Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
249/19.2T8PVL.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS IRRELEVANTES
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO
INSCRIÇÃO
DESCRIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil.

II. O registo predial português não tem eficácia constitutiva, limitando-se a dar publicidade à situação jurídica dos prédios.

III. A presunção resultante do art.º 7.º, do CRP, abrange apenas a inscrição, isto é, os factos sujeitos a registo, que o oficial público testemunha pessoalmente (v.g. a celebração do contrato de compra e venda, onde figura como vendedor quem se apresenta com título idóneo para o efeito, conforme ele próprio é obrigado a verificar), e não também a descrição, isto é, a exacta configuração do objecto mediato (o bem transmitido) daquele facto.

IV. Em acção de reivindicação de parcela de terreno alegadamente logradouro de prédio urbano não satisfaz o ónus probatório a mera junção de certidão registral do dito prédio, onde conste como parte do mesmo um logradouro, já que a presunção juris tantum consagrada no art.º 7.º, do CRP, apenas faz pressupor que o direito existe, emerge do facto inscrito e pertence ao titular inscrito, e não também que o seu objecto tenha a composição, a área ou as confrontações ali vertidas.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
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ACÓRDÃO

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada
1.1.1. AA, residente em ... ..., na ... (aqui Recorrido), propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra a Junta de Freguesia ..., com sede na Rua ..., em ..., concelho ... (aqui Recorrente), pedindo que:

· a Ré fosse condenada a reconhecer e respeitar o seu direito de propriedade relativo a dois prédios urbanos (que melhor identificou), cada um deles constituído por casa de habitação e logradouro, e a abster-se da prática de qualquer acto que colidisse ou afectasse esse seu direito;

· a Ré fosse condenada a cessar de imediato a intromissão e a prática de qualquer acto que violasse esse seu direito de propriedade;

· e a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 2.732,00, a título de indemnização por danos causados (patrimoniais e não patrimoniais).

Alegou para o efeito, em síntese, ter adquirido por compra e venda celebrada em ../../2017 os dois prédios urbanos referidos, que registou em seu nome, constando, quer da respectiva descrição predial, quer da respectiva inscrição matricial, possuir qualquer um deles um logradouro.
Mais alegou ter ainda adquirido o direito de propriedade sobre eles por usucapião, por ele próprio e os seus antecessores sempre terem praticado actos de posse (que discriminou) conformes com o dito direito, de forma pacífica e pública, na convicção de serem seus donos exclusivos, o que sucedeu por mais de 20 anos.  
Alegou ainda que, tendo depositado no logradouro dos prédios materiais de construção, para realização de obras nas casas de habitação, na noite de 13 de Novembro de 2018 a Ré (Junta de Freguesia ...) arrasou com um tractor os ditos logradouros, retirando ainda no dia 16 de Novembro de 2018 a rede de vedação que entretanto ele próprio ali mandara colocar, por se reclamar proprietária daquelas áreas; e ter sido obrigado a intentar contra ela um procedimento cautelar de restituição provisória de posse, julgado procedente.
Por fim, o Autor (AA) alegou: terem-se perdido os materiais de construção que se encontravam depositados nos seus logradouros (quantificando esse prejuízo em € 932,00); encontrar-se impedido de usar e fruir os mesmos (quantificando esse prejuízo em € 1.000,00); e ter-lhe a conduta da Ré (Junta de Freguesia ...) causado grande constrangimento e tristeza, constante mau estar, nervosismo e inquietação, ofensa, impotência e até humilhação (quantificando a indemnização respectiva em € 800,00).

1.1.2. Regularmente citada, a (Junta de Freguesia ...) contestou, pedindo que a acção fosse julgada não provada e improcedente, sendo ela própria absolvida dos pedidos.
Alegou para o efeito, em síntese, ser o local correspondente aos dois pretensos logradouros do Autor (AA) propriedade dela própria, há mais de 50 anos, pese embora omissa na matriz e não descrita na Conservatória do Registo Predial ....
Mais alegou ser ela própria quem vem praticando os conformes actos de posse (que discriminou), de forma pacífica e pública.
Alegou ainda que as descrições prediais invocadas pelo Autor (AA) a favor dele próprio são falsas, tal como os conformes artigos matriciais, por isso os impugnando; e o mesmo sucedendo com o processo de licenciamento camarário pertinente à inicial construção das duas casas de habitação adquiridas pelo Autor (AA).
Por fim, alegou não ser devida qualquer indemnização ao Autor (AA), uma vez que: não danificou qualquer material que lhe pertencesse, limitando-se a encostar para um lado a vedação que retirou; e ficou acordado no procedimento cautelar de restituição provisória de posse que, até ao trânsito em julgado da sentença a proferir nesta acção definitiva, a área em discussão se manteria vedada e que o Autor (AA) não realizaria na mesma qualquer obra, estrutura, plantação ou criação de animais, podendo, com essa limitação, continuar a usá-la e fruí-la. Prevenindo, porém, outro entendimento, defendeu agir então o Autor (AA) em abuso de direito (ao ter acordado numa posse limitada da parcela em discussão e vir depois exigir uma indemnização pelo uso parcial que aceitara).

1.1.3. Em sede de audiência prévia foi proferido despacho: saneador (certificando tabelarmente a validade e a regularidade da instância); fixando o valor da causa em € 5.000,01; definindo o objecto do litígio e enunciando os temas da prova; apreciando os requerimentos probatórios das partes e determinando oficiosamente a realização de uma perícia nos autos.

1.1.4. Realizada a audiência final, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
III. A DECISÃO
               
Pelo exposto, julgando a ação parcialmente procedente:
 
Declaro o A. proprietário dos dois prédios urbanos, compostos por duas casas destinadas à habitação de ... e logradouro, sitos na Rua ..., ..., da Freguesia ..., concelho ..., inscritos na matriz urbana sob os artigos ...14... e ...16.º da Freguesia ... e descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28 da referida freguesia, nos precisos termos descritos na matéria de facto assente.
Condeno a R. a abster-se da prática de qualquer ato que viole tais direitos.
Condeno a R. a pagar ao A. a título de dano patrimonial emergente a quantia de € 932,00.
Condeno a R. a pagar ao A. a título de dano da privação do uso quantia a liquidar em execução de sentença nos termos supra referidos.
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 Custas por A. (1/6) e R. (5/6).
(…)»
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1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos
Inconformada com esta decisão, a (Junta de Freguesia ...) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que fosse julgado procedente e se revogasse a sentença recorrida, sendo substituída por decisão que a absolvesse de todos os pedidos formulados.
 
Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

I) Foi dado como provado que “5. Desde a data em que adquiriu os referidos prédios - 15.12.2017 - o A. (por si e arrendatários) tem vindo a praticar, também na parte correspondente aos logradouros das referidas casas (edifícios), atos de posse, nomeadamente limpando e cuidando, estacionando veículo automóvel, depositando materiais e equipamento de construção, de forma pública e pacífica, usando esses logradouros e fruindo-os de forma contínua e na qualidade e convicção de proprietário”.

II) No entanto, face a toda a prova produzida na audiência de discussão e julgamento e aos elementos constantes do processo, nomeadamente o documento que é a resposta da Recorrente a pedido de parecer, conjugado com o depoimento da testemunha BB, arrendatária do Recorrido, avaliado pelo prisma das regras da experiência comum, deveria ter sido dado como provado, apenas, que “5. Desde a data em que adquiriu os referidos prédios - 15.12.2017 - o A. (por si e arrendatários) tem vindo a praticar, também na parte correspondente aos logradouros das referidas casas (edifícios), atos de posse, nomeadamente limpando e cuidando, estacionando veículo automóvel, depositando materiais e equipamento de construção, de forma pública, usando esses logradouros e fruindo-os de forma contínua”.

III) Deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos: “ e. A fraude no que diz respeito ao registo predial” e “f. A fraude no que diz respeito ao procedimento de obras particulares n.º 246/89”, com base no depoimento da testemunha CC, conjugado com os documentos juntos aos autos, nomeadamente, a descrição predial n.º ...2/...; a escritura pública de compra e venda, de 22/05/1979;  a descrição predial n.º ...65/...; as plantas do google maps; o ofício da Câmara Municipal ..., de 26/02/2020; o relatório do senhor perito e os esclarecimentos do senhor perito, de 13/01/2022.

IV) A descrição ...52/..., onde foram implantados os prédios do Recorrido, é falsa, não corresponde à realidade.

V) O antigo lugar de ..., situa-se junto ao ..., perto da ..., do concelho ..., a mais de 500 metros da Rua ..., que corresponde, como já se disse, ao antigo lugar da DD.

