Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ CRAVO | ||
Descritores: | INVENTÁRIO REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS DIREITO À PROVA PROVAS ILÍCITAS | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 04/30/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I - É no processo de inventário que, por regra, devem ser suscitadas, apreciadas e resolvidas todas as questões que importem à exacta definição do acervo patrimonial a partilhar, maxime as que são objecto de reclamação de relação de bens. II - Nos termos do art. 1093º/1, ex vi do art. 1105º/3, ambos do CPC, a apreciação e julgamento de qualquer questão suscitada em reclamação de relação de bens só pode e deve, excepcionalmente, ser relegada para os meios comuns caso a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes. III - O que não ocorre ab initio, sem qualquer apreciação, instrução e julgamento da reclamação da relação de bens. IV - Os meios de prova são os elementos de que o julgador se pode servir para formar a sua convicção acerca de um facto. V - A licitude da prova constitui um limite intrínseco do direito à prova, que se deduz da tutela constitucional de diversos direitos fundamentais – embora, em si mesmo, não diretamente do artigo 32.º, n.º 8, da CRP, preceito previsto em sede de garantias do processo criminal – e se concretiza naqueles pressupostos ou condições que, por natureza, devem ser observados por qualquer prova. VI - Assim, constituirá prova ilícita toda aquela que seja obtida ou produzida, mediante a violação de normas de direito material, que tutelam direitos fundamentais dos cidadãos, ou aquela cuja formação ou produção em si mesma consubstancie um ilícito. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães * 1 – RELATÓRIONos presentes autos de inventário[1] para separação de meações em consequência de divórcio instaurados em ../../2024, em que é requerente a interessada AA e requerido o interessado BB, foi este designado, por ser o mais velho (art. 1133º/2 do CPC), para o exercício da função de cabeça de casal. Citado, o Cabeça de Casal apresentou a relação de bens em 05-03-2024. Notificada da relação de bens, a requerente veio em 15-04-2024 apresentar reclamação contra a mesma[2]. Em 17-05-2024, o Cabeça de Casal, ao abrigo do disposto no art. 1105º /1 do CPC, respondeu à reclamação à relação de bens apresentada pela interessada AA[3]. As partes foram convocadas para uma tentativa de conciliação, que teve lugar no dia 19-11-2024, não tendo sido possível chegarem a acordo. Em 20-01-2025, a Mmª Juiz a quo conheceu da reclamação nos seguintes termos: Nos presentes autos de inventário para separação de meações, em que é cabeça de casal BB e requerente AA, reclamou a interessada, em 15.04.2024 (cfr. ref. citius 3615253) da relação de bens por aquele apresentada, em 05.03.2024 (cfr. ref. citius 3570769) nos seguintes termos: I. Acusou a falta de relacionação: 1) De dinheiro no valor de €48.964,77 que o cabeça de casal transferiu sem o consentimento da requerente para CC, através da conta bancária aberta na Banco 1... com o nº ...24. 2) Os saldos existentes nas contas bancárias do ex-casal, quer das contas conjuntas até ao dia ../../2023; 3) Os saldos existentes das contas referentes à firma “EMP01... Unipessoal, Lda.” II. Requereu a exclusão da Relação de Bens Da verba n.º 3 invocando que não retirou a quantia referida ou qualquer outra do cofre. III. Reclamou do valor atribuído verba à n.º 1 e 2 Notificado da reclamação apresentada respondeu o cabeça de casal conforme requerimento sob a referência citius 3649033, em síntese, manteve na integra a verba n.º 1 e 3, retificou o valor da verba n.º 2 para o valor de €12.679,10, relacionou as contas bancárias, adicionou novos bens à relação de bens apresentada (um estabelecimento comercial de fabrico e comercialização de fumeiro e leitão assado, instalado em armazém anexo à casa de habitação e o valor de €27.000,00), e requereu ainda que a Requerente juntasse extrato bancário atinente à conta bancária onde depositava os valores do estabelecimento que explora, com referência a 21/6/2023, tendo em vista a sua inclusão na Relação de Bens. * Através do requerimento com a referência citius 3649034 o cabeça de casal juntou nova relação de bens tendo por base a reclamação e a sua resposta à reclamação da relação de bens.* Em 20.05.2024 o cabeça de casal juntou aos autos uma pen com um ficheiro áudio para prova do alegado na primitiva relação de bens sob a verba n.º 3.* Em 01.06.2024 (ref. citius 3665056) a Requerente no exercício do seu contraditório, além de reiterar o já aduzido na anterior reclamação mantém a sua posição no que concerne aos bens a relacionar e à verba n.º 1, no demais requer a eliminação da verba n.º 2 (nova) e da verba n.º 4 (anterior verba n.º 3).Requereu ainda que fosse desentranhado dos autos os documentos n.º 6 e 7 apresentados na resposta à reclamação. * O Cabeça de Casal, em 17.06.2024, veio requerer o desentranhamento do requerimento junto sob a referência citius 3665056 da Requerente por entender que não é permitido à Requerente apresentar resposta à resposta da reclamação, nem tão pouco juntar nova prova.* A Requerente, em 10.09.2024, no exercício do contraditório quanto ao conteúdo do ficheiro áudio inserto na pen invocou ser prova proibida uma vez que foi obtida de forma ilícita.*** Cumpre decidir e em face dos vários requerimentos apresentados delimitar a marcha dos presentes autos.Questões preliminares: • Desentranhamento de documentos: No que concerne ao desentranhamento dos presentes autos dos documentos apresentados na resposta à reclamação da relação de bens sob os n.ºs 6 e 7 não se determina o seu desentranhamento, por ora, devendo os mesmos permanecer nos autos. • Desentranhamento do requerimento: Indefere-se o desentranhamento da resposta à apresentação da nova reclamação de bens, uma vez que, o referido requerimento é admissível à luz do princípio do contraditório, não constituindo o mesmo um incidente anómalo à tramitação que lhe foi imprimida com o aditamento de bens à primitiva relação. • Meio (i)lícito de prova: O direito à prova, enquanto parte do direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da CRP, não é absoluto, devendo ser interpretado e aplicado à luz de outros direitos, em especial os fundamentais, primando por um equilíbrio no ordenamento jurídico. Segundo WALTER, citado por ISABEL ALEXANDRE (in Provas Ilícitas em Processo Civil, 1998, p.75), devem ser observados certos requisitos (cumulativamente) para que as restrições sejam efetuadas: a) resguardar o interesse público; b) princípio da proporcionalidade (quando existem outros direitos que merecem uma tutela mais forte do ordenamento jurídico); c) preservar o núcleo intangível do direito à prova (garantir que as partes se utilizem de meios úteis e idôneos para demonstrarem a veracidade de suas alegações). Na visão modernista, persegue-se um processo justo, que não mais admite todas as armas a fim de obter, a qualquer custo, a verdade (real). Logo, é com a finalidade de tutelar a inviolabilidade dos direitos fundamentais e de proteger esse modelo processual justo que ocorrem as restrições probatórias, sendo estas consideradas como ponto primordial para alcançar o desejado equilíbrio (cfr. Maria Luiza do Valle Rocha, in A Prova Ilícita no Processo Civil Português, Dissertação de Mestrado, na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas/Menção em Direito Processual Civil, apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 20142). A limitação do direito à prova surge da observação dos princípios gerais do processo, em especial a lealdade, boa-fé, espontaneidade da prova e o respeito à pessoa humana (cfr. Devis Echandia, Teoria General de la Prueba Judicial, 1974, p.539, cit. pela supra referida autora) e pode ocorrer em dois campos distintos: de forma subjetiva (incide sobre a de prova, produção e valoração da prova) – cfr. João Batista Lopes, in A Prova no Direito Processual Civil, 2002, p. 169. As provas ilícitas estão previstas no mandamento constitucional inserto no artigo 32º, n.º 8, da CRP, nos termos do qual: “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”. Tal comando encontra-se inserido na parte que trata das garantias de processo criminal, não fazendo qualquer menção ao processo civil. A ausência de uma norma que vede a utilização das provas ilícitas no processo civil provoca discussões acerca da sua inadmissibilidade neste campo processual. Nessa senda para muitos, esta falta normativa pode ser resolvida por meio da analogia, tendo em vista que o motivo basilar da vedação no processo criminal é a proteção aos direitos fundamentais tidos como invioláveis mostra-se perfeitamente aplicável ao processo civil. Nesse mesmo sentido, se posicionou o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16.02.2012, no processo nº 435234/09.8YIPRT-A.G1 (disponível em www.dgsi.pt – base de dados a que nos reportaremos, salvo expressa menção em contrário), no qual bem se explana o seguinte: “O art. 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece que a todos é reconhecido o direito à reserva da intimidade da vida privada. Por intimidade da vida privada entende-se o núcleo vivencial individual que não é exposto publicamente ou socialmente, antes é reduzido (por opção pessoal ou por força das circunstâncias) à esfera circunscrita ou recatada de cada pessoa. Cai neste âmbito a relação dialógica (conversação) telefónica estabelecida particularmente entre duas pessoas. Nos termos do nº 8 do art. 32º da CRP, é nula - logo necessariamente ilícita e proibida - a prova obtida mediante abusiva intromissão na vida privada ou nas telecomunicações. Esta norma, conquanto formalmente prevista para o processo penal, deve ser tida como aplicável em todo e qualquer processo, e reporta-se tanto à prova obtida pelas entidades públicas como pelas entidades particulares (v. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, p. 348, Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, p. 239). De resto, da al. b) do nº 3 do art. 519º do CPC resulta claramente, embora de forma indirecta, a inadmissibilidade de prova que tal. Ainda, nos termos do nº 1 do art. 34º da CRP, é inviolável o sigilo dos meios de comunicação privada. Conforme o também estabelecido na CRP (v. art. 18º nº 1), tais preceitos são directamente aplicáveis (e exequíveis por si mesmos, sem necessitarem pois [e nas palavras de Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, p.313] da intervenção da lei ordinária), e vinculam entidades públicas (a começar pelos tribunais) e privadas. De outro lado, o art. 199º do CPenal tipifica como crime a gravação, sem consentimento, de palavras proferidas, mesmo que dirigidas ao agente, ou a utilização ou permissão de utilização de gravações mesmo que licitamente produzidas. E, dentro deste registo, Capelo de Sousa (ob. cit., p. 331) afirma: “No caso das comunicações orais, por telefone ou de viva voz, é proibido, na ausência de consentimento do emitente, gravar as palavras proferidas por outrem e não destinadas ao público, mesmo que sejam dirigidas a quem ilicitamente faz a gravação, sendo igualmente proibido utilizar ou deixar utilizar as mesmas gravações”. De observar que subjacente a esta proibição não está propriamente o conteúdo (o secretismo) da comunicação, mas sim a palavra falada em si, tratando-se de impedir que aquilo que se pretendeu que fosse apenas uma expressão fugaz e transitória da vida se converta num produto registado e suscetível de ser utilizado a todo o tempo (v. Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pp. 245 e sgts.). Enfim, tudo exatamente como se afirma no acórdão da RP de 15 de Abril de 2010 (acessível em www.dgsi.pt): “Constitui abusiva intromissão na vida privada a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização judicial concedida pela forma prevista na lei processual, sendo nulos quanto à sua obtenção os respectivos registos fonográficos e, como tal, inadmissíveis como meio de prova, mesmo no processo civil” - sublinhados nossos. Do mesmo modo, ISABEL ALEXANDRE (in Provas Ilícitas em Processo Civil, 1998, p. 242) ensina que a ausência de dispositivo no âmbito civil não pode ser considerada como justificativa para afastar a aplicação do artigo 32.º, n.º 8 da CRP, posto que os fatores de ordem histórica e preponderância da prática de abusos no processo criminal foram circunstâncias determinantes que contribuíram para que o legislador constituinte direcionasse a proibição das provas ilícitas à área penal. Outros, como CASANOVA ABRANTES, citado pela dita autora (J.F. SALAZAR CASANOVA ABRANTES, Provas Ilícitas em Processo Civil: Sobre a Admissibilidade e Valoração de Meios de Prova Obtidos pelos Particulares, 2004, p.116.), discordam da interpretação extensiva do dispositivo em questão. A par daquela e do Acórdão supracitado, entendemos que a ausência de dispositivo no âmbito do processo civil não pode servir de fundamento para a admissibilidade de todo e qualquer meio de prova, mesmo no processo civil. No entanto, a decisão sobre a admissibilidade ou não das provas ilícitas no processo civil deve ser averiguada à luz do caso concreto, respeitando critérios de proporcionalidade quanto aos interesses em conflito. O princípio da proporcionalidade em sentido amplo, também conhecido como proibição de excesso, consagrado em diversos dispositivos constitucionais — especialmente no artigo 18.º, n.º 2 da CRP (que estabelece que as restrições de direitos, liberdades e garantias se devem limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição) serve de critério operativo em caso de colisão de direitos constitucionalmente protegidos, mediante a ponderação de interesses, através do qual os bens envolvidos serão analisados de acordo com as circunstâncias apresentadas pelo caso concreto, a fim de encontrar a decisão que mais se coaduna com a ordem constitucional. Com efeito, o Acórdão proferido no processo nº 435234/09.8YIPRT-A.G1, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, ao decidir pela inadmissibilidade de uma gravação telefónica não o faz apenas com base no artigo 32.º, n.º 8, da CRP, mas também com fundamento na ausência da necessidade de ponderação, na medida em que compulsando os interesses em causa, não se comprova tratar-se de prova insubstituível e imperiosa, além de o caso não apresentar válidas justificações que autorizem a admissão de tal prova. No inverso, uma vez demonstrado que os interesses tutelados pela prova ilícita são mais relevantes do que os confrontados no caso concreto, passar-se-á a avaliar se a medida adotada (prova ilícita) é proporcional ao fim pretendido (decisão justa). Na aplicação do princípio da proporcionalidade, consideram-se os seguintes subprincípios: a. Princípio da adequação, que implica que a medida adotada deve ser apropriada para a prossecução de um determinado fim, ou seja, o caminho que leva à satisfação de um direito deve ser compatível com o fim que ele persegue. Nos dizeres de CANOTILHO (Direito Constitucional, 2003, p.383.), o princípio da adequação de meios, ou da conformidade, destina-se ao controle da relação meio-fim e, por tal razão, presume a apuração e a comprovação de que o ato escolhido pelo poder público é adequado para a prossecução dos fins desejados, bem como condiz com as justificativas utilizadas para sua adoção. b. princípio da necessidade (da exigibilidade ou da menor ingerência possível), nos termos do qual se deve entender que não existia outro meio igualmente eficaz e menos gravoso para o indivíduo do que o que fora adotado para a prossecução do fim desejado. A necessidade da medida não pode exceder os limites de conservação do fim a que se destina. c. princípio da proporcionalidade em sentido restrito, princípio da “justa medida”, que representa um controle sobre a avaliação subjetiva, indicando a justeza da solução encontrada. Assim, após a apreciação da adequação e da necessidade, deverá ser indagado se o resultado obtido é proporcional ao fim pretendido. Haverá, então, um juízo de ponderação entre o meio e fim, no qual se pretende “pesar as desvantagens do meio em relação às vantagens do fim”. São dados como exemplos típicos de Provas Ilícitas por ISABEL ALEXANDRE (ob. supra cit.), as gravações, filmes e fotografias e os diários ou escritos íntimos. Para ISABEL ALEXANDRE (Provas Ilícitas no Processo Civil, 1998, p.280), o direito português não permite a utilização da ponderação de interesses para examinar a admissão de um diário ou quaisquer outros escritos íntimos, pois tal uso consubstanciaria violação ao direito material (direito à reserva da intimidade da vida privada), configurando um ilícito probatório e, por consequência, inadmissível processualmente. Volvendo a nossa objetiva para a prova dos autos, o cabeça de casal juntou aos autos a gravação de uma conversa que manteve com a requerente dentro de casa, mais concretamente, no quarto, sendo que, em momento algum da gravação é referido pelo cabeça de casal que está a gravar a conversa e que a requerente consente nessa gravação, pelo contrário, da gravação sobressai com meridiana clareza que efetuou a mesma à socapa, pois, conversaram sobre terceiras pessoas, sobre os seus casos extraconjugais e sobre outros assuntos que se reportam a matéria de foro da sua reserva da vida privada, protegida por vários comandos legais, como sejam os artigos 26.