Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
384/09.5IDBRG.G3
Relator: PAULO SERAFIM
Descritores: PERDÃO PREVISTO NA LEI Nº9/2020
DE 10/4
ÂMBITO DE APLICAÇÃO
CONDENADO NÃO BENEFICIÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - As leis de amnistia, como providências de exceção, devem interpretar-se e aplicar-se nos termos em que estão redigidas, sem ampliações decorrentes de interpretações extensivas ou por analogia, nem restrições que nelas não venham expressas.
II - Tendo o recorrente sido condenado na pena de 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução, e uma vez revogada tal suspensão com determinação do cumprimento daquela pena em regime de permanência na habitação, não pode o condenado beneficiar da aplicação do perdão previsto no art. 2º, nºs 1 e 5 da Lei nº 9/2020, de 10.04, em virtude de à data da entrada em vigor deste diploma ele não se encontrar na situação de recluso em estabelecimento prisional.
III – Atento o vivenciado contexto de pandemia e dos riscos para a saúde dos reclusos que ela acarreta, a situação daqueles que já se encontram condenados por decisão transitada em julgado ao cumprimento de uma pena que não implica, no imediato, a sua inclusão no universo prisional, é distinta da situação dos condenados que já ingressaram no estabelecimento prisional para cumprimento de uma pena de prisão. O legislador quis, fundadamente e não de modo arbitrário, tratar de forma diferente distintas situações, pelo que a opção legislativa por ele tomada não viola, antes cumpre, nessa vertente, o princípio constitucional da igualdade (art. 13º da CRP).
IV – Não se verificando o pressuposto legal da situação de reclusão do condenado, a competência para conhecer do pedido apresentado pelo arguido para aplicação do predito perdão cabe ao Tribunal da condenação e não ao TEP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 384/09.5IDBRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo de Competência Genérica de Vieira do Minho, no dia 02.06.2020, pela Exma. Juiz foi proferido despacho com o seguinte teor (fls. 6 - referência 168137037):

«Veio o arguido, J. C. requerer, ao abrigo do disposto no artigo 2º da Lei Nº 9/2020, de 10/04, a remessa ao TEP da certidão da sentença com nota do trânsito em julgado e dos despachos prolatados, respetivamente, em 28/11/2011 (ref.ª 613175); 10/11/2017 (ref.ª 165189510) e 20/02/2019 (ref.ª 165189510), a fim da pena de 13 meses de prisão em que o mesmo foi condenado beneficiar do regime excepcional do perdão previsto no referido diploma legal.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento do requerido.
Cumpre apreciar.
Em primeiro lugar refira-se que se encontra ainda pendente de decisão, ou pelo menos, a mesma não terá ainda transitado em julgado, o recurso interposto pelo arguido do despacho que determinou o cumprimento da pena em que foi condenado, em regime de permanência na habitação, não autorizando as saídas para o exercício da actividade profissional de construção civil por conta própria.
Posto isto, resulta que o arguido em data anterior à entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10.04, não tinha ainda a qualidade de “recluso”, porquanto o mesmo não havia iniciado o cumprimento da pena, na medida em que a decisão que determinou o cumprimento da pena de 13 (treze) meses de prisão em regime de permanência na habitação, ainda não havia transitado em julgado, o que ainda se verifica.
Entendemos, assim, que não lhe é aplicável o regime excepcional da Lei 9/2020, de 10.04, aplicável apenas a “reclusos”, ou seja, a condenados por decisão transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor desta lei (n.º 7 do art.º 2.º e art.º 11.º - até 10/04/2020,) que se encontrem em cumprimento da pena de prisão à data da sua entrada em vigor (11/04/2020).
Neste segmento, indefere-se o requerido pelo arguido.
Notifique.»


▪ Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido J. C. interpor o presente recurso, que, após dedução da motivação, culmina com as seguintes conclusões e petitório (fls. 8 a 14):

