Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5630/15.3T8VNF-A.G1
Relator: PAULA RIBAS
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO PROMESSA
NULIDADE DE SENTENÇA
PRESCRIÇÃO
INCUMPRIMENTO
LICENÇA DE HABITABILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – É nula a sentença em que o Juiz não se pronuncia sobre a exceção de prescrição invocada na contestação.
2 – Não obstante o contrato promessa ter sido celebrado em 2000, não está prescrito o direito o promitente comprador exigir a devolução do sinal em dobro se o acordo estabelecia que a escritura pública do contrato prometido se realizaria no prazo de quinze após a emissão da licença de habitabilidade e esta ainda não existe.
3 – Existe incumprimento do contrato promessa se, volvidos mais de 23 anos desde que foi celebrado, estando o promitente adquirente a residir no imóvel desde 2004, a promitente vendedora fez reiteradas promessas sobre a remoção dos obstáculos que permitiam a celebração da escritura pública, sem resultado, encontrando-se a fração prometida vender hipotecada e penhorada, sem qualquer reação da executada, não podendo, assim, ser vendida livre de ónus ou encargos como acordado se, interpelada para esclarecer a situação existente, nada disse, dentro do prazo que lhe foi fixado.
3 – A inexistência de licença de utilização relativa ao imóvel prometido vender não torna nulo o contrato promessa celebrado por violação do art.º 280.º do C. Civil.
Decisão Texto Integral:
Relator: Paula Ribas
1º Adjunto: José Manuel Flores
2ª Adjunta: Sandra Melo

Processo 5630/15.3T8VNF-A.G1
Juízo de Execução ... – Juiz ... – Comarca ...

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório (elaborado com base na sentença de 1.ª Instância):
Por apenso à execução que AA intentou contra a executada EMP01..., Lda. foram reclamados os seguintes créditos:
- crédito da Banco 1... (Banco 1...), no montante total de 174.060.94 euros, a que acrescem os juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento, garantido por hipoteca sobre a parcela de terreno para construção urbana sita no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11, freguesia ... e inscrito na respetiva matriz sob o art.º ...53 e respetivas frações dela desanexadas (já reconhecido por sentença transitada em julgado);
- crédito do Município ..., no montante total de 30.750,00 euros, a que acrescem os juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento, garantido por hipoteca sobre o prédio urbano – (lote ...3) - parcela de terreno destinada a construção urbana, com a área de 875 m2, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte com arruamento, sul com ..., nascente com lote nº ...2 e poente com lote nº ...4, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...13/... e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...62; e sobre o prédio urbano – (lote ...4) - composto de parcela de terreno destinada a construção urbana, com a área de 1955 m2, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte com ... e equipamentos, sul e poente com BB e nascente com lote ...3, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...14/... e inscrito na matriz urbana da freguesia ... sob o artigo ...63. (já reconhecido por sentença transitada em julgado);
- crédito reclamado por CC no montante de 43.574,08 euros, acrescido de juros de mora vincendos, à taxa legal, até integral e efetivo pagamento, com garantia real sobre a fração autónoma ..., situada na Urbanização ..., ..., freguesia ..., concelho ..., inscrita na respetiva matriz sob o art.º ...53... e descrita na competente Conservatória sob o nº ...11..., com garagem assinalada com o nº 8 na cave.

Para o efeito, este credor alega que:
1 - celebrou em 17/10/2000 com a executada EMP01..., Lda. contrato promessa de compra e venda mediante o qual prometeu comprar e esta prometeu vender, livre de quaisquer ónus ou encargos, um apartamento tipo ... no ... andar do Bloco ..., pela quantia de 13.000.000$00, da planta então exibida e que ficava a fazer parte integrante do mesmo, e em completa conformidade com o projeto de licenciamento aprovado pela Câmara Municipal ...;
2 – estava acordado que o reclamante procedia:
a) ao pagamento a título de sinal de 800.000$00 nesse ato da quantia de 1.500.000$00 até ao início de dezembro de 2000, sendo o remanescente do preço pago com a realização da escritura pública;
b) a entrega das chaves seria concretizada no dia de outorga da escritura pública, prevista para dezembro de 2001;
c) a promitente vendedora (aqui executada) deveria marcar a respetiva escritura pública, avisando o promitente comprador (reclamante) com dez dias de antecedência, devendo realizar-se no prazo de quinze dias contados da obtenção da licença de habitabilidade;
3 - apesar de vários pedidos e solicitações do ora reclamante à executada, e ao seu representante legal, este nunca procedeu à marcação da escritura pública;
4 - não foi ainda obtida a licença de habitabilidade;
5 - o reclamante formalizou o contrato promessa ainda no estado civil de solteiro no intuito de se casar, como veio a suceder em junho de 2002, constituir família e fixar a sua residência no imóvel em causa, pelo que, sob a promessa inúmeras vezes reiterada pela executada que estaria para breve a possibilidade de realização da escritura pública, e para que avançassem as obras na “sua” fração, realizou os seguintes pagamentos como sinal e sucessivos reforços:
a) 800.000$00 (3.990,38 euros) no ato de formalização do aludido contrato promessa,
b) 1.500.000$00 (7.481,96 euros) em 05/12/2000, mediante a entrega do cheque nº ...07, sacado sobre a Banco 2..., SA, emitido nessa data a favor da executada EMP01...,
c) 5.000,00 euros em 21/05/2002 conforme “declaração” emitida e assinada pela executada EMP01...,
d) 1.000,00 euros em 26/01/2004, mediante a entrega do cheque nº ...60, sacado sobre o Banco 3..., SA, emitido nessa data a favor da executada EMP01...,
e) 2.500,00 euros em 21/05/2004, mediante a entrega do cheque nº ...64, sacado sobre o Banco 3..., SA, emitido nessa data a favor da executada EMP01...,
f) 1.814,70 euros em 26/07/2004, mediante a entrega de dois cheques dos montantes de 262,20 euros e 1.552,50 euros, ambos sacados sobre o Banco 3...,SA, respetivamente n.ºs ...65 e ...66, emitidos nessa data a favor de DD por indicação e dificuldades económicas da executada EMP01..., para que fosse dessa forma paga e instalada a cozinha diretamente por aquele fornecedor, de acordo com o respetivo caderno de encargos;
7 - com tais pagamentos e pedidos constantes do reclamante junto da executada, foram avançando lentamente as obras na fração autónoma em causa até ../../2004, altura em que, ainda que com algumas limitações, a mesma foi considerada finalizada e apta a habitar, tendo sido entregues as respetivas chaves ao reclamante;
8 - também desde essa altura – setembro de 2004 – o reclamante e esposa mudaram-se para a identificada fração autónoma, e aí fixaram a sua residência e casa de morada de família até aos dias de hoje;
9 – estes factos e a situação descrita vem-se mantendo há mais de 20 anos, perante as reiteradas promessas da executada e seu representante que iriam ser removidos os obstáculos camarários tendo em vista a formalização da escritura pública, o que nunca sucedeu;
10 - tais promessas, criando falsas expectativas ao reclamante, ocorreram mesmo após o seu conhecimento da pendência dos autos principais e a realização da diligência de penhora da fração autónoma aqui em causa (e várias outras) por parte da Sra. AE, a qual teve oportunidade de confirmar a posse efetiva, titulada e de boa-fé nos termos descritos do reclamante, pelo que com data de 05/07/2022 o notificou da penhora de “créditos presentes e/ou futuros” a favor da executada e “em consequência de eventuais contratos celebrados” e, simultaneamente, constitui-o fiel depositário da identificada fração autónoma ...;
11 - o reclamante respondeu à Sra. AE por email datado de 13/07/2022 esclarecendo da existência do remanescente do preço acordado pela compra da fração autónoma do valor de € 43.056,69 (64.843,73 – 21.787,04), apenas devido no ato da celebração da escritura pública definitiva, cuja data desconhecia;
12 -  o reclamante não mais recebeu qualquer notificação no âmbito dos presentes autos;
13 - tanto quanto sabe permanece a impossibilidade/dificuldade da executada em obter a licença de habitabilidade desta (e de outras) frações, que permitisse formalizar em definitivo a prometida aquisição, matéria sobre a qual nada o reclamante voltou a ser informado pela executada EMP01... ou pelo seu representante;
14 - por comunicações registadas com aviso de receção, enviadas a 16/02/2023, para a executada EMP01... e para o seu legal representante, e recebidas a 27/02/2023, o reclamante, para além do mais, transmitiu o seguinte: “ora, decorreram mais de 20 anos desde a outorga do citado contrato promessa e continua igual a descrita situação, sendo intolerável e injustificável que não tenha sido obtida por V. Exas. a referida licença e marcada, como lhes compete a competente escritura pública, pelo que, se no prazo máximo de 10 (dez) dias, tal não ocorrer, ou não apresentarem justificação plausível, considero definitivamente incumprido tal contrato, por culpa exclusiva de V. Exas., reservando-me a possibilidade de exercer, ainda que judicialmente, os direitos que desse facto, inequivocamente, me assistem”;
15 - recebidas tais comunicações e decorridos os dez dias de prazo fixado pelo reclamante, não procedeu a executada à marcação da competente escritura pública, ou sequer apresentou qualquer resposta ou justificação para tanto, devendo considerar-se como incumprido definitivamente e resolvido o contrato promessa sub judice, por culpa manifesta e exclusiva da contraente, aqui executada.
Conclui, afirmando que o seu crédito está garantido pelo direito de retenção sobre a dita fração, na qualidade de consumidor.
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O credor Banco 1... deduziu oposição, impugnando a generalidade da alegação por desconhecimento e ainda que:

1 – o contrato promessa celebrado não observa os formalismos legais prescritos no art.º 410.º, n.º 3, do C. Civil, pois que as assinaturas apostas no documento não se encontram notarialmente reconhecidas;
2 – tal omissão conduz à nulidade do contrato celebrado;
3 - é nula igualmente a cláusula nona do contrato promessa em causa;
4 - não se mostra descrita a existência da respetiva licença de utilização do imóvel;
5 - estava aprazada a celebração da competente escritura para o mês de dezembro de 2001, nada tendo feito o reclamante para exigir o seu cumprimento durante mais de 21 anos;
6 - o início da contagem do prazo de prescrição não está dependente do “conhecimento jurídico” do respetivo direito, bastando ao lesado o conhecimento dos seus factos constitutivos, isto é que, o ato foi praticado ou omitido por alguém e que dessa prática ou omissão resultaram danos;
7 - cabia, pois, ao reclamante na qualidade de promitente vendedor interpelar a EMP01... para a celebração da escritura pública, estando prescrito o seu direito relativo à exigibilidade da obrigação;
8 - não se mostra que tivessem existido, de permeio, quaisquer causas interruptivas ou suspensivas da prescrição.

Conclui, alegando que o reclamante em causa não se encontra munido de qualquer crédito que possa ser reclamado nos presentes autos, não tendo qualquer título executivo, nem gozando de qualquer garantia real decorrente do direito de retenção.
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A reclamada/executada deduziu também oposição ao crédito reclamado pelo credor CC, alegando para o efeito que:

1º O contrato promessa junto aos autos pelo credor reclamante foi realizado sem licença de utilização que ainda hoje não existe, facto, aliás, admitido pelo credor reclamante, o que determina que tal contrato é nulo;
2 - no contrato promessa de compra e venda, o notário não reconheceu nem certificou a existência de licença de utilização, ocorrendo ainda um problema mais grave, inultrapassável, pois o contrato promessa na data em que foi celebrado e, mesmo à data da oposição, ainda não tem licença de utilização;
3 - dada a natureza material deste requisito (já não é uma simples formalidade, mas um requisito do próprio negócio imposto por lei), pois devem aplicar-se ao contrato promessa as regras do contrato prometido, daí resulta a nulidade do contrato decorrente da impossibilidade objetiva e originária da prestação;
4 – por conta do referido contrato, o credor reclamante só pagou as quantias de 800.000$00 (3.990,38 euros), 1.500.000$00 (7.481,96 euros), 5.000,00 euros, 2.500,00 euros e pagou ainda o montante de 1.718,00 euros
para uma cozinha;
5 - no referido contrato promessa foi fixado o prazo de quinze dias para realização da prometida escritura a contar da data da obtenção da licença de utilização;
6 -  esse prazo ainda não foi ultrapassado, pois a licença de utilização ainda não foi emitida, não obstante, finalmente estar quase emitida;
7 - a resolução do contrato promessa outorgado em 17/10/2000, recebida pela executada EMP01... é fundada em motivo inexistente e sem fundamento, padecendo, aliás, de lapso, porquanto o prazo para outorgar a prometida escritura ainda nem sequer começou a correr, inexistindo assim qualquer motivo para resolver o contrato;
8 - tendo resolvido o contrato, sem motivo, o promitente comprador reclamante perdeu o direito ao valor que entregou.
Subsidiariamente entende que, no máximo, tem o reclamante direito a ver reconhecido nestes autos o valor que pagou a título de sinal, em singelo, no montante de 18.972,34 euros, mas sem qualquer direito de retenção, pois que, segundo alega, o direito de retenção deve ser reconhecido a quem pagou o preço na totalidade ou coisa parecida e tem de atuar como proprietário, o que não é o caso do credor reclamante, porque o reclamante só pagou uma pequena parte do preço e nunca viveu efetivamente naquele local.
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Foi realizada a audiência de julgamento com observância do formalismo legal, tendo sido proferida sentença que julgou a pretensão do reclamante procedente e, em consequência, decidiu:
pelo exposto, reconheço o credito no montante de € 43.574,08 (quarenta e três mil quinhentos e setenta e quatro euros e oito cêntimos) reclamado pelo credor CC e, em consequência, graduo os supra mencionados créditos pela ordem seguinte:
4.1.- Do produto da venda da fração autónoma designada pela letra ..., do prédio com a descrita morada, com o nº de polícia ...15, no ..., do Bloco ..., inscrita na respetiva matriz sob o art. ...53... e descrita na competente Conservatória sob o nº...11..., serão pagos os seguintes créditos:
1.- Crédito reclamado pelo credor CC.
2.- Crédito do credor reclamante Banco 1... (Banco 1...), até ao limite da hipoteca.
3.- Crédito do credor reclamante Município ..., até ao limite da hipoteca.
4.- Crédito exequendo”.
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Inconformada com esta decisão, a executada EMP01... apresentou recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. As partes celebraram um contrato promessa de compra e venda bilateral.
2. No artigo 4º dos factos provados, alínea c), da douta sentença, refere: “A promitente vendedora (aqui executada) deveria marcar a respetiva escritura pública, avisando o promitente comprador (reclamante) com dez dias de antecedência, devendo realizar-se no prazo de quinze dias contados da obtenção da licença de habitabilidade – cfr. cláusula 4ª do documento n.º ....”
3. As partes fixaram assim, por acordo, um prazo certo para a realização da prometida escritura de compra e venda, de quinze dias a contar da data em que fosse obtida a licença de utilização, ou seja, foi convencionado um prazo essencial.
4. Na douta sentença foram ainda dados como provados os seguintes factos: artigo 15º dos factos provados: “A executada/reclamada encontra-se a diligenciar junto da CM... pela obtenção da licença de habitabilidade.” e artigo 16º dos factos provados: “Sucede que, até à presente data, o referido imóvel ainda não possui a necessária licença de habitabilidade.”
5. O exercício do direito potestativo-extintivo de resolução do contrato, em conjugação com a componente indemnizatória, exige o incumprimento definitivo da promessa e não uma situação de simples mora e só existe mora do devedor quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível não foi efetuada no tempo devido – cfr. resulta do disposto no art.º 804º, nº 2, do CC.
6. Só a partir do momento em que a sociedade promitente-vendedora fica na situação de poder cumprir, in casu, quando for emitida a licença de utilização, é que a promitente-compradora fica investida na posição de poder exigir o cumprimento e, concomitantemente, com a faculdade/poder de efetuar a interpelação admonitória. Antes desse momento, pelo menos por este motivo, não o pode fazer.
7. Ora, no caso destes autos, ainda não ocorreu o tempo devido para o credor reclamante ficar investido no poder de fazer uma interpelação admonitória, pois foi fixado prazo, por acordo das partes, reportando tal prazo para a obtenção da licença de utilização, que ainda não foi emitida, peplo que o prazo acordado ainda não se iniciou.
8. Inexiste assim qualquer motivo para a resolução do contrato-promessa em causa nestes autos, pelo que a comunicação enviada pelos reclamantes nesse sentido não tem força resolutiva, revelando, porém, uma manifestação de vontade inequivocamente demonstrativa de não querer cumprir o contrato.
9. Resultando deste facto, que tem de se considerar que o credor reclamante perdeu o direito ao sinal que entregou.
10. O reclamante pretende a resolução do contrato promessa e a restituição do sinal em dobro, mas isto pressupõe o incumprimento definitivo e culposo da promessa por parte do promitente vendedor e tal não aconteceu no caso dos autos.
11. Na verdade, nos factos provados, nada consta que a promitente vendedora EMP01... agiu com desleixo, incúria e portanto, com culpa, na obtenção da licença de utilização.
12. Ora, não estando provado a responsabilidade da EMP01... na não obtenção da licença de utilização, não poderia o Reclamante resolver o Contrato Promessa de Compra e Venda com justa causa ou justo motivo;
13. Logo, o incumprimento definitivo do contrato deve-se ao Reclamante e não à Recorrente EMP01... (ao contrário do que resulta da Sentença), e tem como consequência a perda do sinal prestado (conf. artigo 442º do Código Civil).
14. Tendo a obrigação não cumprida por fonte um contrato bivinculante para que o credor possa revolvê-lo, libertando-se do seu dever de prestar, é necessário, em princípio, que a prestação da contraparte se tenha tornado impossível por causa imputável ao devedor (art.º 801º do CC).
15. Ora, tendo o contrato prazo certo, e não existindo ainda licença de utilização emitida, não existe sequer mora nem incumprimento da sociedade promitente vendedora.
16. O prazo fixado por acordo das partes no contrato promessa não foi ultrapassado.
17. O exposto é conducente á revogação da Sentença de que se recorre, a qual deverá ser substituída por outra que decrete o Contrato Promessa de Compra e Venda como resolvido sem justo motivo e se determine que o credor Reclamante não tem qualquer crédito decorrente desse facto.
18. Em conclusão, o credor Reclamante não tem qualquer crédito sobre a sociedade EMP01... e, por isso, não lhe assiste o direito de retenção sobre a fração autónoma designada pela letra ..., melhor identificada na Sentença.
19. Subsidiariamente, para o caso de não ser julgado procedente o supra exposto, foram dados como provados que a “A executada/reclamada encontra-se a diligenciar junto da CM... pela obtenção da licença de habitabilidade.” e “Sucede que, até à presente data, o referido imóvel ainda não possui a necessária licença de habitabilidade.”
20. Resulta do art.º 1º, n.º 1, do D.L. n.º 281/99, de 26 de julho (na redação introduzida pelo DL nº 99/2010, de 2 de setembro), que é requisito fundamental da concretização da transmissão da propriedade sobre prédios urbanos, que seja certificada a existência da correspondente autorização de utilização perante a entidade que celebrar a escritura (ou autenticar o documento particular).
21. Dada a natureza material deste requisito (já não é uma simples formalidade, mas um requisito do próprio negócio imposto por lei), devem-se aplicar ao contrato promessa as regras do contrato prometido, nos termos do disposto no art.º 410º, n.º 1, do CC).
22. Ao contrato promessa dos autos é-lhe aplicável o referido art.º 1º, n.º 1, do indicado DL nº 281/99, daí resultando que, a fração se encontra já construída, embora sem licença de utilização, tal impõe que o Tribunal conheça e declare a nulidade (decorrente de impossibilidade objetiva e originária da prestação – art.º 401º, n.º 1 do CC) do contrato promessa de compra e venda, uma vez que o mesmo viola disposições de direito público, sendo certo que essa nulidade, ex vi do disposto nos arts. 280º, nº1 e 286º do mesmo CC, é de conhecimento oficioso.
23. O banco credor invocou essa mesma nulidade, pelo que tem a mesma de ser declarada.
24. Sendo declarada a nulidade do contrato, está prescrito o crédito do credor reclamante, o que subsidiariamente, se requer seja declarado por este venerando Tribunal, pois já decorreram mais de vinte anos desde o momento em que o mesmo foi assinado.
25. Em face do exposto, subsidiariamente, deve revogar-se a douta sentença, que deverá ser substituída por outra que declare o contrato promessa nulo, por falta de licença, pois foi resolvido antes da sua emissão e só a obtenção da licença de utilização determinaria a validade de tal contrato promessa, ainda que fosse emitida em data posterior, mas reportando os seus efeitos ao seu início.
26. Em suma, a sociedade EMP01..., aqui recorrente, sempre se dispôs a cumprir o contrato promessa, no prazo de 15 dias a contar da data em que fosse obtida a licença, mas atento que o credor reclamante optou por resolver o contrato promessa, antes dessa data, neste momento, não existindo licença de utilização, é forçoso concluir que o contrato é nulo e, por este facto, porque o credor reclamante deu esse passo, inexiste qualquer abuso de direito na invocação desta nulidade pela recorrente.
27. O exposto é conducente á revogação da sentença de que se recorre, a qual deverá ser substituída por outra que decrete o contrato como resolvido sem justo motivo e antes do prazo e se determine que o credor reclamante não tem qualquer crédito decorrente desse facto, pois é manifesta a sua vontade de não pretender cumprir com o que se obrigou no prazo que acordou.
28. A douta sentença, salvo o muito e devido respeito por diferente entendimento, ao decidir como decidiu violou o disposto nos arts. 801º e 804º, n.º 2 do CC, ou, subsidiariamente, violou o disposto nos arts. 280º e 286º, 401º, n.º 1, 410º, n.º 1 e art.º 1º, n.º 1, do DL nº281/99, de 26 de julho (na redação introduzida pelo DL nº 99/2010, de 2 de setembro), e conferiu-lhe interpretação que os mesmos não comportam, pelo que deve, assim, numa boa aplicação do direito, a Recorrente ver revogada a sentença de que recorre, proferindo-se acórdão que julgue o presente recurso procedente, por violação das regras de direito supra mencionadas e, em consequência, deve ser revogada a sentença e substituída por acórdão que acolha os termos propugnados nesta conclusões”.
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Também a credora reclamante Banco 1... veio apresentar recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1. Com o devido respeito e salvo melhor opinião, entende a ora Recorrente que a Sentença recorrida é nula por omissão de pronuncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.
2. Entende a ora Recorrente, com o devido respeito, que a douta sentença é nula, uma vez que a ora Recorrente, em sede de impugnação do crédito reclamado por CC, apresentada em 09-05-2023, com a referência Citius ...71, invocou prescrição do crédito:
“Por se mostrar extinta a obrigação de devolução do sinal em dobro em que se funda tanto o crédito reclamado como o direito de retenção devido a prescrição e, bem assim, declarar-se a inexistência da garantia real do direito de retenção sobre o crédito reclamado”.
e em momento algum, na sentença a quo, o Douto Tribunal pronunciou-se sobre a referida prescrição (que constituiu uma exceção ao direito invocado).
3. O Credor CC reclamou créditos fundados em direito de retenção derivado de contrato promessa de compra e venda do imóvel penhorado.
4. O referido crédito tem origem num alegado contrato de promessa de compra e venda celebrado com a executada “EMP01..., Lda.”, no qual esta prometeu vender, livre de quaisquer ónus ou encargos, “um apartamento tipo ... no ... andar do Bloco ..., pela quantia de Esc. 13.000.000$00 (treze milhões de escudos).
5. Entre outras, no referido contrato ficou ainda acordado e como obrigação das partes:
a) O pagamento a título de sinal de Esc 800.000$00 (oitocentos mil escudos) nesse ato e a quantia de Esc. 1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos) até ao início de dezembro de 2000, sendo o remanescente do preço pago com a realização da escritura pública – cfr. cláusula 2ª do doc. nº ...;
b) A entrega das chaves seria concretizada no dia de outorga da escritura pública, prevista para dezembro de 2001 – cfr. cláusula 3ª do doc. nº ...;
c) A promitente vendedora deveria marcar a respetiva escritura pública, avisando o promitente comprador (reclamante) com dez dias de antecedência, devendo realizar-se no prazo de quinze dias contados da obtenção da licença de habitabilidade – cfr. cláusula 4ª do doc. nº ....
6. O referido Credor Sr. CC confessa, na sua reclamação de créditos, que há mais de 20 anos nunca conseguiu formalizar a competente escritura pública.
7. Face à reclamação de créditos apresentada pelo credor em causa e ao direito de retenção invocado, a ora Recorrente impugnou os referidos créditos.
8. A ora Reclamante alegou, entre outros, os seguintes fundamentos:
 “….
13- O crédito reclamado e ora impugnado no valor de €43.574,08 decorre do incumprimento do contrato promessa de compra e venda do imóvel penhorado, mais especificamente, da devolução em dobro das quantias pagas promitente comprador.
14- Não se tendo realizado a escritura pública de compra e venda no mês supramencionado, poderia o impugnado fazer valer e exercício dos seus direitos que lhe competiam para resolução do diferendo resultante do incumprimento do contato promessa de compra e venda celebrado com a EMP01... Lda.
15- Sucede, porém, que o impugnado nada fez durante mais de 21 anos, até ../../2023, data em remeteu uma missiva em que considerou o contrato promessa de compra e venda definitivamente incumprido (doc. n.º...4 da reclamação de créditos apresentada pelo impugnado).
16- O início da contagem do prazo de prescrição não está dependente do “conhecimento jurídico” do respetivo direito, bastando ao lesado o conhecimento dos seus factos constitutivos, isto é que, o ato foi praticado ou omitido por alguém e que dessa prática ou omissão resultaram danos.
17- Cabia, pois, ao reclamante na qualidade de promitente vendedor interpelar a EMP01... para a celebração da escritura pública.
18- Decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 323.º do Código Civil que “a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito seja qual for o processo a que o ato pertence e anda que tribunal seja incompetente.”
19- O ora impugnado nunca exerceu qualquer direito em que pretendesse valer as suas pretensões por forma a interromper a prescrição das obrigações constantes no contrato promessa que junta como doc...., mormente o direito à execução especifica do contrato ou devolução do sinal em dobro.
20- Inércia essa que perdurou mais de 20 anos.
21- No caso em apreço, tendo em conta que o início do prazo prescricional é o da exigibilidade da obrigação, o facto de constar no contrato promessa de compra e venda que a celebração da escritura de compra e venda seria previsto realizar no mês de dezembro de 2001, o promitente vendedor estava em condições de poder exercer o seu direto, transcorrido que mostrasse o decurso daquele mês.
22- Não se mostra que tivessem existido, de permeio, quaisquer causas interruptivas ou suspensivas da prescrição.
23- Atento o hiato temporal decorrido entre o mês previsto para a celebração da escritura pública e a instauração da reclamação de créditos, mostra-se ultrapassado o prazo ordinário de prescrição de 20 anos (cfr. artigo 309.º Código Civil), mostrando-se assim prescrita a obrigação de devolução do sinal em dobro em que se alicerça o crédito reclamado.
24- Face à prescrição ora observada, o crédito indemnizatório resultante da devolução do sinal em dobro e ora reclamado mostra-se igualmente prescrito e, consequentemente, extinto.
25- As causas extintivas da hipoteca aplicam-se ao direito de retenção.
26- Sendo extinta a obrigação em que se funda o crédito reclamado, por prescrita, extinto se mostra o direito de retenção por força da aplicação das disposições conjugadas do artigo 730º alínea a) ex vi artigo 761.º, todos do Código Civil.
27- Face ao exposto, o reclamante em causa não se encontra munido de qualquer crédito que possa ser reclamado nos presentes autos, não tem qualquer título executivo, nem goza de qualquer garantia real decorrente do direito de retenção.”
9. Tendo a final, a ora Recorrente pedido que fosse declarada a extinção da obrigação de devolução do sinal em dobro em que se funda tanto o crédito reclamado como o direito de retenção devido a prescrição e, bem assim, declarar-se a inexistência da garantia real do direito de retenção sobre o crédito reclamado;
10. Em 20/11/2023 foi proferida a douta sentença que reconhece “o crédito no montante de 43.574,08 (quarenta e três mil quinhentos e setenta e quatro euros e oito cêntimos) reclamado pelo credor CC e, em consequência, graduo os supra mencionados créditos pela ordem seguinte:
4.1.- Do produto da venda da fração autónoma designada pela letra ..., do prédio com a descrita morada, com o nº de polícia ...15, no ..., do Bloco ..., inscrita na respetiva matriz sob o art. ...53... e descrita na competente Conservatória sob o nº ...11..., serão pagos os seguintes créditos:
1.- Crédito reclamado pelo credor CC.
2.- Crédito do credor reclamante Banco 1... (Banco 1...), até ao limite da hipoteca.
3.- Crédito do credor reclamante Município ..., até ao limite da hipoteca.
4.- Crédito exequendo.”
11. O Douto Tribunal transcreve para a douta sentença a impugnação apresentada pela Credora Banco 1... e na qual, entre outros, consta a alegada prescrição.
12. Mais, o Douto Tribunal a quo afirma que baseou a sua convicção no depoimento do legal representante da executada.
“Este último depoimento, porque assim o afirmou categoricamente, foi importante para o tribunal ajuizar que o credor CC desde, pelo menos, o ano 2000, reside juntamente com a sua família na fração em apreço na respetiva reclamação de crédito.
Com efeito, como afirmou, o credor CC vive nesse apartamento “desde ../../2000”, “sempre residiu nesse apartamento”, “foi nesse apartamento que fixou a sua residência até à presente data”.
Acrescentou ainda que este credor, apesar de possuir uma casa que pretende reconstruir, ainda reside no dito apartamento e “ainda não saiu de lá”.
Por fim, concretizou o valor pago por este credor a título de sinal nos termos por este reclamados, admitindo, porém, que 1000,00 euros possam ter sido pagos a título de sinal ou por causa de um “roupeiro extra”.
Estas declarações do legal representante da executada/opoente, foram, assim determinantes para o tribunal ajuizar que este credor, como afirma, já reside nesse apartamento há mais de 20 anos, à vista de todos e sem a oposição de ninguém.”
13. Assim, não obstante, as invocações de prescrição da credora ora Recorrente, bem como as referências existentes à invocada prescrição na douta sentença ora em crise, a verdade é que em momento algum o Tribunal pronuncia-se sobre a questão da prescrição.
14. Considera a ora Recorrente, com o devido respeito e salvo melhor opinião que, sendo a prescrição uma exceção, o Tribunal não poderia deixar de apreciar nem se pronunciar sobre a questão, sendo por isso a sentença nula, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º CPC.
Por tudo o acima exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso, impondo-se a revogação da sentença Recorrida, por ofensa aos identificados preceitos legais nos termos acima expostos, nomeadamente, omissão de pronuncia sobre questão que devesse apreciar – alínea d) n.º 1 do artigo 615º CPC), substituindo-se a sentença ora em crise pior outra que aprecie e se pronuncie sobre a prescrição invocada pela ora Recorrente, o que se requer”.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata e nos próprios autos.
No despacho que admitiu o recurso, o Mmº Juiz de 1.ª Instância declarou: “não vislumbro na sentença qualquer irregularidade ou nulidade que sustente a sua alteração”.
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Nesta Relação o recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Questões a decidir:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts.º 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por C. P. Civil) -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as de saber se:
1 – da nulidade da sentença por não ter sido apreciada a exceção de prescrição que foi invocada (fundamento de recurso da credora reclamante Banco 1...), bem como a apreciação da questão da prescrição (fundamento de recurso invocado pela executada);
2 – da inexistência de fundamento para a resolução do contrato promessa (fundamento invocado pela executada);
3 – da impossibilidade originária do contrato promessa por falta de licença de utilização do imóvel (fundamento invocado pela executada).
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III – Fundamentação de facto:

Os factos que foram dados como provados na decisão proferida são os seguintes:
1.- Em 17/10/2000, entre o ora reclamante e a executada “EMP01..., Lda.”, foi celebrado por escrito particular o contrato promessa de compra e venda mediante o qual aquele prometeu comprar e esta prometeu vender, livre de quaisquer ónus ou encargos, “um apartamento tipo ... no ... andar do Bloco ..., pela quantia de Esc. 13.000.000$00 (treze milhões de escudos), da planta exibida ao segundo outorgante no ato de celebração deste contrato e que fica a fazer parte integrante do mesmo, e em completa conformidade com o projeto de licenciamento aprovado pela Câmara Municipal ....”, conforme documento n.º ... junto com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
2.- Nenhuma das assinaturas constantes desse contrato foi reconhecida presencialmente.
3.- O referido apartamento integrava-se no edifício então em construção pela executada “EMP01...”, situado na Urbanização ..., freguesia ..., concelho ..., e corresponde atualmente, depois de constituída a respetiva propriedade horizontal, à fração autónoma designada pela letra ..., do prédio com a descrita morada, com o nº de polícia ...15, no ..., do Bloco ..., inscrita na respetiva matriz sob o art. ...53... e descrita na competente Conservatória sob o nº ...11..., com garagem assinalada com o nº 8 na cave, conforme documentos n.ºs ... e ... juntos com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
4. Do aludido contrato promessa resultava ainda acordado e como obrigação das partes:
a) O pagamento a título de sinal de Esc 800.000$00 (oitocentos mil escudos) nesse ato e a quantia de Esc. 1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos) até ao início de dezembro de 2000, sendo o remanescente do preço pago com a realização da escritura pública – cfr. cláusula 2ª do documento n.º ... junto com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
b) A entrega das chaves seria concretizada no dia de outorga da escritura pública, prevista para dezembro de 2001 – cfr. cláusula 3ª do documento n.º ... junto com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
c) A promitente vendedora (aqui executada) deveria marcar a respetiva escritura pública, avisando o promitente comprador (reclamante) com dez dias de antecedência, devendo realizar-se no prazo de quinze dias contados da obtenção da licença de habitabilidade – cfr. cláusula 4ª do documento n.º ... junto com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
5.- O reclamante formalizou o invocado contrato promessa ainda no estado de solteiro no intuito de se casar, como veio a suceder em junho de 2002, constituir família e fixar a sua residência no imóvel em causa, pelo que, sob a promessa inúmeras vezes reiterada pela executada que estaria para breve a possibilidade de realização da escritura pública, e para que avançassem as obras na “sua” fração, realizou os seguintes pagamento como sinal e sucessivos reforços: a) 800.000$00 Esc (3.990,38 €) no ato de formalização do aludido contrato promessa – conforme documento n.º ... junto com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; b) 1.500.000$00 (7.481,96 €) em 05/12/2000, mediante a entrega do cheque nº ...07, sacado sobre a Banco 2..., SA, emitido nessa data a favor da executada “EMP01...”, conforme documento n.º ... junto com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; c) 5.000,00 € em 21/05/2002 conforme “Declaração” emitida e assinada pela executada “EMP01...”, conforme documento n.º ... junto com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; d) 1.000,00 € em 26/01/2004, mediante a entrega do cheque nº ...60, sacado sobre o Banco 3..., SA, emitido nessa data a favor da executada “EMP01...”, conforme documento n.º ... junto com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; e) 2.500,00 € em 21/05/2004, mediante a entrega do cheque nº ...64, sacado sobre o Banco 3..., SA, emitido nessa data a favor da executada “EMP01...”, conforme documento n.º ... junto com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos; f) 1.814,70 € em 26/07/2004, mediante a entrega de dois cheques dos montantes de 262,20 € e 1.552,50 €, ambos sacados sobre o Banco 3...,SA, respetivamente n.os ...65 e ...66, emitidos nessa data a favor de DD por indicação e dificuldades económicas da executada “EMP01...”, para que fosse dessa forma paga e instalada a cozinha diretamente por aquele fornecedor, de acordo com o respetivo caderno de encargos, conforme documentos n.ºs ... e ...0 juntos com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
5. Realizou assim, o reclamante, nas datas apontadas, o pagamento global à executada “EMP01...” da quantia de € 21.787,04 (vinte e um mil setecentos e oitenta e sete euros e quatro cêntimos) a título de sinal e sucessivos reforços de antecipação do pagamento do preço.
6. O reclamante reside nessa habitação desde ../../2004 até à presente data,
7.- … aí passaram a dormir, tomar refeições, receber visitas de familiares e amigos, e onde têm vindo a criar o seu filho, nascido em ../../2006, que não conhece outra “casa” ou residência.
8.- … sempre a usaram e fruíram até ao presente de forma ininterrupta, exclusiva, como se fossem seus proprietários e legítimos possuidores, de boa-fé e à vista de toda a gente, designadamente dos seus vizinhos.
9.- Ao longo de todos estes anos, é o reclamante que tem suportado as despesas inerentes à fração autónoma aqui em causa, tais como água, luz e comunicações, e a morada da mesma corresponde ao seu domicílio fiscal, e que é indicada junto de diversas instituições como a respetiva Junta de Freguesia, conforme documentos n.ºs ...1 a ...0 juntos com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
10.- Os factos e a situação descrita vem mantendo-se há mais de 10, 15 e 20 anos, como referido, perante as reiteradas promessas da executada e seu representante que vão ser removidos os obstáculos camarários tendo em vista a formalização da escritura pública, o que nunca sucedeu.
11.- Na sequência da diligência de penhora da fração autónoma aqui em causa por parte da Sra. AE, o reclamante foi constituído fiel depositário da identificada fração autónoma ..., conforme documento n.º ...1 junto com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
12.- Na sequência dessa penhora, o reclamante respondeu à Sra. AE por email datado de 13/07/2022 esclarecendo da existência do remanescente do preço acordado pela compra da fração autónoma do valor de € 43.056,69 (64.843,73 – 21.787,04), apenas devido no ato da celebração da escritura pública definitiva, conforme documento n.º ...2 junto com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
13.- Por comunicações registadas com aviso de receção, enviadas a 16/02/2023, para a executada “EMP01...” e para o seu legal representante, e recebidas a 27/02/2023, o reclamante, além do mais, transmitiu o seguinte: “Ora, decorreram mais de 20 anos desde a outorga do citado contrato promessa e continua igual a descrita situação, sendo intolerável e injustificável que não tenha sido obtida por V. Exas. a referida licença e marcada, como lhes compete a competente escritura pública, pelo que, se no prazo máximo de 10 (dez) dias, tal não ocorrer, ou não apresentarem justificação plausível, considero definitivamente incumprido tal contrato, por culpa exclusiva de V. Exas., reservando-me a possibilidade de exercer, ainda que judicialmente, os direitos que desse facto, inequivocamente, me assistem.”, conforme documentos n.ºs ...3 a ...6 juntos com a reclamação de créditos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
14.- Recebidas tais comunicações e decorridos os dez dias de prazo fixado pelo reclamante, prazo esse razoável atentos os factos expostos, não procedeu a executada à marcação da competente escritura pública, ou sequer apresentou qualquer resposta ou justificação para tanto.
15.- A executada/reclamada encontra-se a diligenciar junto da CM... pela obtenção da licença de habitabilidade.
16. - Sucede que, até à presente data, o referido imóvel ainda não possui a necessária licença de habitabilidade”.
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Fez-se ainda menção que “não se provaram os demais fatos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes”.

IV - Do objeto do recurso:

1. A credora reclamante Banco 1... veio arguir a nulidade da sentença por não ter sido apreciada a exceção de prescrição que foi invocada na sua contestação, nos termos do art.º 615º, n.º1, alínea d), do C. P. Civil.
É este o único fundamento do recurso de apelação que interpôs.
Já a executada promitente vendedora invoca também este fundamento – a prescrição do crédito – a título subsidiário, tendo invocado tal exceção na sua contestação.
A sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
A credora reclamante havia invocado na sua oposição à reclamação de créditos apresentada por CC a prescrição do crédito deste reclamante, alegando que existia um prazo para cumprimento do contrato promessa e que este prazo se encontrava esgotado, sem que o aquele credor tivesse exercido o seu direito, não se verificando circunstâncias interruptivas ou suspensivas do prazo prescricional ordinário de 20 anos.
Sobre esta exceção, apesar da mesma estar expressamente mencionada no relatório da decisão, na sua fundamentação jurídica nada decidiu o tribunal a quo. Não existe uma única menção à exceção que foi invocada e, assim, o juiz deixou de pronunciar-se sobre questão que era também objeto do litígio e que não foi apreciada.
Note-se que esta exceção foi também invocada pela executada, embora esta não tenha arguido a nulidade da sentença proferida.
Verifica-se pois a nulidade apontada à sentença proferida o que, nos termos do art.º 665.º do C. P. Civil, será declarado mas, ainda assim, obriga o Tribunal de recurso a conhecer do objeto da apelação, apreciando-se se está ou não extinto por prescrição o crédito invocado pelo credor reclamante CC (sendo que a nulidade poderia ter sido suprida antes da subida do recurso se o despacho proferido que alegadamente a apreciou não tivesse natureza meramente tabelar e tivesse sido verificado que a invocação desta nulidade, que existia efetivamente, era o único fundamento do recurso interposto por esta credora reclamante).
Vejamos se o crédito em causa está prescrito.
A prescrição é um instituto endereçado fundamentalmente à realização de objetivos de conveniência ou oportunidade: visa satisfazer a necessidade social de segurança jurídica e certeza dos direitos, e, assim, proteger o interesse do sujeito passivo. Porém, essa proteção é dispensada atendendo também ao desinteresse, à inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo - cfr. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, pág. 375 e segs..
O prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido - art.º 306.º, n.º 1, 1.º parágrafo, do C. Civil - e interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente, sendo equiparado à citação ou notificação, para efeitos do art.º 323.º do C. Civil, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do ato àquele contra quem o direito pode ser exercido n.ºs 1 e 4 do citado artigo.
Estabelece ainda o art.º 325.º do C. Civil que a prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito efetuado perante o respetivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido.
A prescrição, sendo uma exceção perentória, não pode ser conhecida oficiosamente e tem, por isso, de ser invocada pelo beneficiário para que produza efeitos (cfr. art.º 303.º do C. Civil).
Ao estabelecer prazos de prescrição para o exercício de direitos, o legislador entendeu que, não tendo o titular do direito respetivo exercido o seu direito em devido tempo, o obrigado tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer meio, ao exercício do referido direito. Não quer isto dizer que o direito não exista, simplesmente não pode ser exercido pelo seu titular, desde que seja invocada a relevância do decurso do prazo.
Segundo Vaz Serra in Prescrição extintiva e Caducidade, Estudos de Direito Civil Português, de Direito Comparado e de Política Legislativa, Lisboa, 1961, Volume II, página 514 e 515. “(…) na prescrição intervêm também razões objetivas de segurança jurídica, pois a prescrição é também inspirada no interesse social da paz jurídica; mas tais razões não são exclusivas, aparecendo, antes temperadas pela ideia da negligência do titular e pela disponibilidade da outra parte quanto a valer-se da prescrição.
Entende este autor que é assim que a prescrição pode suspender-se e interromper-se; que o juiz não pode conhecer oficiosamente dela; que a prescrição não extingue o direito, dando apenas à outra parte a faculdade de recusar a prestação, e podendo, portanto, ela renunciar à exceção da prescrição, com o que o direito prescrito recupera o seu pleno vigor, e, pagando o devedor a dívida prescrita, cumpre a obrigação.
Acrescenta, ainda, que todas estas particularidades do regime da prescrição denunciam a ideia que ela existe sobretudo no interesse privado, supondo a negligência do titular do direito prescrito.
O prazo ordinário da prescrição é de vinte anos (arts.º 309,º e 311.º, nº 1 do C. Civil), conhecendo a lei prazos inferiores que aqui não estão em causa.
As partes estão de acordo que o prazo de prescrição aplicável à situação em apreço é o de 20 anos, entendendo a Banco 1... que o direito do promitente comprador está prescrito porque existia uma data limite para a celebração do contrato prometido e, desde essa data (dezembro de 2021), haviam já decorrido mais de 20 anos quando foi apresentada a reclamação e efetuada a sua citação.
A executada limita-se a dizer que o credor não tem qualquer crédito, mas que este, a existir, estaria prescrito, porque decorreram mais de 20 anos, sem explicitar que data está a considerar (sendo esta invocação muito pouco coerente com a sua alegação de não se ter sequer iniciado o prazo estabelecido para o cumprimento do contrato).
Está efetivamente acordado que a escritura pública relativa ao contrato prometido estava prevista para dezembro de 2001 e ainda que a escritura pública seria celebrada no dia e hora que a promitente vendedora indicasse ao promitente comprador com a antecedência de dez dias e que seria outorgada no prazo de quinze dias contados da obtenção da licença de habitabilidade do prédio (cláusulas 3ª e 4ª, do acordo escrito considerado reproduzido na sentença proferida).
As partes ora se referem a licença de habitabilidade ora a de utilização, estando no acordo escrito referida a licença de habitabilidade.
A primeira atesta o fim a que se destina o imóvel e para o qual pode ser utilizado, sendo emitida pela Câmara Municipal da situação do imóvel.
A segunda, emitida pela mesma entidade, atesta que um determinado imóvel está habitável porque cumpre as exigências legais para tal.
As questões suscitadas pela recorrente executada reportam-se à licença de utilização do imóvel.
Provado está apenas que a executada está a diligenciar pela obtenção da licença de habitabilidade e que esta ainda não existe.
Ou seja, sem essa licença de habitabilidade, não podia o credor reclamante promitente vendedor exigir o cumprimento do contrato promessa com a celebração do contrato prometido. Poderia provocar o seu incumprimento, mas, mantendo interesse no cumprimento do contrato, pois que residia no imóvel, não faria sentido que o fizesse.  
O que refere o acordo escrito é que a realização da escritura pública estava “prevista para dezembro de 2021”, mas que o prazo para a sua marcação, de quinze dias, estava dependente da obtenção da licença de habitabilidade que ainda não existe.
A prescrição visa, como se disse, sancionar a inércia do titular em exercer o seu direito. O credor reclamante não podia exercer o seu direito para obter o cumprimento do contrato.
Não podendo exercê-lo, não pode considerar-se prescrito o seu direito.
É o que resulta da jurisprudência do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/05/2017, in, do Juiz Desembargador Mata Ribeiro, proc. 1123/09.6TBOLH-G.EI, a contrario, pois que não está em causa, nestes autos, uma obrigação pura ou com prazo estabelecido em benefício do credor.
Não estava, pois, prescrito o direito do credor reclamante CC, sendo, por isso, improcedente a apelação apresentada pelo credor reclamante Banco 1... e este fundamento de recurso da executada promitente vendedora.    
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2 - Da inexistência de fundamento para a resolução do contrato promessa.

Entendendo a recorrente executada que inexistia fundamento para que o promitente comprador resolvesse o contrato promessa celebrado, questiona a existência do crédito reclamado e que corresponde à devolução do sinal em dobro.
Como se sabe, nos contratos em geral, quando o devedor não cumpre culposa e definitivamente a obrigação, o credor pode exigir uma indemnização correspondente aos danos causados - arts.º 798.º e 801.º do C. Civil - e pedir a resolução do contrato - art.º 801.º, n.º 2, do C. Civil.
Diversamente, de acordo com o art.º 804.º, n.º 1, a simples mora apenas constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, e como a mora não dá origem à resolução do contrato, o devedor continua vinculado à prestação devida, apesar da mora.
A falta de cumprimento do contrato promessa pelo promitente vendedor consiste na não realização do contrato prometido, com carácter definitivo, assim se distinguindo da simples mora, ou seja, do atraso nesse cumprimento.
 Essa falta pode revelar-se por diversos meios:
a) a impossibilidade da prestação, por destruição da coisa ou pela sua alienação a terceiro sem qualquer reserva (art.º 801.º do C. Civil);
b) a perda do interesse do credor na prestação, em consequência da mora do devedor ou a sua inexecução dentro do prazo razoável que lhe for fixado por aquele (art.º 808.º do mesmo diploma legal);
c) o decurso do prazo fixado contratualmente como absoluto ou improrrogável, o que equivale à perda de interesse;
d) devendo ainda ter-se como causa de incumprimento definitivo a recusa perentória do devedor em cumprir a prestação, apesar de não estar diretamente prevista na lei, pois que, perante a mesma, quer a interpelação, quer a fixação de prazo suplementar se revelariam atos inúteis - neste sentido pode ver-se Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume II, pág. 91, Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, p. 112 e Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, pág. 248.
O caso dos autos poder-se-á enquadrar, tal como as partes configuram a presente ação, nas hipóteses referidas em b), no caso, de haver perda do interesse do credor na prestação, em consequência da mora do devedor ou a sua inexecução dentro do prazo razoável que lhe for fixado por aquele (art.º 808.º do mesmo diploma legal), ou em d) se a promitente vendedora tiver assumido a sua recusa em cumprir o contrato.
Alega a recorrente executada que não assistia ao credor reclamante o direito de resolver o contrato promessa celebrado, pois que não se verificava uma situação de incumprimento definitivo do contrato. Assim, ao resolver sem causa o contrato perdeu o direito à restituição das quantias entregues a título de sinal.
Alega que “só a partir do momento em que a sociedade promitente-vendedora ficasse na situação de poder cumprir, in casu, quando for emitida ou obtida a necessária licença de utilização, é que a promitente-compradora ficaria investida na posição de poder exigir o cumprimento e, concomitantemente, com a faculdade/poder de efetuar a interpelação admonitória. Antes desse momento, pelo menos por este motivo, não o pode fazer”.
Sabemos que a licença de habitabilidade ainda não foi emitida e que o prazo definido para a celebração da escritura pública, de quinze dias, se iniciava com a emissão da licença de habitabilidade.
Pareceria assim que a executada não estaria ainda constituída em mora e que, como tal, não haveria incumprimento que pudesse legitimar a resolução do contrato celebrado.
A situação dos autos não tem, porém, estes contornos simples descritos pela executada.
O acordo foi celebrado por escrito em outubro de 2000 e, portanto, há mais de 23 anos quando foi realizada a audiência de julgamento.
Se é certo que a escritura pública seria marcada no prazo de quinze dias após a emissão da licença de habitabilidade, estava também previsto que a entrega das chaves seria concretizada na data da escritura pública, referindo-se que esta estava prevista para dezembro de 2001.
O credor reclamante reside nessa fração desde ../../2004, com o seu agregado familiar, perante as reiteradas promessas de serem removidos os obstáculos camarários tendo em vista a formalização da escritura pública, o que nunca aconteceu.
Efetuada a penhora dos autos, o reclamante comunicou à agente de execução o valor que havia já pago ao abrigo do acordo e o que faltava pagar, em 13/07/2022.
Em fevereiro do ano seguinte fixou à executada um prazo de 10 dias para obter a licença e marcar a escritura pública ou apresentar justificação plausível, sob pena de considerar incumprido o acordo.
Está ainda dado como provado que, no prazo concedido, não foi marcada a escritura pública, mas também não foi dada qualquer resposta ou justificação pela executada.
Sabemos também que a executada se encontra a diligenciar pela obtenção da licença de habitabilidade mas que esta continuava sem existir à data da realização do julgamento.
A questão que se coloca, perante o recurso interposto, é a de saber até quando entenderia a executada que era exigível ao reclamante que se mantivesse nesta situação, considerando que o objeto da promessa era, precisamente, a fração habitacional onde reside e que constitui assim a sua casa de morada de família e que se encontra penhorada para ser vendida em processo executivo.
É certo que a penhora do bem prometido vender não produz, por si só, a impossibilidade da obrigação de contratar” Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2017, da Juiz Conselheira Maria da Graça Trigo, proc. 280/13.1TBCDN.C1.S1, in www.dgsi.pt.
Porém, no caso dos autos, a cronologia dos acontecimentos e, sobretudo, as promessas não cumpridas da executada em remover os obstáculos que têm impedido a obtenção da licença de habitabilidade (assim foi dado como provado, sem que esteja colocado em causa pelas partes) e, consequentemente, a celebração do contrato definitivo de compra e venda, ao longo de cerca de 20 anos, permitem considerar que, perante a interpelação efetuada em fevereiro de 2023 para dar explicações plausíveis sobre a situação e, sobretudo, a ausência de qualquer resposta, se considera definitivamente incumprida a sua obrigação.
Note-se que a interpelação dirigida à executada não visou apenas que ela marcasse a escritura pública que, sabemos todos depois de realizada a audiência, não podia marcar porque inexistia a licença de habitabilidade imposta como necessária à sua realização, mas que explicasse a situação existente, há cerca de 20 anos, com promessas reiteradas de resolução, sem qualquer resultado.
Note-se que a obrigação da executada cumpria-se com a celebração do contrato definitivo, sendo que estava acordado que a compra e venda se faria “livre de quaisquer ónus ou encargos”.
Como resulta destes autos, para além da constituição da hipoteca efetuada a favor do credor reclamante Banco 1..., sobre o imóvel prometido vender recai a penhora realizada nos autos de execução, sendo, por isso, claro que a executada não estava em condições de cumprir o contrato nos termos acordados, existisse ou não licença de habitabilidade ou de utilização do imóvel.
O contrato promessa celebrado considera-se assim definitivamente incumprido, perante a interpelação feita, sem qualquer resposta da executada que parece entender não ter de dar qualquer explicação, apesar de o contrato promessa existir há mais de 23 anos, sendo, à data, previsível que a escritura pública se faria em 2001, estando o promitente adquirente residir na fração do imóvel há cerca de 19 anos, que foi objeto de penhora, à qual não foi deduzida oposição, e que, decorridos todos estes anos, ainda não tem licença de habitabilidade.
A conduta imputável à executada é toda esta inércia que se prolonga, pelo menos, desde ../../2001, data em que era previsível, à data da celebração do acordo escrito, que seria realizado o contrato definitivo.
Existe assim situação de incumprimento que justifica a resolução do contrato promessa e, assim, a restituição em dobro da quantia entregue a título de sinal.
Foi este o crédito que foi – e bem - reconhecido ao credor reclamante CC, sendo assim improcedente a apelação apresentada quando considera que, ao resolver indevidamente o contrato, perdeu o promitente comprador o direito de restituição da quantia entregue a título de sinal.
Quanto ao direito de retenção que foi reconhecido, não são aduzidos argumentos que coloquem em causa a sentença proferida, limitando-se a recorrente executada a afirmar a sua inexistência por inexistir o crédito reclamado.    
Existindo o crédito reclamado, este beneficia da garantia real que lhe foi reconhecida, nos termos definidos na sentença recorrida que, aqui, em sede de recurso, não foram colocados em causa.

3 – Argumenta ainda a executada recorrente, a título subsidiário, que a inexistência de licença de utilização implica que se reconheça a nulidade do contrato promessa decorrente da impossibilidade objetiva e originária da prestação, sendo esta nulidade de conhecimento oficioso, tendo a mesma sido invocada pelo credor reclamante Banco 1....
Alega ainda que o contrato foi resolvido antes da emissão da licença e que só a obtenção desta determinaria a validade do contrato, ainda que fosse emitida em data posterior.
A sentença não se reporta nos factos provados à inexistência desta licença de utilização.
Ainda que se aceite que não existe a licença de utilização, esta alegação é totalmente destituída de fundamento.
Em primeiro lugar porque o art.º 410.º do C. P. Civil expressamente prevê a hipótese de a promessa ser relativa à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício ou fração autónoma dele, em construção, exigindo apenas que o documento escrito que formaliza o negócio contenha a certificação pelo notário da licença de construção (n.º ... da norma citada).
Ou seja, ao admitir a lei que a promessa verse sobre imóvel ou fração em construção, expressamente prevê que possa ser celebrado sem que exista qualquer licença de utilização.
Não pode assim ser nulo o contrato promessa celebrado nos exatos termos em que a lei prevê a sua celebração.
A existência dessa licença era, à data, apenas, condição essencial para a execução específica do contrato promessa - art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 281/99, de 26 de julho (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/10/2023, do Juiz Desembargador Rui Moreira, proc. 18576/22.0T8PRT.P1, in www.dgsi.pt).
Em segundo lugar porque se nulidade existisse não poderia ser sanada (art.º 288.º do C. Civil, a contrario). Ou seja, se fosse ilegal a celebração de um contrato promessa sobre um imóvel por inexistência de licença de utilização, a obtenção desta não supriria a nulidade cometida que, assim, seria insuprível.
Como se refere no Acórdão deste Tribunal da Relação de 03/05/2018, da Juiz Desembargadora Sandra Melo, aqui 2.ª Adjunta, proc. 447/13.2TBMC.G1, in www.dgsi.pt, “a inexistência de licença de utilização do prédio urbano tem dois efeitos distintos no âmbito do contrato promessa de prédios urbanos ou suas frações autónomas, previstos em normas com diferentes campos de aplicação: uma estipulada no artigo 410º nº 3 Código Civil, originando uma nulidade mista, como se viu, outra dirigida à possibilidade do tribunal proceder à transmissão da propriedade dos prédios.
A primeira determina a nulidade (mista) do negócio, podendo afastar a sua eficácia (apenas determinando a aplicação do artigo 289º do Código Civil), a segunda, se não for originariamente insanável, pode levar à aplicação do regime do incumprimento do contrato (artigos 401º, 790º, nº 1 e 801 nº 1 do Código Civil).
A primeira é ordenada no nº 3 do artigo 410º do Código Civil, mediante a exigência de “certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respetiva licença de utilização ou de construção”. A sua omissão pelo contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode ser invocada quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.
Não se verifica qualquer facto que possa imputar a falta de licença aos Autores.
A mesma não é de conhecimento oficioso.
Não pode por este motivo considerar-se nulo o contrato promessa relativamente ao promitente vendedor (…)”.
Vista que foi já a primeira consequência desta omissão, há que analisar a segunda.
O artigo 1º do Decreto-Lei nº 281/99, na redação dada pelo DL n.º 116/2008, de 04 de Julho dispõe: Não podem ser realizados atos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas frações autónomas sem que se faça prova da existência da correspondente autorização de utilização, perante a entidade que celebrar a escritura ou autenticar o documento particular.
Esta norma tem duas exceções:
-a licença de autorização de utilização ou de construção é dispensada, no regime da compra e venda executiva, na especificidade de venda por negociação particular, como dispõe o artigo 883º nº 6 do Código de Processo Civil (onerando-se o adquirente com a sua legalização se quiser efetuar futura transmissão, vigorando então a obrigatoriedade da apresentação dessa licença);
- aceita-se a sua omissão para os prédios cuja construção é anterior à entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.383, de 07/08/1951, (RGEU, vigente em regra no território desde 13 de Agosto de 1951), que entretanto não tenham sido reconstruídos, visto que foi este que instituiu a exigência dessa apresentação.
(…)
Esta norma visa proteger um interesse público da maior importância: não só o combate às construções clandestinas, porquanto as mesmas põem em causa a segurança das pessoas, não só dos titulares dos prédios (referindo-se, por com interesse neste caso, as instalações elétricas não verificadas por entidade para tanto competente, passiveis de causar fogos que a todos atingem), bem como todos os demais interesses coletivos que estão subjacentes ao direito do urbanismo.
Este ramo do direito público regula as atividades de ocupação, uso e transformação dos solos, com o objetivo de, em primeira linha assegurar salubridade e segurança das edificações e dos aglomerados urbanos (não só para quem nelas habita, mas também para segurança para todas as pessoas em geral), assim como o ordenamento de todo o solo, com vista a contribuir para o melhor aproveitamento do território.
Assim, “ainda que seja válido o contrato promessa de compra e venda, se não vierem a reunir-se os legais pressupostos para a realização do contrato definitivo (por não se ter, entretanto, obtido a indispensável licença ou alvará) verificar-se-á a impossibilidade da celebração desse contrato último e, forçosamente, a impossibilidade da respetiva execução específica” como tão bem se expressou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10/07/2010 no processo 1360/08.0TBFAF.G1.
Isto porque, como se afirma neste aresto “já que, conforme estabelece o art. 830, nº 1, do C.C., para se obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial faltosa é necessário que a natureza da obrigação assumida pela promessa não seja incompatível com a substituição da declaração negocial”.
E, essencialmente, porque está o tribunal obrigado ao cumprimento da lei, não pode praticar atos proibidos pela mesma: impedindo esta a transmissão de prédios urbanos sem que se demonstre a existência dessa licença não pode, nem deve ser, pelo tribunal proferida decisão que efetue tal transmissão sem que se verifique o requisito imposto pela lei para que esta seja efetuada”.
Daqui resulta que a inexistência da licença de utilização não interfere na validade do contrato promessa, salvo se se demonstrasse que a obtenção daquela era, à data da celebração do acordo, impossível de se obter, facto que não só não está alegado como está alegado o facto contrário, pela executada, ou seja, que estaria prestes a ser obtida.
Improcedem assim a totalidade dos fundamentos da apelação da recorrente executada.
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Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663º, n.º 7, do C. P. Civil):

1 – É nula a sentença em que o Juiz não se pronuncia sobre a exceção de prescrição invocada na contestação.
2 – Não obstante o contrato promessa ter sido celebrado em 2000, não está prescrito o direito o promitente comprador exigir a devolução do sinal em dobro se o acordo estabelecia que a escritura pública do contrato prometido se realizaria no prazo de quinze após a emissão da licença de habitabilidade e esta ainda não existe.
3 – Existe incumprimento do contrato promessa se, volvidos mais de 23 anos desde que foi celebrado, estando o promitente adquirente a residir no imóvel desde 2004, a promitente vendedora fez reiteradas promessas sobre a remoção dos obstáculos que permitiam a celebração da escritura pública, sem resultado, encontrando-se a fração prometida vender hipotecada e penhorada, sem qualquer reação da executada, não podendo, assim, ser vendida livre de ónus ou encargos como acordado se, interpelada para esclarecer a situação existente, nada disse, dentro do prazo que lhe foi fixado.
3 – A inexistência de licença de utilização relativa ao imóvel prometido vender não torna nulo o contrato promessa celebrado por violação do art.º 280.º do C. Civil.

IV – DECISÃO:

Pelo exposto, acordam as Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:
1 – procedente a arguição de nulidade da sentença efetuada pela reclamante Banco 1... no que se reporta ao conhecimento da exceção de prescrição e, conhecendo desta exceção, julga-la improcedente sendo, assim, improcedente a apelação desta credora reclamante;
2 – totalmente improcedente o recurso de apelação apresentado pela executada EMP01... Ldª, mantendo-se a sentença proferida.
As custas do recurso apresentado pela credora Banco 1... são da sua responsabilidade, porque vencida quanto ao fundamento do recurso, sendo apenas a esta que aproveitou a apreciação da questão da nulidade, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil.
As custas do recurso apresentado pela executada são da sua responsabilidade nos termos da norma citada.
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Guimarães, 14 de março de 2024
(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)