º, n.º 1, da CRP, artigo 80.º, do CCiv, o artigo 199.º, do CP, etc…, e que nos termos do artigo 32.º, n.º 8 da CRP configuram por princípio prova proibida. Com tal prova (proibida) o cabeça de casal, segundo se alcança, pretendeu demonstrar a existência do valor de €150.000,00, acontece que, aplicando os considerandos acima expostos, de longe se vê (em nossa opinião) que o fim que pretensamente visa alcançar excede claramente o meio utilizado, afigurando-se, por isso, desproporcional. Acresce ainda, que tal prova não seria a única prova que o cabeça de casal poderia ter carreado para os autos para demonstração da existência da quantia referida, uma vez que, alega que grande parte da referida quantia adveio da sociedade comercial “EMP01...”. Somos assim a concluir que o cabeça de casal podia ter feito uso de meios menos gravosos para a intimidade e imagem da requerente (e de outros) para fazer a prova do invocado por si. Assim, pelo exposto, o Tribunal não admite a prova junta aos autos por constituir meio de prova obtido de forma ilícita, determinando-se o seu desentranhamento e a devolução, após trânsito, da pen ao cabeça de casal. * • Da remessa para os meios comuns:Quanto à verba n.º 3 da primitiva relação de bens (verba n.º 4 da relação de bens atualizada), a verba n.º 2 da relação de bens atualizada e a falta de relacionamento do valor de €48.964,77 remetem-se as partes para os meios comuns considerando a inconveniência da decisão incidental das questões suscitadas, uma vez que, resulta uma manifesta redução das garantias das partes, excluindo-se assim os mesmos dos bens a relacionar. * • Da instância incidental ainda em discussão:Aqui chegados somente se discutirá: a) a verba n.º 1 da primitiva relação de bens; b) a verba n.º 2 da primitiva relação de bens; c) os saldos existentes nas contas bancárias do ex-casal, quer das contas conjuntas até ao dia ../../2023; d) os saldos existentes das contas referentes à firma “EMP01... Unipessoal, Lda.”. Em face do supra decidido deverão as partes juntar aos autos, no prazo de 10 dias, documentos idóneos a demonstrar o valor que existia àquela data nas contas bancárias (da requerente, cabeça de casal e nos estabelecimentos que detinham à data em comum) e adequar os seus requerimentos probatórios à discussão do incidente como delimitado. Notifique. * Inconformado com essa decisão, apresentou o interessado e Cabeça de Casal BB recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:1ª Pronunciou-se a Mª Juiz “a quo” no sentido da inadmissibilidade da gravação junta aos autos por constituir meio de prova obtido por forma ilícita. 2ª Do mesmo passo, decidiu remeter os interessados para os meios comuns relativamente às questões suscitadas quanto à verba nº.3 da primitiva relação de bens e verba nº.2 da relação de bens atualizada por considerar que a decisão incidental de tais questões implicaria “uma manifesta redução da garantia das partes...”. Ora, 3ª Porque no modelo ora instituído é no processo de inventário que deverão ser suscitadas, apreciadas e decididas todas as questões que importem à exata definição do acervo patrimonial a partir, só excecionalmente deverá qualquer questão ser relegada para os meios comuns, caso a complexidade da matéria do facto subjacente à questão controvertida tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar a redução das garantias das partes – arts. 1093º nº.1 e 1105º nº.5 do C.P.C.. 4ª Do despacho recorrido, apenas resulta, sem qualquer base de sustentação, que da decisão incidental de tais questões resultaria uma manifesta redução das garantias das partes, quando é certo que, sob pena de nulidade (arts. 615º nº.1 al. b) do C.P.C., aplicável por força do disposto no art. 613º nº.3 do mencionado diploma legal) se impunha, de forma inequívoca, a demonstração ou concretização das circunstâncias factuais e legais justificativas daquela decisão. 5ª Nulidade essa que aqui se invoca para todos os efeitos legais (arts. 613º nº.3 e 615º nº.1 al. b) do C.P.C.). 6ª Ainda que a gravação, constante da PEN junta aos autos, tivesse sido obtida sem o consentimento da visada – o que não corresponde à verdade conforme se deixou vertido na “Nota Prévia”, dado que à mesma deu a visada o seu consentimento tácito – sempre deverá a mesma ser admitida por constituir não só o único meio de prova de que a visada se apropriou e, mantém na sua posse, contra a vontade do seu legitimo dono, que o é o recorrente, quantia em dinheiro que apenas a este pertence, como se apropriou, com o objetivo de impedir que o recorrente participe por metade no dinheiro comum que mantinham depositada no Cofre, 7ª A admissão de tal meio de prova, ainda que tivesse sido obtida sem o consentimento da recorrida, sempre se revelaria proporcional ao fim pretendido, que o é a obtenção de uma decisão justa, face ao estatuído no art. 1730º nº.1 do C. Civil (norma de carácter imperativo), bem como ao disposto nos arts. 204º e 205º nº.4 al. b) do C. Penal, porque verificados “in casu” os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido restrito (principio da justa necessidade). 8ª Razão pela qual, ao assim não decidir, violou o douto despacho recorrido, para além de outros, o disposto nos arts. 613º nº.3, 615º nº.1 al. b), 1093º nº.1, 1105º nº.5 todos do C.P.C., arts. 204º e 205º nº.4 al. b) do C.P.; arts. 1730º e 2096º do C. Civil. 9ª Devendo, nessa decorrência, ser revogado e substituído por outro em que se decida admitir como meio de prova a gravação constante da PEN junta aos autos, bem como incluir na discussão da instância incidental as questões suscitadas quanto à verba nº.3 da primitiva relação de bens e, bem assim, quanto às questões suscitadas quanto à verba nº.2 da relação de bens atualizada. Assim decidindo, far-se-á, uma vez mais, a costumada e devida JUSTIÇA * Notificada das alegações de recurso apresentadas pelo interessado e Cabeça de Casal BB, veio a interessada e requerente AA apresentar as suas contra-alegações, que finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:1ª Salvo o devido respeito, por opinião contrária, entendemos que o presente recurso não tem qualquer fundamento, porquanto, o d. Despacho recorrido é irrepreensível, não violando o mesmo qualquer princípio ou preceito legal, nomeadamente os invocados pelo recorrente, pelo que, não nos merece aquele qualquer reparo. 2ª Recorre, pois, o recorrente não porque esteja convicto de que o d. Despacho proferido padeça de qualquer ilegalidade, mas, porque é (mais um) daqueles agentes processuais que vão recorrer até onde, processualmente, lhe for admitido, com o único objectivo de retardar o desfecho deste Processo de Inventário. 3ª É pacífico que o objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso. 4ª A primeira conclusão deste recurso é muito clara, sendo essa a questão central do mesmo, aí dizendo o recorrente que, o Tribunal a quo se pronunciou “no sentido da inadmissibilidade da gravação junta aos autos por constituir meio de prova obtido por forma ilícita”, o que, efectivamente, é verdade. 5ª Ora, o próprio teor das alegações deste recurso, nas quais o recorrente acaba por confessar, ainda que de forma indirecta, a ilicitude da sua acção, levam elas próprias, sem mais, à improcedência deste recurso, sem descurar que os nossos Tribunais Superiores, incluindo este Venerando Tribunal ad quem, entendem que, no âmbito do processo civil, a gravação à “socapa” se traduz num meio de prova ilegal, tudo como melhor consta, por exemplo, dos sumários dos d. Acórdãos supra transcritos, cujo teor, por questão de economia processual, se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais. 6ª Com o respeito devido, a improcedência deste recurso encontra também fundamento no teor do d. Despacho recorrido, teor que, com a devida vénia, a recorrida aqui, para todos os efeitos legais, toma e faz seu, mormente o que ali se diz sob a epígrafe “Meio (i)lícito de prova” e que acima se transcreveu, cujo teor, por questão de economia processual, se dá agora aqui por reproduzido para todos os efeitos legais. 7ª Conclui-se pois que, o d. Despacho recorrido é irrepreensível, não violando o mesmo qualquer princípio ou preceito legal, nomeadamente os invocados pelo recorrente, logo, não nos merece aquele qualquer reparo. Assim, sem necessidade de outros considerandos, diremos que bem andou o Tribunal a quo quando decidiu nos termos exarados no d. Despacho posto em crise. Pelo que, nenhuma censura ou reparo merece o douto Despacho impugnado que, no entender da recorrida, deve ser mantida na íntegra, como é de JUSTIÇA ! * A Exmª Juiz a quo proferiu despacho a admitir o interposto recurso, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo - artigos 644º, nº 2 alínea d), 645º, nº 2 e 647º, nº 1 do Código de Processo Civil. Pronunciou-se sobre a imputada nulidade[4].* Facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.* 2 – QUESTÕES A DECIDIRComo resulta do disposto no art. 608º/2, ex vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso. Consideradas as conclusões formuladas pelo apelante, este pretende que a decisão recorrida na parte em que se pronunciou no sentido da inadmissibilidade da gravação junta aos autos por constituir meio de prova obtido por forma ilícita e quando decidiu remeter os interessados para os meios comuns relativamente às questões suscitadas quanto à verba nº.3 da primitiva relação de bens e verba nº.2 da relação de bens atualizada por considerar que a decisão incidental de tais questões implicaria “uma manifesta redução da garantia das partes...”, seja revogado e substituído por outro em que se decida admitir como meio de prova a gravação constante da PEN junta aos autos, bem como incluir na discussão da instância incidental as questões suscitadas quanto à verba nº.3 da primitiva relação de bens e, bem assim, quanto às questões suscitadas quanto à verba nº.2 da relação de bens atualizada. Previamente, impõe-se aferir da arguida nulidade da sentença. * 3 – OS FACTOSOs pressupostos de facto a ter em conta para a pertinente decisão são os que essencialmente decorrem do relatório que antecede, para os quais se remete. * 4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITOComo já supra referido, está em causa e foi interposto recurso pelo Cabeça de Casal BB. Comecemos, então, pela suscitada questão da nulidade da sentença, por falta de fundamentação – art. 615º/1, b) do CPC Pretende o recorrente ser nula a decisão recorrida na parte em que decidiu remeter os interessados para os meios comuns relativamente às questões suscitadas quanto à verba nº.3 da primitiva relação de bens e verba nº.2 da relação de bens atualizada por considerar que a decisão incidental de tais questões implicaria “uma manifesta redução da garantia das partes...”, uma vez que no modelo ora instituído é no processo de inventário que deverão ser suscitadas, apreciadas e decididas todas as questões que importem à exata definição do acervo patrimonial a partir, só excecionalmente deverá qualquer questão ser relegada para os meios comuns, caso a complexidade da matéria do facto subjacente à questão controvertida tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar a redução das garantias das partes – arts. 1093º nº.1 e 1105º nº.5 do C.P.C., sendo que do despacho recorrido, apenas resulta, sem qualquer base de sustentação, que da decisão incidental de tais questões resultaria uma manifesta redução das garantias das partes, quando se impunha, de forma inequívoca, a demonstração ou concretização das circunstâncias factuais e legais justificativas daquela decisão. Quanto a esta questão da alegada nulidade da sentença, a recorrida nada diz nas suas contra-alegações. Quid iuris? Assim o prescreve o art. 615°/1, b) do CPC, segundo o qual é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Como é sabido, constitui entendimento pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que, na arguição desta nulidade, importa distinguir entre a falta absoluta de motivação e a motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação. A insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente: afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser alterada ou revogada em recurso, mas não produz a nulidade. Só enferma, pois, de nulidade a sentença em que se verifique a falta absoluta de fundamentos, seja de facto, seja de direito, que justifiquem a decisão e não aquela em que a motivação é deficiente. Neste sentido, relativamente à fundamentação de facto, só a falta de concretização dos factos provados que servem de base à decisão, permite que seja deduzida a nulidade da sentença/acórdão. Quanto à fundamentação de direito, “o julgador não tem de analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes: a fundamentação da sentença/acórdão contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador”[5]. No caso dos autos, relativamente à questão ora em apreço, consta o seguinte: • Da remessa para os meios comuns: Quanto à verba n.º 3 da primitiva relação de bens (verba n.º 4 da relação de bens atualizada), a verba n.º 2 da relação de bens atualizada e (…) remetem-se as partes para os meios comuns considerando a inconveniência da decisão incidental das questões suscitadas, uma vez que, resulta uma manifesta redução das garantias das partes, excluindo-se assim os mesmos dos bens a relacionar. Assim, ainda que de forma telegráfica e conclusiva, decidiu o Tribunal remeter as partes para os meios comuns também quanto a estas verbas, o que justificou na manifesta redução das garantias das partes. Logo, podendo o apelante discordar de tal fundamentação ou não ficar cabalmente esclarecido, não pode é dizer que não existe. Tanto basta para se poder seguramente concluir que a decisão recorrida não padece da invocada nulidade. * Analisemos, agora, a questão de mérito desta decisão de remeter as partes para os meios comuns quanto à mencionada verba. Como já supra referido, a motivação apresentada pelo Tribunal reveste forma telegráfica e conclusiva, pelo que, só considerando a lei como causa de nulidade, a falta absoluta de motivação e já não a insuficiência ou mediocridade da motivação, impõe-se aferir agora do valor doutrinal da sentença, sujeita que está ao risco de ser alterada ou revogada em recurso. Mas vejamos o que nos dizem as disposições legais que com a matéria resolvida/decidida pelo despacho recorrido patenteiam prima facie alguma ligação. Desde logo, temos aqui o art. 1105º do CPC, que sob a epígrafe de “Tramitação subsequente”, reza o mesmo que: 1 - Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada. 2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas. 3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º 4 - A alegação de sonegação de bens, nos termos da lei civil, é apreciada conjuntamente com a acusação da falta de bens relacionados, aplicando-se, quando julgada provada, a sanção estabelecida no artigo 2096.