Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3358/22.7T8BCL.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
RETIFICAÇÃO DE ERRO (FORMAL) DA SENTENÇA
REFORMA DA SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Há que distinguir o erro que pode ser retificado, nos termos do artigo 614.º do CPC e aquele que só pode ser reformado nos termos do artigo 616.º do mesmo diploma legal ou por via recursória, se a ela houver legitimamente lugar.
II- Os lapsos que cabem no âmbito da primeira disposição legal são de cariz meramente formal, que resultam, manifestamente, do texto do acórdão, sentença ou despacho, quer ele seja lido em si e por si, ou em conjugação com outros textos para onde remete;
III- As faltas e falhas que se podem reconduzir ao artigo 616.º do CPC constituem, grosso modo, «erros óbvios de julgamento», de carácter involuntário, não intencional e que possuem já uma natureza material ou substantiva e colocam em crise o mérito daquelas decisões judiciais.
Decisão Texto Integral:
Recurso próprio e admitido na forma legal.
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Por considerarmos que a questão colocada nos autos pela recorrente é simples,  proferimos de imediato Decisão Sumária, nos termos do art.º 656º do CPC.
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I- Relatório:

“EMP01..., LDA.”, com sede na Rua ..., ..., ..., ... ..., intentou a presente ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, contra “EMP02..., LDA.”, com domicílio/sede na Av. ..., ... ..., pedindo a condenação desta no pagamento à Autora da quantia de € 4.900,63, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, à respetiva taxa legal anual, até efetivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que prestou e vendeu à Ré, a pedido e sob encomenda desta, os serviços e bens constantes e descritos nas notas de encomenda anexas à petição inicial, cujos valores, não pagos, peticiona.
Mais alega que, apesar das interpelações, a Ré não procedeu ao pagamento da quantia em dívida.
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A Ré deduziu oposição/contestação, alegando mora do credor (Autora) e concluindo pela perda definitiva de interesse no negócio de compra e venda.
Pugna a final pela improcedência da ação, com absolvição do pedido.
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Tramitados regularmente os autos foi então proferida a seguinte decisão:
“…Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, decide-se julgar a presente Ação Procedente, por provada, e, em consequência:
A) Condenar a Ré “EMP02..., LDA.” a pagar à Autora “EMP01...
MALHAS, LDA.” a quantia de 4.900,63 € (quatro mil e novecentos euros, e sessenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos, à taxa legal anual comercial vigente, desde a data de interpelação para pagamento - 14/09/2022 (cfr. Doc. 3 junto com a Petição Inicial) - até à presente data, e de juros de mora vincendos, às taxas legais anuais comerciais vigente e que sucessivamente venham a vigorar, desde a presente data até efetivo e integral pagamento”
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Notificada da sentença, veio a ré apresentar aos autos o seguinte requerimento:

“1. Considerando que da douta sentença consta -a pag. 20 da mesma- que “Saliente-se ainda que a Ré não declarou a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre Autora e Ré, nem invocou a exceção de não cumprimento do contrato, pelo que a Ré continua vinculada à obrigação de pagamento do preço da mercadoria em causa, mediante a inerente e prévia e/ou simultânea entrega da mercadoria por parte da Autora.” (sublinhado nosso);
2. Considerando que na parte decisória e de conclusão da douta Sentença [Parte V – Decisão], nada se diz a esse respeito (da necessidade de entrega previa da mercadoria);
3. Considerando que da matéria provada resulta que a “Autora não procedeu à entrega da mercadoria”;
4. Considerando e sopesando a irredutibilidade da Autora para a obrigatoriedade da entrega da mercadoria (que também resulta da douta sentença), contra a já manifestada disponibilidade da Ré para pagamento do valor em que foi condenada, assim como dos respectivos juros;
5. Considerando a possível Inamovibilidade da Autora face ao dispositivo e que o teor deste seja, por aquela, considerado suficiente para executar a sentença do pagamento de 4.900,63Euros, sem mais,
i.e., pretender executar a decisão, sem dar cumprimento àquela outra parte da necessidade da prévia entrega da mercadoria;
6. Considerando que se assim for e se assim se fizer, tal conduta será executada ao arrepio do que dita a própria sentença e do mais elementar sentido de justiça, indo inclusive contra o sentido pretendido e ínsito na própria sentença;
7. Considerando que se a Autora prosseguir neste eventual caminho -que ainda que não seja justo e curial e até deontologicamente questionável- é certamente exequível face ao que apenas se pode ler no dispositivo da douta sentença,
Roga-se a V. exa que, ao abrigo do n. 1 do artigo 614º do CPC e demais disposições legais que se tenham por aplicáveis à presente questão, a aclaração e especificação da douta sentença e que, já na parte dispositiva e final da sentença (V- Decisão), Fique igualmente a constar que o valor em que a Ré foi condenada seja exigível apenas e tão só após a prévia ou simultânea entrega da mercadoria por parte da Autora à Ré, mercadoria essa que inclusive já se encontra faturada, mas que nunca chegou a ser entregue,
Como, de resto, será da mais elementar justiça e em absoluto respeito ao Direito e à boa fé contratual e igualdade das partes…”.
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Sobre o requerimento apresentado recaiu então o seguinte despacho (do qual se recorre):
“Devidamente compulsado o teor da Sentença proferida sob a Refª ...28, constata-se que no 2º parágrafo da página 20 da aludida Sentença consta o seguinte:
“Saliente-se ainda que a Ré não declarou a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre Autora e Ré, nem invocou a exceção de não cumprimento do contrato, pelo que a Ré continua vinculada à obrigação de pagamento do preço da mercadoria em causa, mediante a inerente e prévia e/ou simultânea entrega da mercadoria por parte da Autora.”
Porém, o teor da linha antecedente não consta do Dispositivo/Decisão da Sentença.
Ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 614º do Código de Processo Civil, determina-se a aclaração e a especificação da Sentença, de modo a que na parte dispositiva e final da sentença (V- DECISÃO) passe a constar que o valor em que a Ré foi condenada seja exigível apenas e tão só após a prévia e/ou simultânea entrega da mercadoria por parte da Autora à Ré, mercadoria essa que já se encontra faturada, mas que nunca chegou a ser entregue, tudo isto em conformidade com os expressos teor e fundamentos de facto e de direito da Sentença em apreço e em nome do princípio da boa fé contratual e da igualdade entre as partes.
Face ao ora exposto, reformula-se parcialmente o teor da página 21 da Sentença, nos seguintes termos:
“V =DECISÃO=
Nos termos e pelos fundamentos supraexpostos, decide-se julgar a presente Ação Procedente, por provada, e, em consequência:
A) Condenar a Ré “EMP02..., LDA.” a pagar à Autora “EMP01..., LDA.” a quantia de 4.900,63 € (quatro mil e novecentos euros, e sessenta e três cêntimos), MEDIANTE A INERENTE E PRÉVIA E/OU SIMULTÂNEA ENTREGA DA MERCADORIA POR PARTE DA AUTORA À RÉ; tal quantia será acrescida de juros de mora vencidos, à taxa legal anual comercial vigente, desde a data de interpelação para pagamento - 14/09/2022 (cfr. Doc. 3 junto com a Petição Inicial) - até à presente data, e de juros de mora vincendos, às taxas legais anuais comerciais vigentes e que sucessivamente venham a vigorar, desde a presente data até efetivo e integral pagamento;
B) Condenar em Custas a Ré “EMP02..., LDA.” e fixar a taxa de justiça nos termos tabelares do Regulamento das Custas Processuais (artigos 527º/1,1ªparte,2, 529º/2 e 607º/6 todos do Código de Processo Civil – CPC).
Notifique e Registe (artigo 153º/4 do CPC)”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a A interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“I. O presente recurso tem por objeto o despacho de aclaração proferido em 16/06/2025, notificado à Recorrente sob a ref. Citius n.º 197190450, que visou “aclarar” a sentença proferida a 22/04/2025, mas que, na realidade, alterou o respetivo conteúdo decisório.
II. O referido despacho condiciona a exigibilidade do montante da condenação da Ré à entrega prévia e/ou simultânea da mercadoria pela Autora, o que não constava do dispositivo original da sentença nem da sua fundamentação.
III. O Tribunal a quo, ao introduzir uma nova condição jurídica não pronunciada inicialmente, atuou fora dos limites do poder de aclaração consagrados no artigo 614.º, n.º 1 do CPC, violando os princípios da estabilidade da decisão e da legalidade processual.
IV. A modificação do conteúdo do segmento decisório da sentença consubstancia nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, uma vez que o juiz se pronunciou sobre questão nova que não foi suscitada pelas partes, nem se inseria na causa de pedir ou na relação jurídica fixada.
V. Ademais, tal modificação constitui violação do princípio do caso julgado material, previsto no artigo 619.º, n.º 1 do CPC, ao alterar efeitos jurídicos fixados por decisão que já havia sido proferida e notificada às partes.
VI. A jurisprudência dos tribunais superiores é pacífica ao afirmar que a aclaração não pode alterar a substância da decisão judicial sob pena de nulidade — cfr. Acs. do TRP de 15.11.2021 e TRL de 11.10.2022, entre outros.
VII. Nestes termos, deve o despacho de aclaração ora recorrido ser revogado, mantendo-se íntegra a versão original da sentença de 22/04/2025, conforme proferida, sem qualquer condicionamento adicional à exigibilidade da quantia fixada.
Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência:
a) Ser revogado o despacho de aclaração proferido em 16/06/2025, notificado sob a ref. Citius n.º 197190450, por nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, por consubstanciar excesso de pronúncia;
b) Ser determinada a manutenção integral do dispositivo original da sentença proferida em 22/04/2025, nos precisos termos em que foi redigida e notificada às partes, sem qualquer condicionamento adicional à exigibilidade da obrigação fixada;
c) Ser reconhecida a violação do caso julgado material (art. 619.º do CPC) e da proibição de inovação decisória no âmbito de despacho de aclaração (art. 614.º do CPC), com as legais consequências…”.
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A recorrida veio apresentar Resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
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II- Objeto do recurso:         

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), a questão a decidir no presente recurso de Apelação é apenas a de saber se era possível ao julgador alterar a decisão proferida.
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III- Fundamentação de Facto:

Os factos a considerar para a decisão da questão colocada são os mencionados no Relatório que antecede, assim como os constantes dos despachos proferidos (acima transcritos).
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IV- Fundamentação Jurídica:

Da Admissibilidade da alteração da decisão proferida.
Insurge-se a recorrente contra a decisão proferida, cuja parte decisória foi alterada após ter sido proferido o despacho de 16/06/2025, que visou “aclarar” a sentença anteriormente proferida nos autos, datada de 22/04/2025.
Diz que tal despacho veio modificar o conteúdo do segmento decisório da sentença, impondo que o valor da condenação da Ré (€ 4.900,63, acrescido de juros de mora) apenas se tornaria exigível mediante a prévia e/ou simultânea entrega da mercadoria pela Autora à Ré – facto que não constava do dispositivo originário.
Entende a recorrente que tal despacho extravasa os limites do poder de aclaração do juiz, consagrados no artigo 614.º, n.º 1 do CPC, ao introduzir novos efeitos jurídicos não previstos nem admissíveis à luz do caso julgado formado pela sentença.
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Vejamos:
Considerou-se no despacho em análise, que “no 2º parágrafo da página 20 da aludida Sentença consta (…) que a Ré não declarou a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre Autora e Ré, nem invocou a exceção de não cumprimento do contrato, pelo que a Ré continua vinculada à obrigação de pagamento do preço da mercadoria em causa, mediante a inerente e prévia e/ou simultânea entrega da mercadoria por parte da Autora.” Porém, o teor da linha antecedente não consta do Dispositivo/Decisão da Sentença.
Ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 614º do Código de Processo Civil, determina-se a aclaração e a especificação da Sentença, de modo a que na parte dispositiva e final da sentença (V- DECISÃO) passe a constar que o valor em que a Ré foi condenada seja exigível apenas e tão só após a prévia e/ou simultânea entrega da mercadoria por parte da Autora à Ré (...)
Face ao ora exposto, reformula-se parcialmente o teor da página 21 da Sentença, nos seguintes termos:
“V =DECISÃO=
Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, decide-se julgar a presente Ação Procedente, por provada, e, em consequência:
A) Condenar a Ré (…) a pagar à Autora (…) a quantia de 4.900,63 € (…), MEDIANTE A INERENTE E PRÉVIA E/OU SIMULTÂNEA ENTREGA DA MERCADORIA POR PARTE DA AUTORA À RÉ…”
Recorde-se que a Decisão inicialmente proferida era a seguinte:
“…Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, decide-se julgar a presente Ação Procedente, por provada, e, em consequência:
A) Condenar a Ré (…) a pagar à Autora (…) a quantia de 4.900,63 € (…), acrescida de juros de mora…”
Perante o exposto, a questão a resolver consiste em saber se estamos perante alguma das situações previstas no nº 1 do art.º 614º do CPC, que levou o sr. Juiz a determinar, por simples despacho, a aclaração e a especificação da Sentença, ou se estamos perante um eventual erro de julgamento - que pode caber no incidente de reforma da sentença, ou que apenas poderia ser suscitado em sede de recurso.
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Estipula o art.º 613.° do CPC (sob a epígrafe "Extinção do poder jurisdicional e suas limitações") que “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, acrescentando o nº 2 que “É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes”.
Refere-se aos erros materiais o art.º 614.º do CPC, estipulando-se no nº 1, que “Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.°, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz”.
Quanto à reforma da sentença, estatui o art.º 616.º do CPC (aqui em particular o seu nº 2), que “Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz: a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos…”
Como é evidente, o lapso manifesto a que alude o art.º 614.º, n.º l do CPC distingue-se do lapso manifesto a que alude o art.º 616.°, n.º 2, b) do CPC, em virtude do primeiro resultar do próprio contexto da sentença ou de peças do processo para a qual remete; e o segundo resultar de elementos que são exteriores à sentença (neste sentido, vide Código de Processo Civil Anotado, de Lebre de Freitas, 3.ª Edição, pág. 742, em anotação ao referido art.º 616.° do CPC).
Ditam assim as regras processuais expostas, que proferida uma decisão, o poder jurisdicional do julgador se esgota, o que significa que o tribunal não pode, motu próprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada.
Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, LEX, 1997, pág.572), “desta extinção decorrem dois efeitos: um efeito negativo, que é a insusceptibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar; e um efeito positivo, que é a vinculação desse tribunal à decisão por ele proferida”.
O princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.
Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão” (Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 174, com bold apócrifo).
Conclui-se assim do exposto que da extinção do poder jurisdicional decorre esta consequência irrecusável: o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada (cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 17.4.2012, disponível em www.dgsi.pt).
As exceções à regra geral exposta, são apenas as mencionadas nos transcritos artºs 614º e 616º do CPC, relativos à retificação e à reforma da sentença - nos casos ali previstos.
Isto posto:
Conforme descrito no sumário do Acórdão do STJ de 11.05.2022 (disponível em www.dgsi.pt), «Não há que confundir o erro material da decisão com o erro de julgamento: naquele, o juiz escreveu coisa diversa da que queria escrever, não coincidindo o teor da sentença ou despacho, do que se escreveu, com o que o juiz tinha em mente exarar (quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real); neste (erro de julgamento), o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra factos apurados. (...) Erro material ou lapso é a inexatidão ou omissão verificada em circunstâncias tais que é patente, através dos outros elementos da sentença ou até do processo, a discrepância com os dados verdadeiros e se pode presumir por isso uma divergência entre a vontade real do juiz e o que ficou escrito.»
Os erros de escrita ou de cálculo, devidos a lapsus calami ou a outra causa, identificam-se com os referidos no art.º 249.° do CC, a respeito do negócio jurídico. Tanto estes erros como as inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto pressupõem que a vontade declarada na sentença não corresponde à vontade real do juiz. Daí não valer aqui o princípio da intangibilidade da decisão judicial que tem como fundamento a vontade do juiz.
Sempre que a vontade declarada seja desconforme à vontade real, pode o juiz proceder ao seu ajustamento, mediante retificação.
Como remédio para a correção dos erros materiais prevê a lei a retificação, a qual pode resultar do requerimento de qualquer das partes ou da iniciativa do juiz (art.º 614º, n.º 1, in fine).
Uma outra exceção à regra do esgotamento do poder jurisdicional do tribunal, é a Reforma do mérito da decisão judicial, prevista no art.º 616º do CPC (aqui em particular o seu nº 2), no qual se consente, que “Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz: a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos…”
Esta reforma pode ocorrer tanto quando, por manifesto lapso do juiz, o erro se reporta a uma questão de direito, como quando se reporta a uma questão de facto: preenche-se a primeira hipótese, quando tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; preenche-se a segunda, quando do processo constem documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.
Refira-se, contudo, que este pedido de reforma só pode ter lugar quando não caiba recurso da decisão. Havendo lugar a recurso, o pedido de reforma integrará o objeto do recurso.
Como se descreveu claramente no Ac. do STJ de 12.4.2024 (disponível em www.dgsi.pt), “…fazendo a destrinça entre o erro que pode ser retificado, nos termos do artigo 614.º do CPC e aquele que só pode ser reformado nos termos do artigo 616.º do mesmo diploma legal ou por via recursória, se a ela houver legitimamente lugar, dir-se-á que os lapsos que cabem dentro do âmbito da primeira disposição legal indicada são aqueles de cariz meramente formal, que resultam, manifestamente, do texto do acórdão, sentença ou despacho, quer ele seja lido em si e por si ou em conjugação com outros textos para onde remete, ao passo que as faltas e falhas que se podem reconduzir ao artigo 616.º do CPC constituem, grosso modo, «erros óbvios de julgamento», de carácter involuntário, não intencional e que possuem já uma natureza material ou substantiva e colocam em crise o mérito [aqui visto em termos da correta aplicação das normas jurídicas aos factos relevantes] daquelas decisões judiciais, implicando a reforma ou julgamento por via de recurso destas últimas a alteração do seu conteúdo, sentido e alcance, o que já não pode acontecer com as modificações consentidas e acolhidas ao abrigo do artigo 614.º do CPC, que não são suscetíveis de implicar aquele tipo de alteração substancial do aresto, sentença ou despacho judicial retificado ou corrigido…”.
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Analisando agora a situação dos autos, à luz dos enunciados anteriores, constatamos que o despacho proferido não procedeu a uma retificação de um erro material que o sr. Juiz tenha cometido, mas sim a uma verdadeira reforma da decisão proferida.
Consta efetivamente da fundamentação da sentença proferida, relativamente à obrigação da ré de pagar o preço da mercadoria fornecida o seguinte:
“…Tendo a Autora logrado provar que pretendeu fornecer à Ré, por solicitação desta, os bens descritos nas notas de encomenda em apreço (tal fornecimento só não se verificou por motivo imputável à Ré – cfr. considerações infra sobre a Mora do Credor Ré – credor da entrega da mercadoria), conclui-se que a Ré é responsável pelo pagamento dos montantes titulados pelas mesmas notas de encomenda.
Tendo a Autora demonstrado que cumpriu pontualmente o contrato, tendo demonstrado que pretendeu fornecer à Ré, por solicitação desta, os bens descritos nas notas de encomenda em apreço e cujo pagamento reclama nestes autos (tal fornecimento só não se verificou por motivo imputável à Ré – cfr. considerações infra sobre a Mora do Credor Ré – credor da entrega da mercadoria), tendo a Ré recusado efetuar o pagamento do montante peticionado na presente ação e não tendo abalado a versão dos factos da Autora, impõe-se a condenação da Ré no pagamento à Autora do montante de 4.900,63 € (…), acrescido de juros de mora vencidos, à taxa legal anual comercial vigente, desde a data de interpelação para pagamento - 14/09/2022 (…) - até à presente data, e de juros de mora vincendos, às taxas legais anuais comerciais vigente e que sucessivamente venham a vigorar, desde a presente data até efetivo e integral pagamento (…).
Ao não realizar o pagamento dos bens que a Autora quis entregar à Ré e esta recusou receber e pagar, sem motivo legalmente válido, após ter sido validamente interpelada para tal pagamento, a Ré constituiu-se em mora, recaindo sobre si o dever de pagar a quantia em dívida e de indemnizar a Autora no montante correspondente aos juros de mora legais a contar da data de constituição em mora - 14/09/2022 (…).
A propósito desta entrega da mercadoria, cumpre esclarecer e concretizar a seguinte conclusão, também, de direito.
Do teor da matéria de facto dada como provada, conclui-se que ficou comprovada a recusa da Ré (Credora da entrega da mercadoria), sem motivo justificado, de receber a mercadoria em causa, o que determina a aplicação do disposto nos artigos 813º ss. do Código Civil…”
Ou seja, resulta dos excertos da fundamentação da sentença, acima transcritos, que o sr. Juiz considerou que a mora da ré (em receber a mercadoria faturada) não a ilibava de pagar o seu preço, concluindo a final, em decorrência do raciocínio expendido, pela procedência da ação, com a condenação da ré no pagamento da mercadoria faturada.
A expressão que consta da fundamentação, e que esteve na origem do despacho proferido - que “…a Ré não declarou a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre Autora e Ré, nem invocou a exceção de não cumprimento do contrato, pelo que a Ré continua vinculada à obrigação de pagamento do preço da mercadoria em causa, mediante a inerente e prévia e/ou simultânea entrega da mercadoria por parte da Autora” -, apresenta-se algo contraditória com a parte da exposição anteriormente descrita, e pode retirar força ao raciocínio atrás desenvolvido, mas tal expressão não foi considerada na decisão final, que concluiu (bem ou mal) pela condenação da ré no pagamento da mercadoria faturada, sem mais.
E essa decisão – como se disse, bem ou mal -, consolidou-se com a sua prolação e notificação às partes. Não vemos nela qualquer erro material ou linguístico que careça de correção ou aclaração. O sr. Juiz disse o que queria, em sintonia, aliás, com o raciocínio desenvolvido na fundamentação da sentença até àquela expressão.
Se depois infletiu na decisão que tomou, assumindo um erro na decisão tomada, tal postura é já de reforma da sentença, pois que na reforma da decisão também se anota um erro, quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos.
Ponto é que esse erro ocorra por manifesto lapso do juiz, e que a reforma seja permitida, uma vez que o meio adequado de alterar a decisão proferida é a via do recurso, se o processo o admitir (art.º 616º nº2, alínea a) do CPC).
Ora, admitindo a decisão proferida recurso de Apelação, não era permitido ao sr. Juiz reformar a sentença nos termos em que o fez, mesmo que, como se disse, se tenha apercebido de um erro cometido, por lapso manifesto.
As regras processuais vigentes determinam que o poder jurisdicional do tribunal se esgota após a prolação das decisões, e impõem à parte afetada com a decisão o ónus de tomar posição sobre a decisão proferida, dela interpondo o competente recurso.
Caberia então à ré a interposição do recurso da decisão proferida, o que não fez.
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Procede, assim a Apelação da A, com a revogação da (nova) decisão proferida, que deve ser substituída pela anterior.
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V- Decisão:

Por todo o exposto, Julga-se procedente a Apelação, e revoga-se a sentença recorrida, devendo ser reposta a decisão inicialmente proferida (em 22.4.2025).
Custas da Apelação pela recorrida (art.º 527º nº1 e 2 do CPC).
Notifique.
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Guimarães, 22.10.2025.