou seja, quer do requerimento executivo quer do documento que legitima o Recorrente a propor a ação executiva aos quais os presentes embargos se encontram apensos decorre qual a relação material subjacente à emissão dos cheques dados à execução.
9. Em face do supra exposto, não pode considerar-se in casu ter ocorrido total “ausência efetiva de factualidade que permita individualizar a relação subjacente”, mas, quando muito uma deficiente alegação dos factos, pelo que deveria o Recorrente ter sido convidado a suprir as mesmas aquando da prolação do despacho que ordenou a citação, o que não sucedeu in casu (art. 726º, nº 4, do CPC).
10. Concluindo, deve o despacho ora recorrido ser revogado e substituído por um outro que ordene o prosseguimento dos autos.
Termos em que Deve a decisão ora recorrida ser revogada e substituída por uma outra que ordene o prosseguimento dos autos, pois só assim se fará JUSTIÇA!
Não foram apresentadas contra-alegações.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são, assim, apurar se os cheques dados em execução o podiam ser enquanto quirógrafos, e se a relação subjacente à emissão dos cheques exequendos foi devidamente alegada no requerimento executivo.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:

O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1. No âmbito do processo de execução com o nº6728/15.... – de que os presentes autos constituem apenso –, instaurado no dia 09 de Agosto de 2015, o embargado/exequente AA reclama do embargante/executado BB o pagamento da quantia total de €75.910,50 (setenta e cinco mil, novecentos e dez euros e cinquenta cêntimos), ascendendo o valor de capital a €48.705,18 (quarenta e oito mil, setecentos e cinco euros e dezoito cêntimos) – cfr. o requerimento executivo, a fls.1-14, dos autos principais.
2. No processo referido em 1., o embargado/exequente afirma que o crédito exequendo em dívida é comunicável a CC, cônjuge do embargante/executado – cfr. o requerimento executivo, a fls.1-14, dos autos principais.
3. O embargado/exequente fundou a execução em 2 (dois) escritos, denominados «cheque», com os nºs...72 e ...70, datados de 23 de novembro de 2001 e de 23 de maio de 2002, respetivamente, no valor de Esc.465.000$00 (correspondente ao contravalor de €2.319,41) e de Esc.9.300.000 (correspondente ao contravalor de €46.388,20), respetivamente – cfr. os originais dos cheques juntos a fls.17, dos autos principais.
4. No campo do requerimento executivo destinado à exposição dos factos, o embargado/exequente fez constar o seguinte: 1. Através de contrato celebrado em 19 de Setembro/14, DD e EE, cederam um crédito que detinham sobre o ora executado no valor de € 48 705,18 titulado pelos cheques cuja cópia se encontra anexa ao referido contrato, .... cheques esses no valor de PTE 465 000$00 e € 9 300 000$00, datados de 23.11.2001 e 25.05.2002 respetivamente sacados sobre a conta de que o executada era titular no Banco 1... , hoje, Banco 2..., SA. 3. O executado foi notificado da referida cessão de crédito através de carta registada enviada à mesma em 4/3/2015. 4. Acontece que, o executado ainda não procedeu ao pagamento das quantias inscritas nos referidos cheques. 5. Assim sendo, é o executado devedor da exequente da quantia de € 48 705,18, acrescida de juros de mora até efetivo e integral pagamento e que nesta data, se computam em € 27205,32. 6. Os cheques são títulos executivos à luz do artº 703, nº 1, al. c) do CPC. 7. A dívida é líquida, certa e exigível – cfr. o requerimento executivo, a fls.1-14, dos autos principais.
5. Os cheques referidos em 3. nunca foram apresentados a pagamento – cfr. os originais dos cheques juntos a fls.17, dos autos principais.
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B. Fundamentos de direito. 

Dispõe o artº 703º, nº 1, alínea c), do CPC, que à execução podem servir de base os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.
Mas, “esta solução não é de aplicação ilimitada. Tal regime apenas poderá abarcar os casos em que a exigência de pagamento da quantia inscrita no documento encontra uma sustentação alternativa na relação subjacente que se tenha constituído entre os sujeitos implicados: o exequente e o executado (…).” – cfr. Código de Processo Civil anotado, de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, em anotação ao referido acordo.