º do Código Civil. 5 - Se estiver em causa reclamação deduzida contra a relação de bens ou pretensão deduzida por terceiro que se arrogue titular dos bens relacionados e se os interessados tiverem sido remetidos para os meios comuns, o processo prossegue os seus termos quanto aos demais bens. 6 - Se o crédito relacionado pelo cabeça de casal e negado pelo pretenso devedor for mantido na relação, reputa-se litigioso. 7 - Se o crédito previsto no número anterior for eliminado, entende-se que fica ressalvado aos interessados o direito de exigir o pagamento pelos meios adequados. Ora, no âmbito da referida matéria, pode, desde logo, dizer-se que está o Juiz sujeito em face da lei adjectiva a um poder vinculado[6], logo não discricionário, o que equivale a dizer que apenas lhe é lícito abster-se de julgar/decidir (cfr. art. 8º/1 do CC) a questão nos autos suscitada dispondo para tanto de fundamento legal, máxime e v.g. quando atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas – art. 1092º/1, b), ex vi do art. 1105º/3, ambos do CPC –, porque assim o desaconselha o regime de tramitação abreviado próprio dos incidentes. Depois, e em razão precisamente da remissão do nº 3 do art. 1105º do CPC (alusivo designadamente à tramitação do incidente de reclamação da relação de bens) para o disposto nos precedentes arts. 1092º e 1093º, adequado é concluir-se que ao julgador titular do inventário apenas pode/deve remeter os interessados para os meios comuns no âmbito de questão desencadeada em reclamação de relação de bens: - Quando a resolução da questão decidenda implique a apreciação e o julgamento de extensa e complexa matéria de facto; e - Em razão da referida complexidade, a resolução no inventário da decisão incidental é de afastar/excluir, por implicar forçosamente a redução das garantias das partes. Em suma, a decisão de remessa para os meios comuns deve estar reservada para situações em que se mostre a mesma materialmente justificada e incontornável, “sendo seguramente uma decisão prudente e avisada, quando o que está em causa supõe naturalmente uma necessária amplitude de garantias processuais, traduzidas na livre possibilidade de apresentação dos meios probatórios e da sua efectiva contradição, bem como na realização, judiciosa e pormenorizada, de audiência de julgamento, tudo nos moldes genericamente previstos para as ações declarativas comuns, que extravasa totalmente os termos processualmente confinados, simplificados e relativamente condicionados da resolução das referidas questões de facto e de direito em sede meramente incidental”.[7] Aqui chegados, munidos das pertinentes contribuições legais, doutrinais e jurisprudenciais acima aduzidas, e analisando a verba em litígio – a nº 3 da primitiva relação de bens e ora nº 2 da relação de bens atualizada –, inevitável é considerar desde logo como incorrecta e prematura a decisão recorrida, que sem qualquer produção de prova, designadamente a indicada pelo Cabeça de Casal na sua resposta à reclamação de 17-05-2024, ou análise, perante a reclamação da relação de bens da requerente pedindo a eliminação de tal verba, tenha de forma telegráfica e conclusiva, remetido logo as partes para os meios comuns, o que justificou, sem qualquer esclarecimento, na manifesta redução das garantias das partes. Ou seja, concluiu sem premissas, para além da conclusiva manifesta redução das garantias das partes, que se impunha que a sua apreciação e resolução fosse relegada/despachada para os meios comuns. Com efeito, quanto ao disposto no art. 1093º/1 do CPC, estamos em crer que a regra que do mesmo resulta é a de que no âmbito do processo de inventário devem ser decididas definitivamente todas as questões de facto relacionadas com os bens a partilhar - v.g. que importem à exacta definição/delimitação do acervo/património a partilhar -, salvo se essa decisão se não conformar com a discussão sumária comportada pelo processo de inventário e exigir uma ampla discussão no quadro do processo comum (cabendo nesta matéria ao Julgador aferir da pertinência de a questão ser resolvida no inventário, tudo examinando e decidindo “à luz de um são critério, já para não consentir que no inventário se resolvam questões de alta indagação, já para não excluir as que, aí podem e devem obter solução adequada”)[8]. Ademais, e precisamente em sede de julgamento da referida questão, caberá igualmente ao JULGADOR titular dos autos e se for caso disso, lançar mão das regras a observar em casos de dúvida (cfr. art. 414º do CPC), partindo v.g. da regra de que “Quem alega falta de relacionação de bens tem o ónus da prova dessa falta”[9], ou de que “É ao reclamante que cabe o ónus de provar os factos donde deriva a exclusão pretendida”[10], que não relegando “comodamente” as partes para os meios comuns quando confrontado em sede de julgamento de facto com uma situação de dúvida. Logo, apenas após a produção de prova[11], e não existindo prova documental idónea carreada para os autos, se justifique que a questão desta verba seja objecto de decisão de remessa das partes para os meios comuns, nada justificando à partida e desde já considerar que em causa está uma questão que não deve ser incidentalmente decidida no inventário. Ora, no seguimento das considerações acabadas de aduzir e, considerando de resto a natureza e especificidade da questão ora em apreciação (a ponto de se revelar “conveniente” que seja resolvida no processo de inventário, ao invés de fora dele), e, não se descortinando que a efectiva e justa resolução demande o julgamento de complexa e subjacente matéria de facto (bem pelo contrário) que torne inconveniente (por implicar a redução das garantias das partes) a sua apreciação nos autos de inventário, não se mostra em rigor a abstenção ab initio do julgador (e a consequente remessa dos interessados para os meios comuns) amparada legalmente. De resto, e relativamente a questão como a dos autos e ora em aferição, assim se pronunciou já o Tribunal da Relação de Coimbra, concluindo no Acórdão de 06-02-2024[12] que: “(…) III - Dada a conveniência de no processo de inventário serem resolvidas todas as questões, as partes apenas podem ser remetidas para os meios comuns, nos termos do artº 1093º do CPC, reunidos que estejam dois requisitos: i) a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha; ii) a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes. IV - Não estão presentes tais pressupostos se se trata apenas de apreciar a (in)existência de créditos sobre o património comum do ex casal, rectius provar se os valores reclamados foram suportados pelos reclamantes, e não se antolha que outros meios probatórios relevantes para além dos já apresentados possam ser carreados para o processo comum”. Como assim, temos que relativamente à decisão quanto à verba em litígio – a nº 3 da primitiva relação de bens e ora nº 2 da relação de bens atualizada –, carecia o tribunal a quo de fundamento legal pertinente para se abster logo de apreciar e decidir. Em conclusão, a abstenção do tribunal a quo em apreciar, instruir e julgar a reclamação da relação de bens deduzida pela requerente quanto à mencionada verba, mostra-se destituída de fundamento legal, “aproximando-se” de alguma forma da abstenção que proíbe a primeira parte do nº 1, do art. 8º do CC, e, consequentemente, a revogação da decisão recorrida mostra-se inevitável. A apelação, portanto, procede nesta parte. * Vejamos, por último, a questão do “Meio (i)lícito de prova”.O tribunal a quo decidiu que não admite a prova junta aos autos por constituir meio de prova obtido de forma ilícita, determinando-se o seu desentranhamento e a devolução, após trânsito, da pen ao cabeça de casal. Rememorando e enquadrando a situação, refere-se na decisão que o cabeça de casal juntou aos autos a gravação de uma conversa que manteve com a requerente dentro de casa, mais concretamente, no quarto, sendo que, em momento algum da gravação é referido pelo cabeça de casal que está a gravar a conversa e que a requerente consente nessa gravação, pelo contrário, da gravação sobressai com meridiana clareza que efetuou a mesma à socapa, pois, conversaram sobre terceiras pessoas, sobre os seus casos extraconjugais e sobre outros assuntos que se reportam a matéria de foro da sua reserva da vida privada, protegida por vários comandos legais, como sejam os artigos 26.º, n.º 1, da CRP, artigo 80.º, do CCiv, o artigo 199.º, do CP, etc…, e que nos termos do artigo 32.º, n.º 8 da CRP configuram por princípio prova proibida. Com tal prova (proibida) o cabeça de casal, segundo se alcança, pretendeu demonstrar a existência do valor de €150.000,00, acontece que, aplicando os considerandos acima expostos, de longe se vê (em nossa opinião) que o fim que pretensamente visa alcançar excede claramente o meio utilizado, afigurando-se, por isso, desproporcional. Acresce ainda, que tal prova não seria a única prova que o cabeça de casal poderia ter carreado para os autos para demonstração da existência da quantia referida, uma vez que, alega que grande parte da referida quantia adveio da sociedade comercial “EMP01...”. Somos assim a concluir que o cabeça de casal podia ter feito uso de meios menos gravosos para a intimidade e imagem da requerente (e de outros) para fazer a prova do invocado por si. Inconformado, entende o recorrente que Ainda que a gravação, constante da PEN junta aos autos, tivesse sido obtida sem o consentimento da visada – o que não corresponde à verdade conforme se deixou vertido na “Nota Prévia”, dado que à mesma deu a visada o seu consentimento tácito – sempre deverá a mesma ser admitida por constituir não só o único meio de prova de que a visada se apropriou e, mantém na sua posse, contra a vontade do seu legitimo dono, que o é o recorrente, quantia em dinheiro que apenas a este pertence, como se apropriou, com o objetivo de impedir que o recorrente participe por metade no dinheiro comum que mantinham depositada no Cofre, A admissão de tal meio de prova, ainda que tivesse sido obtida sem o consentimento da recorrida, sempre se revelaria proporcional ao fim pretendido, que o é a obtenção de uma decisão justa, face ao estatuído no art. 1730º nº.1 do C. Civil (norma de carácter imperativo), bem como ao disposto nos arts. 204º e 205º nº.4 al. b) do C. Penal, porque verificados “in casu” os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido restrito (principio da justa necessidade). Com o que discorda a recorrida, concluindo ser irrepreensível o despacho recorrido, não violando o mesmo qualquer princípio ou preceito legal, nomeadamente os invocados pelo recorrente. Quid iuris? Vejamos, pois, se o despacho recorrido nesta parte deve ou não ser revogado e substituído por outro que admita tal meio de prova nos autos e se o mesmo viola, ou não o disposto nos preceitos legais invocados pelo recorrente. Ora, os meios de prova são os elementos de que o julgador se pode servir para formar a sua convicção acerca de um facto[13]. Estabelecendo o art. 341º do CC que “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”. O conceito de prova pode ser entendido como actividade, como meio ou como resultado. No primeiro caso, reporta-se à actividade que as partes desenvolvem com vista a convencer o julgador da realidade dos factos. No segundo caso, integra os elementos concretos apresentados tendo em vista a demonstração da realidade dos factos. E, no último sentido, como resultado, a prova traduz a criação, no espírito do julgador, da convicção de que o facto ocorreu. A demonstração da realidade dos factos que se pretende com a prova não visa alcançar uma certeza absoluta de tal realidade, mas sim, um grau de convicção suficiente para as exigências da vida. “Tendo em conta a teleologia da prova, é fácil compreender que, no processo, apenas certos factos constituam objecto da prova. Por um lado, apenas os factos que possam ser relevantes para a decisão da causa. Por outro lado, dentro desses factos, apenas aqueles que se devam considerar controvertidos (artigo 410.º, do CPC), quer se trate de factos principais ou factos instrumentais que permitam a prova indirecta dos primeiros. Por este motivo, o despacho que contenha os temas da prova, elemento que serve de base à produção de prova em audiência, apenas deverá conter aquelas questões referentes a fatos que devam ser objecto de prova (artigo 596.º, n.º 1, do CPC)”[14]. Ora, o direito à prova não é ilimitado ou absoluto. E tanto é assim, quer se configure o direito à prova por referência à lei constitucional ou ordinária. Em termos singelos os limites do direito à prova podem ser de duas ordens: intrínsecos (inerentes à actividade probatória) ou extrínsecos (referentes a requisitos legais de proposição probatória). Conforme se escreveu noutro local, “os limites intrínsecos do direito à prova deduzem-se da tutela constitucional de diversos direitos fundamentais e concretizam-se naqueles pressupostos ou condições que, por natureza, devem ser observados por qualquer prova, podendo reconduzir-se à pertinência e à licitude da prova. Os limites extrínsecos derivam do carácter processual do direito à prova e concretizam-se na observância das formalidades processuais imprescindíveis para o seu exercício”[15]. O postulado de um processo equitativo determina que apenas devam ser admitidas provas obtidas ou constituídas por meios legais e leais. “Em sede de prova, o direito ao processo equitativo implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos, quer o sejam por violarem direitos fundamentais, quer porque se formaram ou obtiveram por processos ilícitos”[16]. Mas, na prática é extremamente difícil, em certos casos, apurar quando se está perante prova que deva considerar-se ilícita. “De todo o modo, parece-nos possível recortar uma ideia fundamental: A prova ilícita traduz um desvalor na formação da prova, a qual, sem afectar a sua natureza extrínseca ou a finalidade probatória da mesma, foi produzida (extraprocessualmente) ou ingressou no processo, por meios ilegais ou ilegítimos, colidindo com valores e direitos protegidos, via de regra, pela própria Constituição, ou seja, violando ou postergando princípios fundamentais ou normas de direito material”[17]. Importa sublinhar que, “a lei processual civil não estabelece nenhum momento próprio para a dedução da questão atinente à ilicitude probatória, nem para a decisão da mesma, mas parece-nos líquido que tal questão deverá ser invocada em sede de exercício do contraditório, após o requerimento de proposição do meio de prova, sendo que, contudo, relativamente a determinados meios de prova deverá ser suscitada aquando da sua produção probatória. A questão incidental assim suscitada deverá - após o exercício do direito de resposta da contraparte, como manifestação do respeito pelo princípio fundamental do contraditório - ser objecto de decisão, interlocutória ou final”[18]. São diversas as situações em que se pode convocar a temática da prova ilícita, podendo-se elencar do seguinte modo: a) Por violação do direito à integridade física ou mental das pessoas (prova obtida mediante a provocação de stress ou tortura, por coacção, por ameaça de um mal, por administração de substâncias desinibidoras ou narcóticos, pelo uso de hipnose, pela utilização de polígrafo e de outras provas neurofísicas; b) Por violação da reserva na intimidade da vida privada (a fotografia de uma cena da vida íntima; a gravação de uma conversa telefónica; a intromissão em casa alheia para testemunhar ofensas dos membros desse agregado familiar, com o consentimento de um deles e o desconhecimento do outro; o furto de documento alheio; a obtenção – mediante pagamento – de dados bancários referentes a cidadãos que “fugiram” ao fisco); c) Por violação do domicílio (intromissão em casa alheia para obtenção de prova); d) Por violação do direito à imagem (fotos apresentadas em juízo e cuja obtenção não foi consentida pelo retratado); e) Por violação do direito à inviolabilidade da correspondência (a abertura de carta dirigida a outrem); f) Por violação do direito à palavra (a gravação não consentida de conversa entre terceiros). Quando se fala de prova ilícita pretende-se significar com tal conceito toda a prova que seja obtida ou produzida, mediante a violação de normas de direito material, que tutelam direitos fundamentais dos cidadãos, ou aquela prova cuja formação ou produção em si mesma consubstancia um ilícito. “Procurando uma síntese e sem preocupações dogmáticas, pode considerar-se que as provas ilícitas são aquelas cuja obtenção ou produção constitui um ilícito que determina a violação de um direito substantivo, quer a mesma violação resulte de uma ilicitude material ou formal (…). a) A ilicitude substantiva ou material ocorrerá se forem violados direitos fundamentais pela obtenção ou produção da prova: «Violam os direitos fundamentais (à imagem, à palavra ou à reserva da intimidade da vida privada e familiar – art.