«1ª - Independentemente do respeito - que é muito - que o mesmo lhe merece, não pode o Recorrente conformar-se com o mui douto despacho recorrido proferido pelo Ex.mo Tribunal a quo que, no caso dos presentes autos, determinou a inaplicabilidade do regime excecional consagrado na Lei 9/2020, de 10 de Abril ao ora Recorrente;
2ª - Por um lado, salvo o devido respeito por distinto entendimento, a mui douta decisão recorrida é nula, por violação do disposto no artigo 2º, N.º 8 da Lei N. 9/2020, de 10/04, porquanto a aplicação do regime excecional previsto no referido normativo legal se insere indubitavelmente na competência material dos tribunais de execução das penas, in casu, do Tribunal de Execução das Penas do Porto que, em virtude do disposto no artigo 137º, N.º 3 do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, é o tribunal territorialmente competente em razão da residência do Recorrente;
3ª - Violação esta que, nos termos do artigo 119º, al. e) do CPP, configura uma nulidade insanável e que expressamente se invoca com todas as legais consequências dela decorrentes, nomeadamente a declaração de nulidade do despacho recorrido e o consequente envio do requerimento do arguido de fls. … e seguintes, com a ref.ª 10045606, ao competente Tribunal de Execução das Penas, in casu o Tribunal de Execução das Penas do Porto para apreciação quanto à peticionada aplicação do regime excecional previsto na Lei N.º 9/2020, de 10 de Abril;
4ª - No âmbito dos presentes autos, o Recorrente, a fls. … e seguintes, em 10/05/2020, requereu a aplicação da medida excecional de perdão previsto no artigo 2º da Lei N.º 9/2020, de 10 de Abril, da pena de prisão aplicada, porquanto, por sentença prolatada em 28/11/2011 e transitada a 10/01/2012, foi o arguido condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p, pelo artigo 105º do RGIT, sendo que, por via da referida decisão, foi-lhe aplicada a pena de 13 (treze) meses de prisão suspensa na sua execução mediante a obrigação de pagar ao Estado a quantia em dívida a título de IVA.
5ª - Suspensão da execução da pena de prisão que, no entanto, foi revogada por despacho proferido em 10/11/2017 e já devidamente transitado em julgado, sendo que, na sequência de requerimento do arguido, foi proferida, em 20/02/2019, decisão, nessa parte transitada, que determinou o cumprimento da supra aludida sanção penal em regime de permanência na habitação.
6ª - Sucede, então, que, no passado dia 11 de Abril, entrou em vigor a Lei N.º 9/2020, publicada em 10/04, que estabelece um regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da pandemia da doença COVID -19 que assola, neste momento, o território nacional;
7ª - Sendo que, no âmbito do referido regime e para além das demais medidas, o legislador instituiu o perdão de determinadas penas de prisão, nomeadamente daquelas que tenham duração igual ou inferior a dois anos e que tenham sido aplicadas por decisão transitada em julgado antes da entrada em vigor do referenciado diploma legal;
8ª - Assim, no humilde entendimento do arguido, no caso vertido nos autos, por se encontrarem integralmente preenchidos todos os requisitos previstos para o efeito, nomeadamente no artigo 2º, Ns. 1, 5, 6 a contrario e 7º 1ª parte, da citada Lei N.º 9/2020, de 10/04, é aplicável a medida excecional de perdão, uma vez que o arguido foi, nestes autos e como supra já se referiu, condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, o qual não se encontra excluído da aplicação da medida em apreço pelo N.º 6 do artigo 2º do diploma em apreço;
9ª - Sendo que a aludida decisão condenatória foi prolatada em 28/11/2011 e transitou a 10/01/2012 e, por isso, antes da entrada em vigor do regime em apreciação e através da qual se procedeu à aplicação ao arguido da pena de prisão pelo período de treze meses e, por isso, inferior a 02 (dois) anos;
10ª - Acresce, ainda, que, salvo o devido respeito por distinto entendimento, não se pode afastar a aplicabilidade da medida em apreço por se encontrar determinada a execução da referida sanção penal em regime de permanência na habitação e, ainda, por não se ter iniciado o respetivo cumprimento,
11ª- Por um lado, a decisão de 20/02/2019, que determinou a execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, ainda não transitou e, por outro, o afastamento do peticionado perdão e da aplicação do referido regime excecional – o que se não concede e por mera hipótese se acautela - determina uma inegável e gritante violação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado e assegurado no ordenamento jurídico português;
12ª– O Recorrente ainda pode vir a cumprir a pena efetiva a que foi condenado em regime de reclusão.
13ª- Contudo, é evidente que a intenção do legislador - ainda que de modo algo imperfeito - atento o objectivo que pretendia alcançar, de combate à pandemia, por forma a, naquele meio, previr e impedir a inevitável propagação do Corona vírus, foi a de “esvaziar” os estabelecimentos prisionais;
14ª- E não, como parece ser de mediana clareza, o de os sobrecarregar com novos reclusos, condenados por crimes não excluídos da aplicabilidade da Lei em apreço e cujas penas de prisão não excedem dois anos;
15ª - O princípio consagrado no artigo 13º da Constituição da República quando refere, no N,º 1, que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, impede que os cidadãos em situações essencialmente iguais sejam objeto de tratamento distinto;
16ª - O texto constitucional proíbe a discriminação e impõe a igualdade de tratamento em situações idênticas, não exigindo uma igualdade rigorosa de circunstâncias, mas tão só uma situação essencialmente igual entre os cidadãos;
17ª – Na esteira do mui douto Acórdão prolatado pelo Venerado Tribunal da Relação de Coimbra, em 27/10/2016, no Proc. N.º 7303/15.8T8CBR.C1 e disponível em www.dgsi.pt do qual decorre: « (…) é hoje pacífico que o princípio da igualdade não proíbe tratamentos diferenciados de situações distintas, implicando antes que se trate por igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual, de tal maneira que só haverá violação desse princípio da igualdade se houver tratamento diferenciado de situações essencialmente iguais. Por outras palavras, o que esse princípio proíbe são as discriminações, as distinções sem fundamento material, porque assentes, designadamente, em meras categorias subjectivas – cfr. acórdãos do TC nºs 186/90, de 6/06/90, e 319/00, de 21/06/00, bem como Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pag. 128.»;
18ª - Deste modo, a não aplicação, nos presentes autos, do perdão da pena a que alude a Lei N.º 9/2020, de 10/04 conduziria a uma situação de flagrante desigualdade e de injustificado tratamento diferenciado do arguido perante outros arguidos condenados que se encontram em circunstâncias jurídicas essencialmente iguais às do ora Recorrente, uma vez que este beneficiaria, injustificada e infundadamente, com o perdão da pena de prisão apenas em função do correto regime de execução de uma igual pena de prisão, o que não se concede nem concebe;
19ª- Assim sendo, como respeitosamente se entende ser, a douta decisão recorrida, entre outros, violou os artigos 2º, Nº 8 da Lei N.º 9/2020, de 10/04, 137º, N.º 3 do Código de Execução de Penas e de Medidas Privativas da Liberdade e 13º, N.º 1 e 2 da Constituição da República portuguesa.

Nestes termos e nos mais e melhores de Direito, que V. Exa. mui douta e sabiamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência:

a)- Ser declarada a nulidade da douta decisão e, por via disso, ordenado o envio do requerimento de fls. … e seguintes, com a ref.ª 10045606, ao Tribunal de Execução das Penas do Porto para apreciação do referido requerimento quanto à peticionada aplicação do regime excecional previsto na Lei N.º 9/2020, de 10 de Abril;
b)- Ou, caso assim se não entenda – o que não se concebe, mas que por dever de patrocínio se acautela – ser o despacho recorrido substituído por outro que conceda ao Recorrente o perdão da pena a que foi condenado, nos termos preceituados no sobredito normativo legal,
c)- Tudo com as legais consequências e como é de INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!»

▪ Na primeira instância, a Digna Magistrada do Ministério Público, notificada do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta em que defende a confirmação da decisão recorrida e que seja negado provimento ao recurso (fls. 16 a 18).

▪ Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que, invocando pertinente jurisprudência, sustenta igualmente a improcedência do recurso (fls. 21 a 24 – ref. 7268532).

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*
II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (Thema decidendum):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.) (1).

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir são:

A) Da alegada nulidade insanável do despacho recorrido por incompetência material do tribunal.
B) Da reclamada aplicabilidade do regime excecional previsto na Lei nº 9/2020, de 10.04, à pena aplicada nos autos ao recorrente.
*
III – APECIAÇÃO:

III.1 - Da invocada nulidade insanável da decisão recorrida por incompetência material do tribunal a quo para a sua prolação:

Alega o arguido/recorrente que a decisão recorrida é nula, por violação do disposto no artigo 2º, N.º 8 da Lei N. 9/2020, de 10/04, porquanto a aplicação do regime excecional previsto no referido normativo legal se insere indubitavelmente na competência material dos tribunais de execução das penas, in casu, do Tribunal de Execução das Penas do Porto que, em virtude do disposto no artigo 137º, N.º 3 do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, é o tribunal territorialmente competente em razão da residência do Recorrente [conclusão 2ª].
Assim, segundo ele, tal violação, nos termos do artigo 119º, al. e) do CPP, configura uma nulidade insanável, com todas as legais consequências dela decorrentes, nomeadamente a declaração de nulidade do despacho recorrido e o consequente envio do requerimento do arguido, com a ref.ª 10045606, ao competente Tribunal de Execução das Penas, in casu o Tribunal de Execução das Penas do Porto para apreciação quanto à peticionada aplicação do regime excecional previsto na Lei N.º 9/2020, de 10 de Abril [conclusão 3ª].

Cumpre decidir:

Preceitua o art. 119, al. e), do C.P.P.:

“Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
[…]
e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no nº2 do artigo 32º;”

Por seu turno, prescreve o art. 137º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (doravante, apenas designado por CEPMPL), na parte que ora releva:

“1 - A competência territorial do tribunal de execução das penas determina-se em função da localização do estabelecimento a que se encontre afeto o recluso.
[…]
3 - Nos demais casos, é competente o tribunal de execução das penas com sede na área da residência do arguido ou do condenado.”

Chama ainda o recorrente à colação o disposto no art. 2º, nº8, da Lei nº 9/2020, de 10.04, onde se estipula: «Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente.»
Urge, primeiramente, delimitar o âmbito de competência material dos tribunais de execução das penas (TEP), face à competência legalmente atribuída aos tribunais penais comuns, nos casos em por estes é aplicada pena privativa da liberdade, para, subsequentemente, aquilatar do concreto contexto em que, por via da citada norma contida no nº8 do art. 2º da Lei nº 9/2020, é atribuída ao TEP a competência para aplicar o perdão ali previsto, sendo certo que esta questão mostra-se umbilicalmente associada à do mérito do requerimento formulado nos autos pelo arguido, razão pela qual não se estranhe que a nossa posição face a esta segunda questão recursiva ressume desde logo vertida na análise que infra faremos acerca da apontada nulidade do despacho recorrido.

O Artigo 2.º da Lei nº 9/2020, de 10.04, sob a epígrafe “Perdão”, prescreve, entre o mais:

“1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.
[…]
5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão.
[…]
7 - O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.
8 - Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente.
[…]”
Atalhando, expendemos desde já o nosso entendimento de que os condenados, por decisão transitada em julgado, em pena de prisão, que em 10 de abril de 2020 [ou seja, em data anterior à da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, que ocorreu no dia 11/04/2020] ainda não sejam reclusos, não beneficiam do perdão de penas previsto no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril – cfr. nº7 deste artigo.
Só se adotasse entendimento contrário, ou seja, que o perdão em causa se aplicava igualmente a condenados em pena de prisão [de duração não superior a 2 anos], que ainda não estivesse a ser cumprida efetivamente em estabelecimento prisional, até à data de início de vigência daquela Lei, ou que, pela sua natureza, não se destinava a ser cumprida em contexto de reclusão prisional, o que não se concede, é que seria de concluir, indubitavelmente, que competentes para proceder à sua aplicação e emitir os respetivos mandados, com caráter de urgência, são os tribunais de execução de penas territorialmente competentes (art. 2.º, n.º 8). O texto legal é inequívoco quanto à predita atribuição de competência, pelo que a violação desta regra constituirá uma invalidade, cujos efeitos precários, eventualmente produzidos, podem ser destruídos através do mecanismo da nulidade insanável [art. 119.º, alª e), do CPP].
Todavia, frisamos, a atribuição ao tribunal de execução de penas territorialmente competente para proceder à aplicação do perdão estabelecido na Lei nº 9/2020, pressupõe obviamente que o condenado esteja em condições legais para dele beneficiar, isto é, que a decisão condenatória que aplicou pena privativa de liberdade tenha transitado em julgado e que ele se encontre em situação de reclusão prisional, o que não sucede in casu.
Pela sua relevância, acompanhamos o parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto na parte em que cita a pertinente Decisão Sumária, de 20/05/2015, proferida no processo nº 1277/04.8PBFIG-A.C1, no TRC, sendo dela relator o desembargador Alberto Mira.
«Nele se consignou: “Está escrito no ponto 15 da Proposta de Lei n.º 252/X (Diário da Assembleia da República, Série II-A, n.º 279, de 05-03-2009), que esteve na origem da Lei, n.º 115/2009, de 12 de Outubro, aprovadora do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (doravante, apenas designado por CEPMPL):
«No plano processual e no que se refere à delimitação de competências entre o tribunal que aplicou a medida de efectiva privação da liberdade e o Tribunal de Execução das Penas, a presente proposta de lei atribui exclusivamente ao Tribunal de Execução das Penas a competência para acompanhar e fiscalizar a execução de medidas privativas da liberdade. Consequentemente, a intervenção do tribunal da condenação cessa com o trânsito em julgado da sentença que decretou o ingresso do agente do crime num estabelecimento prisional, a fim de cumprir medida privativa da liberdade. [sublinhado do relator]
Este um critério simples, inequívoco e operativo de delimitação de competências, que põe termo ao panorama, actualmente existente, de incerteza quanto à repartição de funções entre os dois tribunais e, até, de sobreposição prática das mesmas. Incerteza e sobreposição que em nada favorecem a eficácia do sistema.»
Corporizando a intenção legislativa expressa neste texto, o CEPMPL compreende, em estrutura sistematizada e complementar, dois Livros, versando o Livro I, de índole eminentemente substantiva, sobre a “execução das penas e medidas privativas da liberdade”, e o Livro II, de natureza processual, sobre o “processo perante o tribunal de execução das penas”.
O CEPMPL é completamente omisso na regulação da pena de substituição “regime de permanência na habitação” prevista no artigo 44.º do Código Penal.
Trata-se inequivocamente, não de uma incompletude da lei, mas sim de um “silêncio eloquente” do diploma, determinado por razões político-jurídicas, decorrentes de uma opção do legislador.
O alcance do desígnio legislativo está bem evidenciado logo no artigo 1.º, n.º 1, do CEPMPL, onde consta: «O disposto no presente livro aplica-se à execução das penas privativas da liberdade nos estabelecimentos prisionais dependentes do Ministério da Justiça e nos estabelecimentos destinados ao internamento de inimputáveis», sendo que, em inúmeros normativos posteriores, está invariavelmente escrita a expressão “recluso”.
E a quem objecte que a citada disposição legal enuncia tão só o Livro I do diploma, repetimos o que já ficou dito; ambos os livros integrantes do CEPMPL formam um sistema unitário, projectado para um objectivo comum, qual seja, o de regular, substantiva e adjectivamente, a execução das penas e medidas privativas da liberdade nos estabelecimentos prisionais.

Sem necessidade de maiores considerações, dir-se-á, em síntese conclusiva:

- Os referenciados elementos interpretativos, de ordem literal e sistemática, projectam a teleologia das normas consideradas no sentido de a intervenção do TEP estar materialmente circunscrita a actos relativos à execução de penas e medidas privativas da liberdade em estabelecimentos prisionais;
- Em conformidade, o controlo/acompanhamento do regime de permanência na habitação cabe ao tribunal da condenação, no caso à Secção Criminal da Instância Local da Figueira da Foz (igual solução - quantos aos fundamentos, nada está dito - é defendida por Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal, Universidade Católica Portuguesa, anotação ao artigo 44.º, pág. 184).”

Acrescente-se que é vasta e cabalmente dominante a jurisprudência que segue o predito critério de delimitação de competências entre o tribunal que aplicou a medida de efetiva privação da liberdade e o TEP, a qual, buscando suporte em idênticos elementos de interpretação da lei, literal, histórico (nomeadamente dos trabalhos preparatórios) e sistemático, conclui pela cessação da intervenção do tribunal da condenação somente depois de ocorrer o trânsito em julgado da decisão condenatória que determinou a aplicação ao arguido de pena efetivamente privativa da liberdade, isto é, que implique o seu ingresso em estabelecimento prisional.

Vejam-se, nesse sentido, as seguintes decisões judiciais dos tribunais superiores:
- Decisões sumárias do Tribunal da Relação do Porto, 1ª Secção, de 29/10/2018, proferida no processo nº 10128/14.4T8PRT-A.P1, de 28/10/2015, processo nº 2098/10.4JAPRT-A.P1, e de 25/02/2016, processo nº 304/09.7GAVFR-A.P1, estas últimas disponíveis in www.dgsi.pt;
- Decisão sumária do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/06/2013, proferida no processo nº 102/06.0PFPDL-B.L1-5, in www.dgsi.pt;
- Decisão sumária do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15/07/2015, in CJ, Ano XL, Tomo III, p. 57;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17/12/2015, processo nº 40/12.7TAVLP-A.G1, in www.dgsi.pt;
- Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 27/11/2013, processo nº 188/06.7PAVFR.P3, de 23/04/2014, processo nº 361/10.3GAVLG.P1, de 07/05/2014, processo nº 119/01.0TAVLC-A.P1, de 28/10/2015, processo nº 2098/10.4JAPRT-A.P1, de 08/02/2017, processo nº 241/13.0GCAVR-A.P1, e de 07/03/2018, processo nº 18/08.5PEPRT-A.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/05/2015, in CJ, Ano XL, Tomo III, pg. 149 a 151;
- Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/09/2014, processo nº 480/13.4EAPRT.P1, in www.dgsi.pt; e de 29/11/2017, in CJ, Ano XLII, Tomo V, p. 54.

Por conseguinte, resumindo o pensamento anteriormente explanado, conclui-se que, no caso vertente, inexiste a alegada nulidade insanável arguida pelo recorrente, cabendo a competência para conhecer do pedido apresentado pelo arguido ao Tribunal da condenação, e não ao TEP do Porto, pois que, diferentemente do seu entendimento, ao requerente não se aplica a medida de clemência prevista na Lei nº 9/2020, de 10.04 [como abaixo melhor explanamos].



III.2Âmbito subjetivo de aplicação do perdão previsto no art. 2º da Lei nº 9/2020, de 10.04:

Recordemos o disposto no artigo 2.º da Lei nº 9/2020, de 10.04, sob a epígrafe “Perdão”, na parte ora relevante:
“1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.
[…]
5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão.
[…]
7 - O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.
[…]”
A questão de fundo que é colocada pelo douto recurso do arguido pode ser sintetizada do seguinte modo, face ao que consta das conclusões 8ª, 10ª, 11ª e 12ª:
Tendo o recorrente sido condenado na pena de 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, pela prática de crime excluído do elenco impeditivo da aplicação do perdão [abuso de confiança fiscal] – cfr. art. 2º, nº6, da Lei nº 9/2020 - e, uma vez revogada tal suspensão com determinação do cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação (com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância), pode aquele beneficiar da aplicação daquela medida de clemência, independentemente de, à data da entrada em vigor do diploma que a prevê, ainda não ter transitado em julgado a decisão que determinou o cumprimento da pena de prisão, de este cumprimento não se ter iniciado até ao momento e de a pena não se destinar a ser cumprida em estabelecimento prisional?
A resposta é negativa, pois que, salvo o devido respeito por diverso entendimento, não se encontram integralmente preenchidos os requisitos legais para que o arguido possa beneficiar da aplicação do perdão previsto no art. 2º da Lei nº 9/2020.
Consideramos que o perdão de pena previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só pode ser concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional.
Contextualizando a decisão recorrida, no que concerne à pena aplicada ao arguido pendente de cumprimento e à sua definitiva conformação por via do trânsito em julgado parcial entretanto ocorrido.
Por sentença proferida no dia 28 de novembro de 2011, transitada em julgado em 10 de janeiro de 2012, foi o arguido J. C. condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º do RGIT, na pena de treze meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, sob a condição de, nesse período, pagar ao estado a quantia em dívida a título de IVA, no montante de dezassete mil, oitocentos e cinco euros e vinte e três cêntimos.
Por despacho de folhas 878 a 881, proferido no dia 10 de novembro de 2017, com a referência 155189510, foi revogada a suspensão de execução da pena de treze meses de prisão e determinado o cumprimento efetivo da mesma.
Não se tendo conformado com esta decisão dela veio o arguido recorrer.
Por acórdão desta Relação de Guimarães, de 5 de novembro de 2018, foi integralmente mantida a decisão que determinou a revogação da suspensão da execução da pena.
Face à nova redação dada ao artigo 43º do Código Penal pela Lei nº 94/2017 de 23-08, veio o arguido requerer que a pena de treze meses de prisão fosse cumprida em regime de permanência na habitação e que fosse autorizada a sua saída da habitação para o exercício da atividade profissional na construção civil, por conta própria.
Por decisão de folhas 999 a 1006, proferida no dia 20 de fevereiro de 2019, com a referência 161567454, foi determinado que o arguido cumprisse, em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância a executar pela DGRSP, a pena de treze meses de prisão em que o arguido havia sido condenado.
Mais foi decidido “não autorizar as saídas do condenado J. C. da habitação para o exercício da actividade de construção civil, por conta própria, nos moldes constantes do relatório elaborado pela DGRSP”.
Inconformado com a decisão na parte em que não autorizou a sua saída da habitação para o exercício da atividade de construção civil por conta própria, dela veio o arguido recorrer, nos termos constantes das suas alegações de folhas 1018vº a 1033 [recurso nº 384/09.5IDBRG.G2]
Na sequência do sobredito recurso, por acórdão deste Tribunal, de 28/10/2019, sendo dele relator o desembargador Pedro Cunha Lopes, foi decidido confirmar a decisão judicial de “Determinar o cumprimento da pena de 13 (treze) meses de prisão em que o condenado, … foi condenado, em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância a executar pela DGRSP, nos moldes já definidos no relatório.”. E, do mesmo passo, foi confirmada a decisão seguinte “Não se autorizam as saídas do condenado … da habitação para o exercício da actividade de construção civil, por conta própria, nos moldes constantes do relatório elaborado pela DGRSP.”.
O arguido, a 10/02/2020, interpôs recurso do dito acórdão para o Tribunal Constitucional, que, por douta decisão sumária proferida a 23/11/2020, transitada a 21/12/2020, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, nº1 da LTC, decidiu não conhecer do objeto do recurso (cfr. fls. 1107 a 1122 do respetivo apenso G2).
Dito isto, tal como entende o Exmo. PGA, também tomamos por indubitável que a parte do despacho judicial proferido a 20/02/2019 relativa à substituição da pena de prisão pelo regime de permanência na habitação, por esta pena substitutiva, mereceu a integral concordância do arguido, tendo transitado em julgado. Como se refere no parecer do ilustre representante do MP nesta instância de recurso: «É assunto que não se encontra em recurso. Assente está que transitou em julgado a decisão que determinou o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação.»
Mais: o trânsito da decisão que determinou o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação ocorreu em data anterior à da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, ocorrida a 11.04.2020 [cfr. art. 11º dessa Lei].
Vejamos então se se verificam os requisitos legais para a reclamada aplicação ao arguido do perdão introduzido pelo regime excecional vertido na Lei nº 9/2020.
A Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, atento o repto da Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, de 25 de março, e a Recomendação da Provedora de Justiça n.º 4/B/2020, de 26 de março de 2019, criou um «regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19», nomeadamente, na parte que ora interessa, um perdão das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos (art. 2º, n.º 1)

No que concerne ao âmbito de aplicação subjetivo desta lei, pelo seu profusamente fundamentado e elucidativo teor, chamamos aqui à colação o Parecer nº 10/2020 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República:

«O âmbito de aplicação subjetivo desta lei é muito claro. Como refere NUNO BRANDÃO: «as circunstâncias extintivas ou flexibilizadoras do cumprimento da pena de prisão previstas na Lei n.º 9/2020 só são aplicáveis a condenados que se encontrem a cumprir pena de prisão no momento da sua entrada em vigor (11.04.2020). Com efeito, além de exigirem o trânsito em julgado da sentença condenatória em pena de prisão, tais medidas pressupõem ainda que a execução dessa pena se encontre já em curso. As razões excecionais que determinaram a aprovação da presente Lei só valem em relação aos condenados que se encontrem privados da liberdade no momento da sua entrada em vigor. Nessa medida, e para que fique claro que só esses condenados são destinatários deste regime excecional, nos artigos 2.º/1, 3.º/1 e 4.º/1 faz-se menção expressa aos reclusos – sc., os condenados privados da liberdade – como destinatários deste regime excecional. Assim, o perdão que se prevê no art. 2.º não abrange, desde logo, crimes que não hajam sido objeto de uma decisão condenatória transitada em julgado à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020. Por exemplo, o agente de um crime de furto simples cometido em 2019 que venha a ser condenado em 2021 não beneficiará do perdão concedido pelo art. 2.º, sendo-lhe inaplicável o disposto no art. 2.º/4 do CP. Do mesmo modo, tendo em conta o disposto no art. 2.º/7, não haverá perdão (e concomitante libertação ao abrigo do art. 2.º) nos casos de reclusos que se encontrem em regime de prisão preventiva no momento da entrada em vigor do diploma e cuja condenação transite em julgado ainda durante o período da pandemia da doença COVID-19. De fora deste perdão ficarão ainda aqueles que hajam sido condenados por decisão já transitada em julgado aquando do início de vigência da Lei n.º 9/2020, 11.04.2020, mas que nessa data ainda não haviam ingressado num estabelecimento penitenciário para iniciar a execução da pena de prisão que lhes foi aplicada. […]» [in «A libertação de reclusos em tempos de COVID-19. Um primeiro olhar sobre a Lei n.º 9/2020, de 10/4», Julgar online, abril 2020, pp. 6 e 7.]

Na mesma linha, em estudo pulicado no SIMP, em 13 de abril de 2020, denominado, «o perdão previsto no art.º 2.º da Lei n.º 9/2020», VÍTOR PEREIRA PINTO defende que:

«parece claro dever interpretar-se o art.º 2.º, n.ºs 1, 2, 4 e 7 da Lei aqui em causa como aplicável apenas a “reclusos”, ou seja, a condenados por decisão transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor desta lei (n.º 7 do art.º 2.º e art.º 11.º - até 10/04/2020, portanto) que se encontrem em cumprimento da pena de prisão à data da sua entrada em vigor (11/04/2020). Tal significa que não beneficiam do perdão total ou parcial da pena de prisão concedido por este diploma os já condenados por decisão transitada em julgado que ainda não se encontrem em cumprimento de pena à data da entrada em vigor desta lei. E se esses condenados vierem a ser detidos para cumprimento de pena ou iniciarem tal cumprimento nos dias subsequentes à entrada em vigor da Lei e durante o período em que vigorar a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS -CoV -2 e da doença COVID -19” (art.º 10º da Lei)? Cremos que esses também não poderão beneficiar do perdão ora concedido - os pressupostos de aplicação da Lei devem estar preenchidos à data da sua entrada em vigor, e a qualidade de “recluso” dos seus destinatários será um deles – como o é o trânsito em julgado das respetivas condenações. É que, não se esqueça, o objeto primeiro desta Lei é a aplicação de perdão de penas a reclusos, ou seja, a condenados em cumprimento de penas de prisão à data da sua entrada em vigor. Ou seja, os pressupostos para aplicação desta Lei têm que estar já verificados na data da sua entrada em vigor para que a mesma possa ser aplicável aos casos nela previstos.» [págs. 4 e 5]
Na verdade, o elemento gramatical é bastante claro: «são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado» (art. 2.º, n.º 1); «são também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado» (art. 2.º, n.º 2); e «o perdão (…) é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei» (art. 2.º, n.º 7). Em todos os casos, é pressuposto desta medida de graça que o beneficiário seja recluso e esteja condenado por sentença transitada em julgado, id est, que esteja em cumprimento de pena. A linha de fronteira, entre quem beneficia do perdão e quem está excluído do mesmo, passa, portanto, pela condição de recluso na sequência de uma sentença transitada em julgado à data da entrada em vigor da lei (11 de abril de 2020). Apenas aqueles que ingressaram no estabelecimento prisional e aí se mantém coartados da sua liberdade, em consequência da condenação, por sentença transitada em julgado, estão incluídos. Nem todos os reclusos estão, assim, abrangidos, ficando excluídos aqueles que se encontram em prisão preventiva (objeto de uma medida especial: art. 7.º). É certo que, relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão (art. 2.º, n.º 5), parecendo, ao invés dos números anteriores (que, insistimos, se reportam expressis verbis a reclusos condenados por sentença transitada em julgado), dirigir-se para situações futuras. De todo o modo, esta interpretação literal não é compatível com o restante elemento gramatical, com o espírito da lei, nem com a unidade de todo o sistema, sendo aqui a norma, igualmente, aplicável apenas a reclusos. Na verdade, o próprio legislador remete, depois, para o perdão referido no mesmo artigo (art. 2.º, n.º 5), isto é, por definição, para «penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado» (art. 2.º, n.º 1). Embora por remissão, a norma acaba por fazer a mesma restrição. O preceito não pode ser lido de forma isolada, estando a sua área de aplicação subjetiva delimitada pelo preceito para o qual se remete. Acresce que, com este perdão, o legislador procura «minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados» [Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV, que esteve na origem deste perdão], que aqui (nessa interpretação apriorista) não acontece: a ser assim, a letra da lei seria incompatível com o seu espírito, indo (como já iremos ver) muito para além daquilo que é necessário para cumprir as finalidades políticas que lhe estão subjacentes. Finalmente, porque a unidade do diploma (art. 9.º, n.º 1, do Código Civil) remete para uma interpretação que exija, também aqui, a qualidade de recluso. É que «compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido nesta lei» (art. 2.º, n.º 8), tornando aquela interpretação incongruente com estas competências: se fosse assim, também o tribunal da condenação deveria ser competente para aplicar o perdão aos não reclusos. Em suma, aquela interpretação não faz sentido. Tanto mais que, ainda assim, a norma tem utilidade, sendo, por exemplo, aplicável a reclusos em situação de prisão preventiva, condenados pela prática de outros crimes (diferentes dos que determinaram a execução dessa medida de coação) em pena de substituição, por decisão anterior à da entrada em vigor desta lei e transitada em julgado. Uma vez revogadas essas penas de substituição e determinado o seu cumprimento (até à cessação da vigência desta Lei: art.º 10.º), nada obstará à aplicação deste perdão. Ainda neste caso, o próprio elemento gramatical, pressupõe portanto a qualidade de recluso. O mesmo poderá acontecer com reclusos que tenham de cumprir várias penas não cumuláveis. Se lhe faltar cumprir uma pena de substituição que tenha sido revogada e que esteja incluída no âmbito desta medida de graça excecional, nada obsta ao seu perdão. Para além do elemento gramatical, a mesma solução resulta da exposição de motivos que acompanhou a Proposta de Lei n.º 23/XIV, que esteve na origem desta lei, de onde (como já referimos) resulta que está em causa evitar a devastação nas prisões, mediante a libertação de reclusos particularmente vulneráveis à COVID 19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco. Apenas os reclusos sofrem o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais e de aí ser impossível assegurar o desejável afastamento social. Para os restantes, há outras medidas que, ainda nos termos daquela proposta, «sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade» permitem obter o mesmo resultado prático. Basta, para o efeito, através da suspensão da tramitação dos respetivos processos, retardar a execução das suas penas. Incluir também aqueles condenados seria, na perspetiva do legislador, ir longe de mais, prejudicando, em vão, o poder punitivo estadual. Sem qualquer razão válida, o perdão seria amplo de mais, quebrando, na perspetiva do Governo «a ordem social e o sentimento de segurança da comunidade». As duas medidas, válidas no mesmo período temporal (art. 10.º da Lei n.º 9/2020, de 20 de abril), estão interligadas, devendo ser interpretadas em conjunto. Esta vontade do legislador resulta, igualmente, clara, da existência de outras medidas de libertação dos reclusos [indulto excecional (art. 3.º); licença de saída administrativa extraordinária (art. 4.º), antecipação da liberdade condicional (art. 5.º), reapreciação dos pressupostos da prisão preventiva (art. 7.º)] e das competências atribuídas ao Tribunal de Execução de Penas em função desta lei (art. 2.º, n.º 8). O perdão de penas não foi a única via escolhida pelo legislador para lograr aquele desidrato. Sendo assim, se ele considerou uma pluralidade de medidas, incluindo, a montante, a situação paradigmática dos que, entretanto, venham a ficar em prisão preventiva (art. 7.º, n.º 2), a omissão daqueles que já estão condenados por sentença transitada em julgado, mas que ainda não iniciaram o cumprimento da respetiva pena, só pode ser considerada como um sinal inequívoco da sua exclusão do perdão criado com a presente lei. Tanto do ponto de vista da política criminal, como do ponto de vista dos objetivos subjacentes ao presente perdão, não há nenhuma razão para, reunidos os respetivos requisitos legais, perdoar estas penas. Elas podem ser perfeitamente cumpridas, logo que terminada a situação de emergência em que nos encontramos, assim salvaguardando a execução das penas e das finalidades que lhe estão associadas (art. 40.º, n.º 1, do CP). A inclusão de medidas relativas à prisão preventiva e a exclusão de medidas relativas aos condenados que, entretanto, podem ingressar no estabelecimento prisional é, aliás, bem compreensível. Quanto aos primeiros, estamos, normalmente, perante uma situação imprevisível e inelutável, decorrente de vicissitudes da realidade concreta; no segundo caso, perante uma decisão tomada no quadro de um processo já pendente, que, pelo menos por impossibilidade de cumprir as recomendações das autoridades de saúde, está suspenso [art. 7.º, n.º 7, alª c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação atual] e, como tal, não poderá ser executada. É por isso que a competência para proceder à aplicação deste perdão e assim emitir os respetivos mandados com caráter urgente foi exclusivamente atribuída ao Tribunal de Execução de Penas (art. 2.º, n.º 8) e não também ao tribunal da condenação, como deveria acontecer, caso o perdão abrangesse os condenados em pena de prisão por sentença transitada em julgado, ainda não privados da sua liberdade. A mesma vontade de excluir estas situações resulta, ainda, do artigo 6.º quando refere que «em qualquer das circunstâncias que, nos termos da presente lei, ditam o regresso do condenado ao meio prisional, há lugar ao cumprimento prévio de um período de quarentena de 14 dias, nos termos que tenham sido determinados pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais». Se também estivessem em causa esses condenados, o legislador teria dito «regresso ou ingresso do condenado ao meio prisional». Excetuando as regras relativas à prisão preventiva, que «só pode ser aplicada quando se revelarem manifestamente inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação» (art. 7.º, n.º 2, da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril), por forma a restringir o acesso aos estabelecimentos prisionais, o legislador nada mais disse (nomeadamente ao nível dos procedimentos de segurança)

No sentido que aqui defendemos, i.e., de que o perdão da pena previsto no art. 2º da Lei nº 9/2020, de 10.04, só pode ser concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ingressado fisicamente no estabelecimento prisional, vejam-se igualmente os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/09/2020, processo nº 178/20.7TXCBR-B.C1, relatado pela Desembargadora Rosa Pinto, de 14/10/2020, processo nº 175/20.2TXCBR-B.C1, relatado pelo Desembargador Frederico Cebola [citado pelo Exmo. PGA], e de 10/10/2020, processo nº 719/16.4TXPRT-F.C1, relatado pelo Desembargador Luís Teixeira.

Neste último aresto, após se enunciar trechos da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 23/XIV – que deu origem à Lei nº 9/2020 –, escreve-se o seguinte:

«A primeira nota que se nos oferece dizer vai para o facto de que a preocupação visível e imediata do legislador é a de conter a expansão da doença no meio prisional. E com os elementos técnico/científicos então conhecidos no momento, que ainda se mantêm, esse objetivo consegue-se, de entre outras medidas, com o designado distanciamento físico entre as pessoas. Distanciamento que simplesmente inexistia nos estabelecimentos prisionais, devido à concentração de reclusos. Pelo que a única forma de criar as condições mínimas do reconhecido e exigido distanciamento físico para evitar o possível contágio e essencialmente a sua propagação/expansão (tendo em conta a realidade que já se vivia na comunidade em geral), era libertar reclusos em cumprimento de pena ou seja, que efetivamente estavam em meio prisional.
E deste modo se dava cumprimento ao dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito.
Libertação a que, todavia, o legislador pretendeu impor um limite: “sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade”. Daí as opções legislativas no que respeita quer às concretas penas a que deveria ser aplicado o perdão, nomeadamente no que respeita à efetiva medida da pena bem como aos demais requisitos substantivos enumerados na lei de exclusão dos crimes não abrangidos pelo perdão.
Uma segunda nota vai para a efetiva natureza jurídica da Lei nº 9/2020, de 10 de abril.
Ora, as normas que estabelecem perdão de penas (bem como amnistia de crimes), são por natureza, excecionais. A que, in casu, acresce, na sua génese, a situação também excecional e única de pandemia até então vivida não só a nível nacional mas mundial.
Como lei excecional que é, deve ser interpretada nesta perspetiva segundo esta natureza.

A este respeito preceitua o artigo 9º do Código Civil, com a epígrafe Interpretação da Lei:

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.»

Ora, conforme é jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, as leis de amnistia, como providências de exceção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas. As leis de amnistia, como leis de clemência, pela sua natureza excecional, devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas – cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 25/10/2001, Processo n.º P00P3209, in www.dgsi.pt.
Donde, como se expende nesse aresto, «face ao teor do n.º 1, do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril segundo o qual “São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos”, tendo sempre subjacente a mens legis da referida exposição de motivos e essencialmente o nº 2 do artigo 9º do Código Civil (Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso), não se vislumbra em que termos esta norma possa suportar a integração da situação dos arguidos condenados por decisão transitada em julgado mas que não se encontrem na situação de reclusão.»

