Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
644/19.7JAVRL-A.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: RECOLHA DE SALIVA PARA IDENTIFICAÇÃO DE ADN
RECUSA DE SUJEIÇÃO A EXAME PARA RECOLHA DE SALIVA
ZARAGATOA BUCAL
MÉTODO PROIBIDO DE PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Não constitui prova proibida a recolha de saliva para identificação de ADN, através de zaragatoa bucal, mesmo contra a vontade do visado, ordenada por autoridade judicial em conformidade com o disposto no Artº 172º, nº 1, do C.P.Penal.

II – Efetivamente, a recolha coactiva de saliva através de zaragatoa bucal, e posterior utilização do ADN, nos aludidos termos, consubstancia um meio adequado para a descoberta da verdade material, e prossecução da finalidade da realização da justiça, sendo certo que, tratando-se de um método minimamente invasivo, e inexistindo outro menos restritivo para alcançar o objectivo da comparação com os vestígios deixados no interior do veículo, não se afigura excessivo nem desproporcional para tentar obter a identidade do autor dos factos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Inquérito nº 644/19...., que corre termos na Procuradoria do Juízo Local Criminal ..., Sec. Inquéritos, da Procuradoria da República da Comarca ..., em que é arguido AA, solteiro, nascido em .../.../1980, filho de BB e de CC, residente na Rua ..., Bl A, ..., ..., o Exmo. Procurador da República, no dia 11/01/2023, exarou nos autos a promoção cuja cópia se mostra junta a fls. 118 /118 Vº, que ora se transcreve [1], na parte que importa relevar:
“O arguido é suspeito de, no dia 24-1-2019, na Rua ..., ..., ter furtado o veículo automóvel de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-..-CR, e de, no período compreendido entre 24-1-2019 e 12-12-2019 ter colocado duas matrículas no citado veículo com os dizeres “..-..-GP”.
Tais factos consubstanciam a prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal e de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, al. a), do Código Penal.
Num dos vestígios recolhidos no interior do citado veículo de marca ..., modelo ..., de cor ... (apreendido em 12-12-2019), nomeadamente numa luva, obteve-se um perfil de ADN de mistura de mais de um indivíduo e o exame pericial concluiu que não pode ser excluído AA (fls. 122, 123 e 150) – o que significa que é oitenta e dois mil novecentos e cinquenta e dois triliões vezes mais provável que o arguido seja um dos contribuidores da mistura do que um outro indivíduo tirado ao acaso da população (fls. 183) – sendo que o exame pericial teve em conta o vestígio de ADN recolhido na luva encontrada no citado veículo por comparação do ADN recolhido ao arguido no âmbito de outro inquérito, nomeadamente o inquérito nº 134/18.....
Pretende-se, assim, recolher ao arguido saliva através de zaragatoa para comparar a amostra de ADN do arguido recolhida através de zaragatoa com o vestígio de ADN encontrado na citada luva.
O arguido opôs-se à recolha de saliva através de zaragatoa bucal (cfr. fls. 294).
*
Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Julho de 2013 (Processo nº 1728/12.8JAPRT.P1, relatado por Joaquim Gomes, disponível in www.dgsi.pt) “As intervenções corporais como modo de obtenção de prova, como seja a recolha de saliva através de zaragatoa bucal, podem ser obtidas por via compulsiva, para determinação do perfil de ADN e posterior comparação com vestígios recolhidos no local do crime […] Mostram-se aceitáveis e legitimadas se estiverem legalmente previstas (i), perseguirem uma finalidade legítima (ii), mostrarem-se proporcionais entre a restrição dos direito fundamentais em causa (integridade pessoal; intimidade, autodeterminação informativa) e os fins perseguidos (iii), revelando-se idóneas (a), necessárias (b) e na justa medida (c) […] Para o efeito essas intervenções corporais devem ser judicialmente determinadas (iv) e estar devidamente motivadas (v),. não sendo admissíveis quando corresponderem, na sua execução, a tratamentos desumanos ou degradantes (vi), optando-se, neste casos e em sua substituição, por qualquer outra mostra de fluído orgânico que possa ser devidamente recolhida para determinação do ADN” (...).
Pelo exposto, atendendo a que existe uma suspeita fundada do arguido ter praticado um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal e um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, al. a), do Código Penal, e foi encontrado vestígio biológico na luva que se encontrava no interior do referido veículo promovo se determine a recolha de saliva do arguido através de zaragatoa bucal, com recurso a via compulsiva e se determine a realização de exame comparativo com o vestígio biológico (hemático) recolhido na luva nos termos dos artigos 172.º, n.º 1, 154, nº 2, ambos do CPP e art. 8.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2008 de 12 de Fevereiro.