º 26.º, n.º 1, da CRP), por ex., a exibição ou utilização duma fotografia, de uma gravação, de um filme, de uma carta ou de um diário íntimo. Tais meios de prova são em si materialmente proibidos»; e b) A ilicitude processual ou formal – excluindo-se, todavia, aqui os casos em que tenha lugar a mera violação de restrições legais de prova por determinação de regras de direito substantivo ou adjectivo (cuja inobservância determina tão só o accionamento de previsões contidas em normas processuais) – assentará na produção ou obtenção de um método proibido de prova: «São, por seu turno, processualmente ilícitas, v.g., o depoimento produzido sob coacção ou violência ou mediante desvio de princípios básicos do procedimento probatório, como os do contraditório, da oralidade ou da imediação. O que, neste âmbito, se proíbe é o método de prova, ou seja, o processo de formação ou obtenção da prova. É, assim, e por ex., ilicitamente obtido, embora regularmente formado, o documento subtraído (sem autorização ou por actuação fraudulenta) à posse e disponibilidade da parte contrária”[19]. Nos termos do art. 413º/1 do CPC, “o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las”. Consagra-se aqui o princípio da aquisição processual, que deve ser compreendido à luz do citado direito à prova (cfr. art. 20º da CRP). “Do dever de o tribunal tomar em consideração todas as provas produzidas e do direito das partes à prova decorre que a recusa de um meio de prova deverá ser sempre fundamentada numa norma ou num princípio jurídico, não podendo o tribunal exercer neste campo um poder discricionário”[20]. Pergunta-se, assim, se poderá o fundamento da exclusão de uma prova baseada na sua ilicitude, no âmbito do processo civil, assentar no art. 32º/8 da Constituição? Este preceito refere-se exclusivamente às «garantias do processo criminal», pelo que, a sua aplicação ao processo civil teria que se efectuar por analogia, importando saber se tal norma não é norma excepcional (por estas não comportarem aplicação analógica). Isabel Alexandre[21] responde afirmativamente, considerando que o referido normativo se aplica também às provas obtidas por particulares, porquanto a norma pretende limitar os interesses do processo criminal pela dignidade da pessoa humana e pelos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático, funcionando, assim, como garantia dos direitos, liberdades e garantias em geral, aos quais estão vinculadas as entidades públicas, mas também as entidades privadas (cfr. art. 18º da CRP). E, traduzindo-se a vinculação dos tribunais aos preceitos constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias, na necessidade de os interpretarem, integrarem e aplicarem «de modo a conferir-lhes a máxima eficácia possível, dentro do sistema jurídico, há que interpretar o art. 32º n.º 8 CRP em conformidade. E essa interpretação conforme à máxima eficácia dos direitos fundamentais leva a considerar nulas, não só as provas obtidas pelas entidades públicas, mediante violação dos mesmos, mas também as obtidas pelas entidades privadas». Considera a referida Autora[22] que a referida norma não é nem formal, nem materialmente, excepcional, pelo que deverá o art. 32º/8 da CRP ser aplicado, analogicamente, ao processo civil, por, nos termos do art. 10º/2 do Código Civil, no caso omisso, procederem as razões justificativas da regulamentação do caso omisso na lei, sendo que «o art. 32º n.º 8, ao prever a nulidade de certas provas, visa conferir maior eficácia aos direitos fundamentais violados aquando da sua obtenção, não existem motivos para restringir o preceito ao âmbito do processo penal, já que a lesão desses direitos não é menor pela circunstância de as provas se destinarem ao processo civil”. Em semelhante sentido, Paula Costa e Silva e Nuno Trigo dos Reis[23] também consideram que o art. 32º/8 da CRP não é uma regra exclusivamente vocacionada para o processo criminal, “pois, que nada há de excepcional na sua ratio”. Salazar Casanova[24], ao invés, entende que o art. 32º/8 da CRP não é passível de aplicação analógica ao processo civil, pelos seguintes motivos: 1- Não se deve interpretar a lei como se existisse um princípio geral de proibição da obtenção de prova em desrespeito de direitos fundamentais, concluindo que, nos vários anos de vigência da Constituição, nunca se procedeu, no plano civil, à introdução de outras limitações que não fossem as resultantes do vigente art. 413.º do CPC, sendo que, no âmbito do processo penal, há uma regulamentação completa das situações de ilicitude na obtenção de determinados meios probatórios (v.g. quando a lei admite, no processo penal, «a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas (…) ou quando com menor amplitude admite exames, revistas, buscas e apreensões (…)»); 2- A lei estabelece soluções diferentes, no plano processual civil (onde está em causa a protecção de interesses privados) e penal (onde está em causa a repressão da criminalidade e os poderes coercivos do Estado), para os mesmos problemas, o que não se compreenderia se se entendesse o art. 32º n.º 8 como uma norma de aplicação imediata a todos os ramos processuais; 3 – Não basta para a aplicação analógica a existência de um caso não regulado (podem certas situações não estar reguladas porque assim não foi desejado ou porque foi considerado desnecessário), sendo que, no caso da prova ilícita em processo civil, a mesma não tem recebido resposta idêntica nas várias legislações; 4 – A lei processual civil não considerou que a utilização de métodos proibidos de prova com influência no resultado do pleito assumisse uma gravidade tal que a parte pudesse, uma vez transitada em julgado a decisão, requerer a sua revisão com fundamento na utilização de elemento probatório obtido por método proibido, pelo que, se a lei pretendesse obstar sempre à admissibilidade de meio de prova que desrespeitasse direitos fundamentais, seria lógico que tivesse previsto esse fundamento para a revisão da decisão, o que não sucedeu. Ora, não se consegue, de facto, encontrar no art. 32º/8 da CRP fundamento bastante para vedar a admissibilidade de provas no âmbito de um processo civil, consequência probatória que ali é prevista apenas para o processo penal. Conforme refere Salazar Casanova[25], “em Portugal houve o cuidado de não interferir no que respeita à obtenção de provas no processo civil realizada na fase extrajudicial por particulares separando as águas entre o sancionamento ilícito dos actos de obtenção praticados e a admissibilidade em juízo do meio de prova obtido”. Ao contrário do processo penal – onde o regime jurídico comporta já a expressão de juízos de ponderação assumidos e sancionados pelo legislador sobre os bens jurídico-penalmente tutelados –, no processo civil, pelas razões já supra expostas, a norma do art. 32º/8 da CRP não parece ter directa aplicação. Assim, “a ilicitude na obtenção de um determinado meio de prova não conduz necessariamente à proibição da sua admissibilidade mas também não implica, uma vez admitida, a garantia do seu aproveitamento”[26]. Ou seja: A lei – pragmaticamente – distinguiu entre as sanções dos actos ilícitos de obtenção e a admissibilidade em juízo do meio de prova obtido. Outra solução implicaria um controlo demorado sobre a licitude da obtenção de prova que provocaria o estrangulamento do processo, inviabilizando a solução atempada do litígio e a sua finalidade, a sua justa composição. A lei processual civil – muito embora estabeleça diversas regras limitativas da produção de prova ou de certos meios de prova, por exemplo, nos arts. 433º e 607º/2 do CPC ou nos arts. 364º/1, 393º e 394º do CC – é omissa quanto à questão da inadmissibilidade da prova ilícita, contrariamente ao que sucede no processo penal (dispondo o art. 125º do Código de Processo Penal que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei). Apenas há uma singela referência no art. 417º do CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, preceito onde se prevê um dever genérico de cooperação probatória, sanções para a recusa de cooperação e três causas de legítima recusa de cooperação. E é duvidoso que esta norma – em particular o nº 3 do referido preceito legal – tenha alguma influência sobre a temática da prova ilícita[27]. Para apreciação da temática impor-se-á distinguir-se entre provas ilícitas absolutas e relativas. “As provas absolutamente ilícitas serão as que sejam obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral das pessoas. As provas obtidas em violação destes direitos são absolutamente vedadas ou proibidas – afigurando-se-nos que a proibição de violação destes direitos absolutos, não decorre especificamente do disposto no art. 32.º da CRP (preceito que, como se viu, se mostra apenas dedicado ao processo “criminal”), mas de outras normas constitucionais (como as dos arts. 1º, 2º, 16º, 18º e, principalmente, da dicotomia estabelecida na Constituição entre os arts. 24º e 25º, por um lado, com o art. 26º e 34.º da Constituição, por outro lado) -, devendo ser consideradas inexistentes, sendo o vício passível de ser oficiosamente conhecido a todo o tempo. O eventual consentimento do titular ou a eventual autorização judicial para a obtenção da prova em violação desses direitos fundamentais, não retira a antijuridicidade ao acto. A este tipo de provas dedica-se a alínea a) do n.º 3 do art. 417.º do CPC, sendo manifesto que no âmbito deste preceito – ou ainda por directa deriva dos comandos constitucionais supra aludidos (os mencionados arts. 1º, 2º, 16º, 18º, 24º, 25º, 26º e 34.º) – se tutela também a legitimidade da recusa de actividade probatória conseguida com o recurso a tortura e coacção. Noutro campo estarão as provas relativamente ilícitas. Estão em questão, quanto a provas relativamente inadmissíveis, as violações de outros direitos fundamentais – como o direito à intimidade da vida privada ou familiar, o direito à inviolabilidade do domicílio, ao segredo de correspondência ou das telecomunicações, o direito à imagem, à palavra, etc. A este tipo de provas dedicam-se as alíneas b) e c) do n.º 3 do art. 417.º do CPC. Relativamente a estes direitos, o consentimento do titular já é relevante em termos de retirar ilicitude ao acto lesivo. Neste campo, já se imporá, face à colisão de direitos fundamentais, proceder a uma ponderação concreta dos interesses em jogo (não se encontra predeterminada a ilicitude absoluta da prova, a qual, em função das circunstâncias concretas, será ou não valorada pelo Tribunal). Assim, “se for compreensível, à luz da ponderação de interesses, a intromissão da parte no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações para, deste modo, obter prova necessária à sua pretensão e se tal intromissão for efectuada de um modo proporcionado, a prova assim obtida deve ser admitida”. As considerações delineadas podem esquematizar-se do seguinte modo: 1º Provas ilícitas absolutas: As obtidas com violação do direito à vida e da integridade física ou moral das pessoas; 2º Provas ilícitas relativas: As que envolvem intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; e as que determinam violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos ou do segredo do Estado, caso tais segredos não sejam “quebrados” nos termos da lei”[28]. No que respeita às provas ilícitas relativas, “parece-nos haver que distinguir, dado que a lei também o distingue, entre aquelas a que se reporta a alínea b) do n.º 3 do art. 417.º do CPC, das enunciadas na alínea c) do mesmo n.º 3: 1) Relativamente às referenciadas na alínea b) do n.º 3 do art. 417.º do CPC, o consentimento – livre e esclarecido – prestado pelo titular dos bens jurídicos comprimidos com o meio de prova ilícito torna-se relevante, pelo que, a prova que seja produzida com ofensa do domicílio do visado, da sua correspondência, com intromissão nas telecomunicações, ou com intromissão na sua vida privada ou familiar, se consentida, não será ilícita; contudo, no caso de invocação de recusa de colaboração do visado, haverá que apreciar, em concreto, se o meio de prova é ou não ofensivo dos correspondentes bens jurídicos; 2) Relativamente às referenciadas na alínea c) do n.º 3 do art. 417.º do CPC, o consentimento também é relevante, não sendo ilícita a divulgação probatória que determine a violação de sigilo profissional, de funcionários públicos ou do segredo de Estado; contudo, no caso de invocação de recusa de colaboração do visado, para além da apreciação da verificação dos pressupostos de aplicação do segredo, importará cumprir a tramitação específica inerente à sua eventual «quebra», seguindo-se, então, o regime a que alude o n.º 4 do mesmo artigo. No direito contemporâneo é, de facto, no âmbito das supra denominadas provas ilícitas relativas, aquele onde, na prática, os problemas ocorrerão e onde o intérprete e aplicador do Direito se defrontará com as maiores dificuldades. Relativamente a tais provas, actuará a denominada «teoria da ponderação dos interesses». Com efeito, estar-se-á então, verificada a ofensa dos bens jurídicos pretendidos tutelar com a previsão normativa, perante um problema de conflito de interesses ou de colisão de direitos (cfr. art. 335.º do CC). Assim, caso a caso, segundo uma concreta ponderação, deve-se analisar o tipo de direito fundamental atingido e as circunstâncias que envolveram a actuação lesiva. Importará, pois, em concreto, apreciar se «os interesses em jogo no litígio, as garantias de sigilo proporcionadas, a conduta assumida pela parte lesada, a relevância desse particular meio de prova» justificam que a prova obtida ou produzida seja considerada como ilícita, por violação de direitos fundamentais que, em concreto, se mostram de maior valia ou exigem maior protecção, do que o mencionado direito à prova. O mesmo é dizer que será necessário, em concreto, o recurso às regras que dirimem conflitos de direitos ou de valores – e, nomeadamente, ao critério fornecido pela intervenção do princípio da proporcionalidade. É sabido que, o princípio da proporcionalidade se desdobra em três subprincípios: «Em primeiro lugar, a exigência de adequação, cujo propósito central é aferir a existência de uma relação de causa efeito entre duas variáveis: o meio, instrumento, medida ou solução empregue pela entidade sujeita ao escrutínio, de um lado; e o objectivo, ou finalidade que se procura atingir. O princípio da adequação de meios impõe então uma avaliação tendente a determinar se o acto juridicamente relevante é ou não apropriado à prossecução do fim ou fins em causa (…). Depois, a exigência de necessidade, (sub) princípio que consagra o direito do indivíduo à menor ingerência possível na sua esfera jurídica por parte do Estado ou da entidade cuja actuação está sujeita ao escrutínio da proporcionalidade, e que impõe, por isso, não apenas a identificação de todas as medidas admissíveis e idóneas para a prossecução do fim em causa, mas também que a opção tomada seja, de entre as possíveis, a menos lesiva (…). E, por fim, a exigência de justa medida, (sub) princípio comummente designado por proporcionalidade em sentido estrito…[e que consiste em].determinar se, mediante um juízo de ponderação, a medida (idónea e necessária) é também ela proporcional em relação ao fim prosseguido e, assim, se a lesão que tal acto pode acarretar é ou não desmedida em relação aos benefícios que dele se podem tirar». Por estes critérios – e tendo, como se viu, intervenção concreta, o princípio da proporcionalidade - deve pautar-se a resolução do conflito. Assim, há que apurar se, no caso concreto, a prova ilícita colide com os direitos fundamentais que possam fundamentar a sua inadmissibilidade. Se a resposta for positiva e houver colisão da prova, por exemplo, com o direito à vida – cfr. art. 24.º da Constituição – ou com o direito à integridade pessoal, moral e física de alguém – cfr. art. 25.º do texto constitucional – a prova deverá ser considerada como nula, de harmonia com o estabelecido no n.º 8 do art. 32.º da Constituição, por paridade de razão ou analogia, com o disposto em tal norma constitucional, sendo, nesse caso, inadmissível. Se em colisão se encontrarem o direito à prova e outros direitos fundamentais – v.g. os consagrados nos arts. 26.º e 34.º da Constituição – antes da decisão sobre a admissibilidade probatória haverá que ter lugar a ponderação do julgador, com base no princípio da proporcionalidade. A prova ilícita será adequada quando seja relevante e necessária, ou seja, quando seja indispensável à justa composição do litígio e quando, em concreto, os interesses da causa justifiquem a proteção de outros direitos. Apenas mais uma nota fundamental suplementar sobre esta matéria. É a de que, na resolução do conflito, dever-se-á ponderar, em particular, se ocorrem as seguintes situações especiais (que podem determinar um “desvio” à aplicação das referidas regras gerais): 1 – Se a utilização da prova ilícita constitui o único meio possível e razoável para efectuar a prova dos factos (ou se o agente do acto ilícito «visa exclusivamente a aquisição do meio de prova sobre factos que dificilmente poderiam ser provados por outra forma e utiliza o material obtido apenas com essa finalidade probatória»), a ilicitude da prova deve considerar-se justificada, embora sem se prescindir, em concreto, da ponderação dos interesses em questão e da sua concreta configuração; 2 – Se houver consentimento do ofendido ou a sua colaboração ou cooperação para a fixação dos factos que a outra parte se propõe provar ou se a recolha e a fixação em suportes físicos ou digitais das realidades ou dos acontecimentos foi acidental (no que respeita apenas a intromissões na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações) a ilicitude da prova assim obtida será de excluir, sendo que, a própria ordem processual penal considera excluída nesses casos, a ilicitude de tais provas, não se mostrando abusiva a intromissão assim verificada em tais valores (cfr. art. 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal)”[29] . Sintetizando: Face à colisão de direitos fundamentais, impõe-se proceder a uma ponderação concreta dos interesses em jogo (cfr. art. 335º do CC), ponderando se o meio de prova ilicitamente obtido é, não obstante, relevante, imprescindível, justificado, adequado e proporcionado para prova dos factos em presença, que, em concreto, sobrelevam sobre outros direitos fundamentais em presença, justificando a sua compressão em detrimento de tal direito à prova, ou se, tal compressão, não se mostra justificada. Em particular, relativamente a gravações áudio de conversas mantidas entre pessoas, sem o consentimento de um dos interlocutores, passando em revista a jurisprudência que sobre a questão se debruçou no âmbito do processo civil, as conclusões a que se chegou foram, nomeadamente, as seguintes: - Ac. da Relação de Évora de 11-05-2017, prolatado no P.º 8346/16.0T8STB.E1, in www.dgsi.pt: “1. Apesar do art. 32.º, n.º 8, da Constituição estar inserido entre as garantias de processo criminal, é também aplicável em sede de processo civil a proibição de meios de prova obtidos com violação de direitos fundamentais. 2. Por constituir meio de prova obtido de forma ilícita, não pode ser admitida a junção, em processo civil, de gravações não consentidas de comunicações orais, por telefone ou de viva voz, não destinadas ao público, mesmo que sejam dirigidas a quem fez a gravação, sendo igualmente proibido utilizar ou deixar utilizar as ditas gravações. 3. O direito de acesso aos tribunais não impõe a admissibilidade de qualquer meio de prova, em especial quando este for obtido com violação de direitos fundamentais”; - Ac. da Relação de Lisboa de 24-10-2013, prolatado no P.º 102197/12.1YIPRT-A.L1-2, in www.dgsi.pt: “Sendo admissível, em abstracto, a indicação de registos fonográficos como meio de prova, importará saber se eles consubstanciam abusiva intromissão na vida privada que torne ilícita a recolha desses registos. Ainda que tal não ocorra, estando em causa uma comunicação telefónica destinada à adesão a um contrato de seguro, haverá que apurar se não estará configurada a ofensa do direito à palavra, constitucionalmente consagrado, através da gravação não autorizada das respostas/declarações do contactado”; - Ac. da Relação de Lisboa de 26-09-2013, prolatado no P.º 1130/10.6YXLSB.L1-2, in www.dgsi.pt: “Quando está em causa prova absolutamente inadmissível, mesmo mostrando-se transitado o despacho que a tenha admitido - desde que no mesmo se não tenham analisado as questões que implicam essa inadmissibilidade - o juiz não poderá vir a valorá-la. São provas absolutamente inadmissíveis as que forem obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral das pessoas (casos referidos no art 126º/2 CPP e na 1ª parte do art 32º/8 da CRP); são provas relativamente inadmissíveis as que se mostrem susceptíveis de colocar em causa os direitos a que se refere o art 519º/3 al b) do CPC, referidos na 2ª parte do art 32º/8 da CRP - intromissão na vida privada ou familiar, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações. No caso das provas relativamente inadmissíveis, não decorre da lei processual civil a proibição absoluta de admissibilidade da prova, podendo a mesma ser ou não valorizada pelo tribunal em função das circunstâncias como foi obtida. Na situação dos autos estava em causa prova relativamente inadmissível, pelo que tendo a apelante deixado transitar o despacho que admitiu a junção aos autos dessa prova (concretamente, um registo fonográfico), apenas poderia fazer valer de novo considerações sobre a respectiva ilicitude ou ilegalidade em sede de valoração da mesma, mas aí teria que ter permitido ao tribunal que ponderasse tais razões em função dos demais meios de prova constantes dos autos, para o que teria que ter procedido à impugnação da decisão da matéria de facto, o que não fez”; - Ac. da Relação de Guimarães de 16-02-2012, prolatado no P.º 435234/09.8YIPRT-A.G1, in www.dgsi.pt: “Por ser ilícita e nula, não pode ser atendida como prova em processo judicial cível uma gravação de conversação telefónica estabelecida entre as partes”; - Ac. da Relação de Lisboa de 09-06-2011, prolatado no P.º 840/06.7TCSNT.L1-2, in www.dgsi.pt: “É ilícita a prova testemunhal baseada na audição por terceiro – com o consentimento do A. – da voz dos RR., transportada por meio de telecomunicação, e através do sistema de “alta-voz”, sem que se mostre terem aqueles prestado o seu consentimento a tal interferência”; - Ac. da Relação do Porto de 15-04-2010, prolatado no P.º 10795/08.8TBVNG-A.P1, in www.dgsi.pt: “I – Não sendo o CPC tão claro como o C. Proc. Pen. (art. 126º) quanto à nulidade das provas e à sua inadmissibilidade no processo civil, hão-de, todavia, as suas normas conformar-se – tal como as demais de todo o nosso ordenamento jurídico – às normas e princípios constitucionais em vigor (art. 204º da CRP), particularmente, e no que agora releva, às dos arts. 26º, nº1 e 32º, nº8, da CRP. II – Por isso, a disciplina normativa deste art. 32º, nº8, apesar de epigraficamente referenciada para o processo penal, tem aplicação analógica ao processo cível, sendo a interpretação por analogia possível devido a não ser excepcional a regra deste art., nem as suas razões justificativas (dimanadas dos direitos individualmente reconhecidos no art. 26º, nº1 da mesma Constituição) serem válidas apenas para o processo penal (art. 126º, nº3 do Cod. Proc. Pen.). III – Constitui abusiva intromissão na vida privada a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização judicial concedida pela forma prevista na lei processual, sendo nulos quanto à sua obtenção os respectivos registos fonográficos e, como tal, inadmissíveis como meio de prova, mesmo no processo civil”; - Acórdão da Relação de Guimarães de 30-04-2009, prolatado no Pº 595/07.8TMBRG, in www.dgsi.pt: “A CRP garante o direito à reserva da intimidade da vida privada. Tal direito é directamente aplicável e exequível por si mesmo, sem necessitar da intervenção da lei ordinária, e vincula entidades públicas (a começar pelos tribunais) e privadas. Nos termos da CRP é nula – logo necessariamente ilícita e proibida – a prova obtida mediante abusiva intromissão na vida privada. Esta regra, conquanto formalmente prevista para o processo penal, deve ser tida como aplicável em todo e qualquer processo, e reporta-se tanto à prova obtida tanto pelas entidades públicas como pelas entidades particulares. As proibições de prova produzem, na sua atendibilidade e valoração, aquilo a que se costuma chamar “efeito à distância”, no sentido (que, porém, não esgota o conteúdo da figura) de que da mesma maneira que não é admissível a prova proibida directa, também não é tolerável a prova mediata, fundada naquela outra. O cônjuge não está legitimado a interceptar e gravar, para efeitos de acção de divórcio, conversa telefónica ou outros sons provenientes do outro cônjuge em interacção com terceiro a partir do espaço do automóvel que tal cônjuge utiliza. O casamento, pese embora as variáveis mais ou menos morais, filosóficas e societárias que lhe estão associadas, não pode ser visto como implicando a demissão de uma certa privacidade, aí onde os cônjuges a queiram preservar. Verificado que uma testemunha adquiriu o seu conhecimento a partir de prova obtida mediante violação do direito à reserva da vida privada da ré – gravação áudio – deverá o seu depoimento ser recusado ou, se prestado, ser tido como nulo”; e - Acórdão da Relação de Lisboa de 03-06-2004, prolatado no Pº 1107/2004-6, in www.dgsi.pt: “A ilicitude na obtenção de determinados meios de prova não conduz necessariamente à sua inadmissibilidade, mas também não implica a garantia do seu aproveitamento. Numa acção em que se pretende a indemnização decorrente de ofensas ao bom nome imputadas ao ex-cônjuge é pertinente a junção de uma gravação audio referente a uma conversa mantida entre a R. e outra pessoa mediante a qual o autor pretende demonstrar a inveracidade de alegadas cenas de violência domésticas que a R. lhe imputou. Ao invés, por falta de pertinência relativamente ao objecto da acção de indemnização, deve ser indeferida a junção de uma gravação video reportando factos integrantes de uma situação de adultério em que foi interveniente a R., ainda que a gravação tenha sido feita através de um sistema instalado na casa de morada do ex-casal com o conhecimento de ambos. A tal junção obstaria ainda o facto de a gravação abarcar não apenas a pessoa do ex-cônjuge, mas ainda uma terceira pessoa”. Revertendo estas considerações e tendo presente os contornos do caso concreto, verifica-se que está em questão um incidente de reclamação da relação de bens em inventário para separação de meações em consequência de divórcio. Notificada da relação de bens, a interessada e ora recorrida reclamou, pedindo, além do mais, a eliminação da verba nº 3 da primitiva relação de bens e ora nº 2 da relação de bens actualizada. Na resposta à reclamação, o Cabeça de Casal e ora recorrente, para prova do por si alegado quanto a tal verba, juntou uma PEN com uma gravação áudio. Nessa gravação, realizada pelo Cabeça de Casal, terão sido gravadas as vozes dos interessados, pronunciando-se a requerente quanto à verba em litígio, visando aquele demonstrar, com a aludida gravação, a alegação que produziu sobre tal verba: “(…) posteriormente, em conversas mantidas não apenas com o queixoso (conforme emana do ficheiro áudio constante da PEN junta), como com terceiros, a reclamante expressamente reconheceu encontrar-se na sua posse, assumindo que o dinheiro “vai aparecer” para ser partilhado”. É o direito à prova que aqui está em causa, que, como se referiu, tem também assento constitucional. Opõe-se a recorrida à admissibilidade probatória da gravação, alegando estar em questão uma prova proibida e a tutela constitucional prevista, designadamente, sobre o direito à reserva da intimidade da vida privada (art. 26º/1 da CRP) e as garantias do processo criminal (art. 32º/8 da CRP). Como já referido, o Tribunal recorrido entendeu não admitir a prova junta aos autos por constituir meio de prova obtido de forma ilícita, determinando o seu desentranhamento e a devolução, após trânsito, da pen ao cabeça de casal. Ora, adiante-se, desde já, concorda-se com o juízo do Tribunal recorrido no sentido de que a gravação áudio em questão é, de facto, ilícita. A mesma gravação foi efetuada, como admite o recorrente, por si, registando a sua voz e a da recorrida, na sua residência, sem que aquela tenha dado consentimento para a mesma, não estando também demonstrado que tenha sido autorizada previamente a sua utilização. O art. 199º do Código Penal estatui que: “1 - Quem sem consentimento: a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas; é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. 2 - Na mesma pena incorre quem, contra vontade: a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos. 3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 197.º e 198.º”. No crime de gravações ilícitas, em apreço, o bem jurídico protegido é o direito à palavra pessoal, pelo que o “titular do direito de queixa é apenas a pessoa cuja palavra foi arbitrariamente registada ou utilizada”[30]. Não obstante, em algumas decisões jurisprudenciais, relativas a processos de natureza criminal, considerou-se poder ser justificada, em determinadas circunstâncias, a divulgação de conversa (por via telefónica) entre duas pessoas, que assim não constituiria prova proibida[31]. Ora, não releva para o presente recurso saber se a prova em questão – registando de forma não autorizada a voz de uma pessoa - é válida ou proibida, à luz da lei processual penal - pelo que, é ocioso indagar se ocorreu “apenas” uma “gravação de uma conversa” ou já uma “intercepção” não judicialmente autorizada. Cumpre apenas evidenciar que a utilização de um registo áudio de uma conversa como meio de prova será, via de regra, excepcional, devendo ser observadas as prescrições legais com vista à obtenção do correspondente meio de prova, sob pena de utilização de um método proibido de prova, à luz do previsto no nº 3 do art. 126º do Código de Processo Penal. Importa recordar, por exemplo, que nos termos do art. 6º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro (que estabeleceu medidas de combate à criminalidade organizada) “é admissível, quando necessário para a investigação de crimes” previstos nessa lei - tráfico de estupefacientes, terrorismo, organizações terroristas, terrorismo internacional e financiamento do terrorismo, tráfico de armas, tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, corrupção activa e passiva, incluindo a praticada nos setores público e privado e no comércio internacional, bem como na atividade desportiva, peculato, participação económica em negócio, branqueamento de capitais, associação criminosa, pornografia infantil e lenocínio de menores, dano relativo a programas ou outros dados informáticos e a sabotagem informática, nos termos dos arts. 4º e 5º da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, e ainda o acesso ilegítimo a sistema informático, se tiver produzido um dos resultados previstos no nº 4 do art. 6º daquela lei, for realizado com recurso a um dos instrumentos referidos ou integrar uma das condutas tipificadas no nº 2 do mesmo artigo, tráfico de pessoas, contrafação de moeda e de títulos equiparados a moeda, lenocínio, contrabando e tráfico e viciação de veículos furtados - o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado, desde que, ocorra prévia autorização ou determinação judicial com vista à utilização de tal meio de gravação, sendo aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no art. 188º do Código de Processo Penal. De todo o modo, sempre se diga que, mesmo no âmbito processual penal, tem sido considerado que “a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização concedida pela forma prevista na lei processual, não consubstancia intercepção telefónica, mas sim documento, in casu fonográfico, com as respectivas transcrições, as quais representam, obviamente, um documento escrito”[32]. Relevante para a apreciação do presente recurso é sim saber se, no âmbito das regras do processo civil, o aludido meio de prova, ilicitamente obtido, deve ser, apesar de tudo, admitido e, consequentemente, valorado, ou se, ao invés, o mesmo se encontra vedado na sua admissão/valoração probatórias. A apreciação da questão determina, como se viu, ponderar se o invocado direito à prova do recorrente sobrelevar sobre os direitos da pessoa cuja voz foi objecto de registo áudio de forma não autorizada ou consentida. Haverá que saber, ponderando comparativamente os interesses em presença, se deverá prevalecer o direito fundamental atingido ou aquele que justificou a actuação lesiva. Ou seja, como já acima se referiu: Cumprirá apurar se, no caso concreto, a prova ilícita colide com os direitos fundamentais que possam fundamentar a sua inadmissibilidade. Se estiverem em confronto o direito à prova e outros direitos fundamentais – por exemplo, os consagrados nos arts. 26º e 34º da Constituição – antes da decisão sobre a admissibilidade probatória haverá que ter lugar a ponderação do julgador, com base no princípio da proporcionalidade. A prova ilícita será adequada quando seja relevante e necessária, ou seja, quando seja indispensável à justa composição do litígio e quando, em concreto, os interesses da causa justifiquem a proteção de outros direitos (o que pode, nomeadamente, acontecer, levando à admissibilidade da prova ilicitamente obtida, se a utilização da prova ilícita constitui o único meio possível e razoável para efectuar a prova dos factos ou se houver consentimento do ofendido ou a sua colaboração ou cooperação para a fixação dos factos que a outra parte se propõe provar ou se a recolha e a fixação em suportes físicos ou digitais das realidades ou dos acontecimentos foi acidental). Ora, no caso concreto, entre os direitos fundamentais da pessoa cuja voz foi colhida sem consentimento que merecem tutela são passíveis de ser convocados os consagrados nos arts. 26º e 34º da Constituição. De facto, desde logo, o art. 26º da Constituição tutela o reconhecimento a todas as pessoas dos direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, mas também à palavra e à reserva da intimidade da vida privada. Conforme salientam Jorge Miranda e Rui Medeiros[33]: “Os direitos à palavra e à imagem são expressões típicas da autonomia pessoal constitucionalmente garantida por força do princípio da dignidade humana. Os direitos à palavra e à imagem incluem o direito a que não sejam registadas ou divulgadas palavras ou imagens da pessoa sem o seu consentimento, conferindo assim um direito à “reserva” e à “transitoriedade” da palavra falada e da imagem pessoal (…). O direito à palavra implica salvaguarda da “integridade de uma esfera privada” de comunicação verbal, através da garantia de “confidencialidade das palavras não publicamente divulgadas” (MAUNZ/DÜRIG et al., Gundgesetz Kommentar, 2009, Abs. 1, Art 2, Rd 196), ainda que essas palavras não se refiram à intimidade da vida pessoal ou familiar. O direito à palavra pode, até certo ponto, considerar-se parte de um direito mais amplo à autodeterminação informacional, que inclui o direito a que não sejam registados, divulgados ou, por qualquer forma, utilizados dados pessoais sem o consentimento da pessoa a quem tais dados se refere. É este direito à palavra, com a amplitude que lhe reconhecermos, o bem protegido na proibição das gravações ilícitas”. O direito à palavra, tal como o direito à imagem, à reserva da intimidade da vida privada, à identidade pessoal, integram o núcleo do direito geral de personalidade e, nessa medida constituem expressão directa do postulado básico da dignidade humana. “Só a palavra é capaz de nos afirmar e confirmar. Somos a voz que temos (…). E, sem poder dizer, nada podemos (…) quem não sabe falar, não sabe convencer, nem seduzir (…) sem palavras não há comunhão de corpos e de almas. Há tropecções do instinto.”[34]. Todavia, o direito à palavra não é um direito típico na legislação ordinária, muito embora, partindo da concepção de que o art. 70º do CC contempla uma regra geral de proteção à personalidade humana, e que o rol de direitos previstos na lei civil não é taxativo, a voz também deve ser considerada perante o ordenamento jurídico português como um direito de personalidade, já que corresponde a um bem existente e determinado. O direito à palavra inclui o direito a que não sejam registadas ou divulgadas palavras da pessoa sem o seu consentimento, conferindo um direito à reserva e à transitoriedade da palavra falada. Garante-se, assim, a autonomia na disponibilidade da palavra independentemente de estar ou não, de forma directa, em causa o bom nome e a reputação das pessoas. Todavia, para além destes pontos, como salienta Nuno Lumbrales[35]: “Existe ainda um outro aspecto a tutelar: o contexto em que as declarações foram proferidas, e a confiança na “volatilidade” ou “transitoriedade” da palavra (…)”. Como sintetizam Gomes Canotilho e Vital Moreira[36], o direito à palavra desdobra-se em três direitos: (a) direito à voz, como atributo de personalidade, sendo ilícito, sem consentimento da pessoa, registar e divulgar a sua voz, com ressalva, é claro, do lugar em que ela foi utilizada; (b) direito às palavras ditas, que pretende garantir a autenticidade e o rigor da reprodução dos termos, expressões, metáforas escritas e ditas por uma pessoa; (c) o direito ao auditório, ou seja, a decidir o círculo de pessoas a quem é transmitida a palavra. Também o direito à reserva da intimidade da vida privada tem assento no mencionado art. 26º da Constituição. Este direito é, na lei ordinária, expressamente protegido, de acordo com o consignado no art. 80º do CC. Numa primeira noção, o Tribunal Constitucional (cfr. Ac. nº 128/92, publicado no D.R., II Série, de 24 de Julho de 1992) afirmou que a reserva da intimidade da vida privada se traduzia no “direito de cada um a ver protegido o espaço interior ou familiar da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias. É a privacy do direito anglo-saxónico. (…) Este direito à intimidade ou à vida privada, este direito a uma esfera própria e inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular compreende: a) a autonomia, ou seja, o direito a ser o próprio a regular, livre de ingerências estatais e sociais, essa esfera de intimidade; b) o direito a não ver difundido o que é próprio dessa esfera de intimidade, a não ser mediante autorização do interessado”. Posteriormente, o TC veio a centrar a protecção da vida privada por referência ao conceito de informação sobre a vida privada: “Poderá, assim, talvez dizer-se que a jurisprudência do TC parece evoluir no sentido de uma restrição do direito à protecção da vida privada a um direito relativo à informação sobre a vida privada. De acordo com este entendimento, excluir-se-ia do âmbito desse direito a liberdade da vida privada, por forma a evitar a conhecida “miséria da privacy” que resulta de um desmesurado alargamento, como o que encontramos no contexto anglo-saxónico (onde acaba por incluir quase todos os aspectos de uma protecção geral da personalidade)”[37]. A Constituição emprega a expressão “vida privada” a qual se dicotomiza com a “vida pública”. “Todavia, o critério de distinção não é um critério puramente espacial, dependente do local onde os factos ocorreram. Este é um elemento importante a ter em consideração. Mas parece que certos acontecimentos que ocorreram em público (por exemplo, uma conversa na rua ou num restaurante) podem igualmente ser protegidos pela reserva da vida privada”[38]. Em termos gerais, a «vida pública» é a vida social da pessoa, a sua relação com o mundo e com a sociedade em que se acha inserido, enquanto que a «vida privada» corresponderá à vida que o titular não quer partilhar com os outros e, que, apenas a ele respeita. “Na definição da extensão da reserva sobre a intimidade da vida privada, o legislador recorreu a conceitos indeterminados ou maleáveis, que carecem de “preenchimento valorativo” por parte do julgador. Mesmo neste domínio, porém, deverá o juiz considerar certos momentos racionais, como, por exemplo, o sentido objectivo dos conceitos no ambiente social considerado, os interesses presentes na hipótese concreta e as concretizações que desses conceitos já tenham sido feitas pela jurisprudência. Neste domínio, existe uma mais acentuada dose de valoração e apreciação por parte do julgador do que a que tem lugar na aplicação de uma norma integrada por conceitos fixos, mas a sua actuação é vinculada à lei e não de mera discricionariedade”[39]. Procurando precisar o conteúdo da noção de vida privada, pode concluir-se que nesta se engloba a vida pessoal, a vida familiar, a relação com outras esferas de privacidade (como a amizade), o lugar próprio da vida pessoal e familiar (o lar, a casa de morada de família ou o domicílio pessoal) e os meios de comunicação e de expressão privados (a correspondência, o telefone, a expressão oral, etc.). Também fazem parte da «vida privada», os elementos respeitantes à vida familiar, vida conjugal, amorosa e afectiva de uma pessoa, ou determinados locais privados ou reservados em que uma pessoa se encontre, como um carro, ou mesmo públicos, como uma cabine telefónica ou uma casa-de-banho pública. Dela também farão parte as informações relativas a estados pessoais, como a definição dos «momentos penosos ou de extremo abatimento»[40] de uma pessoa. O art. 80º do CC – com a epígrafe “Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada” – estatui que: «1. Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem. 2. A extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas». Este normativo manda atender, na concretização prática da extensão da reserva da intimidade da vida privada de outrem, a dois critérios: «a natureza do caso» e a «condição das pessoas». O interesse público é muitas vezes invocado como justificação para a divulgação de factos que digam respeito à vida privada de certas pessoas com notoriedade, mas, a “compressão” eventual do direito à privacidade destas, não pode justificar a devassa da esfera íntima das mesmas. Na decorrência do estabelecido em diversos instrumentos jurídicos de índole internacional, a CRP tutela ainda a inviolabilidade do domicílio, no art. 34º. “A inviolabilidade do domicílio é um direito fundamental individual e, embora limitado, a sua restrição apenas será permitida nas situações que a lei determinar”[41]. A inviolabilidade do domicílio está relacionada com o direito à intimidade pessoal (esfera privada especial), previsto no art. 26º da CRP, considerando-se o domicílio como projecção espacial da pessoa. Trata-se de um direito referente à liberdade da pessoa, e assim é que a Constituição considera a “vontade”, o “consentimento” da pessoa (art. 34º/2 e 3) como condição sine qua non da possibilidade de entrada no domicílio dos cidadãos fora dos casos de mandato judicial. Referem Jorge Miranda e Rui Medeiros[42] que: “Dentro do conceito de domicílio devem ainda ser integrados os espaços mistos que, além de servirem de domicílio, servem ainda para o exercício de uma determina profissão (consultórios médicos, escritórios, oficinas de artesanato, etc...). No entanto, é lícito perguntar se tais espaços integrados no domicílio devem gozar da totalidade da tutela constitucional oferecida ao domicílio. A resposta a esta pergunta está no nível de abertura ao exterior desses locais: quanto maior for essa abertura, mais esse local se afastará da possibilidade de equiparação total ao domicílio, diminuindo, consequentemente, a protecção constitucional que lhes é conferida. Assim, a proteção constitucional fica condicionada à vontade do titular desses espaços, na medida em que este admita, ou não, a entrada de terceiros. O facto de ser permitida a entrada nesses locais (um quase consentimento genérico), seja de clientes ou de outras pessoas relacionadas com a actividade profissional, retira o caráter privado ao local de trabalho, enfraquecendo a tutela constitucional. Tais espaços assim configurados e na estrita medida em que servem de base ao exercício de uma profissão, deixam de gozar do regime aplicável ao domicílio. Estes locais com abertura pública não comungam da totalidade das razões justificativas da protecção oferecida ao domicílio, não podendo ser a este equiparados”. O sigilo da correspondência previsto no art. 34º da Constituição “pretende proteger o tráfego da informação privada que circula, em suporte corpóreo, entre pessoas determinadas”[43], que é estendido a outros meios de comunicação. Feitas estas considerações, parece-nos que, no caso em apreço, a tutela da visada na gravação não se alcança por referência ao art. 34º da CRP, dado que, não está em causa um meio de comunicação corporizado, mas antes, o próprio direito à palavra da recorrida, que terá sido precipitado, em termos definitivos para o registo áudio, que consubstancia o documento junto aos autos. Ora, tal como sucede com o bem jurídico protegido com a incriminação do art. 199º do Código Penal, o que se tutela, em último termo, na previsão constitucional da tutela do direito à palavra é impedir que qualquer expressão oral produzida num contexto transitório e fugaz da vida se converta num produto registado e susceptível de ser utilizado a todo o tempo[44]. Também não é líquido que o conceito de reserva da intimidade da vida privada, com a amplitude que lhe foi assinalada, obtenha alguma compressão no modo como a prova foi obtida, nada se apurando de concreto a este respeito. Todavia, já nos parece inequívoco de que, com a gravação registada pelo recorrente, está em causa a recolha para suporte – em moldes não autorizados – do direito da recorrida à sua palavra ou voz e ao não registo, sem autorização, da mesma, direito conferido pelo aludido art. 26º da Constituição. Este direito é em concreto prevalecente sobre o direito à prova do recorrente, sendo que, aliás, não se vislumbra na invocação que o mesmo efectuou para almejar a utilização do meio de prova em questão, uma fundada razão justificativa no sentido da licitude do meio de prova. Conforme referem Paula Costa e Silva e Nuno Trigo dos Reis[45] “à parte não titular do direito violado só seria lícita a utilização da informação reservada ante o preenchimento de alguma causa justificadora dessa ofensa. Tal justificação só pode residir no imperativo de protecção de outros direitos fundamentais, de dignidade idêntica e no respeito pelo princípio da proporcionalidade. Neste ponto, assiste razão à doutrina dominante quando sublinha que a cedência do princípio de proibição de produção e de valoração da prova ilícita não pode bastar-se com a existência de uma situação de necessidade de prova, antes requer que essa necessidade incida sobre factos jurídicos que sejam constitutivos de uma situação jurídica subjectiva ou postulativos de princípios objectivos de dignidade e merecimento de tutela superiores aos bens jurídicos sacrificados pela cedência. No entanto, o exercício de um mero direito à indemnização não atende a nenhum valor superior àquele que está em causa…”. Repare-se, de facto, que a utilização da gravação áudio da “conversação” não é sequer o meio exclusivo de demonstração da factualidade pretendida provar pelo recorrente. De facto, ainda que, como já supra referido, seja à reclamante que cabe o ónus de provar os factos donde deriva a exclusão pretendida, sempre poderá o recorrente utilizar outros meios ao seu dispor (onde se encontram, em particular, a prova testemunhal, a prova por declarações suas e, ainda, a prova por depoimento da contraparte), que aliás requereu. Assim, não se pode concluir que, com a supressão da gravação dos presentes autos, na linha do despacho recorrido, o direito à prova do recorrente fique afectado, podendo a prova dos factos ser levada a efeito, por banda do recorrente, por outros meios de prova, como cabalmente aludido na decisão recorrida, não se justificando, também, por este motivo, como imprescindível, a utilização em juízo da gravação ilicitamente, porque sem consentimento, obtida. Conclui-se, pois, que a gravação em questão não é indispensável para a justa composição do litígio, sendo certo que, a protecção dos direitos da titularidade da visada na gravação – direitos de natureza pessoal, como a palavra e a disponibilidade sobre a mesma - sobrelevam, em concreto, relativamente ao direito à prova do recorrente – cuja finalidade, assenta num mero objectivo patrimonial. Logo, na decisão recorrida, foram ponderados e harmonizados, de harmonia com a Constituição, os contrapostos interesses em presença. Não merecendo, pois, a decisão do Tribunal a quo qualquer reparo nesta parte, improcedendo, assim, aqui, o recurso. * 6 – DISPOSITIVO Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo interessado e Cabeça de Casal DD, com a revogação da decisão recorrida na parte em que decidiu remeter os interessados para os meios comuns relativamente às questões suscitadas quanto à verba em litígio – a nº 3 da primitiva relação de bens e ora nº 2 da relação de bens atualizada –, e determinando-se que o tribunal a quo aprecie e decida a reclamação de bens nessa parte, confirmando-se quanto ao mais a decisão recorrida. Custas do recurso por ambos os interessados, em partes iguais. Notifique. * Guimarães, 30-04-2025 (José Cravo) (Alcides Rodrigues) (António Beça Pereira) [1] Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, ... - Juízo C. Genérica [2] O que fez nos seguintes termos: AA, notificada da Relação de Bens apresentada pelo Cabeça-de-Casal, vem aos autos apresentar RECLAMAÇÃO contra aquela, o que faz nos seguintes termos: A – DO DIREITO DE CRÉDITO DESCRITO / RELACIONADO SOB A VERBA Nº 1 Como o cabeça-de-casal sabe (muito bem), efectivamente, o bem em causa (casa sita em ... – ...) que ficou a pertencer à aqui interessada e à sua irmã EE, na proporção de metade indivisa para cada uma, implicou o dispêndio pelo ex-casal de cinco mil e vinte e oito euros (5.028,00€), tal qual consta do documento que ora se junta como doc. 1, cujo teor, por questão de economia processual, se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, pelo que, o valor ali indicado deve ser reduzido a esse concreto montante, o que aqui e por esta via se requer, pese embora esse bem ser bem próprio da aqui interessada. B – DO TÍTULO DE CRÉDITO RELACIONADO SOB A VERBA Nº 2 Relativamente ao Plano Poupança Argentum Preminum no valor indicado, pelo cabeça-de-casal, de dez mil euros, a interessada está convencida de que à data da entrada da p.i. em Juízo / Tribunal que deu origem ao processo de divórcio – a ../../2023 – o valor investido pelo ex-casal nesse título de crédito era / é de valor muito superior, pelo que, para além de se reclamar desse valor relacionado, não se aceitando por isso o montante indicado de dez mil euros, REQUER-SE que o cabeça de casal junte a estes autos documento / título emitido pela entidade bancária com referência ao dia supra referido e o seu valor concreto. C – DINHEIRO REFERIDO NA VERBA Nº 3 COMO ESTANDO NA POSSE DA INTERESSADA – DA SUA EXCLUSÃO POR RELACIONAÇÃO INDEVIDA: Como o cabeça-de-casal sabe (muito bem) a aqui interessada não retirou a quantia ali referida, ou qualquer outra, do cofre existente na casa de morada de família. Assim sendo, deve a verba em causa ser eliminada, o que se requer. D – DA FALTA DE RELACIONAÇÃO DE BENS: Falta relacionar o montante de (pelo menos) quarenta e oito mil, novecentos e sessenta e quatro euros e setenta e sete cêntimos (48.964,77€) pertencente ao ex-casal e que o cabeça-de-casal durante a constância do casamento transferiu, abusivamente e sem a aqui interessada saber, para um CC, através da conta bancária aberta na Banco 1... com o nº ...24, tendo a aqui requerente “descoberto” que esse dinheiro foi “dirigido” para uma “amiga” brasileira do cabeça-de-casal com a qual este mantinha uma “amizade especial”. REQUER-SE, pois, que o cabeça de casal junte a estes autos documento / título emitido pela entidade bancária com referência até ao dia supra referido – ../../2023 – e o valor transferido, sendo que a aqui interessada tem conhecimento do montante de algumas dessas transferências e dos dias concretos das mesmas, a saber: Dia: Transferido: 20/09/2022 …………………………………………………………………………………..……. 1.000,00€ 29/09/2022 ……………………………………………………………………………………….. 10.000,00€ 17/10/2022.....................................................................…………….. 9.000,00€ 07/11/2022 ………………………………………………………………………………….……9.500,00€ 21/11/2022 …………………………………………………………………….………………… 9.500,00€ 23/02/2023 …………………………………………………………………..………………….… 9.964,77€ Valor a relacionar ...……………. 48.964,77€ E – (Ainda) DA FALTA DE RELACIONAÇÃO DE BENS: Falta relacionar também os Montantes / Saldos existentes nas contas bancárias do ex-casal, quer das contas conjuntas, estas até ao dia ../../2023, data da entrada em Juízo da p.i. do processo de divórcio, quer das contas referentes à firma “EMP01..., Unipessoal Lda”, sociedade pertencente ao casal e que integra ainda a economia comum até à sua partilha, saldo esse que deve ser relacionado, de momento, até à sua apresentação em Juízo, mediante documento / título emitido pela entidade bancária, não se prescindindo da apresentação (futura) desse saldo existente a final deste processo de Inventário. [3] O que fez nos seguintes termos: A) NO QUE TANGE AO DIREITO DE CRÉDITO, RELACIONADO SOB A VERBA Nº.1 1 – De acordo com o disposto no art. 1730º nº.1do C. Civil, “os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso. 2 – Contudo, em flagrante violação da regra (da metade) imposta por tal normativo legal, optou a reclamante por adotar “ab initio”, ou seja, desde que tomou a decisão de pôr termo à comunhão conjugal, conduta tendente a impedir o c.c. de participar por metade no ativo, tudo conforme melhor se explicitará infra. 3 – Inserindo-se nesse propósito a pretensão em ver reduzida a 5.028€ a quantia por ela devida ao património comum, quando sabe (ela sim, muito bem), dado tratar-se de factualidade que é do seu conhecimento direto que: a) O prédio urbano, identificado na escritura junta com a reclamação, foi avaliado em 50.000€, razão pela qual ascendia o quinhão hereditário de cada um dos dez filhos, ali identificados ascendeu ao montante de 5.000€. b) Dado que tal imóvel haveria de ficar adjudicado, como ficou, apenas à reclamante e a sua irmã EE, entre eles ficou estabelecido e aceite que a reclamante pagaria 5.000€ a cada um dos 4 irmãos (FF, GG, HH e II), enquanto que EE pagaria 5.000€ a cada um dos outros quatro irmãos. c) Certo é que a reclamante e c.c. apenas pagaram então 5.000€ a cada uma das irmãs da reclamante, FF, GG e HH), perfazendo assim, o montante global de 15.000€, outrotanto não sucedendo quanto ao irmão II, dado encontrar-se ausente, ao tempo, no .... d) Do exposto resulta que o valor/preço declarado naquela escritura notarial não tem qualquer correspondência com a verdade, nessa medida se deixando impugnada 4 – Impondo-se, assim, a manutenção da verba nº.1 (direitos de crédito) nos exatos termos em que se mostra relacionada. ************ B) NO QUE RESPEITA À RECLAMAÇÃO SUSCITADA QUANTO AO CRÉDITO RELACIONADO SOB A VERBA Nº.2O referido investimento foi efetuado aos 10/08/2022, sendo que, à presente data e, conforme decorre do cotejo do extrato bancário junto (doc. nº.1), ascende o seu valor, à presente data, a 12.679,10€, nessa medida se retificando o valor da verba nº.2. C) NO QUE TANGE À PRETENSÃO DA RECLAMANTE EM VER EXCLUÍDA DA RELAÇÃO DE BENS A VERBA Nº.3 (DINHEIRO NA POSSE DA RECLAMANTE): 1 – Ao contrário do que falsamente alega a reclamante, o que o c.c. sabe (muito bem), como o sabe a reclamante, é que esta não só retirou do interior do cofre existente na casa de morada de família a quantia de 120.000€, pertencente ao casal, como dali retirou a quantia de 27.500€ que constituía bem próprio do c.c., mantendo-se, até à presente data na sua posse. 2 – Com efeito, pelas forças do trabalho de ambos – explorando o c.c. um estabelecimento de talho, na cidade ..., denominado “EMP01...”, e a reclamante dedicando-se ao fabrico e comercialização de fumeiro e leitão assado, em estabelecimento instalado em armazém contíguo à casa de habitação na ..., lograram eles amealhar, ao longo dos anos (superior a dez anos), a quantia de 120.000€, em numerário, que ali guardavam e cuja chave a reclamante guardava por mão própria, já que apenas ela e, ao que o c.c. logrou posteriormente apurar, a filha de ambos (JJ), estavam ao conhecimento da sua concreta localização. 3 - Ali se encontrando ainda guardada a quantia de 27.500€, em numerário, correspondente a metade do dinheiro deixado pelo pai do c.c., KK, falecido aos ../../2019, já que a outra metade revertera para a outra filha (LL). 4 – Na verdade, tendo o pai do c.c. deixado a quantia de 55.000€ (depositada na conta bancária de que o mesmo era titular no Banco 2... – ..., foi tal importância transferida aos 18/10/2019 para a conta de seu cunhado MM que, por sua vez, lhe veio posteriormente a devolver metade desse valor, em numerário, dado que a outra metade era pertença de sua irmã LL (casada com o referido MM) – ut. doc. nº. 2, 3 e 4. 5 – Entretanto, em data imprecisa, mas que o c.c. reputa como situando-se em finais de Abril do ano transato, a vivência conjugal passou a tornar-se insustentável, na medida em que a reclamante, alegando haver tomado conhecimento de transferências bancárias efetuadas pelo c.c.(que agora, no seu dizer ascendem a 48.964,77€ (vide ponto D) da Reclamanção) para um cidadão brasileiro, de nome CC, no valor global de 40.000€, passou a acusá-lo de ter uma amante no ... para quem, no seu dizer, havia transferido tal valor, alegadamente pertencente do casal. 6 – E, apesar das explicações dadas pelo c.c. [que lhe fez saber que se limitara, a solicitação de pessoa amiga, a transferir valores pertencentes ao próprio destinatário, de nome CC] e das provas indicadas (identidade da pessoa que lhe solicitara tal favor), a reclamante persistiu em acusá-lo de haver “desviado” dinheiro comum do casal que, no seu dizer, o c.c. terá “transferido para uma amante que tinha no ... – sic. 7 – E vai daí que haja a reclamante, como retaliação, concebido um plano que passaria por se apropriar não apenas de todo o dinheiro existente no interior do cofre (120.000€ pertencente ao casal e 27.500€ pertencente apenas ao c.c.), como ainda do dinheiro do c.c. (que constituía bem próprio deste), no montante de 54.000€, que se encontrava depositado em conta conjunta no Banco 2... (conta à ordem nº. ...63). 8 – Plano esse que a reclamante pôs em prática pela forma que segue: a) No dia 25/05/2023 transferiu para a conta bancária da filha de ambos, de nome JJ, com quem se encontrava conluiada para o efeito, a quantia de 54.000€, pertencente ao c.c., uma vez que proveniente da venda de imóvel herdado por óbito de seu pai (doc. nº.5). b) Por essa altura, a reclamante, já de posse do dinheiro (147.500€) que havia retirado do cofre, ausentou-se durante alguns dias para a localidade de ..., concelho ..., onde, para além de possuir casa própria, reside sua irmã GG e, em cuja companhia terá passado esses dias (desde 2ª feira de manhã até 4ª feira ao fim da tarde). c) Presumindo-se que ali terá deixado guardado/escondida tal quantia em dinheiro, ou confiado à guarda de sua referida irmã, (GG), ou mesmo da sogra desta, de nome NN, residentes no mesmo local (...). Pois que, 9 – Ignorando a supra descrita factualidade, ou seja, que a arguida havia já retirado e feito “desaparecer” o dinheiro que se encontrava guardado no cofre, entendeu por bem o c.c., na sequência de aconselhamento nesse sentido, dotar tal cofre de um cadeado metálico, provido de aluquete, com o objetivo de impor à reclamante a partilha igualitária da quantia de 120.000€ a ambos pertencente, inteirando-se, do mesmo passo, do valor (27.500€) que era bem próprio seu, supostamente ainda no seu interior. 10 – Certo é que, regressada à casa de morada de família, não teceu a reclamante qualquer comentário ao facto de haver constatado que, na sua ausência, havia o queixoso enleado o cofre com tal cadeado... o que levou o c.c. a suspeitar que a colocação do cadeado pecasse por tardio!... 11 – Entretanto e, uma vez que a rutura do casamento era já incontornável, c.c. e reclamante, sob a mediação dos então seus advogados, reuniram-se aos 16/6/2023, no escritório do mandatário do c.c., com vista a aquilatar das possibilidades quer da dissolução do casamento por via do recurso ao divórcio por mútuo consentimento, bem como a partilha extra-judicial do património comum. 12 – No decurso de tal reunião, foi possível chegar a um consenso quanto a ambas as questões, ficando acordado que, acompanhados dos seus advogados, se deslocariam de seguida, à casa de morada de família, tendo em vista a abertura do cofre e a divisão entre ambos dos 120.000€, sendo ainda o c.c. entregue dos 27.500€ que apenas a ele pertenciam, já que por ambos aceite quer a existência de tais montantes no interior do Cofre, quer o facto de se encontrar a respetiva chave à guarda da reclamante. 13 – Certo é que, aberto que foi o cofre (na sequência da entrega da chave por parte da reclamante) ficaram todos estupefactos, à exceção desta, com a inexistência de qualquer numerário no seu interior. 14 – De facto, perante a indignação do c.c. e surpresa dos seus advogados, a reclamante, porque cônscia do logro em que induzira os demais presentes, limitou-se a referir que “se calhar, alguém veio roubar o dinheiro” - Sic. 15 – Sendo que, posteriormente, em conversas mantidas não apenas com o queixoso (conforme emana do ficheiro áudio constante da PEN junta), como com terceiros, a reclamante expressamente reconheceu encontrar-se na sua posse, assumindo que o dinheiro “vai aparecer” para ser partilhado. 16 – De resto, conforme se deixou referido supra, idêntico procedimento levou a cabo a reclamante no que tange à quantia de 54.000€, que indevidamente, já que sem a autorização e contra a vontade do c.c., transferiu para a conta bancária da filha de ambos JJ – que esteve na génese do procedimento cautelar de arrolamento nº. 220/23...., que correu termos pelo Juízo Central de Almada – Juiz ..., conforme requerimento inicial, oposição e comprovativo da transferência, (doc. nº.6). 17 – Com efeito, enquanto no que tange aos 54.000€, alvo de transferência bancária efetuada pela reclamante para a filha de ambos, logrou já o c.c. ver ser-lhe restituída de tal importância, (deduzida da verba de 9.000€ que entendeu por bem doar à filha) na sequência de transação efetuada no referenciado procedimento cautelar, face ao reconhecimento, por parte desta, não ter sido beneficiária de qualquer doação por parte do c.c., outrotanto não sucedeu ainda no que tange ao dinheiro existente no interior do cofre, do qual a reclamante se apropriou pela forma predita, dando-lhe destino ignorado. 18 – Razão pela qual e, com base na predita factualidade contra ela apresentou o c.c. queixa-crime, por entender que tal factualidade seria subsumível ao crime tipificado pelo art. 204º nº.2 al. a) do C.Penal, que correu termos pela Procuradoria da República do Juízo de Competência Genérica de ... com o nº. 8/24.... (doc. nº.7). 19 – Contudo, por entender que a factualidade denunciada, reveste natureza exclusivamente civil e não penal, determinou o arquivamento dos autos, conforme melhor consta do douto despacho ali proferido e que, por razões de economia processual, se junta e aqui de dá por integralmente reproduzido para legais efeitos (doc. nº.7). 20 – Razão pela qual e, tal como ali bem se refere o respetivo valor de 120.000€ deve ser relacionado como bem comum, em sede de inventário, como sucedeu, e o valor de 27.500€ deve ser compensado pela reclamante ao c.c. no momento da partilha, já que “é no momento dessa liquidação que se deverá proceder às compensações entre patrimónios próprios e comuns” - art. 1689º nº.1 a 3 do C. Civil. 21 - Nessa decorrência e, tendo em conta que a interessada/reclamante pretende, através da declaração da inexistência do dinheiro, relacionado sob a verba nº.3 (120.000€) e que constitui bem comum do casal, ocultar dolosamente a sua existência, com o desígnio fraudulento de dele se apropriar, deverá a mesma perder em benefício do c.c. o direito (metade) que lhe assistia relativamente ao mesmo, por manifesta sonegação de bens (art. 2096º do C. Civil) – sonegação essa que aqui se invoca para todos os efeitos legais. 22 – Acresce que, destinando-se o presente processo de inventário não só a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros, o que pressupõe sempre a relacionação de todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos (Ac. R.G. de 7-6-2023, Procº 1702/20.0T8BRG-A-G1, in www.dgsi.pt), irá o c.c. proceder à relacionação da quantia de 27.500€ (bem próprio do c.c.), da qual a interessada/reclamante se apropriou fraudulentamente na forma predita, constituindo assim um crédito do c.c. sobre a reclamante, o qual deverá ser pago, no momento da partilha do património comum, pelas forças da meação da mesma (art. 1689º nº.3 do C. Civil). ************ D – NO QUE TANGE À ACUSADA FALTA DE RELACIONAÇÃO DA QUANTIA DE 48.964,77€1 – Não assiste qualquer razão à reclamante, porquanto não só o dinheiro, objeto das transferências efetuadas pelo c.c., não era pertença do casal, como não ascendeu o mesmo ao aludido montante, razão pela qual as “descobertas” da reclamante, porque infundadas, apenas poderão ter a virtualidade de a convencer a si própria. 2 – É que, ao contrário do que efabula a reclamante, o dinheiro, no montante de 40.000€ (que não 48.964,77€) era propriedade de CC, cidadão brasileiro, tendo-se o c.c. limitado, a solicitação de pessoa das suas relações de amizade, de nome OO, a ficar depositário do mesmo, com a obrigação de o transferir para a conta bancária do referido CC, no .... 3 – E, foi assim que, de posse de tal numerário foi o c.c. procedendo ao seu depósito (à exceção de 4.000€) na conta bancária de que era titular (conjuntamente com a reclamante) na Banco 1... (conta nº. ...62), e, seguidamente, à sua transferência para a conta do seu legítimo dono, que o era o referido CC, tudo conforme é refletido pelo extrato bancário que se junta sob doc. nº.8, aqui dado por integralmente reproduzido. 4 - Assim: a) No dia 19/9/2022 procedeu o c.c., pelas forças do numerário que lhe havia sido entregue, ao depósito de 1.000€ que, no dia 20/9/2022 transferiu para o dito CC. b) No dia 29/9/2022, procedeu o c.c., pelas forças do numerário que lhe havia sido entregue, ao depósito de 20.000€, o qual esteve subjacente às transferências de 10.000€ (nesse mesmo dia) e 9.500€ dia 7/11/2022. * É que a transferência de 9.000€, efetuada aos 17/10/2022, foi objeto de devolução aos 3-11-2022, conforme se alcança do cotejo de tal documento. c) Nos dias 21/11/2022; 29/12/2022 e 26/1/2023, procedeu o c.c., pelas forças do numerário de que havia ficado depositário, ao depósito das quantias de 5.000€; 5.000€ e 5.000€, respetivamente, tendo transferido para a conta do referido CC as quantias de 9.500€ (21/11/2022) e 9.964,77€ (23/2/2023) respetivamente. 5 – Certo é que, apesar de estar a reclamante ao exato conhecimento de que o dinheiro, objeto das aludidas transferências, não era pertença do casal – tanto mais que a predita factualidade lhe foi oportunamente participada pelo c.c. e confirmada pela testemunha OO – não se coibiu de vir a juízo pugnar pela relacionação de dinheiro que bem sabe não fazer parte do elenco dos bens comuns a partilhar nos presentes autos. 6 – Destarte, forçoso será concluir, também nesta parte, pela improcedência da reclamação suscitada pela reclamante. *************** E) NO QUE TANGE AOS SALDOS BANCÁRIOS QUER DAS CONTAS CONJUNTAS, QUER DAS CONTAS REFERENTES AO “EMP01... UNIPESSOAL, LDª”1 – A conta nº. ...63 de que os ex-cônjuges eram co-titulares no Banco 2..., SA, apresentava aos ../../2023 o saldo de 1.184,76€, conforme extrato bancário nº. 6/2023, que se junta sob doc. nº. 9. 2 – A conta nº. ...92 de que é titular o “EMP01..., Unipessoal, Ldª” no “Banco 2..., Sa” apresentava aos ../../2023 um saldo de 1.805,23€, conforme doc. nº. 10. 3 – Irá, assim, o c.c. proceder à inclusão na nova relação de bens do saldo da conta conjunta (1.184,76€), sendo que outrotanto não ocorrerá relativamente ao saldo da conta titulada pela sociedade comercial “EMP01..., Unipessoal, Ldª dado integrar o mesmo o Ativo de tal sociedade. ********** F) FINALMENTE:1 - Por lapso manifesto, pelo qual o c.c. se penitencia, não foi incluído na relação de bens apresentada um estabelecimento comercial de fabrico e comercialização de fumeiro e leitão assado, instalado em armazém anexo à casa de habitação (verba nº.12 da Relação de Bens), ao qual estão afetos os equipamentos mencionados na alínea L da verba nº.8 da relação de Bens, estabelecimento esse que, antes como depois da dissolução do seu casamento vem sendo explorado pela reclamante, como empresária individual ou singular (NIF....40). 2 - Para tanto e, para além de se encontrar a reclamante devidamente coletada na repartição de Finanças ... [para o exercício daquela atividade comercial] sempre (pelo menos desde 2016) canalizou a mesma as despesas e receitas de tal atividade comercial para a conta bancária de que a mesma é exclusiva titular no Banco 2... com o nº. ...78 (doc. 11). Assim e, para além da inclusão de tal estabelecimento comercial na nova Relação de Bens que irá ser apresentada, deverá a reclamante ser notificada para, no prazo que para o efeito lhe vier a ser concedido, vir juntar aos autos, ao abrigo do disposto nos arts. 7º, 8º e 429º do C.P.C., extrato bancário atinente a tal conta bancária, com referência a 21/6/2023, tendo em vista a sua inclusão na Relação de Bens. Nestes termos e nos demais aplicáveis de direito, deve a reclamação contra a relação de bens suscitada pela interessada AA, ser julgada improcedente, por não provada, com legais consequências, devendo ainda ser julgada procedente, por provada, a invocada sonegação de bens por parte da reclamante, com a cominação legal daí resultante (art. 2096º do C. Civil). a) Por confissão: Requer-se o depoimento de parte da reclamante à matéria alegada no ponto 3 da alínea A; nos pontos 1 a 17 da alínea C; no ponto 5 da alínea D, nos pontos 1 e 2 da alínea F, da presente RESPOSTA, por se tratar de factualidade que para além de lhe ser desfavorável, dela tem a reclamante conhecimento direto. b) Por declarações de parte: Requer-se sejam tomadas declarações de parte ao c.c., as quais deverão recair sobre a matéria alegada no ponto 3 da alínea A; nos pontos 1 a 17 da alínea C; nos pontos 1 a 5 da alínea D; nos pontos 1 e 2 da alínea F. Por testemunhas (a notificar): 1 - PP, casado, residente na Rua da Srª d,... – ... – ... ....; 2 – QQ, casada, residente na Rua ... – ... – ... ...; 3 – MM, casado, residente na Rua ... – ... – ... ...; 4 – RR, casado, emigrante no ..., cuja inquirição se requer tenha lugar através dos meios tecnológicos à disposição do tribunal, que permitam a comunicação por meio visual e sonoro – o que se requer ao abrigo do disposto no art. 502º do C.P.C., indicando para o efeito o número do seu telemóvel: ...01; 5 – OO, casado, residente na Rua ... – ... – ... – ... ...; 6 – CC, natural e residente (à presente data) no ..., cuja inquirição se requer através dos meios tecnológicos à disposição do tribunal, que permitam a comunicação por meio visual e sonoro – o que se requer ao abrigo do disposto no art. 502º do C.P.C., indicando para o efeito o número do seu telemóvel: ...54; 7 – SS, cidadão brasileiro, com residência acidental nesta cidade ... – a apresentar. * Junta ainda uma PEN atinente à gravação áudio a que se fez referência no ponto 15 da alínea C, supra, onde a reclamante, em diálogo com o queixoso sobre a necessidade de procederem à partilha consensual do património comum e no qual teria necessariamente de ser incluído o dinheiro que a mesma havia retirado do cofre, à pergunta do c.c. sobre “o dinheiro do cofre vai aparecer?”, dela obtém a resposta: “vai aparecer tudo” - Sic. - conforme ficheiro áudio, designado gravação padrão 1, constante da PEN junta com o áudio original, (onde é possível aferir a correspondência entre o nome do ficheiro, bem como a data e duração da gravação. * Mais se requer seja a reclamante notificada nos termos e para os efeitos consignados na parte final do ponto 2 da alínea F da presente resposta. [4] O que fez nos seguintes termos: Salvo o devido respeito, pelas razões expendidas no despacho de que se recorre, considera-se não se verificar qualquer nulidade que o Recorrente lhe assaca. [5] Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, página 688. [6] Cfr. JOÃO ESPÍRITO SANTO, em Inventário Judicial e Notarial, AAFDL, 2021, pág. 88. [7] Cfr. v.g. o Ac. de 14-06-2022 do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no Processo nº 1309/20.2T8LRA-A.C1 e in www.dgsi.pt. [8] Cfr. LOPES CARDOSO , em Partilhas Judiciais, vol. I, 539. [9] Cfr. Ac. de 27-04-2017 do Tribunal da Relação de Évora, proferido no Processo nº 1367/10.8TBVNO.E1 e in www.dgsi.pt. [10] Cfr. Ac. de 03-07-2020 do Tribunal da Relação do Porto, proferido no Processo nº 0050759 e in www.dgsi.pt. [11] Cfr. CARLA CÂMARA, em O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial, Almedina, 2021, pág. 72. [12] Proferido no Processo nº 4851/20.1T8CBR.C1 e acessível em www.dgsi.pt. [13] Conf. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora – Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 452. [14] Assim, Rita Lynce de Faria; anotação ao art. 341º do CC, no Comentário ao Código Civil – Parte Geral; UCP, Lisboa, 2014, pág. 810. [15] Assim, Carlos Castelo Branco; A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?; Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, pág. 83. [16] Assim, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, págs. 107-108. [17] Assim, Carlos Castelo Branco; A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?; Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, pág. 87. [18] Assim, Carlos Castelo Branco; A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?; Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, págs. 288-289. [19] Assim, Carlos Castelo Branco; A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?; Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, pág. 107. [20] Assim, Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, pág. 233. [21] Provas Ilícitas em Processo Civil, pág. 235, secundada por MARIA JOÃO MIMOSO, SANDRA C. SOUSA e VITOR HUGO MEIRELES; Evidence in Civil Law, Portugal, Lex Localis, 2015, págs. 62 e ss. [22] Cfr. Provas Ilícitas em Processo Civil, pág. 240 e ss. [23] Efeitos Lícitos da Prova Ilícita em Processo Estadual e Arbitral; AAFDL, 2019, pág. 57. [24] “Provas ilícitas em processo civil. Sobre a admissibilidade e valoração de meios de prova obtidos pelos particulares”, in Revista Direito e Justiça, vol. XVIII, Tomo I, 2004, pág. 118. [25] “Provas ilícitas em processo civil. Sobre a admissibilidade e valoração de meios de prova obtidos pelos particulares”, in Revista Direito e Justiça, vol. XVIII, Tomo I, 2004, pág. 121. [26] “Provas ilícitas em processo civil. Sobre a admissibilidade e valoração de meios de prova obtidos pelos particulares”, in Revista Direito e Justiça, vol. XVIII, Tomo I, 2004, pág. 127. [27] Para mais desenvolvimentos, vd. Sara Ferreira de Oliveira; Admissibilidade da prova ilícita em processo civil, FDUL, Lisboa, 2014, págs. 28-29; Sara Raquel Rodrigues Campos; (In)admissibilidade de provas ilícitas – Dissemelhança na produção de prova no Direito Processual?, pág. 26. [28] Cfr., Carlos Castelo Branco; A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?; Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, págs. 228-232. [29] Assim, Carlos Castelo Branco; A Prova Ilícita: Verdade ou Lealdade?; Almedina, Col. Casa do Juiz, 2018, págs. 291-299. [30] Assim, Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código penal, tomo I, Coimbra, 1999, pág. 844, §69; e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-11-2007, prolatado no Pº 1800/07-2, in www.dgsi.pt. [31] Assim, entre outros, nos Acórdãos da Relação de Coimbra de 10-07-2013, prolatado no Pº 907/10.7TAGRD.C1; da Relação de Coimbra de 06-03-2013, prolatado no Pº 119/11.2GDAND.C1; da Relação de Évora de 25-11-2014, prolatado no Pº 187/10.4ZRLSB.E1 e da Relação de Lisboa de 21-03-2019, prolatado no Pº 1784/17.2T9AMD.L1-9, todos in www.dgsi.pt. [32] Assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-06-2015, prolatado no Pº 7406/14.6TDLSB-A.L1-9, in www.dgsi.pt. [33] In Constituição Portuguesa Anotada; Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Ed., 2010, pág.. 618. [34] Assim, Miguel Torga; Diário, XVI apud Manuel da Costa Andrade; Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal – uma perspectiva jurídico-criminal, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, pág. 125. [35] “O direito à palavra, o direito à imagem e a prova audiovisual em processo penal”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67.º, tomo II, 2007, págs. 683 a 729. [36] In Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ªed. revista, Coimbra, 2007, pág. 467. [37] Assim, Paulo Mota Pinto, “A protecção da vida privada e a Constituição”, in BFDUC, Vol. LXXVI, Coimbra, 2000, p. 159). [38] Cfr. Paulo Mota Pinto, “A protecção da vida privada e a Constituição”, in BFDUC, Vol. LXXVI, Coimbra, 2000, pág. 165. [39] Assim, Teodoro Bastos de Almeida; “O direito à privacidade e a protecção de dados genéticos: Uma perspectiva de direito comparado”, págs. 397-398). [40] Assim, Teodoro Bastos de Almeida, “O direito à privacidade e a protecção de dados genéticos: Uma perspectiva de direito comparado”, pág. 403. [41] Assim, Rosa Maria Fernandes, A Inviolabilidade do Domicílio, pág. 15. [42] In Constituição Portuguesa Anotada; Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Ed., 2010, pág. 761. [43] Assim, Jorge Miranda e Rui Medeiros; Constituição Portuguesa Anotada; Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Ed., 2010, pág. 771. [44] Cfr., neste sentido, Costa Andrade, in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pág. 245. [45] Efeitos Lícitos da Prova Ilícita em Processo Estadual e Arbitral; AAFDL, 2019, pág. 76. |