VI) No processo de licenciamento para a construção das casas, foi utilizada a descrição n.º ...51/..., enquanto no processo para a obtenção a licença de utilização das casas foi utilizada a descrição ...52/....

VII) Com a alteração da matéria de facto, aqui sugerida, a presunção derivada do registo ficou ilidida, devendo a acção improceder na totalidade, já que sem a declaração da propriedade dos logradouros pelo Recorrido, os pedidos de indemnização têm que ser indeferidos e a Recorrente absolvida de todos os pedidos.

VIII) A presunção registral não abrange factores descritivos, como as áreas, limites ou confrontações, cingindo-se apenas à existência do direito e à sua pertença às pessoas em cujo nome se encontra inscrito.

IX) Competia ao Recorrido fazer prova de tal matéria, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil.

X) Sobre essa matéria, não foi feita qualquer prova, pelo que teria que improceder esta acção, devendo a Recorrente ser absolvida de todos os pedidos.

XI) A douta decisão recorrida violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto no artigo 342.º, n.º 1 do Código Processo Civil. 
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1.2.2. Contra-alegações
O Autor (AA) contra-alegou, pedindo que se mantivesse nos seus exactos termos a sentença recorrida.
...
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, nºs. 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [1], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto pela Ré (Junta de Freguesia ...), 02 questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal ad quem:

1.ª - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e valoração da prova produzida, nomeadamente porque  

. não permitia que se desse como demonstrada a totalidade do facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 5 («Desde a data em que adquiriu os referidos prédios - 15.12.2017 - o Autor (por si e arrendatários) tem vindo a praticar, também na parte correspondente aos logradouros das referidas casas (edifícios), atos de posse, nomeadamente limpando e cuidando, estacionando veículo automóvel, depositando materiais e equipamento de construção, de forma pública e pacífica, usando esses logradouros e fruindo-os de forma contínua e na qualidade e convicção de proprietário»);

. e impunha que se dessem como demonstrados os factos não provados enunciados na sentença recorrida sob a alínea e) («A fraude no que diz respeito ao registo predial») e sob a alínea f) («A fraude no que diz respeito ao procedimento de obras particulares nº 246/89») ?

2.ª - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do Direito (nomeadamente, do âmbito da presunção registal), devendo ser alterada a decisão de mérito proferida (nomeadamente, face ao prévio sucesso da impugnação de facto mas igualmente de forma independente dele), por forma a que se julgue a acção totalmente improcedente (e se absolva a Ré de todos os pedidos nela formulados)?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1. Decisão de Facto do Tribunal de 1.ª Instância
3.1.1. Factos Provados
Realizada a audiência de julgamento no Tribunal de 1.ª Instância, o mesmo considerou que se provaram os seguintes factos «COM RELEVÂNCIA PARA A DECISÃO DA CAUSA»:
 
1 - Por contrato de compra e venda celebrado a ../../2017, por documento particular autenticado, AA (aqui Autor) adquiriu ao Banco 1..., S.A. dois prédios urbanos, compostos por duas casas destinadas à habitação de ... e logradouro, sitos na Rua ..., ..., da Freguesia ..., concelho ..., inscritos na matriz urbana sob os artigos ...14... e ...16.º da Freguesia ... e descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28 da referida freguesia.

2 - Dos prédios supra identificados, o que está inscrito sob o artigo ...14.º, a que corresponde o n.º de polícia ...2, da aludida rua e freguesia, é composto, além da casa da habitação com a área declarada de 79 m2, por um logradouro com a área declarada no levantamento topográfico 28 de Abril de 2015, de 180 m2; e o prédio inscrito sob o artigo ...16º, a que corresponde o n.º de polícia ...4 da referida rua e freguesia, é composto, além da casa de habitação com a área declarada de 81 m2, por um logradouro com a área declarada no levantamento topográfico 28 de Abril de 2015 de 184 m2.

3 - A aquisição referida no facto provado enunciado sob o número 1 foi registada na Conservatória do Registo Predial ... através da ap. ...37 de 15/12/2017, tendo sido constituída hipoteca sobre os mesmos prédios, a favor do Banco 1... S.A., inscritas na Conservatória do Registo Predial ... através da ap. ...38 de 15/12/2017.
 
4 - Há mais de 10, 15 e 20 anos que o Autor (AA) e seus antecessores vêm praticando actos de posse sobre as referidas casas (edifícios), nomeadamente habitando-as/dando-as de arrendamento, limpando e reparando, e onerando, pagando as contribuições e impostos que lhe respeitam, sem oposição, à vista de toda a gente, e com ânimo de quem exerce direito de propriedade.
 
5 - Desde a data em que adquiriu os referidos prédios (../../2017) o Autor (AA) - por si e arrendatários - tem vindo a praticar, também na parte correspondente aos logradouros das referidas casas (edifícios), actos de posse, nomeadamente limpando e cuidando, estacionando veículo automóvel, depositando materiais e equipamento de construção, de forma pública e pacifica, usando esses logradouros e fruindo-os de forma contínua e na qualidade e convicção de proprietário.

6 - Depois da referida aquisição, o Autor (AA) foi notificado pela Câmara Municipal ..., naquela qualidade de proprietário, para pagar as taxas de ligação de ramal de saneamento referentes às habitações sitas na Rua ..., ..., da Freguesia ..., tendo procedido ao respetivo pagamento.
 
7 - No início do ano de 2018, o Autor (AA) realizou obras de beneficiação nos referidos prédios - nomeadamente, fachadas, telhados, muros traseiros -, diariamente, à vista e com o conhecimento de todos, tendo para tal apresentado e instruído junto da Câmara Municipal os respetivos pedidos de informação prévia, os quais tiveram decisões favoráveis, sem qualquer menção em contrário, tendo as obras em causa sido realizadas sem qualquer embargo.

8 - No decorrer das obras, realizadas ao longo de vários meses pelo Autor (AA) nos referidos prédios, foram depositados num dos referidos logradouros os materiais de construção e respetivos equipamentos para a sua realização.
 
9 - No dia 21 de Março de 2018 o Autor (AA) solicitou pedido de licenciamento junto da Câmara Municipal para construção do muro de vedação junto à via pública e na parte dianteira da casa; e em 10 de Abril de 2018, por parte dos serviços camarários, foi solicitada a apresentação de alguns elementos adicionais, os quais foram apresentados em 23 de Abril de 2018.
 
10 - Depois do referido no facto provado anterior, o Autor (AA) foi notificado pela Câmara Municipal de um parecer prestado pela Junta de Freguesia ... (aqui Ré), o qual diz que «o terreno a norte e poente (a confrontar com caminho público), é domínio público e sempre foi conservado pela junta de freguesia ao longo dos últimos 20 anos».
 
11 - No dia 13 de Novembro de 2018 a Ré (Junta de Freguesia ...), na pessoa do seu presidente, deslocou-se ao local e invadiu o logradouro com um tractor e com a sua pá removeu materiais de construção depositados em parte do mesmo, encostou areia ao edifício, retirou do local a brita que lá se encontrava, assim como retirou terra depositando-a num outro local, entre outros materiais; e, tendo sido solicitada a intervenção da GNR da ..., a mesma deslocou-se ao local e lavrou o respetivo auto.

12 - Esta actuação da Ré (Junta de Freguesia ...) causou ao Autor (AA) um prejuízo de € 932,00 correspondente à perda dos materiais de construção (designadamente, dois m3 de areia fina; dois m3 de ½ areia; dois m3 de areia grossa; sete escoras metálicas; sete pontas de ferro de 1.50x0.20; rede de malha sol) e, ainda, a mão-de-obra pela colocação e recolocação da rede malha sol.

13 - O Autor (AA), depois dos factos referidos no facto provado enunciado sob o número 11, vedou o logradouro em causa, colocando uma rede, que foi depois retirada pela Ré (Junta de Freguesia ...); e a mesma colocou nessa parte do logradouro um tractor e respetivo atrelado, tendo o Autor (AA) ficado impedido prosseguir com a execução das obras que estavam a ser executadas no local, bem como impedido do seu uso (nomeadamente, pelo seu arrendatário).
 
14 - A conduta da Ré (Junta de Freguesia ...) tem causado ao Autor (AA) - que está emigrado na ... - tristeza, desgosto e inquietação.

15 - Em data que não se apurou com exatidão, mas há cerca de 10 anos (por referência à contestação), a Ré (Junta de Freguesia ...) pavimentou a parcela de terreno que separa as referidas casas que o Autor (AA) adquiriu e a casa de EE, e colocou o saneamento, incluindo as respetivas caixas, sem pedir autorização a ninguém, na convicção de exercer um direito próprio.

16 - Em data que não se apurou com exatidão, mas há cerca de 10 anos (por referência à contestação), a Ré (Junta de Freguesia ...) colocou um contentor do lixo em parte de uma das parcelas de terreno reivindicadas pelo Autor (AA), tendo, posteriormente, cimentado o local.
 
17 - Por decisão proferida no procedimento cautelar n.º 446/18...., apenso a estes autos, ordenou-se «a imediata restituição provisória da posse a realizar pela requerida do prédio sito no n.º ...2, da Rua ..., Freguesia ..., concelho ..., totalmente livre de pessoas e bens, nomeadamente de veículos ou outros maquinismos, especificamente da parcela de terreno retratada a fls. 39 (ainda, na altura, com a rede a vedá-la). O pagamento pela requerida de sanção pecuniária compulsória no montante de € 20,00, por cada dia de violação por parte da requerida do ora decidido».

18 - Na sequência da oposição deduzida nesses autos apenso pela Ré (Junta de Freguesia ...), ficou acordado que «a decisão proferida no presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse manter-se-á até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na ação declarativa a intentar oportunamente pelas partes, sendo que o trato de terreno entregue manter-se-á vedado tal como está e consta, entre outras, das fotografias de fls. 87 e 87 verso (rede e estrutura em madeira). O requerente compromete-se a nesse trato de terreno não realizar qualquer obra, estrutura, plantação ou criação de animais»
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3.1.2. Factos não provados

Na mesma decisão, o Tribunal de 1.ª Instância considerou que não «se provaram os demais factos alegados nos articulados, quer por sobre eles não ter sido produzida prova bastante (cf. infra – A CONVICÇÃO DO TRIBUNAL0), quer por estarem em oposição ou em contradição com os factos provados, sendo que outros, finalmente, se mostram irrelevantes para a decisão (para a qual se remete, pois só assim se conclui pela sua relevância/irrelevância), nomeadamente»:

a) Os factos alegados pelo Autor (AA) relativos à aquisição por usucapião das parcelas de terreno identificadas nos articulados.

b) O grau elevado do sofrimento psicológico e moral do Autor (AA).

c) O valor de € 1.000,00 a título de dano da privação do uso.

d) Os factos alegados pela Ré (Junta de Freguesia ...) relativos à natureza de domínio público daquelas parcelas de terreno.

e) A fraude no que diz respeito ao registo predial.

f) A fraude no que diz respeito ao procedimento de obras particulares n.º 246/89.
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3.2. Modificabilidade da decisão de facto
3.2.1. Incorrecta apreciação da prova legal - Poder (oficioso) do Tribunal da Relação
Lê-se no art.º 607.º, n.º 5, do CPC que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», de forma consentânea com o disposto no CC, nos seus art.º 389.º (para a prova pericial), art.º 391.º (para a prova por inspecção) e art.º 396.º (para a prova testemunhal).
Contudo, a «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do n.º 5, do art.º 607.º, do CPC citado).

Mais se lê, no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art.º 607.º, n.º 4, do CPC, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no CC), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (art.ºs 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CC), ou quando exista acordo das partes (art.º 574.º, n.º 2, do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art.º 358.º, do CC, e art.ºs 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos art.ºs. 351.º e 393.º, ambos do CC).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
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3.2.2. Incorrecta livre apreciação da prova
3.2.2.1. Âmbito da sindicância (provocada) do Tribunal da Relação
Lê-se no n.º 2, als. a) e b), do art.º 662.º, do CPC, que a «Relação deve ainda, mesmo oficiosamente»: «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (al. a); «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (al. b)».
«O actual art.º 662.º representa uma clara evolução [face ao art.º 712.º do anterior CPC] no sentido que já antes se anunciava. Através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.
(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua actuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos factores de imediação e da oralidade. Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607.º, n.º 5) ou da aquisição processual (art. 413.º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 225-227).
É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efectiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, págs. 29 e segs.).
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3.2.2.2. Modo de operar o duplo grau de jurisdição - Ónus de impugnação
Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detectar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento» (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recurso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 228, com bold apócrifo).
Lê-se, assim, no art.º 640.º, n.º 1, do CPC, que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (al. a), do n.º 2, do art.º 640.º citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c), do n.º 1, do art.º 640.º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor [2] enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).

Logo, o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo, mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, precisa-se ainda que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. 
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 609).
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3.2.2.3. Carácter instrumental da impugnação da decisão de facto
Veio, porém, a jurisprudência precisar ainda que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.
Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior CPC], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo n.º 219/10.6T2VGS.C1, com bold apócrifo).
Logo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto «quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente», convertendo-a numa «pura actividade gratuita ou diletante» (conforme Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo n.º 1024/12.0T2AVR.C1).
Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo n.º 219/10.6T2VGS.C1, com bold apócrifo) [3].
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3.2.2.4. Caso concreto
3.2.2.4.1.  Cumprimento do ónus de impugnação
Concretizando, considera-se que a Recorrente (Ré) cumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art.º 640.º, n.º 1, do CPC (ao contrário do sustentado pelo Autor, na suas contra-alegações).

Com efeito, a Recorrente (Ré) indicou: no corpo das alegações e nas conclusões do seu recurso, os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgado (a exacta redacção do facto provado enunciado sob o número 5 e os factos não provados enunciados sob as alíneas e) e f)); e no corpo das alegações, os concretos meios probatórios que imporiam decisão diferente (uma diferente ponderação dos depoimentos prestados pelas testemunhas BB e CC, da prova documental e da prova pericial produzidas), as exactas passagens dos depoimentos seleccionados para fundar a sua sindicância (que reproduziu por escrito), e a decisão que, no seu entender, se impunha (o dar-se uma nova redacção - mais  reduzida - ao facto provado enunciado sob o número 5, e o darem-se como demonstrados os factos não provados enunciados sob as als. e) e f)).

Precisa-se, face nomeadamente às contra-alegações do Autor (AA), que, servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, nelas devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, mas bastando quanto aos demais requisitos que constem de forma explícita na motivação do recurso.
Com efeito, importa distinguir: um ónus primário, que contende com a delimitação do objecto do seu recurso e,  por isso, exige que nas respectivas conclusões seja indicada a matéria de facto impugnada (limitando desse modo o recurso, e inexoravelmente, a sindicância da matéria de direito); e ónus secundários, que contendem com a análise jurídica do cumprimento do ónus de impugnação previsto no art.º 640.º, do CPC, permitindo, por isso, que se deixe omissa nas conclusões de recurso (e ao contrário do que, prévia e imperativamente, se tenha feito no corpo das respectivas alegações) a indicação dos concretos meios probatórios que imporiam decisão diferente, da decisão alternativa pretendida e das exactas passagens da gravação que o fundariam.
Compreende-se que assim seja, já que, nesta segunda situação, a impugnação da matéria de facto - bem ou mal feita - faz parte do objecto do recurso [4]; e «o prazo de interposição do recurso é pela lei fixado em função do modo como o recorrente concebe o respectivo objecto» (Ac. da RG, de 07.04.2016, José Amaral, Processo n.º 4247/10.3TJVNF.G1).
Tendo a jurisprudência sufragado maioritariamente este entendimento [5], viu o mesmo ser consagrado no acórdão uniformizador de jurisprudência proferido pelo pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, em 17 de Outubro de 2023, onde se lê que: «Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações» [6].
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Já relativamente ao juízo crítico próprio da Recorrente (Ré), assentou o mesmo na reclamação de uma diferente valoração a fazer de parte da prova pessoal, da prova documental e da prova pericial produzidas.
Recorda-se, a propósito, que os art.ºs 640.º, n.º 1, al. b), e 662.º, n.º 1, do CPC afirmam inequivocamente que a matéria de facto previamente julgada deverá ser alterada quando a prova produzida imponha decisão diversa da recorrida, e não apenas quando a admita, permita ou consinta. Ora, para esse efeito, o recorrente terá que contrariar a apreciação crítica da prova realizada pelo Tribunal a quo, demonstrando e justificando por que razão as regras da lógica e da experiência por ele seguidas não se mostrariam razoáveis no caso concreto, conduzindo a um resultado inadmissível, por não sufragado por elas.
Por outras palavras, admitindo-se necessariamente que o Tribunal a quo ouviu integralmente os depoimentos escolhidos, e examinou a prova pericial e os documentos selecionados, certo é que fez dos mesmos uma outra valoração, ajuizando todo o seu conjunto face à demais prova produzida e às regras da experiência. Assim, pretendendo o recorrente sindicar este juízo, importará que indique as razões objectivas pelas quais entende que à prova que seleccionou (já antes vista e apreciada pelo Tribunal a quo) deveria ter sido dada outra relevância, o que a simples reiteração do seu conteúdo, e a reclamação conclusiva da respectiva suficiência, é claramente inidónea para este efeito.
No caso dos autos, a Recorrente (Ré) fê-lo longa e detalhadamente, contrastando sobremaneira com a singeleza da contestação que apresentara.
Acresce que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem defendendo que a menor suficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação [7].
Estaria, assim, este Tribunal da Relação em condições de poder proceder, nos termos autorizados pelo art.º 640.º, do CPC, à reapreciação da matéria de facto pretendida pela Ré, aqui recorrente.
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3.2.2.4.2.  Inutilidade do conhecimento do recurso sobre a matéria de facto
Concretizando uma vez mais, e salvo o devido respeito por opinião contrária, mostra-se, porém, o conhecimento do recurso sobre a matéria de facto desnecessário para a decisão da acção.
Com efeito, quer o dito recurso lograsse êxito, quer lhe falecesse o mesmo, sempre seria irrelevante para alterar o juízo de direito que, com os demais factos já provados e não provados (uns e outros não objecto de sindicância por qualquer das partes), importa aqui formular, no sentido da improcedência da acção: face àquele elenco, o Autor (AA) incumpriu o ónus de prova que lhe estava cometido, por não beneficiar de qualquer presunção registral quanto à propriedade dos dois logradouros que reclama nos autos (conforme se explicitará infra).