Também Virgínio da Costa Ribeiro e Orlando Rebelo in A Ação Executiva Anotada e Comentada, 2015, pág. 143, assinalam que “a exequibilidade do mero quirógrafo apenas respeita aos sujeitos das relações imediatas.
Igualmente nesta Relação, a jurisprudência tem sido unívoca: “Apesar de os títulos de crédito prescritos ou que não preencham os requisitos legais não gozarem da característica da abstração, podem ser usados como quirógrafos da relação causal subjacente à sua emissão e beneficiar da presunção de causa consagrada no nº 1, do artº 458º, do Código Civil, quando, não indicando a causa, traduzam atos de reconhecimento de um débito ou de promessa unilateral de prestação.
A emissão de um cheque não se limita a traduzir uma ordem de pagamento a um banco a favor de um terceiro, constituindo, também, o reconhecimento de uma obrigação pecuniária em relação ao portador.
O exequente que propõe ação executiva fundada em quirógrafo da obrigação causal subjacente à emissão do cheque tem o ónus de alegar no requerimento executivo, em obediência ao estatuído na alínea c), do nº 1, do artº 703º, do CPC, os factos essenciais, constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, sem valor como título de crédito nos termos da Lei Uniforme Sobre Cheques, quando dele não constem, de modo a possibilitar, em termos proporcionais, ao executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo artº 458º, do Código Civil, que consagra uma inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental  (exceção ao regime geral de distribuição do ónus da prova consagrado no nº 1, do artº 342º, deste diploma), passando o devedor a ter de provar a falta da causa da obrigação inscrita no título ou alegada no requerimento inicial para ver os embargos proceder e a execução extinta.” – cfr. Ac. RG. de 15/03/2018, processo nº 554/15.7T8CHV-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, tal como os demais citados sem indicação em contrário.
Vide também neste mesmo sentido os acórdãos desta Relação de 14/02/2019, processo nº 1193/14.5TBPVZ-A.G1; de 26/09/2019, processo nº 5426/17.8T8GMR-A.G1; de 25/06/2020, processo nº 613/19.7T8VNF.G1; de 18/11/2021, processo nº 2310/20.1T8VCT-F.G1.
Constitui jurisprudência largamente maioritária que o cheque que tenha sido endossado e que não reúna os requisitos previstos na lei ou se encontre prescrito não constitui título executivo, já que apenas poderá valer como quirógrafo da obrigação no âmbito das relações imediatas (entre o credor e o devedor originário) e não no âmbito das relações mediatas (entre um terceiro, a quem o cheque foi endossado, e o devedor originário). De igual modo, não constitui título executivo o cheque que, não reunindo os requisitos legais ou estando prescrito, omita o nome do respetivo beneficiário, ou seja, o nome da pessoa a quem deva ser paga a quantia nele inscrita, já que o cheque só pode valer como título executivo, enquanto quirógrafo da obrigação, se dele constar o reconhecimento ou a confissão de dívida a favor do exequente.
Sem embargo de, no caso que nos ocupa, não ser o exequente o sujeito das alegadas relações imediatas (a detenção dos cheques resulta de uma cessão de créditos), o que bastaria para afastar a possibilidade de execução enquanto quirógrafo, sempre a relação subjacente, aqui se concordando com a 1ª instância, não se mostrava suficientemente alegada.
Com efeito, se estava em causa um mútuo, importaria ter alegado em que data foi contraído, onde, de que forma, quem nele interveio, sob que condições, se houve titulação por algum documento e qual. Não compete ao tribunal nem aos executados procurar em documentos, ainda que constantes em anexos, os factos consubstanciadores da alegada relação subjacente.
Também por aqui a execução estaria votada ao insucesso, bem andando o tribunal recorrido ao julgar extinta a execução. 
Improcede, assim, o recurso interposto pelo recorrente, nada mais havendo a apreciar (artº 608º, nº2, ex vi artº 663º, nº 2, do CPC), deliberando-se confirmar a sentença recorrida.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente – artº 527º, nº1, e 2, do CPC.
Notifique.
Guimarães, 1 de fevereiro de 2024.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1º Adjunto: Pedro Maurício.
2º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte.