Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4517/21.5T8GMR.G2
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: GERENTE
JUSTA CAUSA DE DESTITUIÇÃO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
NULIDADE DA DELIBERAÇÃO DE EXCLUSÃO DE SÓCIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Constitui justa causa de destituição de gerente, nos termos e para os efeitos do artº 257º, nº 6, do Código das Sociedades Comerciais, a não elaboração nem submissão à assembleia geral da sociedade, do relatório de gestão, das contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos aos exercícios anuais de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, nos prazos legais, bem como a não convocação de sócio para qualquer assembleia geral de aprovação de contas referente aos anos/exercícios de 2017, 2018, 2019 e 2020, bem como a omissão da ré gerente do depósito e registo, na Conservatória do Registo Comercial, das contas refentes aos exercícios anuais de 2016, 2017, 2018, dentro dos respetivos prazos legais (só o foram em 27/09/2021), e de 2019 e 2020 não se mostram depositados os relativos a 2019 e 2020.
2. Sendo nula a deliberação de exclusão de sócio, por força da violação de uma norma legal imperativa, não pode a deliberação produzir os efeitos a que tendia.
3. Sendo consabido que a ignorância da lei não justifica a falta do seu cumprimento (artº 6º do Código Civil), não podendo as rés ignorar a não produção de efeitos da alegada exclusão de sócio, mantiveram-se todos os direitos e obrigações inerentes a tal qualidade daquele.
4. Os recursos destinam-se a apreciar questão já decididas, não podendo ser objeto de análise questões (salvaguardadas as de conhecimento oficioso) que não tenham sido objeto de decisão na sentença recorrida, designadamente quando não foram alegados factos que sustentem a pretensão.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

AA, veio intentar a presente ação contra EMP01... – Comércio de Materiais Não Ferrosos, Lda., e BB, pedindo que seja decretada a destituição, com justa causa, da Ré BB enquanto gerente da sociedade EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos, Lda..
Para tanto, alegou, em síntese, que é sócio da requerida EMP01..., Lda., sendo BB sua atual e única gerente.
O requerente foi destituído da gerência por decisão transitada em julgado no processo nº 6769/16.... do J..., deste Tribunal e ainda no processo nº 1171/17.... tendo sido averbado no respetivo registo.
Sucedendo que, a Ré BB, gerente da EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda., não elaborou nem submeteu à assembleia geral desta sociedade, o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos aos exercícios anuais de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, antes (ou sequer após) do termo dos respetivos prazos legais. E a Ré BB, gerente da EMP01..., também não convocou o Autor para qualquer assembleia geral de aprovação de contas referente aos anos/exercícios de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020.
E a Ré BB, gerente da EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda., também não procedeu ao depósito e registo, na Conservatória do Registo Comercial, das contas refentes aos exercícios anuais de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, dentro dos respetivos prazos legais.
Bem como, não lhe têm sido prestadas as informações por si solicitadas relativas à sociedade.
A Ré contestou a fls. 84 e ss., defendendo-se por exceção, e impugnando os factos alegados pelo A. e concluindo a final pela sua improcedência.
Por despacho de fls. 96-7 foi conhecida e exceção de ilegitimidade, sobre a qual recaiu a decisão do TRG de fls. 114 e ss.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento. 
Foi prolatada sentença com o seguinte dispositivo:
Julga-se a presente ação procedente, por provada, e consequentemente decreta-se a destituição, com justa causa, da ré BB de gerente da ré «EMP01..., Lda.».

Inconformadas com a decisão, as rés apelaram, formulando as seguintes conclusões:

I. As Rés impugnam expressamente a decisão proferida acerca da matéria de facto, considerando que não foi feita prova dos factos dados como provados sob os números 6. - O Autor (…) não sabe ler nem escrever – e 8 - A Ré BB, gerente da EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda., não elaborou nem submeteu à assembleia geral desta sociedade, o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos aos exercícios anuais de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, nos prazos legais e 14 - Ao longo de 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, por mais do que uma vez, o Autor tentou obter informações acerca da sociedade de que é sócio, ou seja da EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda;

II. Relativamente ao facto dado como provado de que o Autor não sabe ler nem escrever, a mesma prova é incompatível com a confissão do Autor de que possui habilitação legal para conduzir veículos pesados, conforme resulta da transcrição das suas declarações anteriormente efetuada e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzidas.

III. Ora, de acordo com Art.º3.ºe 18.ºdo Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 138/2012, de 5 de julho, alterado pelo Decretos-Leis n.ºs 37/2014, de 14 de março, 40/2016, de 29 de julho, 151/2017, de 07 de dezembro, 2/2020, de 14 de janeiro e 102-B/2020, de 09 de dezembro, bem como, a Diretiva 2006/126/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa à carta de condução, é necessário para obter a carta de condução de pesados, além do mais, ser detentor de certificado de aptidão profissional, demonstrar aptidão física, mental e psicológica; obter aprovação nas provas componentes para a habilitação, prova teórica e prova prática.

IV. O Autor faltou à verdade, sendo que o Tribunal não poderia ter dado como provada tal factualidade, até porque contraria as regras da experiência comum, pois que ninguém que é titular de carta de condução de pesados não sabe ler nem escrever.

V. Quanto à matéria de facto dada como provada sob o nº 8, a mesma contraria desde logo a decisão proferida pelo Mmo. Juiz na audiência de julgamento e constante da respetiva ata de 04/07/2023, com a referência ...69, em que expressamente refere: «Considera-se que face aos esclarecimentos prestados pela testemunha que tais documentos (modelos 22 dos anos de 2016 a 2022), foram efetivamente entregues junto da Autoridade Tributária, todavia fora de prazo, pelo que em face desses esclarecimentos, não se afigura essencial a referida diligência».

VI. Por outro lado, as declarações prestadas por essa mesma testemunha, anteriormente transcritas e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, demonstram precisamente o contrário do que o Tribunal deu como provado.

VII. Relativamente aos factos dados como provados sob o nº 14, nenhuma prova foi efetuada, apenas consta dos autos prova documental relativo ao pedido de informação constante da carta de 7 de abril de 2021, junta com a Contestação sob os documentos nºs ...0 e ...1.

VIII. A impugnação da decisão da matéria de facto fundamenta-se ainda na omissão de factos provados, com relevo para a decisão da causa, da decisão da matéria de facto, designadamente:
i. A sociedade Ré entregou os modelos 22 dos anos de 2016 a 2022 junto da Autoridade Tributária: - Resultou provado das declarações da testemunha CC e reconhecido expressamente como provado no despacho proferido na audiência de julgamento, tal como já exposto no ponto anterior;
ii. No dia 23 de novembro de 2016, outorgou, na qualidade de gerente e em representação da sociedade Ré, procuração a favor de DD, residente na Rua ..., ..., ..., Guimarães, através da qual conferiu a este, imagine-se, os poderes para em nome da sociedade: a) Aceitar, sacar e endossar letras, livranças, cartas de crédito, remessas documentárias sobre o estrangeiro, ou outros documentos equiparados; b) Abrir e movimentar a débito e a crédito as contas bancárias de que a sociedade seja ou venha a ser titular em qualquer instituição bancária, sacar, passar, requisitar, assinar e endossar cheques, pedir extratos bancários, efetuar transferências de qualquer espécie, podendo fazer depósitos e ou levantamentos; c) Comprar, vender matérias-primas, subsidiárias, mercadorias, quaisquer móveis, adquirir ou locar veículos automóveis, maquinaria, equipamentos e acessórios, celebrar contratos de locação financeira para aquisição daqueles equipamentos, maquinaria, acessórios e outros; d) Assinar correspondência, recibos de quitação ou documentos equivalentes, celebrar quaisquer contratos, nomeadamente de trabalho, de prestação de serviços, de fornecimentos, de seguros, de arrendamento, de aluguer, de comodato, de renting e de ALD de veículos automóveis; e) Representar nas Conservatórias do Registo Predial, Comercial, Automóveis e de Propriedade Industrial, e aí requerer registos provisórios ou definitivos, averbamentos, incluindo a descrição, e cancelamentos; f) Representar a sociedade em qualquer espécie de Tribunal, bem como propor ou contestar ações judiciais em que a sociedade seja parte, conferindo-lhe ainda poderes forenses gerais e os especiais para confessar, desistir, transigir, intervir em audiências de parte, tentativas de conciliação e audiências preliminares e de julgamento em qualquer processo judicial, devendo, contudo, substabelecer em mandatário judicial aqueles poderes forenses; g) Representar a sociedade junto das autoridades e repartições policiais e administrativas, designadamente na Policia de Segurança Pública, Guarda Nacional Republicana, Guarda Fiscal, Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia e ainda quaisquer Ministérios, Direções Gerais, Repartições, Organismos Públicos, incluindo Serviços de Finanças, Segurança Social, e quaisquer outros institutos públicos. h) Para nas Companhias de Seguros, celebrar contratos, receber prémios, fazer resgates, levantar quaisquer importâncias, assinar recibos, fazer participações de sinistros, concordar ou discordar com peritagens, anular apólices, apresentar, requerer ou levantar quaisquer documentos; i) prometer comprar, vender, arrendar e permutar, e efetivamente comprar, vender, arrendar e permutar, pelos preços e condições que entender convenientes, quaisquer bens móveis ou imóveis; j) Celebrar contratos de locação financeira mobiliária e imobiliária; k) Contrair empréstimos ou outro tipo de financiamentos e realizar operações de crédito que sejam permitidas por lei, de qualquer montante, pelo prazo e condições que tiver por convenientes, prestando as garantias exigidas pelas entidades mutuantes. l) Hipotecar quaisquer imóveis de que a sociedade seja proprietária, para garantia de qualquer empréstimo. m) E ainda os demais poderes de gerência. Outorgar e assinar quaisquer contratos, e escrituras, e ainda representá-lo juntos dos correios, empresas municipais de águas e saneamento, empresas de fornecimento de eletricidade e de gás, empresas telefónicas, requerendo, praticando e assinando tudo o que necessário se torne aos indicados fins. Realizar negócio consigo mesmo, nos termos do nº1 do artigo 261º do Código Civil; - o que ficou provado face à confissão do Autor, tal como resulta da transcrição efetuada e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido: do documento nº ..., junto com a Contestação e da certidão da sentença, junta pelo Autor com a Petição Inicial, proferida no âmbito da ação que correu termos sob o Processo nº 1171/17...., no Juízo do Comércio ..., J..., a qual transitou em julgado, tendo tal factualidade sida dada como provada, e que constitui caso julgado;
iii. Essa procuração foi outorgada pelo Autor sem qualquer conhecimento por parte da outra sócia e gerente, tendo-o feito valendo-se da possibilidade da sociedade ser representada por um único gerente;
iv. No âmbito da Providência Cautelar que sob o Processo nº6769/16...., correu termos no Juízo do Comércio ..., J..., foi proferida sentença em 19 de dezembro de 2016, transitada em julgado, que julgou procedente o procedimento cautelar e, em consequência, determinou a imediata suspensão do aqui Autor das funções de gerente da Sociedade Ré, considerando tal sentença que «em face da extensão dos poderes conferidos a um terceiro, alheio à sociedade, que permitem ao mandante manter-se absolutamente afastado dos desígnios da sociedade, poderes esses que, sem o consentimento do outro sócio e gerente, permitem a oneração de património da sociedade ou a sua dissipação, assim como a amplitude dos poderes conferidos em sede de relacionamento com os bancos, entendemos estar justificada a suspensão imediata das funções de gerente, pois que além do mais, mesmo tendo-se por revogada a procuração em causa, nada obsta a que o gerente AA formalize novo “abrir mão” dos seus poderes de gerente mediante a outorga de nova procuração, o que sempre poderia sempre criar instabilidade e falta de confiança na outra sócia gerente e em todos os demais que se relacionem com a sociedade».
v. Autor foi notificado de tal decisão, por carta registada com AR não tendo recorrido da decisão nem deduzido oposição.
vi. Instaurada a ação principal, que correu termos sob o Processo nº1171/17...., no Juízo do Comércio ..., J..., foi o aqui Autor citado por carta registada com AR, não tendo contestado, pelo que foi proferida sentença, transitada em julgado, que julgou procedente a ação e, em consequência, determinou a destituição de AA das funções de gerente da Sociedade Ré considerando tal sentença que «em face da extensão dos poderes conferidos a um terceiro, alheio à sociedade, que permitem ao mandante manter-se absolutamente afastado dos desígnios da sociedade, poderes esses que, sem o consentimento do outro sócio e gerente, permitem a oneração de património da sociedade ou a sua dissipação, assim como a amplitude dos poderes conferidos em sede de relacionamento com os bancos, entendemos estar justificada a suspensão imediata das funções de gerente, pois que além do mais, mesmo tendo-se por revogada a procuração em causa, nada obsta a que o gerente AA formalize novo “abrir mão” dos seus poderes de gerente mediante a outorga de nova procuração, o que sempre poderia sempre criar instabilidade e falta de confiança na outra sócia gerente e em todos os demais que se relacionem com a sociedade».
Factos estes que resultaram provados através das certidões das sentenças, juntas pelo Autor com a Petição Inicial, proferidas no âmbito da Providência Cautelar e da ação que correu termos sob o Processo nº 1171/17...., no Juízo do Comércio ..., J..., as quais transitaram em julgado, tendo a factualidade que foi dada como provada na sentença constituindo caso julgado;
vii. Através da Ap. ...23 foi registada a suspensão do Autor das funções de gerente da sociedade, registo esse convertido em definitivo pela Ap. ...31;
viii. Através da Ap. ...02 foi registada a cessação das funções de gerente da sociedade do Autor, por destituição;
ix. Na assembleia Geral Extraordinária de 18 de março de 2017, foi deliberada pela sociedade a exclusão do Autor de sócio da sociedade.
x. Através das Menções por Depósito 176/...26 foi registada a exclusão de sócio do Autor; - factos estes provados pela certidão comercial da sociedade Ré junta aos autos e pela ata dessa assembleia junta pelo Autor com a Petição Inicial.
xi. Por acórdão de 21 de abril de 2022, proferido no âmbito dos presentes autos, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, foi declarada nula a deliberação de 18 de março de 2017;

IX. A decisão acerca da matéria de facto deveria, de acordo com o exposto, ser alterada, através da eliminação dos pontos 6, 8 e 14 do elenco dos factos provados e do aditamento dos factos elencados na conclusão anterior;

X. Em face da matéria de facto assim fixada, a decisão de direito deverá ser a da improcedência da ação, com a consequente absolvição das Rés do pedido.

XI. Do que resulta provado, mesmo que não se considere a alteração à decisão da matéria de facto em consequência do recurso acerca da mesma, as obrigações declarativas mostram-se cumpridas, o que resulta da demonstração da entrega dos modelos 22 junto da Autoridade Tributária, relativa aos anos de 2016 a 2022.

XII. Acresce que não ficou demonstrada que a alegada entrega de tais declarações fora de prazo determinou qualquer perigo considerável para a gestão e manutenção da sociedade Ré ou qualquer prejuízo para esta.

XIII. Por outro lado, a não convocatória do Autor para qualquer assembleia geral de aprovação de contas referente aos anos/exercícios de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020 ou a não resposta aos pedidos de informação solicitados pelo Autor naqueles anos – factualidade impugnada, pois apenas consta dos autos o pedido de informação efetuado por carta de 7 de abril de 2021, ocorreu em período em que este não era sócio da sociedade por ter sido excluído de sócio.

XIV. Com efeito, deverá ter-se em conta que o Autor foi excluído de sócio em 18 de março de 2017 e que só decisão judicial, proferida no acórdão de 21 de abril de 2022 é que foi declarada tal deliberação nula, sendo certo que o Autor até então sempre se conformou com tal deliberação, tal como resulta, aliás, do seu depoimento.

XV. Mais, a decisão que declarou nula aquela deliberação nem sequer mereceu, até hoje, do Autor o seu registo na Conservatória do Registo Comercial, onde ainda vigora o registo da sua exclusão de sócio.

XVI. Assim, quer para o Autor, quer para a Ré, após a exclusão de sócio por parte daquele, deixou de ser necessária a sua convocatória para qualquer assembleia, bem como deixou de ter o direito à informação.

XVII. Assim, porque do ponto de vista fiscal foram cumpridas as obrigações declarativas, não ficou demonstrado qualquer prejuízo para a sociedade pelo eventual cumprimento de tais obrigações fora de prazo, e não tinha a Ré a obrigação de convocar o Autor para as assembleias gerais da sociedade após a sua exclusão, nem prestar-lhe informações acerca da sociedade, não se afigura verificada qualquer causa que configure justa causa para a destituição da Ré das funções de gerente.

XVIII. A sentença recorrida violou, pois, o disposto no artigo 257º, nº 6, do Código das Sociedades Comerciais, verificando-se, ainda, a contradição entre os factos provados e a apreciação jurídica que dos mesmos foi feita pelo Tribunal, o que constitui erro de julgamento, face à conclusão da existência de justa causa de destituição com base nos factos provados, ou seja, ocorreu uma errada subsunção dos factos ao direito.

XIX. Sem prescindir, existem factos provados nos autos que levariam sempre à aplicação do instituto do abuso de direito, face ao comportamento demonstrado nos autos por parte do Autor.

XX. Com efeito, ficou provado que o mesmo exerce atividade concorrencial com a da sociedade Ré, em nome de pessoa com quem vive em união de facto, assim como ficou provado que, por sentença transitada em julgado, o Autor foi suspenso e destituído das funções de gerente, com justa causa, atento a gravidade dos factos por ele praticados e que fundamentam de facto tais decisões, com a relevância de se verificar o caso julgado, quer para a decisão de facto, quer para a decisão de direito, então proferidas.

XXI. Face ao comprovado comportamento do Autor lhe dará o direito de requerer a destituição das funções de gerente da Ré apenas porque esta não cumpriu com os prazos das declarações fiscais junto da Autoridade Tributária, ou porque esta não o convocou para as assembleias gerais ou o informou da situação da sociedade, no período em que este se encontrava excluído de sócio da sociedade.
Aliás, sublinhe-se que foi do conhecimento do mesmo a sua exclusão e não teve qualquer reação para alterar tal situação, para além da instauração da presente ação decorridos mais de cinco anos após a deliberação que o excluiu de sócio.

XXII. Face às circunstâncias de facto dadas como provadas, designadamente quanto ao comportamento do Autor, é manifesto ter de se concluir que aquele excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito.

XXIII. O abuso de direito é de conhecimento oficioso, devendo o tribunal apreciá-lo enquanto obstáculo legal ao exercício do direito, pelo que está o tribunal vinculado a tomar conhecimento do abuso de direito, tanto mais que do conjunto dos factos alegados e provados terem resultado provados os respetivos pressupostos legais.

XXIV. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 334º do Código Civil, que estipula que há abuso de direito quando o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo seu fim social ou económico.
Termos em que deverá ser admitido e julgado procedente o presente recurso, alterando-se a decisão acerca da matéria de facto e, a final, substituindo-se a decisão recorrida por outra que julgue a ação improcedente e absolva as Rés do pedido, tal como é de JUSTIÇA.
Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela manutenção do decidido.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.

As questões a decidir são, assim, apurar:

- da correção da fixação da matéria de facto provada e não provada;
- da existência de factos consubstanciadores de justa causa para destituição da recorrente gerente.
- do eventual abuso de direito por parte do recorrido, aferindo, a montante, da possibilidade de conhecimento de tal questão por este tribunal de recurso.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:

1 – A EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda. é uma sociedade comercial que tem por objeto social o comércio, importação e exportação de metais não ferrosos.

2 - A EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda. tem um capital social de € 40.000,00 (quarenta mil euros), tendo cada um dos dois sócios – ou seja, o ora Autor AA e a ora Ré BB – uma quota no valor de € 20.000,00.

3 - Por deliberação de 12 de maio de 2008, o Autor e a Ré foram nomeados gerentes da EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda., tendo tal facto sido registado na Conservatória do Registo Comercial através da AP. ...21.

4 - No (então) J2, 3.ª Secção de Família e Menores, Instância Central ... correu ação de divórcio – interposta pelo aqui Autor contra a aqui Ré BB – sob o processo n.º 3316/16...., no âmbito do qual, a 20 de setembro de 2016, foi proferida sentença, já transitada em julgado, que decretou o seu divórcio.

5 - A EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda. vincula-se “pela intervenção de um único gerente”.

6 - O Autor, apesar de ser uma pessoa experiente na atividade de comércio, importação e exportação de metais não ferrosos, não sabe ler nem escrever (sabe apenas assinar).

7 - A 3 de julho de 2017, no âmbito do processo n.º 1171/17...., que correu termos no Juiz ..., do Juízo de Comércio ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi proferida sentença que determinou “a destituição de AA das funções de gerente da Sociedade” EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda.

8 - A Ré BB, gerente da EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda., não elaborou nem submeteu à assembleia geral desta sociedade, o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos aos exercícios anuais de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, nos prazos legais.
9 - E a Ré BB, como gerente da EMP01..., não convocou o Autor para qualquer assembleia geral de aprovação de contas referente aos anos/exercícios de 2017, 2018, 2019 e 2020.

10 - E a Ré BB, gerente da EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda., também não procedeu ao depósito e registo, na Conservatória do Registo Comercial, das contas refentes aos exercícios anuais de 2016, 2017, 2018, dentro dos respetivos prazos legais (só o foram em 27/09/2021), e de 2019 e 2020 não se mostram depositados na presente data.

11 - Em 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021 o Autor não recebeu um cêntimo da EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda., sendo que nesses anos não houve distribuição de lucros.

12. – O A. dirigiu à Ré a carta de fls. 66 e 67 solicitando as informações aí constantes, em 07/04/2021.

12-A (renumeração nossa, na sequência de lapso do tribunal recorrido que fixou factos duas vezes com o número 12)  – O veículo da EMP01... de marca ..., modelo ... D, do ano de 2018, matrícula ..-VH-.. é utilizado pela Ré BB, o qual é pertença da sociedade Ré.

13- O A. atualmente trabalha numa empresa de EE com quem vive em união de facto, tendo essa empresa a mesma atividade da sociedade Ré.

14- O A. assinou o documento nº... junto com a contestação.

15 – Em 18/03/2017 foi elaborada um ata de exclusão de sócio do A.

Factos Não Provados

- A Ré BB vem auferindo um salário da referida sociedade.

- Sendo que, em 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021 terá ocorrido e continua a ocorrer a subfacturação dos bens e serviços vendidos/prestados pela EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos, Lda..

- Contudo, a Ré BB sempre lhe negou o acesso a tal informação.
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B. Fundamentos de direito. 

As rés impugnaram a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, sob os números 6, 8, e 14.
Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Resulta desta norma que ao apelante se impõem diversos ónus em sede de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida.
No que toca à especificação dos meios probatórios, estabelece o artigo 640º, nº2, alínea a), que: “Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Compulsados os autos, mostram-se minimamente cumpridos os requisitos legais, sem prejuízo do que infra se exporá.
Por facilidade expositiva, transcrevemos em itálico os referidos factos impugnados, previamente ao conhecimento da impugnação deduzida.
6 - O Autor, apesar de ser uma pessoa experiente na atividade de comércio, importação e exportação de metais não ferrosos, não sabe ler nem escrever (sabe apenas assinar).
Alegaram as recorrentes que relativamente ao facto dado como provado de que o Autor não sabe ler nem escrever, a mesma prova é incompatível com a confissão do Autor de que possui habilitação legal para conduzir veículos pesados, conforme resulta da transcrição das suas declarações. Mais alegaram que, de acordo com Art.º3.º e 18.ºdo Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 138/2012, de 5 de julho, alterado pelo Decretos-Leis n.ºs 37/2014, de 14 de março, 40/2016, de 29 de julho, 151/2017, de 07 de dezembro, 2/2020, de 14 de janeiro e 102-B/2020, de 09 de dezembro, bem como, a Diretiva 2006/126/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa à carta de condução, é necessário para obter a carta de condução de pesados, além do mais, ser detentor de certificado de aptidão profissional, demonstrar aptidão física, mental e psicológica; obter aprovação nas provas componentes para a habilitação, prova teórica e prova prática.
Concluem que o autor faltou à verdade, sendo que o Tribunal não poderia ter dado como provada tal factualidade, até porque contraria as regras da experiência comum, pois que ninguém que é titular de carta de condução de pesados não sabe ler nem escrever.
Apreciando:

O já revogado artigo 126º, nº 1, alínea f), do Código da Estrada, aprovado pelo DL nº 114/94 de 3/5, com as alterações introduzidas pelo DL nº 44/2005, de 23/02, estatuía:

1 - Pode obter título de condução quem satisfaça cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Possua a idade mínima de acordo com a categoria a que pretenda habilitar-se;
b) Tenha a necessária aptidão física, mental e psicológica;
c) Tenha residência em território nacional;
d) Não esteja a cumprir proibição ou inibição de conduzir ou medida de segurança de interdição de concessão de carta de condução;
e) Tenha sido aprovado no respetivo exame de condução;
f) Saiba ler e escrever.

Todavia, com a entrada em vigor do DL nº 138/2012, de 5/07, tal artigo foi revogado, tendo deixado de constituir requisito para a obtenção de tal habilitação de conduzir saber ler e escrever:
Artigo 18.º
Condições de obtenção do título
1 - A obtenção de título de condução está condicionada ao preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos:
a) Ter a idade mínima exigida para a categoria de veículo pretendida;
b) Dispor da aptidão física, mental e psicológica exigida para o exercício da condução da categoria de veículos a que se candidata;
c) Ter sido aprovado no exame de condução para a categoria ou categorias de veículos a que se candidata;
d) Não ser titular de carta de condução emitida por outro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, salvo se entregar aquele título para troca por título de condução nacional;
e) Não se encontrar a cumprir sanção acessória de proibição ou de inibição de conduzir ou medida de segurança de interdição de concessão de carta de condução determinada por autoridade judicial ou administrativa portuguesa;
f) Ter decorrido o prazo legalmente estabelecido após cassação da carta de que foi titular para obtenção de novo título;
g) Não ser titular de outro título de condução emitido por Estado membro da União Europeia ou do espaço económico europeu que se encontre apreendido ou suspenso por um desses Estados;
h) Tendo sido titular de título de condução emitido por outro Estado membro da União Europeia ou do espaço económico europeu, que se encontre anulado por decisão de autoridade estrangeira, ter decorrido o período durante o qual lhe estava vedado o direito de conduzir imposto pelo Estado que procedeu à anulação e desde que não seja possível obter novo título nesse Estado;
i) Ter residência habitual em território nacional; ou
j) Ter condição de estudante em território nacional há, pelo menos, 185 dias.
2 - A condição constante da alínea b) do número anterior é de observação permanente e a sua perda determina a caducidade do título de condução.
3 - A condição constante da alínea c) do n.º 1 é dispensada na obtenção de cartas de condução das categorias A2 e A quando o candidato prestar, em regime de autopropositura, a prova prática do exame de condução, em veículo da categoria a que pretende habilitar-se ou tenha frequentado ação de formação, cujo conteúdo e duração são fixados por despacho do presidente do conselho diretivo do IMT, I. P., desde que:
a) Sendo candidato à categoria A2, disponha de, pelo menos, dois anos de titularidade da carta de condução da categoria A1, obtida mediante exame de condução, descontado o tempo que tenha estado proibido ou inibido de conduzir;
b) Sendo candidato à categoria A, disponha de, pelo menos, dois anos de titularidade da carta de condução da categoria A2, descontado o tempo que tenha estado proibido ou inibido de conduzir.
4 - A condição prevista na alínea i) do n.º 1 não é aplicável aos pedidos de emissão de segunda via de carta de condução nacional, desde que o seu titular resida no território de um Estado que não seja membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, o título de condução tenha sido obtido em território nacional e o condutor tenha nacionalidade portuguesa.
5 - É cancelado o título de condução obtido com fundamento em falsas declarações ou pressupostos falsos ou afetados por erro.
Ora, não temos elementos para saber se, à data em que o autor ficou alegadamente habilitado a conduzir, para obter a carta de condução era legalmente necessário saber ler e escrever, pelo que da circunstância de o mesmo alegadamente ser titular de habilitação para condução de veículos pesados, não se pode retirar a conclusão de que o mesmo haja mentido ao referir que só sabia assinar.
Nada mais foi alegado pelo recorrente, que no momento processual azado poderia ter requerido diligências de prova quanto a tal facto, por exemplo, relativamente ao ato apresentado a registo na conservatória de registo comercial da sociedade teria tido interesse ver o que consta dos respetivos documentos na base do registo, nomeadamente quanto ao que terá sido (ou não) cumprido relativamente, por exemplo, às exigências dos artºs 46º, nº1, m), e artº 50º, nº3, do Código de Notariado. Igual raciocínio para a alegada procuração referida no facto provado nº 14. Ou até ter pedido cópia do pedido de cartão de cidadão (ou bilhete de identidade, se anterior) e verificar o que aí consta relativamente a uma hipotética manuscrita do requerimento.
 Estão-nos, desta forma, processualmente vedadas outras considerações sobre o alegado analfabetismo.
Improcede, assim, a impugnação quanto a este facto.

8 - A Ré BB, gerente da EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda., não elaborou nem submeteu à assembleia geral desta sociedade, o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos aos exercícios anuais de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, nos prazos legais.
Alegaram as recorrentes que a factualidade assente contraria desde logo a decisão proferida pelo tribunal recorrido na audiência de julgamento e constante da respetiva ata de 04/07/2023, com a referência ...69, em que expressamente refere: «Considera-se que face aos esclarecimentos prestados pela testemunha que tais documentos (modelos 22 dos anos de 2016 a 2022), foram efetivamente entregues junto da Autoridade Tributária, todavia fora de prazo, pelo que em face desses esclarecimentos, não se afigura essencial a referida diligência».
No referido despacho, o tribunal recorrido considerou que os ali referidos elementos (declaração Modelo 22) foram entregues, mas fora do prazo legal.
No facto provado ora posto em crise, para além de mais amplo (não se refere só ao Modelo 22), está em causa à submissão à assembleia geral e não somente a entrega junto da Autoridade Tributária. Acresce que, na parte final, se refere expressamente “nos prazos legais” pelo que inexiste qualquer contradição.
Acresce que o depoimento da referida testemunha, além de não contraditar no seu todo a factualidade dada como provada, sempre está sujeito à livre apreciação do julgador, pelo que não dispomos de quaisquer elementos que permitam considerar mal decidida a factualidade em causa, que assim mantemos.

14- O A. assinou o documento nº... junto com a contestação.
As recorrentes transcreveram o facto 14, mas o da decisão da providência cautelar, e não o da sentença recorrida, antecedentemente transcrito, fazendo alegações quanto ao facto provado naquela, e não nesta sentença, pelo que, por extravasar o âmbito do recurso, não se conhece de tal impugnação.

Seguidamente, as recorrentes insurgem-se contra a omissão de alegada factualidade relevante, a saber:
I - A sociedade ré entregou os Modelos 22 dos anos de 2016 a 2022 junto da Autoridade Tributária.

Desde logo, tal pretensão resulta prejudicada pelo facto provado nº 8, facto necessário e suficiente à boa decisão da causa, e pelas considerações que fizemos quanto à impugnação do mesmo.
Acrescentaremos, somente, que “A livre apreciação da prova oral é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância, porque é a 1ª instância que vê e ouve (…) testemunhas, que aprecia os seus gestos, hesitações, espontaneidade ou a falta dela, em suma, os seus comportamentos não verbais, é a 1ª instância que formula as perguntas que entende pertinentes, que encaminha o interrogatório e/ou a inquirição da forma que considera ser a mais conveniente, tudo faculdades de que o tribunal da Relação não pode lançar mão e que impõem severas limitações à reapreciação da prova.” – cfr. Ac. RC de 22/02/2023, processo nº 446/19.0T9CTB.C1, in www.dgsi.pt, como os demais indicados sem menção em contrário.
Como se decidiu nesta Relação, no acórdão de 5/03/2020, processo nº 48/18.0T8CHV.G1, que acompanhamos, “Quando o tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios de prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pelas partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo.
Importa, porém, não esquecer que se mantêm em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.
Improcede, assim, esta impugnação.
II- Seguidamente, e na sequência do lapso que os recorrentes cometeram quanto ao facto 14, insurgem-se contra a alegada omissão nos factos provados da factualidade consubstanciada na assinatura, pelo autor, da procuração datada de 23 de novembro de 2016.
Ora, tal factualidade foi já dada como provada pelo tribunal recorrido, sob o nº 14, razão pela qual também não se conhecerá do peticionado nesta parte.

III – Essa procuração foi outorgada pelo autor sem qualquer conhecimento por parte da outra sócia e gerente, tendo-o feito valendo-se da possibilidade da sociedade ser representada por um único gerente.
Como já referiu no proémio do conhecimento da impugnação da matéria de facto, nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
            (…)
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
As recorrentes não cumpriram esta exigência legal, acrescendo que nem sequer alegaram a razão pela qual, do seu ponto de vista, tal factualidade relevava para a decisão da causa.
Improcede, assim, também este ponto.

iv a vi – As recorrentes alegaram que há um conjunto de factos que “resultaram provados através das certidões das sentenças, juntas pelo autor com a petição inicial, proferidas no âmbito da providência cautelar e da ação que correu termos sob o processo nº 1171/17...., no Juízo de Comércio ..., J..., as quais transitaram em julgado, tendo a factualidade que foi dada como provada na sentença constituído caso julgado.
Ora, contrariamente ao pretendido pelas recorrentes, e sendo certo que, noutro plano, nem sequer se mostra alegada a relevância da matéria em causa para a decisão do recurso, importa enfatizar que são realidades distintas o valor extraprocessual das provas produzidas, que podem ser objeto de apreciação noutro processo, e os factos que nos processos referidos pela recorrente foram tidos como assentes. Estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respetiva decisão judicial (v.g. AcSTJ de 3/03/2021, processo nº 11661/18.4T8PRT.P1-A.S1; AcRP de 15/06/2020, processo nº 14954/17.4T8PRT-A.P1; AcRP de 2/12/2021, processo nº 2055/20.2T8PNF.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Improcede, assim, também esta pretensão das recorrentes.

vii a xi – As recorrentes alegaram depois que os seguintes factos deveriam ter sido considerados como provados:
vii. Através da Ap. ...23 foi registada a suspensão do Autor das funções de gerente da sociedade, registo esse convertido em definitivo pela Ap. ...31;
viii. Através da Ap. ...02 foi registada a cessação das funções de gerente da sociedade do Autor, por destituição;
ix. Na assembleia Geral Extraordinária de 18 de março de 2017, foi deliberada pela sociedade a exclusão do Autor de sócio da sociedade.
x. Através das Menções por Depósito 176/...26 foi registada a exclusão de sócio do Autor; - factos estes provados pela certidão comercial da sociedade Ré junta aos autos e pela ata dessa assembleia junta pelo Autor com a Petição Inicial.
xi. Por acórdão de 21 de abril de 2022, proferido no âmbito dos presentes autos, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, foi declarada nula a deliberação de 18 de março de 2017;
Repetimos aqui o que já supra dissemos quanto ao ponto iii: nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
(…)
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
As recorrentes não cumpriram esta exigência legal, acrescendo que nem sequer alegaram a razão pela qual, do seu ponto de vista, tal factualidade relevava para a decisão da causa. E, manifestamente, nenhuma relevância têm para a decisão. O pedido nesta ação foi o de decretamento da suspensão da ré BB do cargo de gerente da EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos Lda., - a final da presente ação, ser decretada a destituição, com justa causa, da Ré BB do cargo de gerente da EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos, Lda..
Improcede, assim, também quanto a este ponto, a pretensão das rés.
Tudo ponderado, improcede totalmente a impugnação da matéria de facto, mantendo-se a que foi dada como provada e não provada pelo tribunal recorrido.
Alegam as rés, seguidamente, que mesmo mantendo-se inalterada a matéria de facto, a ação teria de improceder.
Começam por alegar que não ficou demonstrado que a entrega fora do prazo das declarações Modelo 22, junto da Autoridade Tributária, haja determinado qualquer perigo considerável para a gestão e manutenção da sociedade ré ou qualquer prejuízo para esta.
A questão objeto do presente recurso foi já apreciada noutros processos do aqui relator, seguindo-se de perto a jurisprudência ali vertida.
“A ação em que é requerida a suspensão e a destituição de gerente configura uma ação especial de jurisdição voluntária em que são formulados dois pedidos distintos, com natureza e tramitações distintas.
Os únicos requisitos legais para a suspensão e a destituição de gerente são a existência de justa causa, decorrendo o periculum in mora, em sede de incidente de suspensão, da circunstância de se terem apurado indiciariamente factos que consubstanciam justa causa para a destituição da gerência. Existe justa causa subjetiva para efeitos de destituição de gerente quando este, por ação ou omissão, viola de forma grave e culposa, as suas obrigações de administrador e dos factos apurados se retira que a prática desses atos, atenta a sua natureza e/ou reiteração, impossibilitam em termos objetivos e subjetivos, a manutenção da relação contratual de gerência estabelecida com a sociedade, por implicarem uma irreversível quebra da relação de confiança que essa relação pressupõe, tornando inexigível à sociedade a manutenção dessa relação.” – AcRG de 8/10/2020, processo nº 2641/19.3T8VNF.G1, in www.dgsi.pt.
De acordo com o artº 257º, nº2, do Código das Sociedades Comerciais, existindo justa causa, pode qualquer sócio requerer a suspensão e a destituição do gerente, em ação intentada contra a sociedade. Se esta tiver apenas dois sócios, a destituição da gerência com fundamento em justa causa só pelo tribunal pode ser decidida em ação intentada pelo outro. Constituem justa causa de destituição, designadamente, a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respetivas funções.
Estando-se perante um processo de jurisdição voluntária, e de acordo com o artº 987º, do CPC, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna. Por outro lado, existe uma prevalência do princípio do inquisitório sobre o dispositivo.
Coutinho de Abreu[1] refere que “Em tese geral, diremos que é justa causa a situação que, atendendo aos interesses da sociedade e do gerente, torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o gerente violou gravemente os seus deveres, ou revelou incapacidade ou ficou incapacitado para o exercício normal das suas funções.
Os deveres, cuja violação grave (com dolo ou negligência forte) constitui justa causa de destituição, podem ser legais específicos (resultam imediata e especificadamente da lei), legais gerais (deveres de cuidado e deveres de lealdade: artº 64º, 1º), ou estatutários. (…) Relativamente aos deveres (legais gerais) de cuidado, são destituíveis por justa causa os gerentes que violem gravemente o dever de controlo ou vigilância organizativo-funcional), ou o dever de tomar decisões (substancialmente) razoáveis.
Por sua vez, entre os deveres de lealdade dos gerentes cuja violação constitui justa causa de destituição destacamos o dever de aproveitarem as oportunidades de negócio da sociedade em benefício dela, não em seu próprio benefício ou no de outros sujeitos, o dever de não utilizarem em benefício próprio ou alheio informações ou bens da sociedade e o dever de não abusarem do seu estatuto ou posição de gerentes.
O artigo 64º do CSC elenca os deveres fundamentais dos gerentes ou administradores da sociedade, estatuindo que “…devem observar: a) deveres de cuidado, relevando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e b) deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”.
O tribunal recorrido fundamentou a sua decisão fazendo as seguintes considerações:
Por outro lado, mostra-se apurado não terem sido elaboradas e submetidas à aprovação da assembleia geral as contas da sociedade relativas após 2016.
Mostram-se, assim, violados os deveres de relato e apresentação de contas que igualmente impendem sobre os gerentes – cfr. arts. 65º, 66º e 67º do Código das Sociedades Comerciais.
A falta de submissão do relatório de gestão, das contas e dos documentos corresponde a um ilícito de mera ordenação social, punível com coima (art.528º/1 do C. S. Comerciais). A referida falta de submissão nos dois meses seguintes ao termo do prazo, habilita «qualquer sócio» a «requerer ao tribunal que proceda a inquérito» (art.67º/1 do C. S. Comerciais).
(…)
b) No plano externo, deve diligenciar pelo cumprimento de obrigações da sociedade:
b1) De proceder ao registo comercial, por depósito, dos elementos respeitantes «às contas do exercício e aos demais documentos de prestação de contas, devidamente aprovados» (art.70º/1 do C. S. Comerciais; arts.3º/1-n) e 42º do C. R. Comercial), registo este obrigatório, que «deve ser pedido no prazo de dois meses a contar da data em que tiverem sido titulados» (art.15º/1 e 2 do C. R. Comercial).
A falta de registo de contas durante dois anos consecutivos, por sua vez, pode desencadear o procedimento administrativo oficioso do conservador de dissolução da sociedade (art.5º/b) do Anexo III do Decreto-Lei nº 76-A/2006 de 29.03.2006, que, no art.1º/3, aprovou o Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais).
b2)De cumprir obrigações declarativas da sociedade, nomeadamente:
_ De apresentação da declaração periódica de rendimentos, nos termos do artigo 120.º do Código do IRC, acompanhada dos documentos legais, a enviar, anualmente, por transmissão eletrónica de dados, «até ao último dia do mês de maio, independentemente de esse dia ser útil ou não útil» (arts.117º/1-b), 2 e 120º/1 do Código do IRC).
_ De declaração anual de informação contabilística e fiscal, nos termos do artigo 121º do Código do IRC, a enviar, por transmissão eletrónica de dados, «até ao dia ../../...., independentemente de esse dia ser útil ou não útil» (arts.117º/1-c), 2 e 121º/2 do Código do IRC), declaração esta que pode ser substituída pela apresentação da Informação Empresarial Simplificada (IES), que «consiste na prestação da informação de natureza fiscal, contabilística e estatística respeitante ao cumprimento das obrigações legais referidas no n.º 1 do artigo 2.º através de uma declaração única transmitida por via eletrónica» (art.1º do DL nº8/2007, de 17.01.), IES esta que integra, nomeadamente, as obrigações de apresentação de declaração anual de informação contabilística e fiscal pelas sociedades comerciais e o registo da prestação de contas (art.2º/1-b) e c) do DL nº8/2007, de 17.01.).
b3) De cumprimento de obrigações em sede de IVA, de «Enviar mensalmente uma declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade no decurso do segundo mês precedente, com a indicação do imposto devido ou do crédito existente e dos elementos que serviram de base ao respetivo cálculo;» (arts.1º, 2º, 29º/1-b) e c) do Código do IVA), sendo que a «obrigação de declaração periódica prevista no número anterior subsiste mesmo que não haja, no período correspondente, operações tributáveis.» (art. 29º/2 do Código do IVA).
(…)
Ainda assim e recordando o citado art. 257º, nº6 do CSC impõe o caráter grave dessas infrações.
Pelo que, impõe-se a avaliação das condutas da requerida BB e se as mesmas integram o aludido conceito de justa causa o que determinaria a sua destituição.
A falta de submissão do relatório de gestão, das contas e dos documentos corresponde a um ilícito de mera ordenação social, punível com coima (art.528º/1 do C. S. Comerciais). A referida falta de submissão nos dois meses seguintes ao termo do prazo, habilita «qualquer sócio» a «requerer ao tribunal que proceda a inquérito» (art.67º/1 do C. S. Comerciais).
(…)
A falta de registo de contas durante dois anos consecutivos, por sua vez, pode desencadear o procedimento administrativo oficioso do conservador de dissolução da sociedade (art.5º/b) do Anexo III do Decreto-Lei nº 76-A/2006 de 29.03.2006, que, no art.1º/3, aprovou o Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais).
Conclui-se, pois, que os factos provados integram justa causa de destituição da gerente/2ª ré, face à diversidade e à extensão do tempo em que ocorreram as violações dos deveres do gerente e à gravidade das suas possíveis consequências na sociedade comercial de que o autor e a 2ª ré são sócios.
Sem prejuízo das considerações de direito supra referidas e vertidas na sentença, importa salientar que o tribunal recorrido apenas deu como provado que “A Ré BB, gerente da EMP01... – Comércio de Metais Não Ferrosos, Lda., não elaborou nem submeteu à assembleia geral desta sociedade, o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos aos exercícios anuais de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, nos prazos legais.” – cfr. facto provado nº 8.
Caracterizemos, desde logo, o âmbito legal das apontadas omissões e relevância das mesmas.
Dispõe o referido artº 65º do CSC:
Artigo 65.º
Dever de relatar a gestão e apresentar contas
1 - Os membros da administração devem elaborar e submeter aos órgãos competentes da sociedade o relatório de gestão, incluindo a demonstração não financeira ou o relatório separado com essa informação, ambos referidos nos artigos 66.º-B e 508.º-G, quando aplicáveis, as contas do exercício, bem como os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos a cada exercício anual.
2 - A elaboração do relatório de gestão, incluindo a demonstração não financeira ou do relatório separado, quando aplicáveis, e das contas de exercício, bem como dos demais documentos de prestação de contas deve obedecer ao disposto na lei; o contrato de sociedade pode complementar, mas não derrogar, essas disposições legais.
3 - O relatório de gestão, o relatório separado com a informação não financeira, quando aplicável, e as contas do exercício devem ser assinados por todos os membros da administração; a recusa de assinatura por qualquer deles deve ser justificada no documento a que respeita e explicada pelo próprio perante o órgão competente para a aprovação, ainda que já tenha cessado as suas funções.
4 - O relatório de gestão, o relatório separado com a informação não financeira, quando aplicável, e as contas do exercício são elaborados e assinados pelos gerentes ou administradores que estiverem em funções ao tempo da apresentação, mas os antigos membros da administração devem prestar todas as informações que para esse efeito lhes forem solicitadas, relativamente ao período em que exerceram aquelas funções.
5 - O relatório de gestão, o relatório separado com a informação não financeira, quando aplicável, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas devem ser apresentados ao órgão competente e por este apreciados, salvo casos particulares previstos na lei, no prazo de três meses a contar da data do encerramento de cada exercício anual, ou no prazo de cinco meses a contar da mesma data quando se trate de sociedades que devam apresentar contas consolidadas ou que apliquem o método da equivalência patrimonial.
Ana Maria Rodrigues e Rui Pereira Dias, em anotação ao citado preceito in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, 2ª edição, páginas 832 e ss, referem que “O dever de relatar e apresentar contas, no CSC, tem uma configuração legal que é dada, não apenas por este preceito, mas também por vários outros, não menos importantes, dispersos pelo Código:
· Artº 65º - Dever de relatar a gestão e apresentar contas;
· Artº 66º - Relatório de gestão;
· Artº 70º - Depósito;
· Artº 70º-A Depósitos para as sociedades em nome coletivo e em comandita simples;
· Artº 420º - Relatório e parecer do fiscal único ou conselho fiscal;
· Artº 447º - Publicidade de participações dos membros de órgãos de administração e fiscalização (Anexo ao relatório anual do órgão de administração);
· Artº 448º - Publicidade de participações de acionistas (Anexo ao relatório anual do órgão de administração);
· Artsº 508º-A a 508º-E – Contas consolidadas.
Não obstante a complexidade que, poderá dizer-se, a extensão do conjunto de utentes das Demonstrações Financeiras (v. § 9 da Estrutura Concetual do Sistema de Normalização Contabilística) introduz em matéria do relato financeiro, este dever de prestar contas é correlativo de um direito dos sócios a essa prestação de contas – que, como os tribunais portugueses já afirmaram, pode ser distinguido do direito de informação ou de consultar documentos societários.
Assim, para além do dever de elaborar estes documentos, os membros da administração estão vinculados a submeter estes documentos aos órgãos competentes da sociedade, a saber, o grémio social, usualmente reunido em assembleia geral.
No dever de relatar a gestão e apresentar contas incluem-se, segundo o artº 65º, 1, “o relatório de gestão, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas previstos na lei”. Quais são, exatamente, estes documentos, uma vez que só o relatório de gestão (v. artº 66º) é especificamente identificado no CSC?
Encontramos uma primeira referência às “contas de exercício” no artº 2º, 1, da Quarta Diretiva. “As contas anuais compreendem o balanço, a conta de ganhos e perdas e o anexo. Estes documentos formam um todo.” Hoje, porém, é mais extenso o elenco de documentos de prestação de contas (ou de demonstrações financeiras, para abreviarmos e ao mesmo tempo remetermos para a terminologia adotada pela Estrutura Concetual e Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro do Sistema de Normalização Contabilística). Por isso mesmo, é feliz a inexistência de um elenco taxativo dos documentos de prestação de contas na lei societária, bem como a referência aberta, na parte final do artº 65º, 1, aos “demais documentos de prestação de contas previstos na lei”. Na verdade, esses documentos  -  e não só o seu conteúdo – podem variar em nome, número e forma, consoante as normas contabilísticas a que as sociedades comerciais de lei portuguesa estejam sujeitas, assim como sofrer alterações ao longo dos tempos, de modo a refletir e acompanhar a evolução da respetiva envolvente económica.
No que tange ao relatório da gestão, omissão assinalada e dada como provada no ponto 8 dos factos provados, rege o artº 66º do CSC:
Artigo 66.º
Relatório de gestão
1 - O relatório da gestão deve conter, pelo menos, uma exposição fiel e clara da evolução dos negócios, do desempenho e da posição da sociedade, bem como uma descrição dos principais riscos e incertezas com que a mesma se defronta.
2 - A exposição prevista no número anterior deve consistir numa análise equilibrada e global da evolução dos negócios, dos resultados e da posição da sociedade, em conformidade com a dimensão e complexidade da sua atividade.
3 - Na medida do necessário à compreensão da evolução dos negócios, do desempenho ou da posição da sociedade, a análise prevista no número anterior deve abranger tanto os aspetos financeiros como, quando adequado, referências de desempenho não financeiras relevantes para as atividades específicas da sociedade, incluindo informações sobre questões ambientais e questões relativas aos trabalhadores.
4 - Na apresentação da análise prevista no n.º 2 o relatório da gestão deve, quando adequado, incluir uma referência aos montantes inscritos nas contas do exercício e explicações adicionais relativas a esses montantes.
5 - O relatório deve indicar, em especial:
a) A evolução da gestão nos diferentes sectores em que a sociedade exerceu atividade, designadamente no que respeita a condições do mercado, investimentos, custos, proveitos e atividades de investigação e desenvolvimento;
b) Os factos relevantes ocorridos após o termo do exercício;
c) A evolução previsível da sociedade;
d) O número e o valor nominal ou, na falta de valor nominal, o valor contabilístico das quotas ou ações próprias adquiridas ou alienadas durante o período, a fração do capital subscrito que representam, os motivos desses atos e o respetivo preço, bem como o número e valor nominal ou contabilístico de todas as quotas e ações próprias detidas no fim do período;
e) As autorizações concedidas a negócios entre a sociedade e os seus administradores, nos termos do artigo 397.º;
f) Uma proposta de aplicação de resultados devidamente fundamentada.
g) A existência de sucursais da sociedade.
h) Os objetivos e as políticas da sociedade em matéria de gestão dos riscos financeiros, incluindo as políticas de cobertura de cada uma das principais categorias de transações previstas para as quais seja utilizada a contabilização de cobertura, e a exposição por parte da sociedade aos riscos de preço, de crédito, de liquidez e de fluxos de caixa, quando materialmente relevantes para a avaliação dos elementos do ativo e do passivo, da posição financeira e dos resultados, em relação com a utilização dos instrumentos financeiros.
6 - Ficam dispensadas da obrigação de elaborar o relatório de gestão as microentidades, tal como definidas no n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, alterado pela Lei n.º 20/2010, de 23 de agosto, pelo Decreto-Lei n.º 36-A/2011, de 9 de março, e pelas Leis n.ºs 66-B/2012, de 31 de dezembro, e 83-C/2013, de 31 de dezembro, desde que procedam à divulgação, quando aplicável, no final do balanço, das informações mencionadas na alínea d) do n.º 5 do presente artigo.
A propósito deste relatório, referem os mesmos autores supracitados, op. cit., página 840-846 que, “não obstante desempenhe um papel importante como documento integrante do processo de relato financeiro, pode ainda ser visto como uma emanação do direito geral de informação de que são titulares os sócios, embora não esgote esse direito no que toca à posição financeira, muito menos ao desempenho não financeiro da sociedade.
Na verdade, o relatório de gestão inclui, para além dos efeitos financeiros de acontecimentos passados, informação não financeira muito relevante, que complementa a informação financeira integrante das Demonstrações Financeiras, permitindo avaliar o zelo na atuação do órgão de gestão com os recursos que lhe foram confiados. Pode, assim, revestir-se de grande importância em ações de responsabilidade (civil e penal) dos membros da administração.
Os elementos constantes do relatório de gestão permitem que os utentes das Demonstrações Financeiras possam avaliar mais adequadamente a capacidade da sociedade para gerar caixa e equivalentes de caixa, e bem assim a tempestividade e certeza na sua geração. Contribui, ainda, para a adequada ponderação, por sócios e terceiros, dos riscos associados à atividade desenvolvida pela entidade.
A questão que então se coloca é a de saber se tais omissões plasmadas no ponto 8 dos factos provados assumem gravidade suficiente em ordem ao preenchimento do conceito de justa causa, sem embargo de se considerar que o referido comportamento tem de ser cotejado com os demais imputados à recorrente gerente.
Desde logo, as recorrentes apenas alegaram que não ficou demonstrado que a entrega fora do prazo das declarações Modelo 22, junto da Autoridade Tributária, haja determinado qualquer perigo considerável para a gestão e manutenção da sociedade ré ou qualquer prejuízo para esta, sendo certo que os deveres impostos à sociedade pelo artº 65º do Código das Sociedades Comerciais, são bastante mais amplos, como mais amplo é o rol de omissões imputado à recorrente gerente constante do ponto 8 dos factos provados.
Não obstante, e quanto a estas omissões, Jorge Coutinho de Abreu, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume IV, 2ª edição, página 126, refere que “Fora do CSC encontramos também deveres legais específicos relevantes. São destituíveis por justa causa os gerentes que, por exemplo, desrespeitem regras básicas da escrituração societária estabelecidas em diplomas fiscais ou no Sistema de Normalização Contabilística (…).
Ora, cotejando os factos imputados à recorrente gerente com as considerações expendidas, não sobejam dúvidas sobre a gravidade do comportamento imputado.
Repare-se que não esteve aqui em causa um ato isolado, esporádico, mas antes um conjunto de omissões que se estendeu de 2016 a 2022. É manifesto que tais omissões têm de se considerar graves. A existência de contabilidade organizada, da qual o cumprimento tempestivo das obrigações fiscais constitui uma vertente, não se destina exclusivamente a servir o interesse egoístico da empresa respetiva em ordem a permitir o controle interno da mesma perante os sócios, tem também uma função de interesse público traduzida na transparência perante quem com a mesma contrata, desde os próprios trabalhadores a fornecedores e adquirentes.
Menezes Cordeiro[2] refere que “A necessidade de manter contas decorre do próprio exercício do comércio. Este, mesmo elementar, implica atos que o comerciante não pode reter sem apoio em notas. E são justamente estas, pelas informações que propiciam, que o poderão nortear em novas operações, sedimentando a experiência e dando corpo às disponibilidades. A escrituração terá começado por servir os interesses do próprio comerciante: operaria, na doutrina clássica, como espelho do interessado, funcionando como sua consciência ou a sua bússola. Mas, além disso, desde cedo se verificou que ela servia, também, os interesses dos credores e isso a um duplo título:

- incentivando a um comércio cuidadoso e ordenado, a escrituração conduz a práticas que põem os credores (mais) ao abrigo de falências e bancarrotas;
- permitindo conhecer a precisa situação patrimonial e de negócios, a escrituração faculta informações e determina responsabilidades.
A partir daí, reconheceu-se que a escrituração servia toda a comunidade, facultando ainda ao Estado atuar com fins de polícia, de fiscalidade ou de supervisão. Numa evolução mais recente, a escrituração veio servir os investimentos e a expansão mobiliária das empresas.”.
Afigura-se-nos, assim, claro, que os comportamentos omissivos da ré gerente têm gravidade bastante para preencher o conceito de justa causa para efeitos de destituição. Daí que consideremos que os factos plasmados no nº 8 dos factos provados são suficientes para a destituição por justa causa da ré gerente.
Improcede, assim, a alegação das recorrentes quanto a este ponto.
Alegaram depois as recorrentes que a não convocatória do recorrido para qualquer assembleia geral de aprovação de contas ou a não prestação de informações ocorreu em período em que o autor não era sócio, tendo sido excluído de tal qualidade em 18 de março de 2017, e só na sequência de acórdão desta Relação de 21 de abril de 2022 é que foi declarada tal deliberação como nula.
Apreciando esta alegação:
Desde logo, importa corrigir o alegado: o acórdão desta Relação de 21 de abril de 2022, relatado pelo aqui também relator, em parte alguma conheceu da nulidade da deliberação, muito menos a declarou. O que ali foi deliberado foi uma coisa diferente, foi o de reconhecer legitimidade ativa ao ora recorrente, determinando o prosseguimento da ação: Deve considerar-se dotado de legitimidade processual ativa para instauração de ação de jurisdição voluntária de destituição de órgãos sociais, prevista no artº 1055º, do CPC, o ex-sócio de sociedade que, cumulativamente (artº 37º, nº2, do CPC), deduziu o pedido de declaração de nulidade da sua exclusão de sócio. A não consideração de legitimidade processual ativa em tal caso (o preceito do CPC fala em qualquer interessado, não tendo sequer a restrição de limitação de tal direito aos sócios, constante dos artigos 257º e 403 do Código das Sociedades Comerciais) conduziria a um resultado em que poderia ser excluída a tempestiva tutela de interesses a que o artº 1055º do CPC se destina, assim se impedindo o exercício de direitos societários. 3 - Para conseguir tal resultado, em tese, bastaria que os sócios-gerentes de sociedades, para adiar as suas destituições, decidissem ilícita e unilateralmente a exclusão de outro sócio, e assim obrigassem à existência de uma ação prévia de declaração de nulidade, que poderiam arrastar dilatoriamente.
Feita tal correção, e sem prejuízo de se voltar à alegada nulidade, importa relembrar o que em termos de matéria de facto atinente a este ponto ficou provada:
9 - E a Ré BB, como gerente da EMP01..., não convocou o Autor para qualquer assembleia geral de aprovação de contas referente aos anos/exercícios de 2017, 2018, 2019 e 20.
Alegaram as recorrentes que, após a exclusão de sócio do ora recorrido, deixou de ser necessária a sua convocatória, bem como deixou de ter o direito à informação.
Vejamos se é assim.
Como decorre expressamente do artº 242º, nº 1, do CSC, a exclusão de sócio tem necessariamente de ser decretada por decisão judicial, precedida de deliberação dos sócios que aprovem a proposição da ação de exclusão (nº 2 do citado preceito).
E, por força do disposto no artº 56º, nº 1, alínea c), do CSC, tal exclusão, a que se refere o ponto 15 dos factos provados, é nula.
Sendo nula a deliberação, por força da violação de uma norma legal imperativa, “a contradição entre o conteúdo de uma deliberação e uma norma legal imperativa é proibida, e não pode a deliberação produzir os efeitos a que tendia.” – Jorge Coutinho de Abreu in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, 2ª edição, pág. 690.
Ora, sendo consabido que a ignorância da lei não justifica a falta do seu cumprimento (artº 6º do Código Civil), não podendo as rés ignorar a não produção de efeitos da alegada exclusão de sócio, mantiveram-se todos os direitos e obrigações inerentes à qualidade de sócio.
Carece, assim, de fundamento legal a alegação das rés de que quer para o autor quer para a ré, após a exclusão de sócio por parte daquele, deixou de ser necessária a sua convocatória para qualquer assembleia, bem como deixou de ter o direito à informação.
Haverá, assim, que qualificar tais omissões das recorrentes como graves, à luz do artº 257º, nº6, do CSC, valendo aqui as considerações feitas na sentença recorrida sobre tais comportamentos.
Improcedem, assim, também, as pretensões das recorrentes quanto a estes concretos pontos.
Flui do supra exposto a inexistência de qualquer erro de julgamento, como pretendem as recorrentes, improcedendo também esta pretensão recursória vertida na conclusão XVIII.
As recorrentes alegam depois que existem factos provados nos autos que levariam sempre à aplicação do instituto do abuso de direito, face ao comportamento demonstrado nos autos por parte do autor. Alegaram que o mesmo exerce atividade concorrencial com a ré, em nome da pessoa com quem vive em união de facto, o que não lhe dá o direito de requerer a destituição de funções da ré gerente.
Todavia, trata-se de um conjunto de factos que, por não terem sido apreciados pelo tribunal recorrido, mormente na decisão posta em crise, estão subtraídos à apreciação deste tribunal da Relação. Com efeito, os recursos destinam-se a apreciar questão já decididas, não podendo ser objeto de análise questões (salvaguardadas as de conhecimento oficioso) que não tenham sido objeto de decisão na sentença recorrida: “Os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas. Só assim não será quando a própria lei estabeleça uma exceção a essa regra, ou quando esteja em causa matéria de conhecimento oficioso.” – cfr. AcSTJ de 7/04/2005, processo 05B175.
Apesar da exceção perentória do abuso de direito ser de conhecimento oficioso do tribunal, no conhecimento desta o tribunal tem de se ater à facticidade julgada provada. Ora, atenta essa facticidade não é possível concluir pela existência de qualquer abuso de direito por parte do autor ao instaurar a presente ação.
 Daí que o só agora alegado acervo de factos, em tese consubstanciador de abuso de direito, na versão das recorrentes, não possa ser conhecido por este tribunal de recurso, o que se delibera, sem deixar de se assinalar que o alegado desvalor das ações do recorrido não anula os comportamentos imputados às rés, impedindo aquele de recorrer a juízo, e que a simples circunstância de o recorrido exercer a mesma atividade da recorrente sociedade não implica, por si só, que faça concorrência à mesma. Não resultou provado onde a atividade é exercida, em que termos, desde quando, e qual o âmbito concreto de atuação que coincide com a atividade da recorrente.
Tem, assim, de se considerar totalmente improcedente o recurso interposto pelas rés, confirmando-se a sentença recorrida.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelas recorrentes – artº 527º, nº1, e 2, do CPC.
Notifique.
Guimarães, 29 de fevereiro de 2024.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1º Adjunto: Gonçalo Oliveira Magalhães.
2º Adjunto: José Alberto Martins Moreira Dias.


[1] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume IV, Almedina, 2ª edição, pág. 128.
[2] Direito Comercial, Almedina, 4ª edição, 2019, págs. 405-406.