Declara-se, assim, prejudicado o conhecimento do recurso sobre a matéria de facto (interposto exclusivamente pela Ré).
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Acção de reivindicação
4.1.1. Definição - Causa de pedir
Lê-se no art.º 1311.º, n.º 1, do CC, que «o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence».
Adjectivando este regime substantivo encontramos o que tradicionalmente se designa por acção de reivindicação, paradigma das chamadas acções reais. Lê-se, a propósito, no n.º 2 do art.º 1311.º citado, que, havendo «reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só poderá ser recusada nos casos previstos na lei» (nomeadamente, por quem detém a coisa ser titular de direitos obrigacionais, ou de direitos reais menores, que legitimam essa detenção ou retenção).
 Consubstancia, assim, uma acção declarativa de condenação, já que visa a condenação do detentor ou retentor abusivo a restituir a coisa objecto do direito de propriedade do seu autor (art.º 10.º, n.º 1, n.º 2, e n.º 3, al. b), do CPC) [8].

Precisando, na acção de reivindicação terá o autor (para assegurar a procedência da sua pretensão) que alegar e provar a titularidade do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada, e a posse ou detenção abusiva da mesma por parte do réu.
Compreende-se, por isso, que sejam «geralmente apontadas, como tipificantes da acção de reivindicação, as seguintes características: a) trata-se de uma acção real porque, visando a tutela de um direito real, pode ser dirigida contra a pessoa, seja ela qual for, que, de boa ou má fé, esteja na posse (lato sensu) da coisa reivindicada (ubi rem meam invenio, ibi vindico); b) o fundamento da pretensão do autor (causa petendi) assenta, antes de mais, na sua qualidade de proprietário da coisa reivindicada e não em qualquer outro título; c) é uma acção recuperatória, pois o fim último do reivindicante é o de reaver a posse da coisa da qual está privado, mediante sua restituição pelo demandado; d) é uma acção de condenação, pois o reivindicante pretende não só o reconhecimento do seu direito, mas com base nele, que o demandado seja condenado a efectivar aquela restituição; e) é, finalmente, uma acção imprescritível (art.º 1313º), podendo, por isso, o proprietário propô-la a todo o tempo, uma vez que o seu direito não se extingue, salvo especial determinação legal em contrário (art.º 298º, nº 3), pelo não uso» (Augusto da Penha Gonçalves, Curso de Direitos Reais, 2.ª edição, Universidade Lusíada, Lisboa, 1993, pág. 357, com bold apócrifo).
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Sendo uma acção real, a sua causa de pedir corresponde ao facto jurídico de que deriva o direito de propriedade (art.º 581.º, n.º 4, do CPC), cabendo nomeadamente ao respectivo autor alegar e provar os factos que se enquadram numa das formas típicas de aquisição do direito de propriedade - a aquisição originária ou derivada (art.ºs 342.º e 1316.º, ambos do CC) [9].
Contudo, tem-se entendido, de forma quase pacífica, que no âmbito da acções de reivindicação, quando o autor não alegar e provar uma das formas de aquisição originária (isto é, quando a sua aquisição for derivada), terá de alegar e provar as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária [10].

Considerando, porém, que tal prova será, na generalidade dos casos, de difícil consecução, o nosso ordenamento jurídico consente o recurso a determinadas presunções legais da existência e titularidade do direito real, designadamente a presunção da titularidade desse direito no possuidor, ao abrigo do art.º 1268.º, n.º 1, do CC, bem como a presunção da sua existência a favor do titular inscrito no registo predial, nos termos do disposto no art.º 7.º, do CRP. Assim, e socorrendo-se o pretenso proprietário de qualquer daquelas presunções legais, e não obstante o disposto no art.º 581.º, n.º 4, do CPC, a causa de pedir satisfaz-se, então,  com a invocação de factos que servem de base à presunção legal (o registo do facto aquisitivo ou a posse, conforme o caso), sendo dispensável a alegação da aquisição originária [11]
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4.1.2. Registo Predial - Efeitos
4.1.2.1. Fins e natureza
Lê-se no art.º 1.º, do Código do Registo Predial [12] (epigrafado «Fins do registo»), que o «registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário» [13].
Mais se lê, no art.º 2.º (epigrafado «Factos sujeitos a registo»), n.º 1, al. a), do mesmo diploma, que estão «sujeitos a registo os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão».

Sendo requerido [14], lê-se no art.º 68.º, do CRP (epigrafado «Princípio da legalidade»), que a «viabilidade do pedido de registo deve ser apreciada em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos atos neles contidos».
Logo, a apreciação da viabilidade do pedido de registo é feita em função de duas coordenadas fundamentais (apud Isabel Pereira Mendes, Código do Registo Predial, 5.ª edição - 1992, Almedina, págs. 137-8): as disposições legais aplicáveis, entendendo-se como tais as que sejam especialmente dirigidas ao conservador, que ele deva especialmente verificar (pelo que não poderá opor objecções baseadas em disposições legais dirigidas a outras entidades, desde que o seu incumprimento não afecte a validade dos actos, nem os condicionem, ou ao registo); e o exame dos documentos apresentados (reportados exclusivamente ao registo que se pretende efectuar) e dos registos anteriores (reportados exclusivamente ao prédio sobre que incide o registo pretendido).
Precisa-se, ainda, que a apreciação de viabilidade do registo é feita à luz da situação jurídica existente à data do pedido, tendo nomeadamente em conta os registos em vigor no momento da apresentação, e a sua compatibilidade ou articulação com o registo a efectuar.
Não cabe, assim, ao conservador, na feitura de um registo, apreciar a prevalência substantiva dos eventuais direitos em conflito, mas apenas e tão só os parâmetros da qualificação registral ínsitos no art.º 68.°, do CRP [15] e os demais comandos legislativos que lhe sejam especificamente dirigidos, nomeadamente em sede de direito registral.
Afirma-se, por isso, que a «legalidade do acto de registo requerido, só poderá ser apreciada pelo conservador, em face dos títulos apresentados, e dos registos anteriores. É, pois, vedado ao conservador, invocar para fundamento da sua decisão, quaisquer circunstâncias do seu conhecimento pessoal, não reveladas pelo conteúdo dos documentos apresentados ou dos registos já efectuados» (Rui Januário e António Gameiro, Direito Registral Predial, Quid Juris, Outubro de 2016, pág. 260).

Deste modo, «os prédios são inscritos no registo a favor de determinadas pessoas, apenas sobre a base de documento, de actos de transmissão a favor das mesmas pessoas, e não depois de uma averiguação em forma, com audiência de todos os possíveis interessados.
O registo não pode, portanto, assegurar a existência efectiva do direito da pessoa a favor de quem esteja registado, mas só que, a ter ele existido, ainda se conserva - ainda não foi transmitido a outra pessoa» (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, Almedina, pág. 20, com bold apócrifo).
Assim, se, «por um lado, não é lícito admitir que o conservador exceda funções do seu ofício, invadindo a esfera jurídica dos tribunais, também, por outro lado, é legítimo esperar que a função qualificadora respeite uma linha própria de actuação, claramente definida segundo as regras e os princípios do sistema registral consagrados na lei» (Parecer do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e do Notariado, no Processo n.º 85/90-RP 4, proferido de acordo com o já antes por ele afirmado no Processo n.º 10/85, no Processo n.º 17/85, no Processo n.º 44/86-RP 3, e no Processo n.º 35/90-RP4).   
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4.1.2.2. Realização
Lê-se no art.º 76.º, do CRP, que o «registo compõe-se da descrição predial, da inscrição dos factos e respectivos averbamentos».