Alega o recorrente que ainda pode vir a cumprir a pena “efetiva” a que foi condenado em regime de reclusão, sendo certo que o legislador (ainda que de modo algo imperfeito), atento o objetivo que pretendia alcançar, de combate à pandemia, por forma a, naquele meio, previr e impedir a inevitável propagação do coronavírus, foi a de “esvaziar” os estabelecimentos prisionais e não, como parece ser de mediana clareza, o de os sobrecarregar com novos reclusos, condenados por crimes não excluídos da aplicabilidade da Lei em apreço e cujas penas não excedem dois anos [conclusões 12ª, 13ª e 14ª].
A terminologia jurídica utilizada pelo recorrente não é claramente a mais acertada, pois que se pelo uso do adjetivo “efetiva” por referência à pena de prisão em que foi condenado nos autos se reporta ao seu cumprimento, tal não se verifica, atenta a suspensão da sua execução concomitantemente determinada e nunca revogada, acrescendo que a pena principal (de prisão) foi, ulterior e definitivamente (atento o trânsito em julgado da respetiva decisão), substituída pelo regime de permanência na habitação; ademais, todas as penas, sejam elas principais ou de substituição, são “efetivas”, no sentido contrário a provisórias.
De todo o modo, o disposto conjugadamente no art. 2º, nºs 1, 5 e 7, da Lei nº 9/2020, de 10.04, é inequívoco no sentido de que nunca o recorrente podia ver-lhe ser aplicado neste momento processual o perdão ali previsto, pois que, ressuma do ali preceituado que, relativamente a penas de substituição, como sucede no caso, atenta a aplicação da pena de substituição de prisão em regime de permanência na habitação, tal perdão só podia ser aplicado se esta pena substitutiva viesse a ser revogada e determinada a execução da pena ainda não cumprida em estabelecimento prisional (cfr. art. 44º, nºs 2 e 3 do Código Penal).
E, em nosso entendimento – embora tal questão não se coloque neste momento, essa eventual decisão caiba, em exclusivo, ao tribunal de primeira instância, e não se olvidando as diferentes orientações jurisprudenciais que se têm evidenciado a esse propósito – extrai-se ainda das preditas normas legais, apreciadas em concatenação e sempre tendo em vista a coerência do sistema legal e a apontada teleologia destas normas excecionais, que o recorrente só poderia beneficiar da aplicação do perdão caso a decisão que determinasse a revogação do cumprimento da prisão em regime de permanência na habitação tivesse transitado em data anterior à da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, o que, manifestamente, não sucede no caso vertente.
Outro entendimento significaria um incentivo (ainda que involuntário) ao incumprimento por parte dos condenados, que se encontrassem em condições substantivas de beneficiar desse perdão (por verificação dos restantes requisitos legais), das penas de substituição judicialmente aplicadas, e que são sustentadas pela prossecução de relevantes finalidade punitivas, intenção que, por certo, não esteve no pensamento legislativo, porquanto este, ao impor os sobreditos requisitos legais, quis que esta medida de mitigação da propagação da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVD-19 em meio prisional fosse aplicada com parcimónia e justiça relativa, não justificando aquele fim o recurso a todos os meios, por mais ínvios e iníquos que sejam.
Foi também para evitar que às saídas de reclusos dos estabelecimentos prisionais por força da aplicação das medidas de clemência previstas neste diploma legal fosse contraposta a entrada em igual ou superior número de novos reclusos, sobrecarregando novamente o sistema prisional – argumento que o recorrente pertinentemente aduz –, que o legislador veio a aprovar outras medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, constando entre essas medidas as atinentes aos prazos processuais e diligências que devam ou não ser praticadas no âmbito dos processos e procedimentos, que correm termos, para além do mais, nos tribunais judiciais e no Ministério Público.
Assim, por força das disposições conjugadas das Leis nº 1-A/2020, de 19.03, do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13.03, da Lei nº 4-A/2020, de 06.04 e da Lei nº 16/2020, de 29.05, os prazos judiciais no âmbito dos processos de natureza não urgente – como acontece com o presente, visto o arguido não estar privado da liberdade – estiveram suspensos desde o dia 09/03/2020 até ao dia 02/06/2020, ou seja, até ao momento em que o legislador julgou, naquela altura, estarem ultrapassados ou, pelo menos, satisfatoriamente mitigados, os motivos conjunturais excecionais que motivaram a aprovação dessa medida.
Sucede que, face a novo agravamento da situação pandémica, com um exponencial aumento do número de casos de COVID-19 em Portugal, o legislador sentiu necessidade de repor a vigência de tais medidas, o que fez por via da aprovação e entrada em vigor da Lei nº 4-B/2021, de 01.02.
Por último, não assiste razão ao recorrente quando invoca a inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade previsto no art. 13º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, das sobreditas normas quando interpretadas no sentido de não permitirem a um condenado na concreta situação do arguido, por não ser recluso à data da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, de 10.04, beneficiar da aplicação do perdão previsto no seu art. 2º [conclusões 11ª a 18ª].
Quer a doutrina quer a jurisprudência têm vindo, de forma consistente, designadamente em matéria de amnistia ou perdão, a considerar constitucionalmente conformes, as eventuais diferenças de tratamento, desde que as mesmas surjam materialmente fundadas e baseadas em critérios de valor objetivo.

Assim, os seguintes acórdãos do Tribunal Constitucional:

«O princípio da igualdade não proíbe (…) que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes» - Acórdão nº 39/88, de 09/02/1988.
«O princípio da igualdade não comporta (…) uma proibição absoluta de discriminações no tratamento legal de uma dada matéria, mas tão somente que essas discriminações sejam arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante» - Acórdão n.º 149/93, de 28/01/1993.
“A igualdade em sentido material (e é esta a igualdade que o artigo 13º. expressa), pressupõe tratamento igual do que é igual e tratamento diferente do que é diferente, de acordo com a medida da diferença. Daí que, seguindo uma linha jurisprudencial constante que já remonta à Comissão Constitucional, este Tribunal afirme (…) que uma diferenciação de tratamento fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas, não é atentatória do princípio da igualdade. Por outras palavras, utilizando uma formulação do Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerf GE 1,14 (52), citada por Alexy, Theorie der Grundrecht, Suhrkamp-Verlag, 1986, pág. 370) tratamentos legais diferentes, traduzem uma diferenciação arbitrária quando (...) não é possível encontrar um motivo razoável decorrente da natureza das coisas, ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível, para essa diferenciação” - Acórdão n.º 152/95, de 15/03/1995.
«Aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado e ainda menos à prevenção dos factos do tipo de infração visado pela norma amnistiante. Esses fins não se limitam à justiça, no sentido de realização do direito, valem também razões de conveniência pública e a razão de Estado (…). Não há, portanto, que limitar a admissibilidade da amnistia aos fins específicos da política criminal (…). Tais fins são servidos de uma forma que se considerou em geral preferível na legislação penal não revogada pela lei de amnistia, pelo que esta só se poderia justificar em função dos mesmos fins pelos defeitos da lei penal ou da sua aplicação, nomeadamente perante modificações supervenientes, de carácter excecional, das relações comunitárias ou da situação pessoal dos criminosos, para obviar a incorreções legislativas ou a erros judiciários, como para propiciar condições favoráveis a modificações profundas da legislação de carácter penal (…). Só se admitiriam, assim, as amnistias corretivas da lei ou da jurisprudência, em sentido amplo, reprovando-se os casos nucleares da tradição histórica do instituto, as amnistias pacificadoras e comemorativas. Mesmo quando se tratasse de fins instrumentais de política criminal, da adequação dos meios disponíveis aos fins através da redução da população prisional ou da diminuição do trabalho que pesa sobre o sistema judicial, a sua legitimidade seria "pelo menos duvidosa" (…). É claro que a instrumentalização da amnistia para obviar à carência de meios não se deduz dos fins das penas, mas é consequência de outros fins concorrentes do Estado, que disputam os mesmos meios. Mas numa conceção mais ampla de política criminal, que não se limita à consecução dos fins das penas a partir de uma prévia definição dos factos puníveis e da necessidade das penas, já a definição dos factos puníveis e a ponderação dos meios concorrentes de realizar os vários fins do Estado pertence ao cerne da própria política criminal, como parte integrante da política geral do Estado. Nesta ampla perspetiva, já a amnistia não se opõe ao sistema do direito penal que vem eventualmente corrigir, mas é um meio incluível na política criminal que modifica temporariamente a definição dos factos puníveis e das penas em função dos fins concorrentes do Estado, os quais já determinaram a própria definição temporalmente ilimitada das leis que preveem os crimes amnistiados. Só que neste sentido todos os fins possíveis de um Estado de direito podem relevar, e não apenas os que supõem uma prévia definição dos factos puníveis, que são os fins das penas» - Acórdão nº 444/97, de 25/06/1997.
«Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas – o quantum do perdão –, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infrações a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstrata, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis» - Acórdão nº 488/2008, de 07/10/2008.
“O princípio da igualdade, enquanto parâmetro constitucional capaz de limitar as ações do legislador, comporta reconhecidamente várias dimensões: proibição do arbítrio legislativo; proibição de discriminações negativas, não fundadas, entre os sujeitos; assim como eventual imposição de discriminações positivas, com projeções distintas tendo em conta as especificidades do âmbito material em causa. Da extensa jurisprudência constitucional sobre a temática resulta que o princípio não proíbe em absoluto toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as diferenciações (e a sua medida) materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional” – Acórdão n.º 273/2016, de 4/05/2016.
Dito isto, é para nós claro que o critério escolhido pelo legislador não trata de forma desigual ou discriminatória situações que semelhantes, assim gerando injustiça.
Na verdade, atento o vivenciado contexto de pandemia e dos riscos para a saúde dos reclusos que ela acarreta, a situação daqueles que já se encontram condenados por decisão transitada em julgado ao cumprimento de uma pena que não implica, no imediato, a sua inclusão no universo prisional, é distinta da situação dos condenados que já ingressaram no estabelecimento prisional para cumprimento de uma pena de prisão. Tanto mais que, relativamente aos primeiros, a sua saúde deverá ser assegurada, como já vimos supra, mediante o mecanismo da suspensão dos prazos processuais, e, na particular situação dos autos, mais notoriamente, pelo cumprimento pelo arguido da pena de prisão em regime de permanência na habitação.

Concordamos integralmente com o expendido a este propósito pelo Conselho Consultivo do MP no sobredito Parecer nº 10/2020:

«[…] o legislador, no âmbito da sua liberdade de conformação legislativa, não utilizou nenhum critério arbitrário ou irrazoável. Os fundamentos por ele invocados para a discriminação, para além de responderem à exortação das Nações Unidas e à Recomendação da Provedora de Justiça, têm um fundamento material bastante: são «medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e do seu indulto, que, pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade, permitem, do mesmo passo, minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade. Estas medidas extraordinárias constituem a concretização de um dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do «Estado de Direito». As razões para a discriminação são evidentes e têm um fundamento material bastante. Eliminar os riscos de contágio, que só existem relativamente aos reclusos detidos, uma vez que, relativamente aos já condenados por sentença transitada em julgado, o regime da suspensão dos prazos processuais logra o mesmo resultado. Por isso mesmo, restringindo-se apenas àqueles que são reclusos, não se pode dizer que a solução seja desproporcionada e que quebre a ordem social ou o sentimento de segurança da comunidade.»

E, assertivamente, acrescenta-se ali:
«Não tendo o legislador, no uso legítimo dos seus poderes, optado por perdoar todos os condenados (isso não era, insistimos, necessário para lograr os seus objetivos políticos), não pode o intérprete (mesmo a pretexto de corrigir eventuais injustiças) alargar, analogicamente, o regime legal. Para além de ser desnecessária em face do regime geral da suspensão dos prazos e da tramitação processual, esta interpretação criaria ainda mais injustiças: tudo dependeria afinal da circunstância fortuita de (neste momento de pandemia em que os órgãos de Polícia Criminal têm, compreensivelmente, outras prioridades) o condenado vir ou não a ser preso. Aqueles que por «sorte» fossem capturados ou que se entregassem, assim ganhando a qualidade de reclusos, seriam perdoados, aqueles que por «azar» não fossem capturados nem se apresentassem teriam de cumprir depois, na íntegra, a respetiva pena. Em vez de uma fronteira fixa – qualidade de recluso à data da entrada em vigor desta lei – um critério volátil, irrazoável e sem qualquer justificação material. Para quê perdoar estas penas se, cumprindo o regime de suspensão dos prazos e da tramitação processual elas nem sequer devem ser agora executadas? A melhor prova da conjugação do regime da suspensão dos prazos e da tramitação processual (art. 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de março) com o regime do perdão (art. 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril), resulta do facto de ambos os diplomas terem o mesmo período de vigência (art. 10.º da Lei 9/2020). Quando terminar a suspensão dos prazos, termina, também, o perdão de penas. Nessa altura, o legislador entende estarem já reunidas as condições para a normal tramitação, incluindo a normal execução das penas de prisão. O descongestionamento dos estabelecimentos prisionais, que a aplicação do perdão agora provocou, é suficiente para garantir que as penas de prisão que venham a ser executadas, sejam elas resultado de condenação transitada em julgado antes ou depois daquela medida de graça, decorrem em estrito adimplemento das recomendações das autoridades de saúde. Tudo isto, sem prejuízo, caso se venha a mostrar necessário, da adoção de novas medidas de graça.»
Por conseguinte, a decisão recorrida não violou quaisquer normas legais ou constitucionais, nomeadamente as invocadas pelo recorrente, pelo que não merece censura, e, consequentemente, cumpre negar provimento ao douto recurso interposto pelo arguido.
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IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o douto recurso interposto pelo arguido J. C. e, em conformidade, manter o douto despacho recorrido.

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça (arts. 513º e 514º, ambos do Código de Processo Penal, arts. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este diploma legal), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza.
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Guimarães, 22 de fevereiro de 2021,

Paulo Correia Serafim (relator)
Maria Augusta Fernandes

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)



1 - Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.