Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | ANA CRISTINA DUARTE | ||
| Descritores: | INVENTÁRIO SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA OBRIGAÇÃO DE ENTREGA DE BENS | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 10/30/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO PROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | 1 - O processo de inventário destina-se a fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha dos bens, sendo a causa de pedir a existência de um património indiviso, como universalidade de direito. 2 - Só a sentença homologatória da partilha transforma os direitos de cada um dos herdeiros sobre o património indiviso em direitos individualizados sobre bens determinados. 3 - É o mapa da partilha, associado à sentença homologatória que servirá para instruir o pedido de registo de transmissão dos bens e, se necessário, para sustentar o cumprimento coercivo da obrigação de entrega de bens. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO AA, interessado no inventário que corre por óbito de seus pais BB e CC DD interpôs recurso do despacho que “ordenou ao recorrente a desocupação do imóvel, entregando-o livre de pessoas e bens à encarregada de venda, no prazo máximo de 10 dias, sob pena de condenação em multa de 2UC por falta de colaboração com o Tribunal e comissão de um crime de desobediência (artigos 417.º, n.º 2 do CPC e 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal). Finalizou a sua alegação com as seguintes Conclusões: 1- Vem o presente recurso interposto do douto despacho do Tribunal a quo que ordenou ao recorrente “(…) a desocupação do imóvel, entregando-o livre de pessoas e bens à encarregada de venda, no prazo máximo de 10 dias sob pena de condenação em multa de 2UC por falta de colaboração com o Tribunal e comissão de um crime de desobediência (arts 417º, n.º 2 do Cód de Proc Civil e 348º, n.º 1, al.b) do Cód Penal) (…)”. 2- Salvo o devido respeito, o recorrente não pode deixar de discordar deste raciocínio. 3- O Recorrente reside no imóvel identificado como Verba nº 10, da relação de bens retificada, que constituiu a casa de morada da sua família. 4- Na Conferência de Interessados, foi determinada a venda judicial de todos os imóveis da herança, tendo o tribunal designado para o efeito a sociedade denominada “EMP01...” e concedido prazo de 90 dias para a efetivação da diligência. 5- Decorrido o prazo da venda, o encarregado (de venda) informou os autos que teria um cliente interessado em adquirir todas as verbas (imóveis) e peticionou, este encarregado da venda, ao tribunal, fosse determinada uma data para a entrega do imóvel, pelo recorrente, livre de pessoas e bens. 6- Contudo, não consta dos autos qualquer proposta, nem se encontra depositado preço, como impõe a lei. 7- Donde, não ter ocorrido a venda de qualquer dos bens que integram a herança. 8- Não obstante, o Meritíssimo juiz “a quo” proferiu despacho a ordenar ao recorrente a entrega do imóvel, livre de pessoas e bens, sob a ameaça de condenação em multa e crime de desobediência. 9- Salvo o devido respeito, a ordem judicial de desocupação e entrega de um bem imóvel não integra, no processo de inventário, nem a causa de pedir nem o pedido. 10- Donde, nos parecer forçoso concluir que o jugador “a quo” se pronunciou para além do “thema decidendum”. 11- Com efeito, o tribunal “a quo” extravasou os seus poderes de apreciação, ao pronunciar-se para além do objeto do processo. 12- Não compete ao julgador a quo, com o devido respeito, decidir sobre a posse ou a disposição da coisa, no contexto de Inventário, sobretudo quando a ordem de entrega do acervo hereditário é deferida a um terceiro_ o encarregado da venda. 13- O Tribunal não pode decidir sobre matérias que não foram expressamente levantadas pelas partes, configurando uma extra petição, o que torna a decisão nula. 14- Ao decidir sobre matéria que não constitui objeto do processo houve-se o meritíssimo julgador a quo em violação do disposto no artigo 615.º, n. º1, al. e), do C.P.C.. 15- Outrossim, ao ordenar a entrega de um bem que é propriedade da herança, a um terceiro, o Tribunal a quo infringiu, também, o direito constitucional à propriedade privada, porquanto inexiste título legítimo ou autorização que justifique essa transferência de posse. 16- O despacho recorrido viola, entre outras, as disposições dos artigos 613.º e 615.º, n.º1, al. e), 833, n.º 4, do Código de Processo Civil, 1305.º do Código Civil e 62.º da Constituição da República Portuguesa. 17- Impunha-se ao tribunal “a quo”, assim, tivesse decidido pelo indeferimento do pedido formulado pelo encarregado de venda. TERMOS EM QUE, e, no mais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho em crise, por isso mesmo o determinar a mais elementar e sã justiça. A cabeça de casal contra-alegou, pugnando pela manutenção do despacho recorrido. O recurso foi admitido como de apelação, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo. Já neste Tribunal da Relação o efeito do recurso foi alterado para suspensivo. Foram colhidos os vistos legais. A questão a resolver traduz-se em saber se, em processo de inventário, podia ser determinada a desocupação do imóvel relacionado, que o recorrente/interessado habita com a sua família, a fim de se proceder à sua venda. II. FUNDAMENTAÇÃO Os factos a considerar, para além dos que já resultam do Relatório que antecede, são os seguintes: - Em Conferência de Interessados que teve lugar a 22 de novembro de 2024, declararam os interessados estar de acordo em colocar à venda, pelo valor da avaliação, os imóveis que constituem as verbas n.ºs 10 a 14 e ainda a sepultura que constitui a verba n.º 15 da Relação de Bens, por pessoa a indicar pelo Tribunal: - Foi nomeado um encarregado de venda e fixado o prazo de 90 dias para o efeito; - No prazo fixado, veio o encarregado de venda informar que tinha um interessado na aquisição de todas as verbas em conjunto, pelo valor global de € 130.000,00, e solicitar que o tribunal definisse uma data para entrega do imóvel ocupado pelo interessado AA, que deveria ocorrer anteriormente à escritura de compra e venda; - O interessado AA através de requerimento, opôs-se ao pretendido, entendendo que o Tribunal não pode determinar a desocupação de um imóvel que ainda é propriedade da herança; - Em sentido contrário pronunciou-se a cabeça de casal; - Nesta sequência foi proferido o despacho recorrido; - A inventariada instituiu, por testamento, herdeiro da quota disponível de todos os seus bens o filho AA. Vejamos. O processo de inventário destina-se a fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha dos bens – artigo 1082.º, alínea a) do CPC. A causa de pedir neste processo é a existência de um património indiviso, como universalidade de direito – cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, CPC Anotado, vol. II, pág. 523. “O herdeiro só pela partilha vê concretizado o seu direito e, até lá, tem mera porção ideal no montante hereditário, que poderá ser preenchida de uma ou outra forma, tudo consequência do mecanismo da partilha a efetuar” – Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. I, 4.ª edição, pág. 72 e artigo 2030.º, n.º 2 do Código Civil. Daqui resulta que só a sentença homologatória da partilha transforma os direitos de cada um dos herdeiros sobre o património indiviso em direitos individualizados sobre bens determinados. É o mapa da partilha, associado à sentença homologatória que servirá para instruir o pedido de registo de transmissão dos bens e, se necessário, para sustentar o cumprimento coercivo da obrigação de entrega de bens – cfr. artigos 1120.º, 1122.º e 1096.º do CPC (este último quanto à exequibilidade das certidões extraídas dos processos de inventário que podem, designadamente, reportar-se à obrigação de entrega de algum bem, conforme esclarecem Abrantes Geraldes e outros in obra citada, pág. 551 e 608). No caso dos autos, os interessados concordaram em colocar à venda os imóveis que constituem as verbas n.ºs 10 a 14, entre as quais se inclui o imóvel aqui em causa, que é a casa de morada de família do interessado/herdeiro recorrente, estando definida já, por despacho, a forma à partilha. Contudo, a venda em questão não se concretizou, não há qualquer aceitação por parte dos interessados do valor proposto, muito menos tal valor foi depositado ou identificado o possível comprador (sendo certo que também não foi alegado que o recorrente impediu ou impossibilitou qualquer diligência tendente à venda, designadamente, a visita aos prédios). Ou seja, não cessou a comunhão hereditária, o apelante mantem-se titular de uma quota ideal do património hereditário. Só a sentença homologatória da partilha em processo de inventário produz efeitos reais de constituição ou reconhecimento de certa propriedade singular ou outro determinado direito real - Ac. desta Relação de Guimarães, de 28 de fevereiro de 2019, relator Joaquim Boavida, disponível in www.dgsi.pt – podendo derivar da mesma, a constituição/reconhecimento de concretas obrigações de diferente natureza. Tudo depende do que tiver sido debatido e decidido no inventário e do respetivo âmbito objetivo e subjetivo. Antes da nova e última Conferência de Interessados (a anterior foi suspensa para que se procedesse à venda dos bens aí identificados), não se saberá qual ou quais as decisões finais dos interessados, sabendo-se que esta é uma diligência de “geometria variável” que está “delineada de forma a ajustar-se às necessidades do processo de inventário, podendo acomodar uma variedade de questões avulsas relevantes para a partilha que, porventura, atingiram o ponto de maturação em face da evolução processual ou do comportamento e das expectativas dos interessados” – Abrantes Geraldes e outros in obra citada, pág. 591. Daí que o apelante tenha razão quando diz que o despacho recorrido, ordenando a desocupação imediata do imóvel que faz parte da herança, extravasou a causa de pedir do inventário, quando ainda não se procedeu à partilha, muito menos existe sentença homologatória da mesma. É certo que está previsto no artigo 2088.º do Código Civil, que o cabeça de casal possa pedir aos herdeiros a entrega de bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder e que possa até usar de ações possessórias para o efeito. Contudo, não só tal não aconteceu nos autos – o cabeça de casal não suscitou a questão de necessitar dos bens em causa para possibilitar a sua correta administração -, como se tem entendido que é essencial e “se depreende do próprio texto da norma, que a entrega material dos bens seja realmente necessária ao exercício da gestão que os artigos 2079.º e 2087.º confiam ao cabeça de casal como administrador da herança” – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 148 – cabendo-lhe, em caso de absoluta necessidade, o uso das ações possessórias respetivas e não podendo o juiz, em processo de inventário, substituir-se àquelas. Como já salientámos, o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, possibilitará a subsequente execução, não se oferecendo dúvidas, em função do decidido no inventário, sobre contra quem deve a mesma ser instaurada. Daí que proceda a apelação, revogando-se o despacho recorrido, na parte em que determinou a desocupação do imóvel e a sua entrega ao encarregado da venda. III. DECISÃO Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido. Custas pela recorrida. *** Guimarães, 30 de outubro de 2025 Ana Cristina Duarte Afonso Cabral de Andrade António Figueiredo de Almeida |