A descrição predial é, assim, a primeira operação do registo [16]; e destina-se à identificação física, económica e fiscal dos prédios (conforme art.º 79.º, do CRP). Logo, sem a descrição não haverá lugar à inscrição; mas aquela também não poderá ser realizada independentemente da segunda, o que significa que a realização da descrição depende de, na altura do seu assentamento, se efectue também a inscrição que lhe corresponde (conforme art.ºs 80.º, n.º 1 e 91.º, ambos do CRP).

A inscrição, por sua vez, visa definir a situação jurídica dos prédios, mediante extracto dos factos a eles referentes (art.º 91.º, n.º 1, do CRP); e é lavrada, repete-se, por referência à descrição.
Compreende-se, por isso, que se afirme que das inscrições constam os factos jurídicos sujeitos a registo, conforme elencado no art.º 2.º, do CRP, ou seja, constam delas os factos da vida real que, por força da lei produzem determinados efeitos jurídicos (nomeadamente, efeitos constitutivos, aquisitivos, modificativos ou extintos do direito de propriedade). Ora, é desses factos jurídicos que precisamente se infere a situação jurídica dos prédios descritos; e são essas situações jurídicas que constituem o objecto da publicidade registral (conforme art.º 1.º, do CRP).
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4.1.2.3. Presunção registral de propriedade - Âmbito
Lê-se no art.º 7.º (epigrafado «Presunções derivadas do registo»), do CRP, que o «registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define».
Logo, consagra-se aqui uma mera presunção, não tendo, por si só, eficácia constitutiva de direitos; e, por isso, se afirma tradicionalmente que, no nosso ordenamento jurídico, o registo predial tem natureza declarativa e não constitutiva [17], não dando, nem tirando direitos (precisamente por se destinar a dar mera publicidade à situação jurídica dos prédios) [18].
A dita presunção é juris tantum, isto é, ilidível por prova em contrário, nos termos do art.º 350.º, n.º 2, do CC [19].
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Precisa-se, porém, que a presunção do art.º 7.º, do CRP, restringe-se à inscrição e não à descrição do prédio (que dela não beneficia, nem de qualquer outra).
Com efeito, lendo-se nele que o «registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define», e no art.º 82.º, n.º 1, al. d), do mesmo diploma que o «extracto da descrição deve conter a composição e a área do prédio», é consensual que a força probatória plena do documento autêntico descrição predial não abrange a área e as confrontações dos prédios nela atestadas.
A presunção registral em causa limita-se antes a afirmar que o direito registado existe e emerge do facto inscrito, pertence ao titular inscrito, e a sua inscrição tem determinada substância (isto é, objecto e conteúdo dos direitos ou ónus ou encargos nela definidos) [20], dela se excluindo a verdade material das confrontações e das áreas constantes da descrição predial [21].
Compreende-se que assim seja, uma vez que o «registo predial não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio», já que embora «o prédio tenha que ser identificado com elementos que o distingam e caracterizem, a verdade é que essa identificação mínima não abrange a descrição física rigorosa e pormenorizada do imóvel» (Ac. do STJ, de 03.07.2003, Pinto Monteiro, Processo n.º 04A570, com bold apócrifo). «As descrições prediais apenas asseguram ao comprador que o vendedor não transmitiu o prédio já a outrem ou não constituiu direitos sobre ele a favor de outrem, mas não garantem os respectivos elementos de identificação, as suas confrontações, os seus limites, a sua área» (Ac. do STJ, de 06.05.2004, Araújo de Barros, Processo n.º 04B1409, com bold apócrifo).
Ora, sendo «a descrição predial» «a imagem verbal do prédio» (Rui Januário e António Gameiro, Direito Registral Predial, Quid Juris, Lisboa, 2016, pág. 190, com bold apócrifo), de forma idêntica ao que sucede com a sua inscrição matricial, as referências atinentes à área, limites e confrontações nela feitas constar resultam do declarado pelos próprios interessados ou pelos seus representantes, sendo lavradas ou consignadas nos assentos ou nos livros de notas a que dizem respeito, sem que o oficial público averigúe, investigue, percepcione, ou ateste a sua autenticidade intrínseca [22].
 Logo, não «satisfaz o ónus probatório a mera junção de certidão registral do prédio alienado, porquanto, fazendo a presunção “juris tantum” consagrada no art.º 7.º do Código do Registo Predial pressupor que o direito existe, emerge do facto inscrito e pertence ao titular inscrito, já não abrange, nem a área, nem as confrontações» (Ac. da RC, de 10.09.2013, Maria Domingas Simões, Processo n.º 12/07.3TBPNC.C1).

O mesmo sucederá, aliás, com as inscrições matriciais, que «não têm por função garantir os elementos de identificação dos prédios descritos», sendo a sua «finalidade (…) essencialmente de ordem fiscal» (Ac. da RC, de 10.01.2006, Hélder Almeida, Processo n.º 3207/05). As «certidões matriciais, que resultam de meras declarações dos particulares junto da repartição de finanças competente, apenas relevam (…) para determinação dos devedores e do rendimento colectável da contribuição autárquica» (Ac. do STJ, de 06.05.2004, Araújo de Barros, Processo n.º 04B1409).
Logo, as «inscrições matriciais» também «não fazem prova plena da localização, da área, da composição, dos limites e das confrontações dos prédios a que se referem, pois que nenhum desses elementos concernentes à identificação física destes é atestado pela autoridade ou funcionários competentes com base nas suas perceções» (Ac. do STJ, de 10.12.2019, Graça Amaral, Processo n.º 1808/03) [23].

Dir-se-á, ainda, que embora deva haver harmonização entre a descrição de um prédio no registo predial e a inscrição matricial, no tocante à localização, à área e ao artigo da matriz, a própria lei admite que assim não suceda, impondo então os procedimentos para correcção dessa desarmonização (conforme art.ºs 28.º a 31.º, do CRP) [24].

Compreende-se, por isso, que tradicionalmente se afirmasse que a «matriz e o registo não dão nem tiram direitos», já que «a primeira traduz um cadastro dos prédios para fins de incidência fiscal e o segundo é meramente declarativo e destina-se a publicitar a situação dos prédios neles descritos, o que é feito através de inscrições autónomas e averbamentos a estas» (conforme Ac. do STJ, de 14.10.2003, Moreira Camilo, Processo nº 03A2672).
Ficarão, assim, tais documentos (descrição predial e inscrição matricial), para este efeito (de apuramento da área, das confrontações e dos limites reais dos prédios delas objecto), sujeitos à livre apreciação do julgador [25].
Precisa-se, porém, que se «as realidades prediais objeto de direitos reais não se alcançam com o recurso a elementos identificativos dos prédios constantes nas descrições prediais, já não é completamente certeira a conclusão de que o teor destas é absolutamente inócuo para vir a ter por assente a existência dum prédio. É que, como já se advertiu no Acórdão desta Secção de 12-02-2008, “este entendimento não pode ser acolhido acriticamente, antes devendo ser ponderado em termos hábeis”, porque, “mau grado os limites da presunção resultante do registo é certo que, sob pena de se esvaziar completamente o seu conteúdo, há que atentar nos precisos termos da inscrição e verificar se foram provados, ou improvados, quesitos em sentido oposto» (Ac. do STJ, de 19.09.2017, Alexandre Reis, Processo n.º 120/14.4T8EPS.G1.S1).
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4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.2.1. Juízo do Tribunal a quo
Concretizando, verifica-se que, tendo o Autor (AA) proposto contra a Ré (Junta de Freguesia ...) uma acção de reivindicação sobre dois prédios urbanos, cada um deles composto por uma casa de habitação e, alegada e simultaneamente, por um logradouro, invocou como título de aquisição do seu direito, não só o contrato de compra e venda por meio do qual os teria adquirido (aquisição derivada), como ainda a usucapião que o beneficiaria, mercê da conforme posse por ele próprio exercida desde a data da aquisição (../../2017) e da sucessão na posse dos seus antecessores, exercida desde a construção dos ditos imóveis (aquisição originária).
Mais se verifica que estando os dois prédios urbanos registados em seu nome, invocou ainda a presunção registral de propriedade que o beneficiaria.
Verifica-se ainda que, discutida a causa, o Autor (AA) fracassou na prova da aquisição originária quanto aos dois logradouros, ficando a prova daquela limitada às casas de habitação (conforme facto não provado enunciado sob a al. a), e factos provados enunciados sob os números 4 e 5).
Por fim, verifica-se que, ainda assim, o Tribunal a quo considerou que, beneficiando o mesmo da presunção derivada do registo predial (onde tais prédios urbanos constam como sendo compostos por «casa de habitação« e «por um logradouro»), a (Junta de Freguesia ...) não teria elidido a mesma (tendo nomeadamente ficado por demonstrar os factos por ela alegados «relativos à natureza do domínio público daquelas parcelas de terreno», conforme al. d) dos factos não provados), o que permitiria declará-lo proprietário dos ditos logradouros

Com efeito, lê-se expressivamente na sentença recorrida:
«(…)
A primeira questão a resolver é a de saber se o A. adquiriu por usucapião os logradouros dos prédios que adquiriu nos termos do artigo 1287.º do Código Civil.
A verificação da usucapião depende de dois elementos: (i.) a posse e (ii.) o decurso de certo período de tempo (variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa). 
Para conduzir à usucapião, a posse tem de revestir duas características: ser pública e pacífica. 
Os restantes caracteres (boa ou má fé, titulada ou não) influem apenas no prazo.
Por sua vez, a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real - artigo 1251.º do C. Civil. Necessita de dois elementos: o corpus e o animus.
O legislador não aceitou a concepção objectiva da posse segundo a qual a posse sobre uma coisa se adquire pela mera obtenção do poder de facto. 
É necessário algo mais.
É preciso que haja, da parte do detentor, a intenção (animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa. 
O que nos diz a matéria de facto provada?
A este propósito temos que o A. não logrou provar os factos constitutivos para se poder declarar que adquiriu por usucapião tais parcelas, tal como se explicitou supra.
Logo, com este fundamento, não se pode declarar o A. proprietário de tais parcelas de terreno.
Acontece, porém, que o A. goza da presunção derivada do registo por aplicação do disposto no art. 7º do CRP.
Na verdade, tal disposição, tal como se argumentou supra, estabelece que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
Como tal presunção não foi ilidida pela R., cabe, pois, declarar o A. titular do direito de propriedade sobre as referidas parcelas de terreno e consequentemente sobre os dois prédios urbanos tais como eles se mostram descritos na p.i. 
(…)»
*
Contudo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não podemos acompanhar este seu juízo, por extravasar o âmbito da presunção prevista no art.º 7.º, do CRP.
*
4.2.2. Juízo do Tribunal ad quem
Com efeito, e conforme já detalhadamente exposto supra, a dupla «presunção de verdade» e «presunção de exatidão» resultante do art.º 7.º, do CRP [26], abrange apenas a inscrição, isto é, os factos sujeitos a registo, que o oficial público testemunha pessoalmente (v.g. a celebração do contrato de compra e venda, onde figura como vendedor quem se apresenta nessa qualidade com título idóneo para o efeito, conforme ele próprio é obrigado a verificar), e não também a descrição, isto é, a exacta configuração do objecto mediato (o bem transmitido) daquele facto.
Assim, o que o registo de propriedade de que o Autor (AA) beneficia  faz presumir é que o mesmo, que aparece nele como dono do prédio urbano a que se reporta, não alienou entretanto a sua titularidade, e não de que é dele verdadeiro titular; e, muito menos, que o dito  prédio urbano, objecto da sua presumida propriedade, tenha fisicamente a exacta configuração que ali consta (da descrição respectiva), sendo nomeadamente composto por uma casa de habitação e por um logradouro, cada um deles com as exactas confrontações, áreas e limites que figuram na referida descrição.
Compreende-se, agora mais claramente, que se afirme que «o que se regista (o objecto do registo), como decorre do art. 2.º do C. Registo Predial, são os factos jurídicos (a compra e venda, a permuta, a sucessão) e não as situações jurídicas a que se pretende dar publicidade (o direito de propriedade ou outros)». Quer-se, assim, dizer, «com o art. 7.º do C. Registo Predial, que o facto jurídico definitivamente registado (“o registo definitivo”)» (no caso, a compra e venda) «faz presumir que o direito resultante do facto jurídico registado» (no caso, o direito de propriedade) «existe e pertence a quem assim é considerado no facto jurídico registado» (no caso, o Autor).
«Daí que a presunção (de titularidade constante do art. 7.º) diga respeito e se reporte apenas e só à inscrição predial, que é o único acto registal em causa (a descrição não é um registo, mas o suporte para o mesmo); daí, consequentemente, que os elementos da descrição registal (que não fazem parte do que se regista) não estejam abarcados pela presunção (de titularidade constante do art. 7.º do C. Registo Predial)» (Ac. da RC, de 26.11.2013, Barateiro Martins, Processo n.º 1643/10.0TBCTB.C1, com bold apócrifo).

Ora, não abarcando a presunção derivada do registo os elementos da descrição registral, mas apenas o que resulta do facto jurídico inscrito (aquisição por compra e venda) tal como foi registado, permanecia o Autor (AA) obrigado a provar que os dois prédios urbanos que adquiriu eram compostos, cada um deles, não só por uma casa de habitação, mas igualmente por um logradouro [27].
Contudo, e como o próprio Tribunal a quo enfaticamente deixou exarado na sua sentença, essa prova ficou por fazer, não obstante, e igualmente no seu juízo (já definitivo, por falta de oportuna sindicância) também não se terem provado os «factos alegados pela R.  relativos à natureza de domínio público daquelas parcelas de terreno».

Recorda-se, a propósito, que «o significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe a prova do facto, como de determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de não se fazer prova do facto» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 306); e, por isso, se afirma que «as regras sobre o ónus da prova são regras de decisão e não regras de distribuição propriamente ditas» (Ac. da RG, de 07.12.2023, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 573/20.1T8VCH.G1) [28].
 Logo, o ónus da prova comporta necessariamente uma prévia dimensão fáctica (pertinente ao processo interior do julgador, quanto ao convencimento sobre a ocorrência do facto), que impõe que a «dúvida sobre a realidade de um facto» se resolva «contra a parte a quem o facto aproveita» (art.º 414.º do CPC).
*
Não tendo, assim, ficado provado que o direito de propriedade adquirido pelo Autor (AA), sobre os dois prédios urbanos em causa, se estendia às parcelas de terreno que o mesmo reivindica nos autos como constituindo os respectivos logradouros, procede nessa parte o recurso da Ré (Junta de Freguesia ...).
*
4.3. Remanescente objecto da prévia condenação da Ré (pedidos indemnizatórios)
Tendo o Autor (AA) deduzido ainda na acção pedido de condenação da Ré (Junta de Freguesia ...) a indemnizá-lo por alegados prejuízos sofridos com a sua conduta, viu proceder o mesmo quanto ao valor dos materiais de construção que tinha depositados em parte das parcelas de terreno reivindicadas (e que tinha como suas), que aquela removeu com um tractor em 13 de Novembro de 2018, no valor de € 932,00; e bem assim viu proceder o seu pedido de indemnização por privação de uso das ditas parcelas, relegando-se a determinação do seu exacto valor para liquidação posterior.
           
Ora, se é certo que esta última condenação não poderá subsistir agora, uma vez que não se provou que o Autor (AA) fosse o efectivo proprietário das ditas parcelas, certo é igualmente que a primeira condenação se deverá manter, uma vez que, sendo indiscutivelmente tais materiais propriedade do Autor (AA), a Ré (Junta de Freguesia ...), não só não alegou quaisquer factos que a autorizassem a agir directamente daquela forma (v.g. acção directa, prevista no art.º 336.º, do CC [29]), sem prévio recurso aos tribunais (imposto, nomeadamente, pelo art.º 1.º, do CPC [30]), como também não logrou fazer prova do direito de propriedade que invocou sobre elas.
*
Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela parcial procedência e pela parcial improcedência do recurso de apelação da Ré (Junta de Freguesia ...).
*
V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente e parcialmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Ré (Junta de Freguesia ...), e, em consequência, em

A. Alterar parte da sentença recorrida, passando agora a ler-se no seu dispositivo final que, julgando a acção parcialmente procedente, se:

i) Declara o Autor (AA) proprietário de dois prédios urbanos, compostos por duas casas destinadas à habitação de ..., sitos na Rua ..., ..., da freguesia e ..., concelho ..., inscritos na matriz urbana sob os artigos ...14... e ...16.º da Freguesia ... e descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28 da referida freguesia.

ii)  Condena a Ré (Junta de Freguesia ...) a abster-se da prática de quaisquer actos que violem tais direitos.

iii) Condena a Ré (Junta de Freguesia ...) a pagar ao Autor (AA), a título de dano patrimonial emergente, a quantia de € 932,00 (novecentos e trinta e dois euros, e zero cêntimos).