*
Remeta os autos à Meritíssima Juíza de Instrução Criminal para apreciação.
(...)”.
*
2. Com vista à apreciação dessa pretensão do Ministério Público, foram os autos remetidos ao Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., tendo então a Mmª JIC proferido o despacho cuja cópia consta de fls. 119/120, datado de 16/01/2023, com o seguinte teor (transcrição):
“Na sequência de o arguido AA se ter recusado a permitir que fosse recolhida zaragatoa bucal na sua saliva, o Ministério Público promoveu que se proferisse decisão em que se determinasse que o mesmo fosse sujeito a tal recolha.
Na esteira do já decidido pelo Tribunal Constitucional nos Acs. nºs155/07 e 228/07, entende-se que cabe ao juiz de instrução a decisão que autorize a recolha de vestígios biológicos no corpo do arguido contra a vontade deste, procedendo-se assim a uma interpretação conforme á Constituição da República Portuguesa (cfr. nº4 do artigo 32°) do inciso contido na parte final do n°1 do artigo 172° do Código de Processo Penal no que toca à definição da autoridade judiciária competente para o efeito.
Assim, cabe proferir a competente decisão.
Como já se disse, o arguido recusou-se a permitir que fosse recolhida zaragatoa bucal na sua saliva, sem adiantar qualquer motivo (cfr. fls.294).
Há que ter em consideração que o direito à inviolabilidade da integridade física, tutelado pelo n°1 do artigo 25° da Constituição da República Portuguesa, é um direito basilar de cada pessoa e é inerente à própria dignidade humana.
Por seu turno, a recolha de zaragatoa bucal tem como propósito a sua ulterior comparação com outros elementos de prova recolhidos nos autos e a sua posterior análise pericial, pelo que a recusa do arguido inviabilizará o recurso a tais meios de prova.
Sabendo-se que a investigação se destina a descobrir a verdade material dos factos e não a incriminar os arguidos, mal se percebe que o arguido inviabilize, na prática, a possibilidade de comparar esse vestígio biológico com outros meios de prova (designadamente vestígios hemáticos colhidos no local), já que tal poderá levar à conclusão de que o mesmo não é responsável pelos factos em apreço nestes autos.
Por outro lado, como é sabido, o corpo do arguido é, em si mesmo, um meio de prova (cfr. o dever imposto pela alínea d, do nº3 do artigo 61° do Código de Processo Penal), pelo que, sobre aquele, impende a obrigação de se sujeitar às diligências de prova previstas na lei.
Acresce que, como decorre da experiência comum, a intromissão na integridade física do arguido decorrente da recolha de vestígios biológicos no corpo do arguido tem um cariz pouco relevante, dir-se-ia mesmo insignificante.
Recorde-se, por fim, que estão em causa factos que serão subsumíveis a um crime de crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal e a um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, al. a), do Código Penal e que, até ao momento, não foram inquiridas quaisquer testemunhas que tivessem presenciado os factos, antevendo-se, por isso, que o recurso a indicado meio de prova se revelará de extrema importância para efeitos da descoberta da verdade material.
Tendo em conta o valor em causa (o direito à inviolabilidade da integridade física) - e, concomitantemente, o carácter excepcional do recurso a este meio de prova - e confrontando-o com a reduzida expressão que o acto de recolha de zaragatoa bucal assume na pessoa do arguido e com o interesse que a diligência em causa possui no contexto dos autos para efeitos de prova, conclui-se que a recusa do arguido a que vimos aludindo não é legítima, tanto mais que carece de qualquer justificação de índole moral ou outra.
Ademais, a mesma não é sustentada em qualquer norma legal (antes pelo contrário, já que se trata de um dever que sobre si recai), sendo que a restrição na integridade física do arguido que a recolha dos referidos vestígios biológicos é, na estrita medida do necessário exigida para a defesa de outros interesses e valores (cfr. nº2 do artigo 18° da Constituição da República Portuguesa), designadamente a descoberta da verdade material e o interesse estadual na administração da Justiça, que, como se sabe, são pilares do Estado de Direito Democrático.
Resta assim, nos termos da parte final do nº1 do artigo 172 do Código de Processo Penal, autorizar que se proceda à recolha de zaragatoa bucal na saliva do arguido.
Pelo exposto, autorizo que se proceda à recolha de zaragatoa bucal na saliva do arguido.”.
*
3. Inconformado com esse despacho judicial, dele veio o arguido AA interpor o presente recurso, nos termos da peça processual constante de fls. 127 / 135 Vº, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):

I.
Vem o presente recurso interposto do, aliás douto, despacho que ordenou a recolha de amostras biológicas do arguido através do método de recolha através de zaragatoa bucal nos termos do artigo 10.º da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro.
II.
Ora, o meio de obtenção de prova proposto, como é consabido, constitui um método evasivo que pela sua própria natureza, com maior ou menor intensidade, sempre acaba por colidir com os direitos, liberdade e garantias constitucionalmente consagrados.
III.
A realização da recolha de amostras biológicas pelo método da zaragatoa bucal implica uma restrição ao direito à integridade pessoal, liberdade de atuação, direito à privacidade e direito de autodeterminação informacional, previstos nos artigos 25.º e 26.º, todos da Constituição da República Portuguesa [2].
IV.
E, por essa razão, defendemos que a realização do exame de recolha de amostras biológicas através do método de zaragatoa bucal contende com maior ou menor intensidade com os direitos, liberdade e garantias constitucionalmente conferidos e, no caso concreto, consubstancia uma intromissão na vida privada do agente – e, por conseguinte, não deveria a mesma ter sido decretada.

Mutatis mutandis,
V.
Constituindo uma inflexão relativamente aos preceitos dos artigos 25.º e 26.º da CRP e do artigo 18.º da CRP resulta que os direitos liberdades e garantias são passíveis de serem restringidos, contudo, tais limitações/restrições devem sempre respeitar os princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação.
VI.
O Mmª JIC no despacho em crise ter procedido à ponderação, considerando o caso concreto, quanto a necessidade da realização do exame enquanto diligência útil, relevante e necessária para a descoberta da verdade, em função das demais provas recolhidas ou a recolher futuramente.
VII.
Além da ponderação que sempre deveria ser levada a cabo, o Tribunal a quo deveria ter fundamentado os factos que pretende ver provados, indicando se este meio de obtenção de prova é a única forma de provar a (não) participação do arguido nos factos indiciados.
VIII.
Na situação em apreço o Tribunal a quo deveria ter referido se foram recolhidos vestígios biológicos no local da prática do crime, e procedido à sua descrição, fundamentando a necessidade de esses serem comprados com os vestígios biológicos do arguido.
IX.
Ao decidir como decidiu a douta decisão em mérito violou entre outras disposições o estabelecido nos artigos 25.º, 26.º e 32.º 8 todos do CRP, e os art.º 126.º n°s 1 e 2 alíneas a) e c) e n.º 3 do CPP e quando interpretada no sentido de considerar válida e, consequentemente suscetível de ulterior utilização e valoração, a prova obtida através da colheita efetuada quando o arguido manifeste a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita e ainda o estabelecido no artigo 172.º nº 1 do CPP.

SEM PRESCINDIR,
X.
A Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro regula a constituição e funcionamento da base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e investigação criminal, definindo os termos da identificação genética de pessoas.
XI.
Do artigo 8.º da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro resulta que se já se tiver procedido à recolha de amostra biológica do arguido, ainda que no âmbito de outro processo, pendente ou findo, não existe necessidade de se proceder a uma nova recolha.
XII.
Pois bem, o arguido, aqui Recorrente, é igualmente arguido no Proc. nº 134/18...., que corre termos no Juízo Central Criminal ... - Juiz ... e no Proc. nº 77/19.... que corre termos no Juízo Central Criminal ... - Juiz ....
XIII.
Ora, em ambos os mencionados processos e no decurso dos mencionados inquéritos foi o arguido sujeito a exame de recolha de amostras biológicas através do método de zaragatoa bucal constando tais amostras, por certo, da mencionada base de dados

MAS AINDA QUE ASSIM NÃO SEJA,

XIV.
E se constatasse que as amostras biológicas do arguido não se mostram inseridas nas bases de dados de perfis de ADN, nada impedia o titular do inquérito lançar mão do preceituado no artigo 421.º do CPC[3] por forma a aproveitar a prova recolhida no âmbito dos processos de inquérito ao cimo referenciados, sem necessidade de sujeição do arguido a um novo exame de recolha de amostras de material biológico.
XV.
Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou, entre outras, as normas contidas nos artigos 25.º, 26.º e 32.º 8 todos do CRP, o artigo 8° da CEDH, o artigo 12° da DUDH, os artigos 126.º n° s 1 e 2 alíneas a), c) e 3, bem como o artigo 172.º nº 1 ambos do CPP.

TERMOS EM QUE,
Concedendo provimento ao recurso agora interposto e revogando a douta decisão recorrida, farão Vossas Excelências a acostumada,
JUSTIÇA!”.
*
4. Na 1ª instância apresentou-se a responder o Ministério Público, nos termos constantes de fls. 140/151, pugnando pela improcedência do recurso, e pela manutenção, na íntegra, do despacho recorrido, terminando o Exmo. Procurador subscritor a sua peça processual com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
“1. Por decisão de 16-1-2023 foi autorizado que se procedesse à recolha de zaragatoa bucal na saliva do arguido.
2. Perante as conclusões do recurso que delimitam o objeto do mesmo, as questões a decidir respeitam a saber: I- Se o despacho recorrido é inválido por falta de fundamentação; II- Se o perfil de ADN do Arguido consta da base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal; III- Se ainda que as amostras biológicas do arguido não se mostram inseridas nas bases de dados de perfis de ADN se pode aproveitar a prova recolhida nos inquéritos nºs 134/18.... e 77/19.... nos termos do artigo 421º do CPC.
3. Relativamente à primeira questão, consideramos que o Tribunal a quo fundamentou devidamente a decisão.
4. De facto, citando o douto despacho recorrido “o arguido recusou-se a permitir que fosse recolhida zaragatoa bucal na sua saliva, sem adiantar qualquer motivo (cfr. fls.294) […] Recorde-se, por fim, que estão em causa factos que serão subsumíveis a um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal e a um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, al. a), do Código Penal e que, até ao momento, não foram inquiridas quaisquer testemunhas que tivessem presenciado os factos, antevendo-se, por isso, que o recurso a indicado meio de prova se revelará de extrema importância para efeitos da descoberta da verdade material. Tendo em conta o valor em causa (o direito à inviolabilidade da integridade física) - e, concomitantemente, o carácter excepcional do recurso a este meio de prova - e confrontando-o com a reduzida expressão que o acto de recolha de zaragatoa bucal assume na pessoa do arguido e com o interesse que a diligência em causa possui no contexto dos autos para efeitos de prova, conclui-se que a recusa do arguido a que vimos aludindo não é legítima, tanto mais que carece de qualquer justificação de índole moral ou outra”.
5. Acresce que como refere o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 1-3-2021 (processo nº 401/19.0PLLRS.L1-9, relatado por Filipa Costa Lourenço, disponível em www.dgsi.pt) “Ao contrário do regime recursivo em sede de sentença final, em que é permitido invocar a nulidade decorrente da falta de fundamentação  nos termos do disposto no artigo 379.º n.º 2 do Código Processo Penal, a eventual falta ou insuficiência de fundamentação de um despacho judicial, constituindo uma irregularidade, não é idóneo para ser invocado como fundamento de um recurso, antes devendo ser suscitada perante o tribunal que a praticou, sob pena de se considerar sanada nos termos do artigo 123.º do Código de Processo Penal”.
6. Não tendo o Arguido suscitado a invalidade do ato no prazo indicado no art. 123 nº 1 do Código de Processo Penal, requerendo que o despacho (e no seu entendimento) seja fundamentado, sempre teria ficado sanada a irregularidade, se houvesse, uma vez que esta não foi arguida nos termos legais.
7. De facto, o Arguido foi notificado do mencionado despacho no dia 30-1-2023 (cfr. fls. 313 e 320) e a ilustre mandatária do arguido foi notificada do referido despacho no dia 23 de janeiro de 2023 (cfr. fls. 312) e o Arguido não suscitou a invalidade do despacho no prazo do indicado no art. 123 nº 1 do Código de Processo Penal.
8. Sempre se dirá que investigam-se nestes autos a prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal e de um crime de falsificação ou contrafação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, por referência ao artigo 255.º, a), todos do Código Penal.
9. O arguido é suspeito de, no dia 24-1-2019, na Rua ..., ..., ter furtado o veículo automóvel de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-..-CR (Apenso A – NUIPC 18/19....) e de, no período compreendido entre 24-1-2019 e 12-12-2019 ter colocado duas matrículas no citado veículo com os dizeres “..-..-GP” (NUIPC 644/19....).
10. Num dos vestígios recolhidos no interior do citado veículo de marca ..., modelo ..., de cor ... (apreendido em 12-12-2019), nomeadamente numa luva, obteve-se um perfil de ADN de mistura de mais de um indivíduo e o exame pericial concluiu que não pode ser excluído AA (fls. 122, 123 e 150) – o que significa que é oitenta e dois mil novecentos e cinquenta e dois triliões vezes mais provável que o arguido seja um dos contribuidores da mistura do que um outro indivíduo tirado ao acaso da população (fls. 183) – sendo que o exame pericial teve em conta o vestígio de ADN recolhido na luva encontrada no citado veículo por comparação do ADN recolhido ao arguido no âmbito de outro inquérito, nomeadamente o inquérito nº 134/18.....
11. Porém, tal comparação não foi feita nos termos do artigo 8º, nº 7 da Lei nº 5/2008, de 12 de fevereiro pelo que, salvo melhor entendimento, entendemos que tal comparação não poderá ser valorada.
12. No tocante à segunda questão, em 28-3-2023, o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I. P. comunicou aos autos que não consta na base de dados de perfis de ADN qualquer perfil genético referente ao arguido AA (cfr. fls. 357).
13. Assim, constata-se que os citados processos nºs 134/18.... e 77/19.... não solicitaram a inserção do perfil de ADN do arguido no ficheiro da base de dados de ADN para fins de investigação civil e criminal destinado a guardar provisoriamente a informação relativa a perfis de arguidos em processo criminal nos termos do artigo 15º al. g) da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro.
14. Relativamente à terceira questão, a Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro regula no seu artigo 8º, nº 7, precisamente a situação em que já foi obtido perfil de ADN do arguido no âmbito de um processo e foi inserido tal perfil na base de dados de ADN (nomeadamente no ficheiro destinado a guardar provisoriamente a informação relativa a perfis de arguidos em processo criminal nos termos do artigo 15º al. g) da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro - cfr. artigo 8º, nº 7 da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro) e permite a comparação de tal perfil de ADN com o vestígio biológico recolhido no âmbito de outro processo, não havendo lugar a nova recolha de amostra de ADN ao arguido.
15. Trata-se de lei especial até relativamente ao disposto no artigo 156º, nº, 7 do CPP que dispõe que “Quando se tratar de análises de sangue ou de outras células corporais, os exames efectuados e as amostras recolhidas só podem ser utilizados no processo em curso ou em outro já instaurado, devendo ser destruídos, mediante despacho do juiz, logo que não sejam necessários”, não existindo qualquer lacuna.
16. Ou seja, não pode haver comparação do vestígio biológico recolhido num inquérito com o perfil de ADN de um arguido obtido no âmbito de outro inquérito se esse perfil de ADN não foi inserido na base de dados de perfis de ADN para fins de investigação criminal nomeadamente no ficheiro destinado a guardar provisoriamente a informação relativa a perfis de arguidos em processo criminal nos termos do artigo 15º al. g) da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro.
17. Assim, consideramos que o artigo 421º do CPC não tem aplicação.

Termos em que, e nos mais que V. Excelências doutamente suprirão, não se deverá dar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se na íntegra o despacho recorrido.”.
*
5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal da Relação emitiu o seu parecer, nos termos constantes de fls. 157 / 157 Vº, aderindo aos argumentos expendidos pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público na sua resposta, pugnando, pois, pela improcedência do recurso.
*
6. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal [4], não foi apresentada qualquer resposta.
*
7. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2.

Ora, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelo recorrente, são as seguintes as questões que basicamente importa dilucidar:
- Saber se, ao determinar a recolha de amostras biológicas através do método de zaragatoa bucal na saliva do arguido, o despacho recorrido viola o direito à integridade pessoal, liberdade de actuação, direito à privacidade e direito de autodeterminação informacional, previstos nos Artºs. 25º e 26º da Constituição da República Portuguesa, consubstanciando uma intromissão na vida privada do recorrente e, nessa medida, constituindo um método de prova proibido;
- Saber se o despacho recorrido enferma de falta de fundamentação;
- Saber se é desnecessária a ordenada recolha de amostras biológicas através do método de zaragatoa bucal, dado que, sendo o recorrente também arguido no Proc. nº 134/18...., que corre termos no Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., e bem assim no Proc. nº 77/19...., que corre termos no Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., em tais processos, no decurso dos respectivos inquéritos, foi “sujeito a exame de recolha de amostras biológicas através do método de zaragatoa bucal constando tais amostras, por certo”, da base de dados a que alude a Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro; e
- Saber se, caso se constatasse que as amostras biológicas do arguido não se mostram inseridas nas bases de dados de perfis de ADN, nada impedia o titular do inquérito lançar mão do preceituado no Artº 421º do C.P.Civil, por forma a aproveitar a prova recolhida no âmbito dos processos de inquérito em causa, sem necessidade de sujeição do arguido a um novo exame de recolha de amostras de material biológico.
Passemos, então, à análise de tais questões, as quais serão apreciadas segundo a sua precedência lógica.
*
Da pretensa falta de fundamentação do despacho recorrido

Nesta vertente, de uma forma genérica e inconsistente, e sem sequer tipificar a invalidade que aduz ter sido praticada, defende o recorrente que o despacho não está devidamente fundamentado.

Pois que, diz:
- Não ponderou quanto à necessidade da realização do exame ordenado, enquanto diligência útil, relevante e necessária para a descoberta da verdade, em função das demais provas recolhidas ou a recolher futuramente;
- Não fundamentou “os factos que pretende ver provados, indicando se este meio de obtenção de prova é a única forma de provar a participação do arguido nos factos indiciados”; e
- Deveria ter referido se foram recolhidos vestígios biológicos no local da prática do crime, fundamentando a necessidade de esses serem comparados com os vestígios biológicos do arguido.

Vejamos.

De acordo com o princípio geral ínsito no Artº 97º, nº 5, do C.P.Penal, decorrência, aliás, do imperativo constitucional consagrado no Artº 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, os actos decisórios dos juízes (sentenças, acórdãos e/ou despachos) são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Efectivamente, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/03/2005, proferido no âmbito do Proc. nº 05P662, relatado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt, “A fundamentação adequada e suficiente  da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão”, sendo certo que “o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico contido numa decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo”.
Na verdade, quanto ao segundo aspecto, a fundamentação assume no processo penal uma função estruturante das garantias de defesa do arguido, na medida em que lhe assegura “o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 147/2000, de 21/03/2000 [5].
Ora, na situação em apreço, perscrutando o despacho recorrido, torna-se manifesto e evidente que o mesmo está suficientemente fundamentado, nele se tendo abordado todos os aspectos que importava abordar, aí se incluindo as questões supra enunciadas pelo recorrente, que de forma expressa e/ou implícita não deixaram de ser contempladas.
Falece, pois, liminarmente, esta questão recursória do arguido.

Mas, ainda que assim se não entendesse, há que sublinhar que a nossa lei processual penal consagra em matéria de invalidades o princípio da legalidade, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular.

É o que claramente se extrai do Artº 118º, do C.P.Penal, que sob a epígrafe “Princípio da legalidade”, prescreve:

“1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.
(...)”.

Sucede que, a falta de fundamentação dos actos decisórios dos juízes, nos termos consignados no Artº 97º, maxime no seu nº  5, bem como a omissão de pronúncia do tribunal sobre questões que devesse apreciar, apenas são cominadas na lei com a sanção mais grave da nulidade em relação à sentença ou ao acórdão [cfr. Artºs. 374º, nº 2 e 379º, nº 1, als. a) e c)], sendo que, em relação aos demais actos, o legislador remeteu as consequências de tais omissões para o regime das irregularidades previsto no Artº 123º, do C.P.Penal.
Ora, as irregularidades processuais só determinam a invalidade do acto a que se referem quando tiverem sido arguidas pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em tiverem sido notificados para qualquer termo no processo ou intervindo em algum acto nele praticado – cfr. Artº 123º, nº 1, do C.P.Penal.
No caso vertente, como se viu, está em causa o aludido despacho da Mmª Juíza a quo, constante de fls. 119/120, datado de 16/01/2023.
Sucede que, como se estrai da certidão destinada à instrução do presente recurso em separado (cfr. fls. 1), o despacho recorrido foi notificado ao arguido por via postal expedida em 20/01/2023, pelo que a pretensa falta de fundamentação do dito despacho, e a irregularidade daí resultante, deveriam ter sido por si invocadas em conformidade com o estatuído no citado Artº 123º, do C.P.Penal, ou seja, nos três dias seguintes a contar daquela data (considerando-se também, obviamente, a regra geral sobre notificação constante do Artº 113º, nº 2, do C.P.Penal).
O que, claramente, não aconteceu. Pois que apenas em 13/02/2023, e em sede recursória (cfr. fls.127/136), o arguido suscitou tal questão, numa altura em que a mesma já se mostrava sanada.
*
Da alegada violação do direito à integridade pessoal, liberdade de actuação, direito à privacidade e direito de autodeterminação informacional do arguido, previstos nos Artºs. 25º e 26º da Constituição da República Portuguesa / Do alegado método de prova proibido.

Como emerge do autos, constata-se que corre termos na Procuradoria do Juízo Local Criminal ..., Sec. Inquéritos, da Procuradoria da República da Comarca ..., o Inquérito nº 644/19...., no qual é arguido AA, o ora recorrente.
Mais se constata que, no âmbito desse Inquérito, o arguido é suspeito de, no dia 24/01/2019, na Rua ..., ..., ter furtado o veículo automóvel de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-..-CR, e de, no período compreendido entre 24/01/2019 e 12/12/2019, ter colocado duas matrículas no citado veículo com os dizeres “..-..-GP”, factos esses que, em tese, e como bem sustenta o Exmo. Procurador da República na sua douta promoção de 11/01/2023, consubstanciam a prática de um crime de furto, p. e p. pelo Artº 203º, nº 1, do Código Penal, e de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo Artº 256º, nº 1, al. a), do Código Penal.
Verificando-se, ainda, que num dos vestígios recolhidos no interior do citado veículo de marca ..., modelo ..., de cor ... (apreendido em 12-12-2019), nomeadamente numa luva, obteve-se um perfil de ADN de mistura de mais de um indivíduo, e o exame pericial concluiu que não pode ser excluído AA, o ora recorrente.
E que se pretende recolher ao arguido saliva através de zaragatoa para comparar a amostra de ADN do arguido recolhida através de zaragatoa com o vestígio de ADN encontrado na citada luva, diligência à qual o arguido expressamente se opôs, como resulta do termo de 10/01/2023, cuja cópia consta de fls. 117, altura em que, aliás, foi advertido de que a tal recusa poderia “levar à aplicação do disposto no artº 172, nº 1 e 2, 154, nº 2 do CPP e artº 8º, nº 1 da Lei 5/2008 de 12 FEV.”.
Ora, tendo essa recolha sido autorizada / ordenada por via do despacho recorrido, insurge-se o arguido e recorrente contra a mesma, invocando, em síntese, violação do seus direitos à integridade pessoal, liberdade de actuação, privacidade e autodeterminação informacional, previstos nos Artºs. 25º e 26º da Constituição da República Portuguesa, reputando-a de método de prova proibido.
Salvo o devido respeito, não lhe assiste qualquer razão.
Na verdade, este TRG já teve oportunidade de se debruçar sobre esta temática, no acórdão de 26/04/2021, proferido no âmbito do Proc. nº 843/19.1GAVNF-A.G1, disponível in www.dgsi.pt [relatado pela Exma. Desembargadora Cândida Martinho, no qual interveio como adjunto o ora relator], numa situação em tudo idêntica à ora em apreciação, aí se tendo concluído que a recolha coactiva de saliva através de zaragatoa bucal, e posterior utilização do ADN, configura um meio adequado para a descoberta da verdade material e prossecução da finalidade da realização da justiça, sendo um método pouco invasivo, e inexistindo outro menos restritivo para alcançar o objectivo da comparação com os vestígios deixados no interior do veículo, não sendo excessivo nem desproporcional para obter a identidade do arguido, ultrapassando os benefícios para a investigação criminal a ligeira compressão dos direitos fundamentais dos cidadãos.

É isso que, manifestamente, ocorre na situação em apreço, afigurando-se-nos que as considerações jurídicas expendidas em tal aresto, que a seguir se transcrevem, e que aqui subscrevemos e reiteramos, respondem cabalmente às dúvidas e interrogações do recorrente, nada mais de substancial havendo a acrescentar sobre a matéria:

“Dispõe o artigo 126.º, sob a epigrafe “Métodos proibidos de prova”, nos seus nºs 1 e 2, al.s a) e c), do CPP que:
“1 – São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
 2 – São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;…
(…)
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei (…).

Assumindo uma configuração de verdadeiras “garantias de processo criminal” as denominadas “proibições de prova” constituem concretizações processuais de direitos fundamentais, como o direito à integridade pessoal, o direito à reserva da intimidade privada e familiar e o direito à liberdade, consagrados nos artigos 25º,nº1,26º,nº1 e 27º,nº1 da Constituição da República Portuguesa.

Dispõem os citados artigos 25º e 26º, respectivamente:
Artigo 25º:
1.“A integridade moral e física das pessoas é inviolável.
2. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis ou desumanos”.

Artigo 26º
“1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”
Por seu lado, prescreve o artigo 32º,nº8, da C.R.P. que “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”, princípio que encontra consagração nos textos do direito internacional, nomeadamente nos artigos 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, arts.3º e 8º da Convenção Europeia dos Direito do Homem e artigo 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
Estatuindo o artigo 16º,nº1, da CRP que “Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”, dispõe também o artigo 12.º da DUDH que “Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação…”,  proclamando o artigo 8.º da CEDU, no seu n.º 1, o direito de qualquer pessoa pelo respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
Ora, ainda que se admita que a colheita coativa de vestígios biológicos para posterior determinação de perfis de ADN, possa implicar uma afectação, limitação ou restrição de direitos fundamentais do indivíduo sujeito a tal colheita, o uso de tal meio de obtenção de prova terá de desenvolver-se em torno do conflito entre direitos fundamentais do arguido e as finalidades do processo penal, entre as quais a procura da verdade material e a realização da justiça.
Com efeito, pese embora o artigo 18.º,nº2, da CRP estatua que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, “deve o mesmo ser interpretado no sentido de que apenas é ilegítima toda a restrição que atinja o conteúdo essencial de cada um dos direitos subjectivos individuais, isto é, que atente contra as exigências (mínimas) de valor que, por serem de projecção da ideia de dignidade humana, constituem o fundamento (a essência) de cada preceito constitucional nesta matéria.
(…) Daí que o nosso ordenamento jurídico preveja várias situações em que o direito à integridade corporal e o direito à autodeterminação corporal cedem face a interesses comunitários e sociais preponderantes, quer na área da saúde pública, quer na área da defesa nacional, quer na área da justiça, quer noutras áreas. Assim sucede quando se impõem certas condutas corporais como a vacinação obrigatória, os radiorrastreios, o tratamento obrigatório de certas doenças contagiosas, a proibição de dopagem dos praticantes desportivos, o serviço militar obrigatório ou a prestação de serviço cívico e a realização de perícia psiquiátrica e de perícia sobre a personalidade. (Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no recurso nº3261/01, relatado pelo Juiz Conselheiro Dr Oliveira Mendes, citado no Ac. da Relação do Porto de 3 de maio de 2006, recurso 6541/05.4).
Em consonância com o citado artigo 18º e acrescentando o artigo 16º, da C.R.P., no seu nº2, que “Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”, importa também trazer à liça o artigo 29º desta DUDH, o qual permite que o legislador estabeleça limites aos direitos fundamentais para assegurar o reconhecimento ou respeito dos valores enunciados: «direitos e liberdades de outrem», «justas exigências da moral, da ordem pública e do bem estar geral numa sociedade democrática».
De salientar que também o citado artigo 8º da CEDH, admite, no seu nº2, restrições ao direito previsto no nº1, sempre que a ingerência esteja prevista na lei e constitua uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção de infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem.
Ou seja, de tais instrumentos internacionais extrai-se também que tais direitos fundamentais não são absolutos, podendo ceder nas respectivas situações previstas.
No caso vertente, cremos que a decisão recorrida mostra-se acertada, reflectindo uma ponderação equilibrada entre a protecção dos direitos fundamentais do arguido, ora recorrente, por um lado, e o interesse comunitário e o do Estado na administração da justiça penal, por outro lado, atento o  tipo de crimes em apreço e a necessidade do exame ordenado para a descoberta da verdade dos factos e realização da justiça.
Acresce que, estando em causa na colheita ordenada a recolha de saliva através de zaragatoa bucal, em conformidade com o estatuído no artigo 10º da Lei 5/2008 (método não invasivo), afigura-se-nos que nem sequer pode considerar-se susceptível de ofender o direito à integridade corporal do recorrente, mas tão só o direito à autodeterminação corporal, e em grau ou medida que nos parece irrelevante.
Neste conspecto, tendo presente que o exame ordenado tem em vista a procura da verdade material para administração da justiça penal, o que constitui uma exigência da ordem pública e do bem-estar geral, bem como um dos pilares do Estado de direito, há que concluir que a realização compulsiva daquele se mostra justificada e legitimada a significar que a decisão impugnada não viola as normas invocadas ao determinar o exame e perícia mediante extracção de saliva por via de zaragatoa bucal, dado que a mesma apenas é susceptível de ofender o direito à autodeterminação corporal do recorrente em medida irrelevante.
A colheita coativa de vestígios biológicos mostra-se assim um meio adequado para a descoberta da verdade material e prossecução da finalidade da realização da justiça, trata-se de um meio pouco invasivo, não existindo outro menos restritivo para alcançar o objectivo da comparação com os vestígios deixados no interior do veículo, não é excessiva nem desproporcional para obter a identidade do arguido, ou seja, os benefícios para a investigação criminal ultrapassam a ligeira compressão dos direitos fundamentais dos cidadãos.”.
Nestas circunstâncias, face às incidências processuais que os autos nos revelam, resta-nos concluir que o despacho recorrido, ao ordenar o exame rejeitado pelo recorrente, ponderou de forma proporcionada a concordância prática entre as finalidades da realização da justiça e da descoberta da verdade material e a proteção dos direitos fundamentais do arguido, designadamente daqueles que invocou no seu recurso, que não se mostram minimamente violados.
Pelo que, estando o despacho recorrido devidamente fundamentado, e tendo o exame e a diligência ordenada total suporte legal, entre outros, nos Artºs. 171º e 172º, do C.P.Penal, e 8º, nº 1, da Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro [6], soçobra o recurso, neste segmento.
*
Da alegada desnecessidade da ordenada recolha de amostras biológicas através do método de zaragatoa bucal e do recurso ao mecanismo previsto no Artº 421º do C.P.Civil

Nesta vertente invoca o recorrente que é igualmente arguido no Proc. nº 134/18...., que corre termos no Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., e bem assim no Proc. nº 77/19.... que corre termos no Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., e que em tais processos, no decurso dos respectivos inquéritos, foi sujeito a exame de recolha de amostras biológicas através do método de zaragatoa bucal, constando tais amostras da mencionada base de dados de perfis de ADN a que alude a Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro, não existindo, assim, necessidade de se proceder a uma nova recolha, nos termos ordenados no despacho recorrido.
Acrescentando que, caso se constatasse que as amostras biológicas do arguido não se mostram inseridas em tais bases de dados, nada impedia o titular do inquérito lançar mão do preceituado no Artº 421º do C.P.Civil,  por forma a aproveitar a prova recolhida no âmbito dos processos de inquérito em causa, sem necessidade de sujeição do arguido a um novo exame de recolha de amostras de material biológico.
Salvo o devido respeito, esta questão está totalmente votada ao insucesso.
Vejamos.
Estipula o Artº 17º, nº 1, da Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro, que “O INMLCF, I. P., é a entidade responsável pela base de dados de perfis de ADN e pelas operações que lhe sejam aplicáveis.”.
Prescreve, por seu tuno, o Artº 8º, nº 1, do mesmo diploma legal, que “A recolha de amostra em arguido em processo criminal pendente, com vista à interconexão a que se refere o n.º 2 do artigo 19.º-A, é realizada a pedido ou com consentimento do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento escrito, por despacho do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.”.
Acrescentando o nº 7 do mesmo preceito legal que, “Quando se trate de arguido, em processo pendente ou condenado, em vários processos, simultâneos ou sucessivos, não há lugar a nova recolha de amostra e consequente inserção de perfil, utilizando-se ou transferindo-se o perfil do arguido guardado no ficheiro a que se reporta a alínea g) do n.º 1 do artigo 15.º, exceto se a recolha de nova amostra for considerada necessária pela autoridade judiciária competente, oficiosamente ou a requerimento escrito, que pode ouvir, para o efeito, o INMLCF, I. P., ou o LPC, consoante os casos.”.
Estatuindo, finalmente, o Artº 15º, nº 1, al. g), do mesmo diploma legal, que, “Para efeitos da presente lei, é criada uma base de dados de perfis de ADN, para fins de identificação, constituída por (...) um ficheiro destinado a guardar provisoriamente a informação relativa a perfis de arguidos em processo criminal, em que seja aplicável pena igual ou superior a 3 anos de prisão, os quais não podem ser considerados para efeitos de interconexão fora dos casos previstos no artigo 19.º-A.”.
Ora, como bem sublinha o Ministério Público na sua resposta ao recurso, da conjugação dos transcritos preceitos legais resulta que, para que o perfil de ADN do arguido constasse na base de dados de perfis de ADN para fins de investigação criminal, era necessário que as autoridades judiciárias dos processos nºs 134/18.... e 77/19.... tivessem solicitado a inserção de tal perfil no ficheiro da base de dados de perfis de ADN destinado a guardar provisoriamente a informação relativa a perfis de arguidos em processo criminal, nos termos do aludido Artº 15º, al. g), da Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro, o que comprovadamente não sucedeu.
Pois, como claramente se extrai de fls. 139, em 28/03/2023 o “Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I. P.” comunicou aos autos que não consta na Base de Dados de Perfis de ADN qualquer perfil genético referente ao arguido AA.
Consequentemente, e dado que, ademais, nem sequer está demonstrado nos autos que em tais processos o arguido foi sujeito a exame de recolha de amostras biológicas, como alegou, torna-se de todo inviável a sua pretensão, no sentido de se lançar mão dos expedientes que preconiza, mostrando-se totalmente justificada, pois, a recolha da amostra nos termos ordenados no despacho recorrido.
*
Assim, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, conclui-se que não foi violada nenhuma das normas legais e/ou constitucionais invocadas pelo arguido, nem qualquer outra, e que nenhuma censura nos merece o despacho recorrido, que se confirma, improcedendo, in totum, o presente recurso.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando, consequentemente, o despacho recorrido.

 Custas pelo arguido/recorrente AA, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça, em conformidade com as disposições conjugadas dos Artºs. 513º e 514º do C.P.Penal, 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
*
Guimarães, 12 de Junho de 2023

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Florbela Sebastião e Silva (Juíza Desembargadora Adjunta)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)



[1] Todas as transcrições ora efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
[2] Doravante designada de CRP.
[3] Código de Processo Civil
[4] Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
[5] Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000147.html
[6] Diploma legal que  estabelece os princípios de criação e manutenção de uma base de dados de perfis de ADN, para fins de identificação civil e de investigação criminal, regulando, para o efeito, a recolha, tratamento e conservação de amostras de células humanas, a respetiva análise e obtenção de perfis de ADN e a metodologia de comparação de perfis de ADN extraídos das amostras, bem como o tratamento e conservação da respetiva informação em ficheiro informático.