B. Confirmar o remanescente da sentença recorrida.
*
Custas da acção e da apelação por ambas as partes, na proporção de 2/5 para o Autor e de 3/5 para a Ré (art.º 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC).
*
Guimarães, 29 de Fevereiro de 2024.

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - Fernando Manuel Barroso Cabanelas;
2.º Adjunto - Gonçalo Oliveira Magalhães.



[1] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem -, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[2] A exigência de rigor, no cumprimento do ónus de impugnação, manifestou-se igualmente a propósito do art.º 685º-B, n.º 1, al. a), do anterior CPC, de 1961, conforme Ac. da RC, de 11.07.2012, Henrique Antunes, Processo n.º 781/09, onde expressamente se lê que este «especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor», constituindo «simples decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última extremidade, a seriedade do próprio recurso».
[3] No mesmo sentido:
.  Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 6628/10.3TBLRA.C1 - onde se lê que, de «harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC)», pelo que se «o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância»; e isso «sucederá sempre que, mesmo com a substituição, a solução o enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação».                                              
. Ac. do STJ, de 09.02.2021, Maria João Vaz Tomé, Processo n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1 - onde se lê que «nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil».
[4] Serão, por exemplo, os casos em que o recorrente, enunciando os pontos de facto que pretende impugnar, é, porém. omisso quanto aos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida (Ac. da RP, de 10.07.2013, Manuel Domingos Fernandes, Processo n.º 391/11.8TBCHV.P1), ou não cumpre os ónus secundários do n.º 2 do art.º 640.º do CPC, designadamente, de exacta indicação das passagens da gravação (Ac. do STJ, de 22.10.2015, Lopes do Rego, Processo n.º 2394/11.3TBVCT.G1.S1, ou Ac. do STJ, de 26.11.2015, António Leones Dantas, Processo n.º 291/12.4TTLRA.C1.S1).
[5] Neste sentido: Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1; Ac. do STJ, de 04.03.2015, Leones Dantas, Processo n.º  2180/09.0TTLSB.L1.S2; Ac. do STJ, de 01.10.2015, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1; Ac. do STJ, de 03.12.2015, Melo Lima, Processo n.º 3217/12.1TTLSB.L1-S1; Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo n.º 157/12-8TVGMR.G1.S1; Ac. do STJ, de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1; Ac. do STJ, de 21.04.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 449/10.0TTVFR.P2.S1; Ac. do STJ, de 28.04.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1; Ac. do STJ, de 31.05.2016, Garcia Calejo, Processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1; Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1; Ac. do STJ, de 13.10.2016, Gonçalves Rocha, Processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1; Ac. do STJ, de 16.05.2018, Ribeiro Cardoso, Processo n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1; Ac. do STJ, de 06.06.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1; Ac. do STJ, de 06.06.2018, Pinto Hespanhol, Processo n.º 552/13.5TTVIS.C1.S1; Ac. do STJ, 12.07.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1; Ac. do STJ, de 31.10.2018, Chambel Mourisco, Processo n.º 2820/15.2T8LRS.L1.S1; Ac. do STJ, de 13.11.2018, Graça Amaral, Processo nº 3396/14; ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2.
[6] O AUJ nº 12/2023 (de 17.10.2023, Ana Resende, Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1), foi publicado no DR-220/2023, SÉRIE I, de 14 de Novembro de 2023.
[7] Neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1.   
[8] Na base das acções declarativas de condenação está uma situação de facto que representa para o respectivo autor a violação de um seu direito (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume I, Almedina, 1981, pág. 101).
[9] Recorda-se, a propósito, que  «ónus da prova respeita aos factos da causa distribuindo-se entre as partes, cabendo ao autor a prova dos momentos constitutivos do facto jurídico (simples ou complexo) que representa a causa desse direito, sendo que o réu não carece de provar que tais factos não são verdadeiros, competindo-lhe, isso sim, a prova dos factos impeditivos ou extintivos do direito do autor, traduzindo-se para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantagens de se ter líquido o facto contrário, quando não logrou realizar essa prova, ou sofrer as consequências, se os autos não tiverem prova bastante desse facto» (Ac. do STJ, de 08.10.2020, Oliveira Abreu, Processo n.º 17259/17).
[10] Melhor explicitando:
. Ac. do STJ, de 05.05.2016, Paulo Sá, Processo n.º 5562/09.4TBVNG.P2.S1 - onde que lê que, no «âmbito das ações de reivindicação, a prova do direito de propriedade terá de ser feita através de factos dos quais resulte demonstrada a aquisição originária do domínio por parte do reivindicante ou de qualquer dos antepossuidores; quando a aquisição for derivada, terão de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária (exceto nos casos em que se verifique a presunção legal da propriedade, como a resultante da posse ou do registo)». 
. Ac. da RL, de 02.02.2020, Luís Filipe Pires de Sousa, Processo n.º 602/17.6T8MFR.L1-7-  onde se lê que, nos «termos do Art. 581º, nº4, do Código do Processo Civil, a causa de pedir na ação de reivindicação é complexa abrangendo o ato ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade do Autor e a ocupação abusiva do Réu. Assim, se o Autor invocar como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, v.g., usucapião, acessão ou ocupação, incumbe-lhe o ónus de provar os factos de que emerge o seu direito. Tratando-se de uma forma de aquisição derivada, v.g. compra, doação, incumbe ao Autor provar que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris) pois quer a compra e venda quer a doação não são constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito (nemo plus juris ad alium transferre postest, quam ipse habet). Assim sendo, quando a aquisição for derivada como sucede no caso de transmissão por compra e venda, têm de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária»., exceto nos casos em que se verifique a presunção legal da propriedade como a resultante da posse (Art. 1268º do Código Civil) ou a resultante do registo (Art. 7º do Código de Registo Predial)».
[11] Neste sentido (numa jurisprudência unânime):  Ac. do STJ, de 12.10.2017, Fernanda Isabel Pereira, Processo n.º 235/07.5TBRSD.C1.S1; ou Ac. da RG, de 08.07.2020, Alcides Rodrigues, Processo n.º 335/17.3T8MAC.G.
[12]  O Código do Registo Predial - doravante CRP - foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 06 de Julho.
[13] Maria Clara Sottomayor recorda que, historicamente, «a publicidade fundiária sucedeu a técnicas que faziam apelo à memória social»; e que a «publicidade» decorrente do «hábito de registar as transferências nos registos públicos», «consiste numa forma de suprir a falta da memória colectiva» (in Invalidade e Registo. A Protecção de Terceiro Adquirente de Boa Fé, Teses, Almedina, Maio de 2010, pág. 200).
No mesmo sentido se pronuncia Rui Pinto Duarte, quando afirma que «o registo predial visa substituir a publicidade espontânea dos direitos reais, nomeadamente a inerente à posse, por uma publicidade organizada, disciplinada» (in O Registo Predial, Almedina, Janeiro de 2020, pág. 16).
[14] Lê-se no art.º 36.º, do CRP (epigrafado «Regra geral de legitimidade»), que têm «legitimidade para pedir o registo os sujeitos, ativos ou passivos, da respetiva relação jurídica e, em geral, todas as pessoas que nele tenham interesse ou que estejam obrigadas à sua promoção».
[15] Enfatiza-se, a propósito, que a «qualificação do pedido de registo é o acto mais importante da função do conservador: é da qualificação feita que decorre a feitura do registo nos termos requeridos (definitivo ou provisório por natureza), a sua recusa ou a sua provisoriedade por dúvidas» (Maria Ema A. Bacelar A. Guerra, Código do Registo Predial Anotado, Ediforum - Edições Jurídicas, Limitada, Março 2000, pág. 125, com bold apócrifo).
[16] Neste sentido, Rui Pinto Duarte, O Registo Predial, Almedina, Janeiro de 2020, pág. 69, onde se lê que «a base do registo predial são as descrições dos prédios. Na origem das descrições está a entrada no sistema de um prédio até aí dele não constante ou uma operação de transformação fundiária, nomeadamente um loteamento ou uma anexação de prédios (arts. 80 e 85)».
Precisa, ainda, que os «elementos das descrições podem ser alterados, completados ou retificados (art. 88, n.º 1), mas as descrições não poem ser canceladas (art. 87, n.º 1). Entrado no sistema de registo, um prédio não pode sair dele. Por isso a lei prevê vários casos de “inutilização de descrições”, que nunca conduzem à extinção de descrições, mas sim e apenas à sua transformação (art. 87, n.ºs 2 e 3)».
[17] Neste sentido:
. Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo. A Protecção de Terceiro Adquirente de Boa Fé, Teses, Almedina, Maio de 2010, págs. 202 a 206 - onde se lê que nunca «foi possível introduzir o registo constitutivo, nos sistemas latinos, em virtude do perigo de expropriação dos proprietários, da organização do registo predial e dos costumes da população, assim como por força da hostilidade da Administração fiscal, e das dificuldades financeiras e profissionais ligadas à organização de um controlo judiciário prévio dos direitos registados».
Assim, a «tradição do direito registal português tem sido a do carácter facultativo do registo, como um ónus e não como um dever, acompanhado do seu carácter declarativo».
. Rui Pinto Duarte, O Registo Predial, Almedina, Janeiro de 2020, pág. 103 - onde se lê que no «direito português, por regra, o registo predial não tem efeito constitutivo ou transmissivo (havendo até quem sustente que o registo, em Portugal, tem mera eficácia declarativa) - o que resulta primacialmente dos preceitos do CC sobre os efeitos reais dos contratos e do art. 4.º n.º 1, do CRPredial, que estabelece que entre as partes e seus herdeiros os factos sujeitos a registo podem ser invocados ainda que não registados».
[18] Reagindo, porém, à inexactidão desta última afirmação:
.  Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo. A Protecção de Terceiro Adquirente de Boa Fé, Teses, Almedina, Maio de 2010, págs. 739 e seguintes.
. e Rui Pinto Duarte, O Registo Predial, Almedina, Janeiro de 2020, pág. 114, onde expressamente se lê que «grande parte da doutrina e da jurisprudência portuguesa sempre reduziu o alcance das regras sobre registo, tendo até sido frequente a afirmação (insustentável !)  de que “o registo não dá nem tira direitos”. Essa tendência é facilmente explicável. O registo predial foi enxertado num sistema jurídico cujos princípios não só prescindiam dele, como repeliam alguns dos seus efeitos possíveis».
[19] No mesmo sentido, Rui Januário e António Gameiro, Direito Registral Predial, Quid Juris Sociedade Editor, Outubro de 2016, pág. 256, onde se lê que este [do art.º 7.º, do CRP] «articulado jurídico-normativo contém uma presunção “iuris tantum”, susceptível, como tal, de ser elidida por prova em contrário».
[20] Conforme Isabel Pereira Mendes, Código do Registo Predial, 5.ª edição-1992, Almedina, pág. 49.
[21] Neste sentido: Ac. do STJ, de 29.10.1992, José Magalhães, Processo n.º 082672; Ac. da RG, de 22.01.2003, Arnaldo Silva, Processo n.º 1092/02-2 (com extensa indicação de jurisprudência anterior); Ac. da RC, de 10.01.2006, Hélder Almeida, Processo n.º 3207/05; Ac. do STJ, de 28.06.2007, Pereira da Silva, Processo n.º 07B1097; Ac. da RE, de 24.04.2008, Fernando Bento, Processo n.º 288/08-3; Ac. do STJ, de 15.05.2008, Pereira da Silva, Processo n.º 08B856; Ac. do STJ, de 19.02.2013, Moreira Alves, Processo n.º 367/2002.P1.S; Ac. do STJ, de 14.11.2013, Serra Baptista, Processo n.º 74/07.3TCGMR.G1.S1; Ac. da RC, de 26.11.2013, Barateiro Martins, Processo n.º 1643/10.0TBCTB.C1; Ac. da RP, de 14.01.2014, Vieira e Cunha, Processo n.º 4514/12.1TBVFR.P1; Ac. do STJ, de 27.03.2014, Álvaro Rodrigues, Processo n.º 555/2002.E2.S1;  Ac. do STJ, de 19.09.2017, Alexandre Reis, Processo n.º 120/14.4T8EPS.G1.S1; Ac. do STJ, de 28.09.2017, Fernanda Isabel Pereira, Processo n.º 809/10; Ac. do STJ, de 18.01.2018, José Rainho, Processo n.º 668/15; Ac. da RL, de 10.10.2019, Tibério Silva, Processo n.º 299/14.5T8CSC.L1-2; Ac. da RE, de 07.11.2019, Manuel Bargado, Processo n.º 349/17.3T8ORM.E3; Ac. do STJ, de 12.01.2021, Pedro de Lima Gonçalves, Processo n.º 2999/08.0TBLLE.E2.S1; Ac. da RE, de 13.01.2022, Anabela Luna de Carvalho, Processo n.º 226/18.0T8BJA.E1; Ac. da RL, de 02.02.2020, Luís Filipe Pires de Sousa, Processo n.º 602/17.6T8MFR.L1-7; ou Ac. da RE, de 12.07.2023, Maria Adelaide Domingos, Processo n.º 113/20.2T8ADV.E.
[22] Neste sentido, Ac. da RC, de 11.02.2014, José Avelino Gonçalves, Processo n.º 539/08.0TBSEI.C1.
[23] No mesmo sentido, Ac. da RL, de 02.02.2020, Luís Filipe Pires de Sousa, Processo n.º 602/17.6T8MFR.L1-7.
[24] Detalhando os ditos procedimentos, Rui Pinto Duarte, O Registo Predial, Almedina, Janeiro de 2020, págs. 35 a 39.
[25] Neste sentido: Ac. do STJ, de 04.03.2004, Pires da Rosa, Processo n.º 03B3015; ou Ac. do STJ, de 11.2.2016, Lopes do Rego, Processo n.º 6500/07, onde nomeadamente se lê que «nada obsta obviamente a que o juiz, ao decidir a ação real, tenha em conta o teor da descrição predial, enquanto elemento coadjuvante da livre formação da sua convicção acerca da efetiva fisionomia e titularidade dos imóveis em causa».
[26] J.A. Mouteira Guerreiro, «Publicidade e Princípios do Registo», Temas de Registos e de Notariado, Almedina, Coimbra 2010, págs. 17 e segs. e 40, citado no AUJ n.º 1/1017, do STJ, de 23.02.2016, Júlio Gomes, Processo n.º 1373/06.7TBFLG.G1.S1-A, nota 3.
[27] Neste sentido, Ac. do STJ, de 19.09.2017, Alexandre Reis, Processo n.º 120/14.4T8EPS.G1.S1, onde se lê que, sendo «a usucapião a base da nossa ordem jurídica, o que releva para alcançar as realidades prediais, objecto de direitos reais, são os actos possessórios verificados ao longo dos tempos, que incidam sobre tais realidades, físicas e concretas, e não os elementos identificativos em poder de entidades ou serviços públicos, como as descrições prediais ou as inscrições matriciais – estas, por maioria de razão –, que podem ser úteis na identificação ou localização daquelas realidades, mas não podem ter qualquer repercussão nas relações jurídico-privadas, nomeadamente delimitando o objecto sobre que incindem tais direitos, nada provando, por si só, quanto a esse objecto, designadamente quanto à respectiva área concreta».
[28] Desenvolvendo, lê-se no mesmo acórdão que, tanto «assim é que o princípio da aquisição processual (art. 413 do CPC), associado ao princípio do inquisitório em matéria de prova (art. 411/3 do CPC), podem levar a que os factos essenciais constitutivos da causa de pedir ou de uma exceção resultem provados ainda que a parte onerada não consiga produzir prova apta para esse efeito. A propósito, Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 15. Dito de outra forma, ter o ónus da prova significa, sobretudo, determinar qual é a parte que suporta a falta de prova de determinado facto e não tanto saber qual é a parte que está onerada com a prova desse mesmo facto. Sem prejuízo, sempre notamos que, conforme ensinam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 487-488), tendencialmente há coincidência entre a parte que suporta o ónus da prova e aquela que tem a iniciativa da prova que, assim, tentará, naturalmente, afastar o risco da falta de prova. Na perspetiva inversa, a contraparte sentir-se-á legitimada a uma inação probatória até à prova do facto pela parte onerada. Assim, escrevem estes autores, “o ónus subjetivo implica o ónus objetivo, e vice-versa.”
§ 43.º Neste sentido, o art. 346 do Código Civil e o art. 414 do CPC estabelecem que, na dúvida, o juiz decida contra a parte onerada com a prova».
[29] Lê-se no art.º 336.º, do CC, que é «lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo» (n.º 1); e a «acção directa pode consistir na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito, ou noutro acto análogo» (n.º 2).  
[30] Lê-se no art.º 1.º, do CPC, que a «ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei».